Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 22 de março de 2021
- Não basta
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Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido.
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Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
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Fernando Pessoa
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É uma boa carta. Antes tarde do que nunca.
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Monica de Bolle, PhD
@bollemdb
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21 de mar
Que a carta dos economistas publicada hoje no jornal O Globo, reconhecendo tudo aquilo que estamos dizendo há meses, sirva para finalmente colocar a profissão do lado certo da pandemia. É uma boa carta. Antes tarde do que nunca.
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https://twitter.com/bollemdb/status/1373673715146313728
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"Tem risco de não cumprir o que promete", diz economista no Roda Viva sobre o auxílio emergencial
Economista Gustavo Franco é convidado do Roda Viva desta segunda-feira (22)
Da Redação
22/03/2021 22h45
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https://cultura.uol.com.br/noticias/17932_tem-risco-de-nao-cumprir-o-que-promete-diz-economista-no-roda-viva-sobre-o-auxilio-emergencial.html
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Roda Viva | Gustavo Franco | 22/03/2021
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Transmissão ao vivo realizada há 12 horas
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No Roda Viva, a jornalista Vera Magalhães recebe o economista Gustavo Franco.
Mestre em Economia pela PUC-RJ e PHD em Harvard, Gustavo Franco foi diretor da área internacional e presidente do Banco Central, além de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, entre 1993 e 1999.
Em artigos recentes, publicados na imprensa, Gustavo Franco tem alertado que, por maior que sejam os problemas atuais na área econômica, o quadro ainda não está definido para esse ano e é possível que surjam surpresas nos próximos meses. Na entrevista, ele fará uma análise da situação econômica do País, do estrago feito nas contas do governo pela pandemia e da falta de reformas que ajudem a enfrentar a crise.
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https://www.youtube.com/watch?v=3qCilXCrTZM
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Na íntegra: o que diz a dura carta de banqueiros e economistas com críticas a Bolsonaro e propostas para pandemia
22 março 2021, 09:30 -03
Atualizado Há 2 horas
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Imagem mostra pacientes em leitos de emergênciaCRÉDITO,DIEGO VARA/REUTERS
"Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas", diz carta; Brasil vive o maior colapso sanitário e hospitalar de sua história, aponta a Fiocruz
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Em carta aberta, mais de 200 economistas, banqueiros, empresários e ex-autoridades do setor público fizeram críticas à atuação ao governo Bolsonaro na pandemia, cobraram mais vacinas, máscaras gratuitas e medidas de distanciamento social e refutaram o "falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável".
"Dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de covid-19", afirma o documento, assinado por nomes como os banqueiros Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles (Itaú), os ex-ministros Pedro Malan e Rubens Ricupero e os economistas como Laura Carvalho, Elena Landau e Affonso Celso Pastore, este ex-presidente do Banco Central.
A carta de quase 2.700 palavras pode ser dividida em dois: um diagnóstico da situação sanitária e econômica alarmante do país hoje e uma defesa de quatro grandes medidas contra o avanço da doença.
"Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive."
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O que é estado de sítio e por que não é possível compará-lo a lockdown, como fez Bolsonaro
Covid-19 acentua crise do setor de hemodiálise e 140 mil brasileiros correm risco sem tratamento
Epidemia de fake news ameaça vacinação em terras indígenas
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Nas últimas três semanas, o Brasil vem batendo diariamente sucessivos recordes de mortes registradas num período de 24 horas. Atualmente, a média diária é de 2.255 mortes, mas a tendência é de alta, e alguns pesquisadores não descartam que esse número pode até dobrar em breve.
Quase 300 mil pessoas morreram até agora, diversas cidades do país estão com hospitais lotados e muitos profissionais de saúde e autoridades alertam para a iminente falta de oxigênio e de medicamentos essenciais para intubar pacientes graves, que levaria a um aumento expressivo das mortes pela doença.
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Legenda do vídeo,
Covid-19: mapa da Fiocruz mostra UTIs brasileiras no vermelho
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Desemprego recorde e vacinação lenta
Para o grupo que assina a carta aberta pedindo medidas de combate à pandemia, a situação econômica e social do Brasil é "desoladora".
O PIB (soma de todas riquezas produzidas no país em um período) continua a cair neste ano, o desemprego atingiu níveis recordes e pode ser maior do que apontam as estatísticas e a desigualdade se agravou.
"A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados."
Os signatários da carta também criticam o governo Bolsonaro pela falta de vacina e lentidão do programação nacional de imunização, que levaria teria impacto direto na recuperação econômica. " Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia. No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população."
E acrescentam: "Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante."
Quatro propostas contra a crise
Vacinação mais rápida
Os signatários da carta aberta fazem duras críticas ao governo federal pela falta de vacinas no país. "A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação."
O grupo aponta que "a relação benefício-custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação" e calcula que o atraso na vacinação "irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em dois trimestres".
Para eles, é fundamental que o governo use sua política externa para obter mais vacinas com grandes países produtores ou com aqueles com excedentes, como o caso dos Estados Unidos.
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou que negocia desde 13 de março com o governo norte-americano a importação de doses excedentes de vacina. Mas ainda não se sabe se os EUA vão de fato vender ou doar esses imunizantes e nem quantos seriam.
Até agora, o país disse ter garantido 563 milhões de doses de vacina, mas a entrega delas será escalonada ao longo desse ano se tudo correr conforme planejado, o que não tem se confirmado durante a pandemia.
Grande parte dessas doses depende da exportação de outros países, que tem atrasado, como Índia e China, além de vacinas que ainda não foram aprovadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), como a indiana Covaxin, a belga Janssen e a russa Sputnik.
Máscaras gratuitas e eficazes
Na carta aberta, o grupo de signatários defende outra medida tida como um ótimo custo-benefício: a distribuição massiva de máscaras com filtragem eficaz contra o coronavírus que não custam mais do que R$ 3.
"Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial."
Máscaras que atendem normas técnicas, como a FFP2 e N95, têm uma estrutura semi-rígida (algumas em modelo concha e outras dobráveis), uma peça metálica para contornar o nariz e elásticos que ficam presos na cabeça e na nuca, gerando uma tensão maior que em modelos presos apenas na orelha.
Essa vedação é o que faz com que todo o ar inspirado e expirado passe pelo filtro, que é composto por várias camadas que fazem filtragem mecânica (partículas colidem e ficam presas nas fibras) e eletrostática (partículas são atraídas por fibras com carga elétrica).
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infografico
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É essa combinação de vedação e filtragem, explicou o engenheiro biomédico Vitor Mori à BBC News Brasil, que torna a máscara tão eficiente e garante que o usuário também está se protegendo, e não apenas protegendo os outros.
Há mais críticas direcionadas ao governo Bolsonaro nesse quesito, visto que o presidente é o principal opositor a elas no país.
"Estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio."
Coordenação nacional para diretrizes e distanciamento social
Para signatários da carta, a postura de líderes políticos que desdenham da ciência, defendem tratamentos sem eficácia comprovada e estimulam aglomerações "reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos e aumenta custos que o país incorre".
O grupo defende coordenação do governo federal, e no caso de sua ausência de governos estaduais e prefeituras, para comprar vacinas e adotar medidas para conter o avanço da doença, como eventuais lockdowns (quando a circulação de pessoas é duramente limitada) restrições a viagens intermunicipais, interestaduais e internacionais.
Eles cobram que o governo federal deixe de agir contra os gestores que adotam essas medidas. Bolsonaro, inclusive, recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra medidas do tipo adotadas pelos governadores da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul.
