Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
sábado, 20 de novembro de 2021
Inverno
A família estava reunida em torno do fogo,
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Prezi
VIDAS SECAS - Graciliano Ramos Capitulo VII - Inverno by Mathew Williams
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A família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído, sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas
servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas
que se cobriam de cinza.
Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os ramos das catingueiras, e o barulho do rio era
como um trovão distante.
Fabiano esfregou as mãos satisfeito e empurrou os tições com a ponta da alpercata. As brasas estalaram, a cinza caiu, um
círculo de luz espalhou-se em redor da trempe de pedra, clareando vagamente os pés do vaqueiro, os joelhos da mulher e os
meninos deitados. De quando em quando estes se mexiam, porque o lume era fraco e apenas aquecia pedaços deles. Outros
pedaços esfriavam recebendo o ar que entrava pelas rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por isso não podiam
dormir. Quando iam pegando no sono, arrepiavam-se, tinham precisão de virar-se, chegavam-se à trempe e ouviam a conversa
dos pais. Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma
interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam
exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las.
Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto.
Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história bastante confusa, mas como só estavam iluminadas as alpercatas
dele, o gesto passou despercebido. O menino mais velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do pai,
compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no escuro a dificuldade era grande. Levantou-se, foi a um canto da
cozinha, trouxe de lá uma braçada de lenha. Sinha Vitória aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano condenou a
interrupção, achou que o procedimento do filho revelava falta de respeito e estirou o braço para castigá-lo. O pequeno
escapuliu-se, foi enrolar-se na saia da mãe, que se pôs francamente do lado dele. — Hum! hum! Que brabeza!
Aquele homem era assim mesmo, tinha o coração perto da goela. — Estourado.
Remexeu as brasas com o cabo da quenga de coco, arrumou entre as pedras achas de angico molhado, procurou acendê-las.
Fabiano ajudou-a: suspendeu a tagarelice, pôs-se de quatro pés e soprou os carvões, enchendo muito as bochechas. Uma
fumarada invadiu a cozinha, as pessoas tossiram, enxugaram os olhos. Sinha Vitória manejou o abano, e passado um minuto as
labaredas espirraram entre as pedras.
O círculo de luz aumentou, agora as figuras surgiam na sombra, vermelhas. Fabiano, visível da barriga para baixo, ia-se
tornando indistinto daí para cima, era um negrume que vagos clarões cortavam. Desse negrume saiu novamente a parolagem
mastigada.
Fabiano estava de bom humor. Dias antes a enchente havia coberto as marcas postas no fim da terra de aluvião, alcançava
as catingueiras, que deviam estar submersas. Certamente só apareciam as folhas, a espuma subia, lambendo ribanceiras que se
desmoronavam.
Dentro em pouco o despotismo de água ia acabar, mas Fabiano não pensava no futuro. Por enquanto a inundação crescia,
matava bichos, ocupava grotas e várzeas. Tudo muito bem. E Fabiano esfregava as mãos. Não havia o perigo da seca imediata,
que aterrorizara a família durante meses. A catinga amarelecera, avermelhara-se, o gado principiara a emagrecer e horríveis
visões de pesadelo tinham agitado o sono das pessoas. De repente um traço ligeiro rasgara o céu para os lados da cabeceira
do rio, outros surgiram mais claros, o trovão roncara perto, na escuridão da meia-noite rolaram nuvens cor de sangue. A
ventania arrancara sucupiras e imburanas, houvera relâmpagos em demasia — e sinha Vitória se escondera na camarinha com
os filhos, tapando as orelhas, enrolando-se nas cobertas. Mas aquela brutalidade findara de chofre, a chuva caíra, a cabeça da
cheia aparecera arrastando troncos e animais mortos. A água tinha subido, alcançado a ladeira, estava com vontade de chegar
aos juazeiros do fim do pátio. Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível que a água topasse os juazeiros? Se isto
acontecesse, a casa seria invadida, os moradores teriam de subir o morro, viver uns dias no morro, como preás.
Suspirava atiçando o fogo com o cabo da quenga de coco. Deus não permitiria que sucedesse tal desgraça. — An!
A casa era forte. — An!
Os esteios de aroeira estavam bem fincados no chão duro. Se o rio chegasse ali, derrubaria apenas os torrões que formavam o enchimento das paredes de taipa. Deus protegeria a família. — An!
