Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
quarta-feira, 31 de março de 2021
Privilegiados sem-vergonha
Na modernidade , os privilegiados não são príncipes nem condes.
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CONTARDO CALLIGARIS
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"Eu nasci numa cidade cujas pedras e cujos escombros, antes mesmo que os pudesse ler, falavam a linguagem da modernidade: não fique parado em bombas-relógio, siga em frente. Eu tenho sido um estrangeiro desde então."
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https://www.fronteiras.com/artigos/a-estrada-da-memoria
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Na modernidade , os privilegiados não são príncipes nem condes. Eles devem seu status à sua riqueza e, fato crucial, ao olhar dos outros: "Pertenço à classe A ou B pela minha renda, mas essa não significaria nada se as classes C, D e E não me reconhecessem como privilegiado".
A exigência de reconhecimento torna nossa vida um pouco fútil, mas, em compensação, todos podemos melhorar nossa condição: é só dar duro (ou ter sorte) e exibir nosso sucesso aos outros.
De fato, essa melhor modernidade possível é, com freqüência, um mundo prepotente e vulgar.
Os privilegiados modernos "devem" esbanjar para que os outros reconheçam que eles pertencem ao andar de cima. Além disso, a promessa de que sempre haverá novos privilegiados (ou seja, a mobilidade social) é uma parte imprescindível do pacote.
Ora, acontece que uma "elite" econômica recente é sempre insegura de seu direito de ser elite. Conseqüência: empurrada pelo anseio de mostrar seu novo status ao mundo, a "elite" econômica emergente usa e abusa de seu poder. Por conceber a vida como uma feira de vaidades, ela só conhece uma vergonha: a vergonha de não conseguir impressionar os menos favorecidos.
É difícil que a crítica desse hábito da mente transforme os costumes dos neoprivilegiados. Ao serem criticados, eles entendem as vozes que os reprovam apenas como manifestações de inveja reprimida, ou seja, indiretamente, de reconhecimento de seu status.
Na Folha de quinta passada, Walter Salles escreveu sobre "os idiotas", que sobrevoam de helicóptero em vôo rasante as praias de Ilha Grande. Aposto que, nos olhares indignados de quem acha intolerável sua vulgaridade, eles enxergam a prova de uma inveja que confirmaria sua superioridade. Para eles, a verdadeira vergonha é a de não ter um helicóptero.
Será que a sem-vergonhice dos privilegiados é uma fatalidade moderna?
De fato, não é obrigatório que os privilegiados comprovem seu status pelo esbanjo e pela ostentação. Afinal, por que não desejariam ser reconhecidos por sua generosidade e por sua responsabilidade social? Não é assim que eles se tornariam propriamente uma elite?
Sem dúvida; mas, para isso, seria preciso que os neoprivilegiados mudassem sua visão do mundo. Seria preciso que eles constatassem, ou melhor, sentissem que a experiência humana (inclusive a deles próprios) é mais complexa do que a tarefa de melhorar, comprovar e ostentar status.
Fazer valer a complexidade da experiência humana e nos interessar por ela, essa é uma das funções básicas da cultura, em todas as suas formas. A cultura é, para nós, modernos, o equivalente dos códigos que, nas sociedades tradicionais, ditavam as condutas certas e os motivos de vergonha. À diferença desses códigos, a cultura não é normativa: ela nos dá acesso a um repertório infinito de destinos e nos convida a medir livremente a qualidade de nossos atos num labirinto de histórias complexas como é, de fato, a vida. O problema é que, em geral, a cultura não está entre as prioridades dos neoprivilegiados.
Claro, o tempo ajuda. Nas melhores condições, em duas ou três gerações, os neoprivilegiados podem deixar de se preocupar tanto com a ostentação que comprovaria seu status e descobrir a complexidade do mundo. Eles podem, em suma, produzir uma elite que mereça esse nome.
Também há casos excepcionais, em que os neoprivilegiados não se perdem na tarefa de ostentar suas conquistas. Às vezes, eles carregam consigo uma sólida referência à cultura ancestral de sua origem humilde.
Mas a regra geral continua a mesma: quanto mais rápido o acesso a um status superior e quanto menor o apego à cultura, tanto mais a necessidade de ganhar legitimidade produz privilegiados sem pudor no uso e abuso de seu poder.
O Brasil é um país de alta mobilidade social (veja-se o livro de José Pastore e Nelson do Valle Silva, "Mobilidade Social no Brasil"). E não se pode dizer que o apego à cultura garanta, entre nós, uma rápida transformação dos privilegiados em verdadeira elite. Essas duas condições prometem ondas inesgotáveis de privilegiados sem-vergonha.