"Muitos Estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores."
Como medida para tornar possível e eficaz o distanciamento social mais amplo, o grupo defende os programas de amparo socioeconômico, como o auxílio emergencial.
"Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários."
Leia abaixo a carta na íntegra
CARTA ABERTA À SOCIEDADE REFERENTE A MEDIDAS DE COMBATE À PANDEMIA
O Brasil é hoje o epicentro mundial da covid-19, com a maior média móvel de novos casos.
Enquanto caminhamos para atingir a marca tétrica de 3 mil mortes por dia e um total de mortes acumuladas de 300 mil ainda esse mês, o quadro fica ainda mais alarmante com o esgotamento dos recursos de saúde na grande maioria de estados, com insuficiente número de leitos de UTI, respiradores e profissionais de saúde. Essa situação tem levado a mortes de pacientes na espera pelo atendimento, contribuindo para uma maior letalidade da doença.
A situação econômica e social é desoladora. O PIB encolheu 4,1% em 2020 e provavelmente observaremos uma contração no nível de atividade no primeiro trimestre deste ano. A taxa de desemprego, por volta de 14%, é a mais elevada da série histórica, e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 5,5 milhões de pessoas.
A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados.
Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia. Sabemos que a saída definitiva da crise requer a vacinação em massa da população. Infelizmente, estamos atrasados. Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante.
O ritmo de vacinação no país é insuficiente para vacinar os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no 1º semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022.
As consequências são inomináveis. No momento, o Brasil passa por escassez de doses de vacina, com recorrentes atrasos no calendário de entregas e revisões para baixo na previsão de disponibilidade de doses a cada mês. Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia.
No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população. O surgimento de novas cepas no país (em especial a P.1) comprovadamente mais transmissíveis e potencialmente mais agressivas, torna a vacinação ainda mais urgente. A disseminação em larga escala do vírus, além de magnificar o número de doentes e mortos, aumenta a probabilidade de surgirem novas variantes com potencial de diminuir a eficácia das vacinas atuais.
Vacinas são relativamente baratas face ao custo que a pandemia impõe à sociedade. Os recursos federais para compra de vacinas somam R$ 22 bilhões, uma pequena fração dos R$ 327 bilhões desembolsados nos programas de auxílio emergencial e manutenção do emprego no ano de 2020.
Vacinas têm um benefício privado e social elevado, e um custo total comparativamente baixo. Poderíamos estar em melhor situação, o Brasil tem infraestrutura para isso. Em 1992, conseguimos vacinar 48 milhões de crianças contra o sarampo em apenas um mês.
Na campanha contra a Covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção da população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior. A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica. A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres.
Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação.
O quadro atual ainda poderá deteriorar-se muito se não houver esforços efetivos de coordenação nacional no apoio a governadores e prefeitos para limitação de mobilidade. Enquanto se busca encurtar os tempos e aumentar o número de doses de vacina disponíveis, é urgente o reforço de medidas de distanciamento social. Da mesma forma é essencial a introdução de incentivos e políticas públicas para uso de máscaras mais eficientes, em linha com os esforços observados na União Europeia e nos Estados Unidos.
A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável. Na realidade, dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de covid-19. A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia - é o caso do Reino Unido, por exemplo. Estudos mostraram que diante da aceleração de novos casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário e levando à queda no consumo das famílias mesmo antes ou sem que medidas restritivas formais sejam adotadas.15 A recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país.
Logo, não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada.
O efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social. Em particular, os trabalhadores informais, que constituem mais de 40% da força de trabalho, não têm proteção contra o desemprego. No ano passado, o auxílio emergencial foi fundamental para assistir esses trabalhadores mais vulneráveis que perderam seus empregos, e levou a uma redução da pobreza, evidenciando a necessidade de melhoria do nosso sistema de proteção social. Enquanto a pandemia perdurar, medidas que apoiem os mais vulneráveis, como o auxílio emergencial, se fazem necessárias. Em paralelo, não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais. Uma proposta nesses moldes é o programa de Responsabilidade Social, patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, encaminhado para o Congresso no final do ano passado.
Outras medidas de apoio às pequenas e médias empresas também se fazem necessárias. A experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade.
O aumento em 34,7% do endividamento dos pequenos negócios durante a pandemia amplifica essa necessidade. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.
Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive.
Medidas indispensáveis de combate à pandemia: a vacinação em massa é condição sine qua non para a recuperação econômica e redução dos óbitos.
1. Acelerar o ritmo da vacinação. O maior gargalo para aumentar o ritmo da vacinação é a escassez de vacinas disponíveis. Deve-se, portanto, aumentar a oferta de vacinas de forma urgente. A estratégia de depender da capacidade de produção local limitou a disponibilidade de doses ante a alternativa de pré-contratar doses prontas, como fez o Chile e outros países. Perdeu-se um tempo precioso e a assinatura de novos contratos agora não garante oferta de vacinas em prazo curto. É imperativo negociar com todos os laboratórios que dispõem de vacinas já aprovadas por agências de vigilância internacionais relevantes e buscar antecipação de entrega do maior número possível de doses. Tendo em vista a escassez de oferta no mercado internacional, é fundamental usar a política externa - desidratada de ideologia ou alinhamentos automáticos - para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores seja nos países que têm ou terão excedentes em breve.
A vacinação é uma corrida contra o surgimento de novas variantes que podem escapar da imunidade de infecções passadas e de vacinas antigas. As novas variantes surgidas no Brasil tornam o controle da pandemia mais desafiador, dada a maior transmissibilidade.
Com o descontrole da pandemia é questão de tempo até emergirem novas variantes. O Brasil precisa ampliar suas capacidades de sequenciamento genômico em tempo real, de compartilhar dados com a comunidade internacional e de testar a eficácia das vacinas contra outras variantes com máxima agilidade. Falhas e atrasos nesse processo podem colocar em risco toda a população brasileira, e também de outros países.
2. Incentivar o uso de máscaras tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. Economistas estimaram que se os Estados Unidos tivessem adotado regras de uso de máscaras no início da pandemia poderiam ter reduzido de forma expressiva o número de óbitos. Mesmo se um usuário de máscara for infectado pelo vírus, a máscara pode reduzir a gravidade dos sintomas, pois reduz a carga viral inicial que o usuário é exposto. Países da União Europeia e os Estados Unidos passaram a recomendar o uso de máscaras mais eficientes - máscaras cirúrgicas e padrão PFF2/N95 - como resposta às novas variantes. O Brasil poderia fazer o mesmo, distribuindo máscaras melhores à população de baixa renda, explicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da covid.
Máscaras com filtragem adequada têm preços a partir de R$ 3 a unidade. A distribuição gratuita direcionada para pessoas sem condições de comprá-las, acompanhada de instrução correta de reuso, teria um baixo custo frente aos benefícios de contenção da Covid-1923. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial. Embora leis de uso de máscara ajudem, informar corretamente a população e as lideranças darem o exemplo também é importante, e tem impacto na trajetória da epidemia. Inversamente, estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio.
3. Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local com coordenação nacional. O termo "distanciamento social" abriga uma série de medidas distintas, que incluem a proibição de aglomeração em locais públicos, o estímulo ao trabalho a distância, o fechamento de estabelecimentos comerciais, esportivos, entre outros, e - no limite - escolas e creches. Cada uma dessas medidas tem impactos sociais e setoriais distintos. A melhor combinação é aquela que maximize os benefícios em termos de redução da transmissão do vírus e minimize seus efeitos econômicos, e depende das características da geografia e da economia de cada região ou cidade. Isso sugere que as decisões quanto a essas medidas devem ser de responsabilidade das autoridades locais.