As varas estavam bem amarradas com cipós nos esteios de aroeira. O arcabouço da casa resistiria à fúria das águas. E
quando elas baixassem, a família regressaria. Sim, viveriam todos no mato, como preás. Mas voltariam quando as águas
baixassem, tirariam do barreiro terra para vestir o esqueleto da casa. — An!
Sinha Vitória moveu o abano com força para não ouvir o barulho do rio, que se aproximava. Seria que ele estava com
intenção de progredir? O abano zumbia, e o rumor da enchente era um sopro, um sopro que esmorecia para lá dos juazeiros.
Fabiano contava façanhas. Começara moderadamente, mas excitara-se pouco a pouco e agora via os acontecimentos com
exagero e otimismo, estava convencido de que praticara feitos notáveis. Necessitava esta convicção. Algum tempo antes
acontecera aquela desgraça: o soldado amarelo provocara-o na feira, dera-lhe uma surra de facão e metera-o na cadeia.
Fabiano passara semanas capiongo, fantasiando vinganças, vendo a criação definhar na catinga torrada. Se a seca chegasse,
ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o delegado.
Estivera uns dias assim murcho, pensando na seca e roendo a humilhação. Mas a trovoada roncara, viera a cheia, e agora as
goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos das paredes.
Fabiano estava contente e esfregava as mãos. Como o frio era grande, aproximou-as das labaredas. Relatava um fuzuê
terrível, esquecia as pancadas e a prisão, sentia-se capaz de atos importantes.
O rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros. Não havia notícia de que os houvesse atingido — e Fabiano, seguro,
baseado nas informações dos mais velhos, narrava uma briga de que saíra vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano
acreditava nela.
As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam
engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria.
Engordariam todos, ele, Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia. Talvez sinha Vitória adquirisse uma cama de
lastro de couro. Realmente o jirau de varas onde se espichavam era incômodo.
Fabiano gesticulava. Sinha Vitória agitava o abano para sustentar as labaredas no angico molhado. Os meninos, sentindo
frio numa banda e calor na outra, não podiam dormir e escutavam as lorotas do pai. Começaram a discutir em voz baixa uma
passagem obscura da narrativa. Não conseguiram entender-se, arengaram azedos, iam-se atracando. Fabiano zangou-se com a
impertinência deles e quis puni-los. Depois moderou-se, repisou o trecho incompreensível utilizando palavras diferentes.
O menino mais novo bateu palmas, olhou as mãos de Fabiano, que se agitavam por cima das labaredas, escuras e
vermelhas. As costas ficavam na sombra, mas as palmas estavam iluminadas e cor de sangue. Era como se Fabiano tivesse
esfolado um animal. A barba ruiva e emaranhada estava invisível, os olhos azulados e imóveis fixavam-se nos tições, a fala
dura e rouca entrecortava-se de silêncios. Sentado no pilão, Fabiano derreava-se, feio e bruto, com aquele jeito de bicho lerdo
que não se aguenta em dois pés.
O menino mais velho estava descontente. Não podendo perceber as feições do pai, cerrava os olhos para entendê-lo bem.
Mas surgira uma dúvida. Fabiano modificara a história — e isto reduzia-lhe a verossimilhança. Um desencanto. Estirou-se e
bocejou. Teria sido melhor a repetição das palavras. Altercaria com o irmão procurando interpretá-las. Brigaria por causa das
palavras — e a sua convicção encorparia. Fabiano devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma variante, o herói tinha-se
tornado humano e contraditório. O menino mais velho recordou-se de um brinquedo antigo, presente de seu Tomás da
bolandeira. Fechou os olhos, reabriu-os, sonolento. O ar que entrava pelas rachas das paredes esfriava-lhe uma perna, um
braço, todo o lado direito. Virou-se, os pedaços de Fabiano sumiram-se. O brinquedo se quebrara, o pequeno entristecera
vendo as peças inúteis. Lembrou-se dos currais feitos de seixos miúdos, sob as catingueiras. Agora a lagoa estava cheia, tinha
coberto os currais que ele construíra. O barreiro também se enchera, atingia a parede da cozinha, as águas dele juntavam-se às
da lagoa. Para ir ao quintal onde havia craveiros e panelas de losna, sinha Vitória saía pela porta da frente, descia o copiar e
atravessava a porteira da baraúna. Atrás da casa, as cercas, o pé de turco e as catingueiras estavam dentro da água. As
goteiras pingavam, os chocalhos das vacas tiniam, os sapos cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos
sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava mudado. Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e
capões de mato onde viviam seres misteriosos tinham sido violados. Havia lá sapos. E a cantiga deles subia e descia, uma
toada lamentosa enchia os arredores. Tentou contar as vozes, atrapalhou-se. Eram muitas, com certeza havia uma infinidade de
sapos nas moitas e nos capões. Que estariam fazendo? Por que gritavam a cantoria gorgolejada e triste? Nunca vira um deles,
confundia-os com os habitantes invisíveis da serra e dos bancos de macambira. Enrolou-se, acomodou-se, adormeceu, uma
banda aquecida pelo fogo, a outra banda protegida pelas nádegas de sinha Vitória.