A essas condições, acrescente-se o caráter conservador da modernização brasileira. "Elites" inseguras, na procura de uma maneira definitiva de confirmar o privilégio que elas acabam de conquistar, perguntam-se, inquietas: "Se qualquer um pode estar amanhã no meu lugar, que privilégio é o meu?". A solução que elas encontram é um paradoxo: elas se afirmam pela ostentação (como as "elites" modernas), mas procuram meios de garantir a exclusão dos menos favorecidos (como as elites tradicionais). Querem subir na vida fechando a porta atrás de si.
Seu estratagema é duplo. Econômico: consiste em fazer o necessário para que os menos favorecidos permaneçam longe da escada que permitiria sua ascensão social. Psicológico: trata-se de envergonhar o povo, de transformar sua pobreza em motivo de vergonha. Para isso, basta que a ostentação e o abuso se tornem costumes da comunidade inteira, de forma que, para todos, a única vergonha que importa seja a de não conseguir impressionar os outros. Nasce assim a vergonha de ser pobre.
@ - ccalligari@uol.com.br
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https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1602200621.htm
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o conto do amor contado calligaris
Contardo Calligaris 1 – Desbravando os sertões da moral
Fãs da extinta Primeira Leitura e muitos dos outros milhares de leitores que passaram a freqüentar este blog depois de hospedado por VEJA me cobram a publicação da entrevista que fiz com Contardo Calligaris em abril do ano passado, publicada na edição de maio, penúltimo número da revista. De fato, gosto muito do resultado — […]
Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 20h14 - Publicado em 5 nov 2007, 05h33
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Fãs da extinta Primeira Leitura e muitos dos outros milhares de leitores que passaram a freqüentar este blog depois de hospedado por VEJA me cobram a publicação da entrevista que fiz com Contardo Calligaris em abril do ano passado, publicada na edição de maio, penúltimo número da revista. De fato, gosto muito do resultado — e Contardo também.
Dado o ambiente de vulgaridade e mistificação que tomava e toma conta do país, eu a considero, ainda hoje, um presente aos leitores. É uma conversa longa — 16 páginas. Optei, vocês verão, por uma edição um tanto complicada, mas bem-sucedida, com rubricas laterais que servem de guia ao leitor, já que, num bate-papo de mais de quatro horas, passeamos por muitos autores e fatos históricos.
Havia marcado de encontrá-lo em seu consultório no dia 18 de abril do ano passado. Tive uma crise de tontura. Cancelei. Remarcamos para o dia 21, feriado nacional. Eu continuava doente. Liguei, constragido, afirmando que não conseguia andar. Ele se dispôs a vir à minha casa. Embora eu mal pudesse mexer a cabeça sem que arrastasse comigo o mundo à volta, a conversa fluiu boa e generosa. O resto vocês já sabem. Em maio, fiz as cirurgias. Em junho, Primeira Leitura fechava as portas — de fato, em abril, já sabíamos que estava condenada. Foi-se. Sem estrondo nem suspiro.
A íntegra em PDF está neste endereço:
http://tinyurl.com/36r3nb (é preciso copiá-lo).
Na seqüência, a abertura da entrevista. No post abaixo deste, um trecho do diálogo.
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Gosto da palavra “alastrante”. Como qualquer outra, pode ser boa ou ser má. Ruim é o mal que se alastra; bom é quando a generosidade contamina. A primeira vez que me lembro de a ter lido em literatura foi num poeminha de Mário Quintana – “pois que tem que a gente inclua no mesmo alastrante amor (…)?” –, e a palavra me pegou para sempre. Se gosto de coisas, de gente, eu as digo, então, “alastrantes”. Os versos do gaúcho eram uma citação de Proust, No Caminho de Swann, o primeiro dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. Swann estava em frente à casa de Odette e descobriu que até mesmo a macieira pertencia à sua ordem de afetos, a seu “alastrante amor”. Tempo, memória, experiência individual, vivência subjetiva. Foro íntimo.
O psicanalista Contardo Calligaris, italiano de nascimento, andarilho por escolha, é de uma inteligência “alastrante”. Seguem a esta abertura 14 páginas de uma entrevista encantadora por conta do rigor intelectual do entrevistado e, vá lá, da disposição deste interlocutor de se deixar contaminar pelo “Bem”, por aquele que falava e se expressava com toda a singularidade que faz cada um de nós ser o que é. “O Mal”, ele nos diz, “está no coletivo, na renúncia ao foro íntimo.” O indivíduo ainda é a mais eficaz defesa contra a barbárie, o totalitarismo, o vulgaridade. Certa feita, um jovem que se queria marxista, de 14 ou 15 anos, apostrofou o pai, que houvera sido militante antifascista sem ser, no entanto, comunista: “Como podia?”. E o pai, então, lhe deu uma resposta iluminada: “Eu era antifascista porque, no fundo, achava os fascistas tão vulgares!”.