Com o agravamento da pandemia e esgotamento dos recursos de saúde, muitos estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não-essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores. Para maximizar a efetividade das medidas tomadas, é indispensável que elas sejam apoiadas, em especial pelos órgãos federais. Em particular, é imprescindível uma coordenação em âmbito nacional que permita a adoção de medidas de caráter nacional, regional ou estadual, caso se avalie que é necessário cercear a mobilidade entre as cidades e/ou estados ou mesmo a entrada de estrangeiros no país.
A necessidade de adotar um lockdown nacional ou regional deveria ser avaliado. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção em termos de escopo, abrangência das atividades cobertas, cronograma de implementação e duração.
Ademais, é necessário levar em consideração que o acréscimo de adesão ao distanciamento social entre os mais vulneráveis depende crucialmente do auxílio emergencial. Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários. É, portanto, não só mais justo como mais eficiente focalizar a assistência nas populações de baixa renda, que são mais expostas nas suas atividades de trabalho e mais vulneráveis financeiramente.
Dentre a combinação de medidas possíveis, a questão do funcionamento das escolas merece atenção especial. Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura.
As funções da escola, principalmente nos anos do ensino fundamental, vão além da transmissão do conhecimento, incluindo cuidados e acesso à alimentação de crianças, liberando os pais - principalmente as mães - para o trabalho. O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. A evidência mostra que alunos de baixa renda, com menor acesso às ferramentas digitais, enfrentam maiores dificuldade de completar as atividades educativas, ampliando a desigualdade da formação de capital humano entre os estudantes.
Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social. Há aqui um papel fundamental para o Ministério da Educação em cooperação com o Ministério da Saúde na definição e comunicação de procedimentos que contribuam para a minimização dos riscos de contágio nas escolas, além do uso de ferramentas comportamentais para retenção da evasão escolar, como o uso de mensagens de celular como estímulo para motivar os estudantes, conforme adotado em São Paulo e Goiás.
4. Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional - preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores - orientada por uma comissão de cientistas e especialistas, se tornou urgente. Diretrizes nacionais são ainda mais necessárias com a escassez de vacinas e logo a necessidade de definição de grupos prioritários; com as tentativas e erros no distanciamento social; a limitada compreensão por muitos dos pilares da prevenção, particularmente da importância do uso de máscara, e outras medidas no âmbito do relacionamento social.
Na ausência de coordenação federal, é essencial a concertação entre os entes subnacionais, consórcio para a compra de vacinas e para a adoção de medidas de supressão.
O papel de liderança: Apesar do negacionismo de alguns poucos, praticamente todos os líderes da comunidade internacional tomaram a frente no combate ao covid-19 desde março de 2020, quando a OMS declarou o caráter pandêmico da crise sanitária. Informando, notando a gravidade de uma crise sem precedentes em 100 anos, guiando a ação dos indivíduos e influenciado o comportamento social.
Líderes políticos, com acesso à mídia e às redes, recursos de Estado, e comandando atenção, fazem a diferença: para o bem e para o mal. O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre.
O país pode se sair melhor se perseguimos uma agenda responsável. O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito.
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https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56485687
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ANÁLISE
Carta de pesos-pesados mira o governo e desmoraliza pregação de Bolsonaro
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Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles, dois dos signatários de uma contundente carta à nação. Governo já ultrapassou o limite mesmo da irresponsabilidade
Imagem: Germano Lüders/EXAME.com/
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Reinaldo Azevedo
Colunista do UOL
21/03/2021 21h00
O texto que vem sendo chamado de "carta de banqueiros e economistas" — para facilitar um título nos veículos de comunicação — é, na verdade, uma "Carta dos Sensatos", que, ora vejam!, se ancora na ciência e nos fatos. Ocorre de ser assinada por pesos-pesados da economia nacional, como, entre outros, Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles (co-presidentes do conselho de administração do Itaú Unibanco), José Olympio Pereira (presidente do Credit Suisse), Solange Srour (economista-chefe do Credit Suisse) e Octavio de Barros (antigo economista-chefe do Bradesco).
Também se contam entre os signatários ex-presidente do Banco Central — como Armínio Fraga, Affonso Celso Pastore, Gustavo Loyola e Ilan Goldfajn — e ex-ministros da Fazenda, como Pedro Malan, Marcílio Marques Moreira e Ruben Ricupero. Note-se: em tempos normais, um mar de divergência separaria muitos deles. Nestes dias, estão pedindo o reconhecimento, na área do combate à pandemia, de que a Terra é mesmo redonda...
IRRESPONSABILIDADE
O documento é longo, sim. Recomendo vivamente que seja lido. O texto aponta, sem subterfúgio, o tratamento irresponsável do governo federal no enfrentamento da pandemia. Lê-se lá:
"Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia".
O presidente Jair Bolsonaro engrola negacionismo e mistificações para a sua plateia de fanáticos, mas, obviamente, não engana mais tomadores de decisão, que se veem tragados por um aluvião de incompetência e de irresponsabilidade. O manifesto aponta o desastroso comportamento do governo federal no caso das vacinas:
"A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica."
DESASTRE ECONÔMICO
Pessoas acostumadas a lidar com números objetivos e severos sobre o desempenho econômico -- ou podem provocar danos nas companhias em que atuam -- reconhecem os efeitos desastrosos da pandemia e desmoralizam a tese de Bolsonaro, que tenta opor medidas preventivas e de redução de danos ao funcionamento da economia. Diz o documento:
"A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres."
Quem se acerca com seriedade do problema não precisa dourar a pílula. Evidencia-se no texto que a realidade é ainda mais grave do que se pode perceber numa primeira mirada:
"A situação econômica e social é desoladora. O PIB encolheu 4,1% em 2020 e provavelmente observaremos uma contração no nível de atividade no primeiro trimestre deste ano. A taxa de desemprego, por volta de 14%, é a mais elevada da série histórica, e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 5,5 milhões de pessoas."
A TESE FURADA DE BOLSONARO
Será que pessoas que estão à frente de grandes bancos e de empresas de porte têm algum interesse em negar a natureza da crise ou em insistir numa perspectiva que a extrema-direita bolsonariana insiste em chamar de "ideológica"? A resposta é óbvia. E o diagnóstico que se apresenta no documento é aquele consagrado mundo afora pela ciência econômica e pela epidemiologia: a recuperação da economia depende do controle da doença. Por essa razão, dizem os autores do documento:
"A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável. Na realidade, dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de Covid-19. A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia -é o caso do Reino Unido, por exemplo. Estudos mostraram que diante da aceleração de novos casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário e levando à queda no consumo das famílias mesmo antes ou sem que medidas restritivas formais sejam adotadas. A recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país".
Esse parágrafo resume e desmonta a tese de Bolsonaro sobre a crise. Falam pessoas, reitero, que conhecem a fundo o funcionamento da economia no Brasil e no mundo, o que não é o caso do presidente da República, que tem pouco domínio desse assunto — ou de outro qualquer.