O abano agitava-se, a madeira úmida chiava, o vulto de Fabiano iluminava-se e escurecia.
Baleia, imóvel, paciente, olhava os carvões e esperava que a família se recolhesse. Enfastiava-a o barulho que Fabiano
fazia. No campo, seguindo uma rês, ele se esgoelava demais. Natural. Mas ali, à beira do fogo, para que tanto grito? Fabiano
estava-se cansando à toa. Baleia se enjoava, cochilava e não podia dormir. Sinha Vitória devia retirar os carvões e a cinza,
varrer o chão, deitar-se na cama de varas com Fabiano. Os meninos se arrumariam na esteira, por baixo do caritó, na sala. Era bom que a deixassem em paz. O dia todo espiava os movimentos das pessoas, tentando adivinhar coisas incompreensíveis.
Agora precisava dormir, livrar-se das pulgas e daquela vigilância a que a tinham habituado. Varrido o chão com vassourinha,
escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia, adormeceria no calor, sentindo o cheiro das cabras molhadas e ouvindo rumores
desconhecidos, o tique-taque das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam
visitá-la.
*** *** https://iedamagri.files.wordpress.com/2020/02/vidas-secas-graciliano-ramos.pdf *** ***
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www.himalaya.com
Vidas Secas (Graciliano Ramos) - Capítulo 7: INVERNO - Vidas Secas (Graciliano
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7 - Inverno
A família se reunia em torno do fogo, que mal aquecia parte do corpo dos meninos, que não conseguiam dormir por causa do vento gelado que entrava pelas frestas das paredes e portas. Eles estavam deitados no colo de Sinhá Vitória que conversava com Fabiano. Baleia observava o fogo.
O filho mais velho foi buscar mais lenha. Fabiano se irritou, achava aquilo um desrespeito e iria castigá-lo. A mãe o defendeu.
A conversa do casal, como sempre ressalta o autor, seguia de forma não muito efetiva: cheia de urros, palavras mal faladas, sons guturais… Não havia um assunto, apenas expressões soltas, histórias sem nexo. Para compensar a dificuldade de compreensão mútua, falavam alto. Entendiam-se assim. Fabiano se exaltava, tentando contar suas peripécias imaginárias, em que enfrentava o soldado amarelo e vencia a luta.
Sinhá Vitória ouvia o barulho da chuva forte, as goteiras pingando, o barulho do rio que antes parecia um trovão distante agora corria próximo aos juazeiros. Ela tinha medo de uma inundação. As vacas já se acomodavam junto à parede da casa. Sapos faziam barulho lá fora. Algo inusitado para os pequenos. Nunca havia sapos lá.
E os pequenos, sem dormir, ouviam as histórias de Fabiano, se encantando com as conquistas do pai. Numa passagem, no entanto, eles discutem como teria ocorrido realmente o caso. Fabiano intercede, explicando novamente a história, com outras palavras. Os meninos percebem uma mudança na narração que tira a veracidade dos fatos. Seria melhor ele ter repetido a história do mesmo jeito. Agora tudo era desinteressante. Assim como para baleia, que cochilava a todo o momento.
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Resumo de Vidas Secas - Capítulo 7 - Inverno
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Resumo de Vidas Secas - Capítulo 7 - Inverno
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