O menino também é pai do homem, como nos ensinou Machado de Assis, ou seu Brás Cubas. Aquelas palavras foram repercutir mais tarde, quando Contardo conheceu Roland Barthes, de quem foi aluno, e percebeu que a estética também pode ser uma ética: “Uma ética do não-dogmatismo, da curiosidade, da capacidade de amar a própria coisa, desde uma história em quadrinhos até Chateaubriand”. E então desandamos a falar da necessidade da arte, de sua função, que não pode ser outra senão “a harmonia interna que produz”. Mas ainda faltava ser mais explícito: “A produção de um objeto cuja finalidade é externa, por exemplo, que é ideológica e declarativa, não é mais uma produção artística. Isso vale tanto para a arte conceitual como para o realismo socialista”.
E, assim, passamos a tarde, numa conversa que propus, e ele topou, fosse dividida em três partes, como em Os Sertões, de Euclides da Cunha: O Homem, A Terra, A Luta. Queria chegar a outros sertões, a outras lutas, menos sangrentas talvez, mas não menos duras. Na primeira parte, falamos desse homem todo-mundo-e-ninguém, gênero neutro, que designa a espécie, e de um outro, ele próprio, o escrutinado da tarde. Na segunda, o ambiente de nossas pelejas, o mundo, este Brasil onde a fraqueza da cultura republicana faz com que um escândalo de grandes proporções ainda seja percebido como coisa quase corriqueira.
Passeamos por autores da urbe e da orbe, tentando contar e recontar histórias, em busca de tempos e oportunidades perdidos. Para poder ver mais adiante. Ou, ao menos, ter instrumentos para tanto.
É nessa parte que estão as lutas mundanas, o conflito de culturas, a marcha da civilização, os instrumentos com que entender e reinventar o mundo, as utopias que matam, os amores que são de salvação. Pensador da cultura, ele jamais se nega ou refuga. Lembro-me de São Paulo na Primeira Epistola aos Coríntios: posso tudo, mas nem tudo me convém. Eis um dos fundamentos, a liberdade, plasmado na civilização ocidental e que é, sim, seu mais precioso valor, pelo qual vale a pena lutar. Falei de Paulo? Contardo considera que as bases do bom individualismo moderno estão dadas pelo cristianismo. A conversão nasce da escolha. Ali se fundava uma idéia de humanidade, que antes não existia.
A terceira parte, A Luta, ficou reservada ao homem no espelho – vamos falar um pouco do narcisismo –, aquele que chega ao divã do analista, “doente por falta de significado e de significação”, como qualquer um de nós, e procura, então, uma narrativa para sua vida, uma história. Que, contada e recontada, vai concorrendo para redefini-lo e levá-lo, então, até a margem do rio. Ao fim da entrevista, talvez estivéssemos ambos felizes – eu estava: um pouco tonto e feliz.
Explico o meu estado. Havia marcado a entrevista para o dia 18 de abril. Fui acometido de uma crise de labirintite. No dia 21, ainda não estava bem, e era o meu prazo-limite. Mas não tinha como sair. O andarilho Calligaris, aceitando, desta feita, um percurso mais curto, dispôs-se a ir até a minha casa, uma doação ao paciente daquela tarde. Mas ele mesmo diz que uma das coisas boas da psicanálise é não “dar presentes”. Fizemos algumas trocas simbólicas – eu saí ganhando, é claro – e tentamos pôr alguma ordem entre o “cosmos sangrento e a alma pura” (ave, Mário Faustino!). Tentamos entender os “hábitos do corpo e da mente” de que fala Tocqueville, que ambos apreciamos tanto.
E eu indaguei, com Hannah Arendt, outro afeto intelectual e moral compartilhado, como é que podemos, então, resistir ao “mal” e manter o “foro íntimo”, a inviolabilidade do indivíduo, morada suprema da liberdade. A resposta se lê páginas adiante. Mesmo longa, muita coisa deixa de ser publicada nesta entrevista. O dia caiu menos “doente de falta de significado e de significação”. Eu o acompanhei, trôpego, até a garagem, voltei, fechei a porta e comentei com a minha mulher: “Ele é de uma inteligência alastrante”.