Realista, o documento chama a atenção do país para o fato de que os dias que seguem serão ainda mais difíceis. Logo, as medidas prudenciais na área sanitária se impõem, lembrando: a resposta efetiva é a vacinação. Numa censura explícita às crendices e feitiçarias de Bolsonaro, destaca-se que as evidências científicas devem pautar as ações do Estado brasileiro:
"Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive"
A carta aberta cobra do governo federal quatro medidas efetivas:
1 - acelerar o ritmo de vacinação;
2 - incentivar o uso de máscaras, com distribuição gratuita das mesmas, com uma campanha nacional em favor do seu uso. Nota: Bolsonaro voltou a dizer na live de quinta passada que máscaras são inúteis em transportes coletivos lotados, o que é mentira;
3 - implementar medidas de distanciamento social, com coordenação local. Nota: Bolsonaro foi ao Supremo para tentar impedir ações de restrição de circulação implementadas por governadores e prefeitos;
4 - que haja uma efetiva coordenação nacional de combate à pandemia; não havendo, que os outros entes se esforcem para ações conjuntas.
ATUAÇÃO DO LÍDER
A chamada "carta de banqueiros e economistas" faz uma censura explícita ao comportamento de Bolsonaro na crise e aponta, na prática, que ele é hoje voz isolada no mundo. Note-se que a primeira frase do documento informa a particularíssima e trágica posição do nosso país: "O Brasil é hoje o epicentro mundial da Covid-19, com a maior média móvel de novos casos". Está escrito na carta:
"O papel de liderança: Apesar do negacionismo de alguns poucos, praticamente todos os líderes da comunidade internacional tomaram a frente no combate ao Covid-19 desde março de 2020, quando a OMS declarou o caráter pandêmico da crise sanitária. Informando, notando a gravidade de uma crise sem precedentes em 100 anos, guiando a ação dos indivíduos e influenciado o comportamento social.
Líderes políticos, com acesso à mídia e às redes, recursos de Estado, e comandando atenção, fazem a diferença: para o bem e para o mal. O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina caracterizaram a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos em que o país incorre."
A CONCLUSÃO: PAÍS EXIGE RESPEITO
O documento é impecável. Havendo um defeito, está apenas na demora. Há muito tempo já se podia concluir que o presidente não mudaria nem de opinião nem de rota, conduzindo o país ao desastre sanitário, social, econômico e moral.
Cumpre notar, e ainda voltarei ao assunto: no dia em que vem a público esse documento, Bolsonaro falou a seus seguidores em frente ao Palácio da Alvorada e voltou a ameaçar o país com um golpe, falando, uma vez mais, como se as Forças Armadas pudessem embarcar em sua aventura.
A exemplo de todo golpista, aqui e mundo afora, ameaçou com o uso da força bruta em nome da liberdade. Ou vocês já viram algum golpista dizer algo como: "Quero mesmo é ditadura para eliminar meus inimigos"?
Que esses líderes, em seus respectivos, setores saibam mobilizar outras vozes da sociedade civil, da ciência e da política em defesa da vida, da ciência e da democracia.
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https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2021/03/21/carta-de-pesos-pesados-mira-o-governo-e-desmoraliza-pregacao-de-bolsonaro.htm
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Os prisioneiros tinham acesso somente às sombras projetadas na parede da caverna.
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FILOSOFIA
Mito da Caverna
O Mito da Caverna é uma alegoria retirada de “A República”, de Platão, que fala sobre o conhecimento verdadeiro e o governo político.
Platão narra uma história alegórica chamada de Mito da Caverna ou Alegoria da Caverna em sua obra mais complexa, A República. O diálogo travado entre Sócrates, personagem principal, e Glauco, seu interlocutor, visa a apresentar ao leitor a teoria platônica sobre o conhecimento da verdade e a necessidade de que o governante da cidade tenha acesso a esse conhecimento.
Leia também: Relação entre o Mito da Caverna e o filme Matrix
O que o Mito da Caverna diz?
No texto, Sócrates fala para Glauco imaginar a existência de uma caverna onde prisioneiros vivessem desde a infância. Com as mãos amarradas em uma parede, eles podem avistar somente as sombras que são projetadas na parede situada à frente.
As sombras são ocasionadas por uma fogueira, em cima de um tapume, situada na parte traseira da parede em que os homens estão presos. Homens passam ante a fogueira, fazem gestos e passam objetos, formando sombras que, de maneira distorcida, são todo o conhecimento que os prisioneiros tinham do mundo. Aquela parede da caverna, aquelas sobras e os ecos dos sons que as pessoas de cima produziam era o mundo restrito dos prisioneiros.
Repentinamente, um dos prisioneiros foi liberto. Andando pela caverna, ele percebe que havia pessoas e uma fogueira projetando as sombras que ele julgava ser a totalidade do mundo. Ao encontrar a saída da caverna, ele tem um susto ao deparar-se com o mundo exterior. A luz solar ofusca a sua visão e ele sente-se desamparado, desconfortável, deslocado.
Aos poucos, sua visão acostuma-se com a luz e ele começa a perceber a infinidade do mundo e da natureza que existe fora da caverna. Ele percebe que aquelas sombras, que ele julgava ser a realidade, na verdade são cópias imperfeitas de uma pequena parcela da realidade.
O prisioneiro liberto poderia fazer duas coisas: retornar para a caverna e libertar os seus companheiros ou viver a sua liberdade. Uma possível consequência da primeira possibilidade seria os ataques que sofreria de seus companheiros, que o julgariam como louco, mas poderia ser uma atitude necessária, por ser a coisa mais justa a se fazer.
Platão está dispondo, hierarquicamente, os graus de conhecimento com essa metáfora e falando que existe um modo de conhecer, de saber, que é o mais adequado para se pensar em um governante capaz de fazer política com sabedoria e justiça.
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Os prisioneiros tinham acesso somente às sombras projetadas na parede da caverna.
A República - o livro em que está contido o Mito da Caverna
A República é, talvez, a obra mais complexa e completa de Platão. Composto por dez livros, a obra fala sobre as várias formas de governo e política para chegar ao modelo político ideal, segundo Platão. Para chegar à formulação de sua teoria, o filósofo passou por elementos característicos da vida humana, como a estética, a arte e o conhecimento humano (que é discutido no livro VII, o mesmo livro em que se encontra a Alegoria da Caverna).
O longo diálogo narra a trajetória de Sócrates buscando estabelecer, teoricamente, como seria o governo perfeito. O conhecimento é, para Platão, o elemento primordial de um bom governante. Por isso, no livro VII de A República, Platão afirma que o filósofo deve ser como o prisioneiro liberto da caverna. Essas características são fundamentais para o governante: a busca pela verdade.
Saiba também: Leia sobre estes outros conceitos platônicos.
Conclusões acerca do Mito da Caverna
A metáfora proposta pela Alegoria da Caverna pode ser interpretada da seguinte maneira:
Os prisioneiros: os prisioneiros da caverna são os homens comuns, ou seja, somos nós mesmos, que vivemos em nosso mundo limitado, presos em nossas crenças costumeiras.
A caverna: a caverna é o nosso corpo e os nossos sentidos, fonte de um conhecimento que, segundo Platão, é errôneo e enganoso.
As sombras na parede e os ecos na caverna: sombras e ecos nunca são projetados exatamente do modo como os objetos que os ocasionam são. As sombras são distorções das imagens e os ecos são distorções sonoras. Por isso, esses elementos simbolizam as opiniões erradas e o conhecimento preconceituoso do senso comum que julgamos ser verdadeiro.
A saída da caverna: sair da caverna significa buscar o conhecimento verdadeiro.
A luz solar: a luz, que ofusca a visão do prisioneiro liberto e o coloca em uma situação de desconforto, é o conhecimento verdadeiro, a razão e a filosofia.
Mito da Caverna visto nos dias de hoje
Trazendo a Alegoria da Caverna para o nosso tempo, podemos dizer que o ser humano tem regredido constantemente, a ponto de estar, cada vez mais, vivendo como um prisioneiro da caverna, apesar de toda a informação e todo o conhecimento que temos a nossa disposição.
As pessoas têm preguiça de pensar. A preguiça tornou-se um elemento comum em nossa sociedade, estimulada pela facilidade que as tecnologias nos proporcionam. A preguiça intelectual tem sido, talvez, a mais forte característica de nosso tempo. A dúvida socrática, o questionamento, a não aceitação das afirmações sem antes analisá-las (elementos que custaram a vida de Sócrates na antiguidade) são hoje desprezados.
A política, a sociedade e a vida comum deixaram de ser interessantes para os cidadãos do século XXI que apenas vivem como se a própria vida tivesse importância maior que a preservação da sociedade. As notícias falsas estão enganando cada vez mais pessoas que não se prestam ao trabalho de checar a veracidade e a confiabilidade da fonte que divulga as informações.
As redes sociais viraram verdadeiras vitrines do ego, que divulgam a falsa propaganda de vidas felizes, mas que, superficialmente, sequer sabem o peso que a sua existência traz para o mundo. A ignorância, em nossos tempos, é cultivada e celebrada.
Quem ousa opor-se a esse tipo de vida vulgar, soterrada na ignorância, presa na caverna como estavam os prisioneiros de Platão, é considerado louco. Os escravos presos no interior da caverna não percebem que são prisioneiros, assim como as pessoas que estão presas na mídia, nas redes sociais e no mar de informações, muitas vezes desinformantes, da internet, não percebem que são enganadas.
Vivemos na época do predomínio da opinião rasa, do conhecimento superficial, da informação inútil e da prisão cotidiana que arrasta as pessoas, cada vez mais, para a caverna da ignorância.
Por Francisco Porfírio
Professor de Filosofia
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PORFíRIO, Francisco. "Mito da Caverna"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/mito-caverna-platao.htm. Acesso em 22 de março de 2021.
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https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/mito-caverna-platao.htm
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Livro da Semana: O Banqueiro Anarquista – Fernando Pessoa
Pessoa une seu lirismo usual à política n'O Banqueiro Anarquista, publicada em um período de crise da URSS e de conflitos internos no socialismo.
by Henrique Filgueiras
Published agosto 3, 2016
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https://colunastortas.com.br/o-banqueiro-anarquista-fernando-pessoa/
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O Banqueiro Anarquista
Fernando Pessoa
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/bancanarco.htm
Tínhamos acabado de jantar. Defronte de mim o meu amigo, o banqueiro, grande
comerciante e açambarcador notável, fumava como quem não pensa. A conversa, que
fora amortecendo, jazia morta entra nós. Procurei reanimá-la, ao acaso, servindo-me
de uma idéia que me passou pela meditação. Voltei-me para ele, sorrindo.
- É verdade: disseram-me há dias que V. em tempos foi anarquista...
- Fui, não: fui e sou. Não mudei a esse respeito. Sou anarquista.
- Essa é boa! V. anarquista! Em que é que V. é anarquista?... Só se V. dá à palavra
qualquer sentido diferente...
- Do vulgar? Não; não dou. Emprego a palavra no sentido vulgar.
- Quer V. dizer, então, que é anarquista exatamente no mesmo sentido em que são
anarquistas esses tipos das organizações operárias? Então entre V. e esses tipos da
bomba e dos sindicatos não há diferença nenhuma?
- Diferença, diferença, há... Evidentemente que há diferença. Mas não é a que V.
julga. V. duvida talvez que as minhas teorias sociais sejam iguais às deles?...
- Ah, já percebo! V., quanto às teorias, é anarquista; quanto à prática...
- Quanto à prática sou tão anarquista como quanto às teorias. E quanto à prática sou
mais, sou muito mais, anarquista que esses tipos que V. citou. Toda a minha vida o
mostra.
- Hein?!
- Toda a minha vida o mostra, filho. V. é que nunca deu a esta cousas uma atenção
lúcida. Por isso lhe parece que estou dizendo uma asneira, ou então estou brincando
consigo.
- Ó homem, eu não percebo nada!... A não ser..., a não ser que V. julgue a sua vida
dissolvente e anti-social e dê esse sentido ao anarquismo...
- Já lhe disse que não - isto é, já lhe disse que não dou à palavra anarquismo um
sentido diferente do vulgar.
- Está bem... Continuo sem perceber... Ó homem, V. quer-me dizer que não há
diferença entre as suas teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida -
a prática da sua vida como ela é agora? V. quer que eu acredite que V. tem uma vida
exatamente igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas?
- Não; não é isso. O que eu quero dizer é que entre as minhas teorias e a prática da
minha vida não há divergência nenhuma, mas uma conformidade absoluta. Lá que não
tenho uma vida como a dos tipo dos sindicatos e das bombas - isso é verdade. Mas é
a vida deles que está fora do anarquismo, fora dos ideais deles. A minha não. Em mim
- sim, em mim, banqueiro, grande comerciante, açambarcador se V. quiser -, em mim
a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas. V. comparou-me a
esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente deles. Sou,
mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas só na teoria; eu souo na teoria e na prática. Eles são anarquistas e estúpidos, eu anarquista e inteligente.
Isto é, meu velho, eu é que sou o verdadeiro anarquista. Eles - os dos sindicatos e das
bombas (eu também lá estive e saí de lá exatamente pelo meu verdadeiro
anarquismo) - eles são o lixo do anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária.
- Essa nem ao diabo a ouviram! Isso é espantoso! Mas como concilia V. a sua vida -
quero dizer a sua vida bancária e comercial - coma as teorias anarquistas? Como o
concilia V., se diz que por teoria anarquista entende exatamente o que os anarquistas
vulgares entendem? E V., ainda por cima, me diz que é diferente deles por ser mais
anarquista do que eles - não é verdade?
- Exatamente.
- Não percebo nada.
- Mas V. tem empenho em perceber?
- Todo o empenho.
Ele tirou da boca o charuto, que se apagara; reacendeu-o lentamente; tirou o fósforo
que se extinguia; depô-lo ao de leve no cinzeiro; depois, erguendo a cabeça, um
momento abaixada, disse:
- Oiça. Eu nasci do povo e na classe operária da cidade. De bom não herdei, como
pode imaginar, nem a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma
inteligência naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses
eram doms naturais, que o meu baixo nascimento me não podia tirar.
``Fui operário, trabalhei, vivi uma vida apertada; fui, em resumo, o que a maioria da
gente é naquele meio. Não digo que absolutamente passasse fome, mas andei lá
perto. De resto, podia tê-la passado, que isso não alterava nada do que se seguiu, ou
do que lhe vou expor, nem do que foi a minha vida, nem do que ela é agora.''
``Fui um operário vulgar, em suma; como todos, trabalhava porque tinha que trabalhar,
e trabalhava o menos possível. O que eu era, era inteligente. Sempre que podia, lia
coisas, discutia coisas, e, como não era tolo, nasceu-me uma grande insatisfação e
uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam
assim. Já lhe disse que, em boa verdade, o meu destino podia ter sido pior do que era;
mas naquela altura parecia-me a mim que eu era um entre a quem a Sorte tinha feito
todas as injustiças juntas, e que se tinha servido das convenções sociais para mas
fazer. Isto era aí pelos meus vinte anos - vinte e um o máximo - que foi quando me
tornei anarquista.''
Parou um momento. Voltou-se um pouco mais para mim. Continuou, inclinando-se
mais um pouco.