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https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/contardo-calligaris-1-8211-desbravando-os-sertoes-da-moral/
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Foto por Robina Weermeijer no Unsplash
Como o cérebro funciona? Conceitos básicos
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https://vitallogy.com/feed/Como+o+cerebro+funciona%3F+Conceitos+basicos/270
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Brasil
Contardo Calligaris 2 – “O difícil é ser moral. Ser imoral é que é para principiantes”
(…)É possível falar do caráter de um povo?Eu fiz isso, todo mundo faz. É uma herança do século 19. É muito...
Leia mais em: https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/contardo-calligaris-2-o-dificil-e-ser-moral-ser-imoral-e-que-e-para-principiantes-8221/
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Psicanalista mais conhecido do país, Contardo Calligaris morre aos 72 anos
Autor de uma das colunas mais lidas da "Folha de S.Paulo", Contardo perdeu a luta contra um câncer. “Espero estar à altura”, teria dito pouco antes de morrer
Por Daniel Salles
Publicado em: 30/03/2021 às 14h34
Alterado em: 30/03/2021 às 20h21
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Tempo de leitura: 3 min
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Contardo Calligaris
Autor de uma das colunas mais lidas da "Folha de S. Paulo", Contardo nasceu em milão e vive no Brasil há mais de vinte anos; causa da morte não foi divulgada (Instagran/Divulgação)
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Ora, para Nise Yamagushi, um câncer, mesmo ameaçador, pode e deveria ser uma ocasião para redescobrir a vida: 'Prepare-se para viver'.
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Oncologista Nise Yamaguchi reflete sobre busca pela cura do câncer de forma humanista
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Não foram poucos os brasileiros que se aproximaram dos complexos conceitos freudianos por meio da prosa clara e envolvente de Contardo Calligaris. Nascido em Milão, na Itália, há 72 anos (e radicado no Brasil há vinte), o psicanalista morreu nesta terça-feira (30) em decorrência de um câncer – para tratá-lo, estava internado no Hospital Albert Einstein desde fevereiro. A morte foi confirmada pelo filho, o diretor de cinema Max Calligaris, por meio de uma postagem no Instagram. "'Espero estar à altura'. Diante da proximidade da morte, essa foi a frase do meu pai. Ele se foi agora", escreveu o filho.
Muitos o conheceram graças à coluna que assinava na Folha de S. Paulo, uma das mais lidas do jornal, desde 1999. Nela aproximava a psicanálise do cotidiano, mostrando que não se trata de um bicho de sete cabeças. Ele lapidou os conceitos elaborados por Freud na Escola Freudiana de Paris. Nos anos 1970, chegou a ter aulas com Jacques Lacan. Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de Provença (França), Contardo foi Professor de Antropologia na Universidade da Califórnia em Berkeley (Estados Unidos) e de Estudos culturais na The New School em Nova York.
A aproximação com o Brasil, onde aprendeu a falar um inconfundível português italianado, deve-se a seu primeiro livro, Hipótese sobre o fantasma. Foi para divulga-lo que veio ao país em 1986. Também publicou livros de ensaios, a exemplo de Crônicas do individualismo cotidiano, de 1996, sobre o mal-estar contemporâneo, e relatos de viagem, como Hello Brasil, de 2000. Cartas a um jovem terapeuta, de 2007, voltado a estudantes, profissionais ou pessoas interessadas em estudos da mente, virou uma de suas obras mais conhecidas. Quinta coluna reúne mais de 100 textos publicados na imprensa entre 2004 e 2007.
Marcou presença na televisão com inúmeras participações em programas de entrevista e com a série ficcional PSI, da qual foi o criador. Levada ao ar pela HBO em 2014, gira em torno de Carlos Antonini (Emílio de Mello), um psicanalista. É o mesmo protagonista do romance A mulher de vermelho e branco, publicado por Calligaris em 2011.
"Outras doenças matam tanto quanto o câncer, se não mais, mas o câncer, também pelo lugar que ainda ocupa no imaginário popular, parece avivar o espantalho da nossa finitude como nenhuma outra enfermidade", Contardo escreveu numa coluna publicada na Folha em outubro de 2019. "Talvez, durante muito tempo, um diagnóstico de câncer tenha sido só isto: 'Lembre-se que vai morrer e prepare-se para isso'. Ora, para Nise Yamagushi, um câncer, mesmo ameaçador, pode e deveria ser uma ocasião para redescobrir a vida: 'Prepare-se para viver'.
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https://exame.com/casual/contardo-calligaris-morre-aos-72-anos/
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