- Fui sempre mais ou menos lúcido. Senti-me revoltado. Quis perceber a minha
revolta. Tornei-me anarquista consciente e convicto - o anarquista consciente e
convicto que hoje sou.
- E a teoria, que V. tem hoje, é a mesma que tinha nessa altura?
- A mesma. A teoria anarquista, a verdadeira teoria, é só uma. Tenho a que sempre
tive, desde que me tornei anarquista. V. já vai ver... Ia eu dizendo que, como era lúcido
por natureza, me tornei anarquista consciente. Ora o que é um anarquista? É um
revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente - no fundo é só isto. E
de aí resulta, como é de ver, a revolta contra as convenções sociais que tornam essa
desigualdade possível. O que lhe estou indicando agora é o caminho psicológico, isto
é, como é que a gente se torna anarquista; já vamos à parte teórica do assunto. Por
agora, compreenda V. bem qual seria a revolta de um tipo inteligente nas minhas
circunstâncias. O que é que ele vê pelo mundo? Um nasce filho de um milionário,
protegido desde o berço contra aqueles infortúnios - e não são poucos - que o dinheiro
pode evitar ou atenuar; outro nasce miserável, a ser, quando criança, uma boca a
mais numa família onde as bocas são de sobra para o comer que pode haver. Um
nasce conde ou marquês, e tem por isso a consideração de toda a gente, faça ele o
que fizer; outro nasce assim como eu, e tem que andar direitinho como um prumo para
ser ao menos tratado como gente. Uns nascem em tais condições que podem estudar,
viajar, instruir-se - tornar -se (pode-se dizer) mais inteligentes que outros que
naturalmente o são mais. E assim por aí adiante, e em tudo...
``As injustiças da Natureza, vá: não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das
suas convenções - essas, por que não evitá-las? Aceito - não tenho mesmo outro
remédio - que um homem seja superior a mim por o que a Natureza lhe deu - o
talento, a força, a energia; não aceito que ele seja meu superior por qualidades
postiças, com que não saiu do ventre da mãe, mas que lhe aconteceram por
bambúrrio logo que ele apareceu cá fora - a riqueza, a posição social, a vida facilitada,
etc. Foi da revolta que lhe estou figurando por estas considerações que nasceu o meu
anarquismo de então - o anarquismo que, já lhe disse, mantenho hoje sem alteração
nenhuma.''
Parou outra vez um momento, como a pensar como prosseguiria. Fumou e soprou o
fumo lentamente, para o lado oposto ao meu. Voltou-se, e ia a prosseguir. Eu, porém,
interrompi-o.
- Uma pergunta, por curiosidade... Por que é que V. se tornou propriamente
anarquista? V. podia ter-se tornado socialista, ou qualquer outra cousa avançada que
não fosse tão longe. Tudo isso estava dentro da sua revolta... Deduzo do que V. disse
que por anarquismo V. entende (e acho que está bem como definição do anarquismo)
a revolta contra todas as convenções e fórmulas sociais e o desejo e esforço para a
abolição de todas...
- Isso mesmo.
- Por que escolheu V. essa fórmula extrema e não se decidiu por qualquer das
outras... das intermédias?...
- Eu lhe digo. Eu meditei tudo isso. É claro que nos folhetos que eu lia via todas essas
teorias. Escolhi a teoria anarquista - a teoria extrema, como V. muito bem diz - pelas
razões que vou dizer em duas palavras.
Fitou um momento cousa nenhuma. Depois voltou-se para mim.
- O mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se
sobrepõem às realidades naturais - tudo, desce a família ao dinheiro, desde a religião
ao Estado. A gente nasce homem ou mulher - quero dizer, nasce para ser, em adulto,
homem ou mulher; não nasce, em boa justiça natural, nem para ser marido, nem para
ser rico ou pobre, como também não nasce para ser católico ou protestante, ou
português ou inglês. É todas estas coisas em virtude das ficções sociais. Ora essas
ficções sociais são más por quê? Porque são ficções, porque não são naturais. Tão
mau é o dinheiro como o Estado, a constituição de família como as religiões. Se
houvesse outras, que não fossem estas, seriam igualmente más, porque também
seriam ficções, porque também se sobreporiam e estorvariam as realidades naturais.
Ora qualquer sistema que não seja o puro sistema anarquista, completamente, é uma
ficção também. Empregar todo o nosso desejo, todo o nosso esforço, toda a nossa
inteligência para implantar, ou contribuir para implantar, uma ficção social em vez de
outra, é um absurdo, quando não seja mesmo um crime, porque é fazer uma
perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma. Se achamos injustas
as ficções sociais, porque esmagam e oprimem o que é natural no homem, para que
empregar o nosso esforço em substituir-lhes outras ficções, se o podemos empregar
para as destruir todas?
``Isto parece-me que é concludente. Mas suponhamos que o não é; suponhamos que
nos objetam que isto tudo estará muito certo, mas que o sistema anarquista não é
realizável na prática. Vamos lá a examinar essa parte do problema.''
``Por que é que o sistema anarquista não seria realizável? Nós partimos, todos os
avançados, do princípio, não só de que o atual sistema é injusto, mas de que há
vantagem, porque há injustiça, em substituí-lo por outro mais justo. Se não pensamos
assim, não somos avançados, mas burgueses. Ora de onde vem este critério de
justiça? Do que é natural e verdadeiro, em oposição às ficções sociais e às mentiras
da convenção. Ora o que é natural é o que é inteiramente natural, não é metade, ou
um quarto, ou um oitavo de natural. Muito bem. Ora, de duas coisas, uma: ou o natural
é realizável socialmente ou não é; em outras palavras, ou a sociedade pode ser
natural, ou a sociedade é essencialmente ficção e não pode ser natural de maneira
nenhuma. Se a sociedade pode ser natural, então pode haver a sociedade anarquista,
ou livre, e deve haver, porque é ela a sociedade inteiramente natural. Se a sociedade
não pode ser natural, se (por qualquer razão que não importa) tem por força que ser
ficção, então do mal o menos; façamo-la, dentro desse ficção inevitável, o mais natural
possível. Qual é a ficção mais natural? Nenhuma é natural em si, porque é ficção; a
mais natural, neste nosso caso, será aquela que pareça mais natural, que se sinta
como mais natural? É aquela que estamos habituados. (V. compreende: o que é
natural é o que é do instinto; e o que não sendo instinto, se parece em tudo com o
instinto é o hábito. Fumar não é natural, não é uma necessidade do instinto). Ora qual
é a ficção social que constitui um hábito nosso? É o atual sistema, o sistema burguês.
Temos pois, em boa lógica, que ou achamos a sociedade natural, e seremos
defensores do anarquismo; ou não a julgamos possível, e seremos defensores do
regime burguês. Não há hipótese intermédia. Percebeu?...''
- Sim, senhor; isso é concludente.
- Ainda não é bem concludente... Ainda há uma outra objeção, do meu gênero, a
liquidar... Pode concordar-se que o sistema anarquista é realizável, mas pode duvidarse que ele seja realizável de chofre - isto é, que se possa passar da sociedade
burguesa para a sociedade livre sem haver um ou mais estados ou regimes
intermédios. Quem fizer essa objeção aceita como boa, e como realizável, a
sociedade anarquista; mas palpita-lhe que tem que haver um estado qualquer de
transição entre a sociedade burguesa e ela.
``Ora muito bem. Suponhamos que assim é. O que é esse estado intermédio? O
nosso fim é a sociedade anarquista, ou livre; esse intermédio só pode ser, portanto,
um estado de preparação da humanidade para a sociedade livre. Essa preparação ou
é material, ou é simplesmente mental; isto é, ou é uma série de realizações materiais
ou sociais que vão adaptando a humanidade à sociedade livre, ou é uma simples
propaganda gradualmente crescente e influente, que vai preparando mentalmente a
desejá-la ou aceitá-la.''
``Vamos ao primeiro caso, a adaptação gradual e material da humanidade à
sociedade livre. É impossível; é mais que impossível: é absurdo. Não há adaptação
material senão uma cousa que já há. Nenhum de nós se pode adaptar materialmente
ao meio social do século XXIII, mesmo que saiba o que ele será; e não se pode
adaptar materialmente porque o século XXIII e o seu meio social não existem
materialmente ainda. Assim, chegamos à conclusão que, na passagem da sociedade
burguesa para a sociedade livre, a única parte que pode haver de adaptação, de
evolução ou de transição é mental, é a gradual adaptação dos espíritos à idéia da
sociedade livre... Em todo o caso, no campo da adaptação material, ainda há uma
hipótese...'''
- Irra com tanta hipótese!...
- Ó filho, o homem lúcido tem que examinar todas as objeções possíveis e de as
refutar, antes de se poder dizer seguro da sua doutrina. E, de mais a mais, isto tudo é
em resposta a uma pergunta que V. me fez...
- Está bem.
- No campo da adaptação material, dizia eu, há em todo o caso um outra hipótese. É a
da ditadura revolucionária.
- Da ditadura revolucionária como?
- Como eu lhe expliquei, não pode haver adaptação material a uma coisa que não
existe, materialmente, ainda. Mas se, por um movimento brusco, se fizer a revolução
social, fica implantada já, não a sociedade livre (porque para essa não pode a
humanidade ter ainda preparação), mas uma ditadura daqueles que querem implantar
a sociedade livre. Mas existe já , ainda que em esboço ou em começo, existe já
materialmente qualquer coisa da sociedade livre. Há já portanto uma coisa material, a
que a humanidade se adapte. É este o argumento com que as bestas que defendem a
``ditadura do proletariado'' a defenderiam se fossem capazes de argumentar ou de
pensar. O argumento, é claro, não é deles: é meu. Ponho-o, como objeção, a mim
mesmo. E, como lhe vou mostrar..., é falso.
``Um regime revolucionário, enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a idéia
que o conduz, é materialmente só uma coisa - um regime revolucionário. Ora um
regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeira palavras,
um regime militar despótico, porque o estado de guerra é imposta à sociedade por
uma parte dela - aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder. O que é que
resulta? Resulta que quem se adaptar a esse regime, como a única coisa que ele é
materialmente, imediatamente, é um regime militar despótico, adapta-se a um regime
militar despótico. A idéia, que conduziu os revolucionários, o fim, a que visaram,
desapareceu por completo da realidade social, que é ocupada exclusivamente pelo
fenômeno guerreiro. De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária - e tanto
mais completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar - é uma sociedade
guerreira do tipo ditatorial, isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia ser outra
coisa. E foi sempre assim. Eu não sei muita história, mas o que sei acerta com isto;
nem podia deixar de acertar. O que saiu das agitações políticas de Roma? O Império
Romano e seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e
seu despotismo militar. E V. verá o que sai da Revolução Russa... Qualquer coisa que
vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre... Também o que era de
se esperar de um povo de analfabetos e de místicos?...''
``Enfim, isto já está fora de conversa... V. percebeu o meu argumento?''
- Percebi perfeitamente.
- V. compreende portanto que eu cheguei a esta conclusão: Fim: a sociedade
anarquista, a sociedade livre; meio: a passagem, sem transição, da sociedade
burguesa para a sociedade livre. Esta passagem seria preparada e tornada possível
por uma propaganda intensa, completa, absorvente, de modo a predispor todos os
espíritos e enfraquecer todas as resistências. É claro que por ``propaganda'' não
entendo só a pela palavra escrita e falada: entendo tudo, ação indireta ou direta,
quanto pode predispor para a sociedade livre e enfraquecer a resistência à sua vinda.
Assim, não tendo quase resistência nenhuma que vencer, a revolução social, quando
viesse, seria rápida, fácil, e não teria que estabelecer nenhuma ditadura
revolucionária, por não ter contra quem aplica-la. Se isto não pode ser assim, é que o
anarquismo é irrealizável; e, se o anarquismo é irrealizável, só é defensável e justa,
como já lhe provei, a sociedade burguesa.''
``Ora aí tem V. por que e como eu me tornei anarquista, e por que e como rejeitei,
como falsas e anti-naturais, as outras doutrinas sociais de menor ousadia.''
``E pronto... Vamos lá continuar a minha história.''
Fez explodir um fósforo, e acendeu lentamente o charuto. Concentrou-se, e de aí a
pouco prosseguiu.
Havia vários outros rapazes com as mesmas opiniões que eu. A maioria era de
operários, mas havia um ou outro que o não era; o que todos éramos era pobres, e,
que me lembre, não éramos muito estúpidos. A gente tinha uma certa vontade de
propaganda, de espalhar as nossas idéias. Queríamos para nós e para os outros -
para a humanidade inteira - uma sociedade nova, livre destes preconceitos todos, que
fazem os homens desiguais artificialmente e lhes impõem inferioridades, sofrimentos,
estreitezas, que a Natureza lhes não tinha imposto. Por mim, o que eu lia confirmavame nestas opiniões. Em livros libertários baratos - os que havia ao tempo, e eram já
bastantes - li quase tudo. Fui a conferências e comícios dos propagandistas do tempo.
Cada livro e cada discurso me convencia mais da certeza e da justiça das minhas
idéias. O que eu pensava então - repito-lhe, meu amigo - é o que penso hoje, a única
diferença é que então pensava-o só, hoje penso-o e pratico-o.
- Pois sim; isso, até onde vai, está muito bem. Está muito certo que V. se tornasse
anarquista assim, e vejo perfeitamente que V. era anarquista. Não preciso mais provas
disso..., como é que saiu de aí sem contradição... Isto é, mais ou menos já calculo...
- Não, não calcula nada... Eu sei o que V. quer dizer... V. baseia-se nos argumentos
que acaba de ouvir, e julga que eu achei o anarquismo irrealizável e por isso, como lhe
disse, só defensável e justa a sociedade burguesa - não é?...
- Sim, calculei que fosse mais ou menos isso...
- Mas como o podia ser, se desde o princípio da conversa lhe tenho dito e repetido que
sou anarquista, que não só o fui mas o continuo sendo? Se eu me tivesse tornado
banqueiro e comerciante pela razão que V. julga, eu não era anarquista, era burguês.
- Sim, V. tem razão... Mas então como diabo...? Vá lá, vá dizendo...
- Como lhe disse, eu era (fui sempre) mais ou menos lúcido, e também um homem de
ação. Essas são qualidades naturais; não mas puseram no berço (se é que tive
berço), eu é que as levei para lá. Pois bem. Sendo anarquista, eu achava insuportável
ser anarquista passivamente, só para ir ouvir discursos e falar nisso com os amigos.
Não: era preciso fazer qualquer coisa! Era preciso trabalhar e lutar pela causa dos
oprimidos e das vítimas das convenções sociais! Decidi meter ombros a isso,
conforme pudesse. Pus-me a pensar como é que eu poderia ser útil à causa libertária.
Pus-me a traçar o meu plano de ação.
``O que quer o anarquista? Liberdade - a liberdade para si e para os outros, para a
humanidade inteira. Quer estar livre da influência ou da pressão das ficções sociais;
quer ser livre tal qual nasceu e pareceu no mundo, que é como em justiça deve ser; e
quer essa liberdade para si e para todos os mais. Nem todos podem ser iguais perante
a Natureza: uns nascem altos, outros baixos; uns fortes, outros fracos; uns mais
inteligentes, outros menos... Mas todos podem ser iguais de aí em diante; só as
ficções sociais o evitam. Essas ficções sociais é que era preciso destruir.''
``Era preciso destruí-las... Mas não me escapou uma coisa: era preciso destruí-las...
mas em proveito da liberdade, e tendo sempre em vista a criação da sociedade livre.
Porque isso de destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar liberdade, ou
preparar o caminho da liberdade, como para estabelecer outras ficções sociais
diferentes, igualmente más porque igualmente ficções. Aqui é que era preciso cuidado.
Era preciso acertar com um processo de ação, qualquer que fosse a sua violência ou a
sua não-violência (porque contra as injustiças sociais tudo era legítimo), pelo qual se
contribuisse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação
da liberdade futura; criando já mesmo, caso fosse possível, alguma coisa da liberdade
futura.
``É claro que esta liberdade, que deve haver cuidado em não estorvar, é a liberdade
futura e, no presente, a liberdade dos oprimidos pelas ficções sociais. Claro está que
não temos que olhar a não estorvar a ``liberdade'' dos poderosos, dos bem situados,
de todos que representam as ficções sociais e têm vantagens delas. Essa não é
liberdade; é a liberdade de tiranizar, que é o contrário da liberdade. Essa pelo
contrário, é o que mais devíamos pensar em estorvar e em combater. Parece-me que
isto está claro...''
- Está claríssimo. Continue...
- Para quem quer o anarquismo a liberdade? Para a humanidade inteira. Qual é a
maneira de se conseguir a liberdade para a humanidade inteira? Destruir por completo
todas as ficções sociais? Já lhe antecipei a explicação, quando, por causa da sua
pergunta, discuti os outros sistemas avançados e lhe expliquei como e por que era
anarquista... V. lembra-se da minha conclusão?...
- Lembro...
- ... Uma revolução social súbita, brusca, esmagadora, fazendo a sociedade passar,
de um salto, do regime burguês para a sociedade livre. Esta revolução social
preparada por um trabalho intenso e contínuo, de ação direta e indireta, tendente a
dispor todos os espíritos para a vinda da sociedade livre, e a enfraquecer até ao
estado comatoso todas as resistências da burguesia. Escuso de lhe repetir as razões
que levam inevitavelmente a esta conclusão, a dentro do anarquismo; já lhe expus e
V. já a percebeu.
- Sim.
- Essa revolução seria preferivelmente mundial, simultânea em todos os pontos, ou os
pontos importantes, do mundo; ou não sendo assim, partindo rapidamente de uns para
outros, mas em todo o caso, em cada ponto, isto é, em cada nação, fulminante e
completa.
``Muito bem. O que poderia eu fazer para esse fim? Só por mim, não a poderia fazer a
ela, à revolução mundial, nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte
referente ao país onde estava. O que podia era trabalhar, na inteira medida do meu
esforço, para fazer a preparação para essa revolução. Já lhe expliquei como:
combatendo, por rodos os meios acessíveis, as ficções sociais; não estorvando nunca
ao fazer esse combate ou a propaganda da sociedade livre, nem a liberdade futura,
nem a liberdade presente dos oprimidos; criando já, sendo possível, qualquer coisa da
futura liberdade.'''
Puxou fumo; fez uma leve pausa; recomeçou.
- Ora aqui, meu amigo, pus eu a minha lucidez em ação. Trabalhar para o futuro, está
bem, pensei eu; trabalhar para os outros terem liberdade, está certo. Mas então eu?
Eu não sou ninguém? Se eu fosse cristão, trabalhava alegre mente pelo futuro dos
outros, porque lá tinha a minha recompensa no céu; mas também, se eu fosse cristão,
não era anarquista, porque então as tais desigualdades sociais não tinham
importância na nossa curta vida: eram só condições da nossa provação, e lá seriam
compensadas na vida eterna. Mas eu não era cristão, como não sou, e perguntavame: mas por quem é que eu vou me sacrificar nisto tudo? Mais ainda: por que é que
eu me vou sacrificar?
``Vieram-me momentos de descrença; e V. compreende que era justificada... Sou
materialista, pensava eu; não tenho mais vida que esta; para que hei de ralar-me com
propagandas e desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e
entreter-me muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só esta vida, quem
não crê na vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe ao
Estado porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, ao dinheiro
porque ele não é natural, porque cargas-d'água é que defende o altruísmo e o
sacrifício pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício também não
são naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser
casado, ou para ser português, ou para ser rico ou pobre, mostra-me também que ele
não nasce para ser solidário, que ele não nasce senão para ser ele-próprio, e portanto
o contrário de altruísta e solidário, e portanto exclusivamente egoísta.''
``Eu discuti a questão comigo mesmo. Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos
pertencentes à espécie humana, e que temos o dever de ser solidários com todos os
homens. Mas a idéia de `dever' era natural? De onde é que vinha esta idéia de
`dever'? Se esta idéia de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha
comodidade, o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais, em que
divergia a ação dessa idéia da ação de qualquer ficção social, que produz em nós
exatamente o mesmo efeito?''
``Esta idéia de dever, isto de solidariedade humana; só podia considerar-se natural se
trouxesse consigo uma compensação egoísta, porque então, embora em princípio
contrariasse o egoísmo natural, se dava a esse egoísmo uma compensação, sempre,
no fim de contas, o não contrariava. Sacrificar um prazer, simplesmente sacrificá-lo,
não é natural; sacrificar um prazer a outro, é que já está dentro da Natureza: é, entre
duas cousas naturais que se não podem ter ambas, escolher uma, o que está bem.
Ora que compensação egoísta, ou natural, podia dar-me a dedicação à causa da
sociedade livre e da futura felicidade humana? Só a consciência de dever cumprido,
do esforço para um fim bom; e nenhuma destas coisas é uma compensação egoísta,
nenhuma destas coisas é um prazer em si, mas um prazer, se o é, nascido de uma
ficção social, como pode ser o prazer de ser imensamente rico, ou o prazer de ter
nascido em um boa posição social.''
``Confesso-lhe, meu velho, que me vieram momentos de descrença... Senti-me
desleal à minha própria doutrina, traidor a ela... Mas em breve passei sobre tudo isto.
A idéia de justiça cá estava, dentro de mim, pensei eu. Eu sentia-a natural. Eu sentia
que havia um dever superior à preocupação só cá do meu destino. E fui para diante na
minha intenção.''
- Não me parece que essa decisão revelasse uma grande lucidez da sua parte... V.
não resolveu a dificuldade... V. foi para diante por um impulso absolutamente
sentimental...
- Sem dúvida. Mas o que lhe estou contando agora é a história de como me tornei
anarquista, e de como o continuei sendo, e continuo. Vou-lhe expondo lealmente as
hesitações e as dificuldades que tive, e como as venci. Concordo que, naquele
momento, venci a dificuldade lógica com o sentimento, e não com o raciocínio. Mas V.
há de ver que, mais tarde, quando cheguei à plena compreensão da doutrina
anarquista, esta dificuldade, até então logicamente sem resposta, teve a sua solução
completa e absoluta.
- É curioso...
- É... Agora deixe-me continuar na minha história. Tive esta dificuldade, e resolvi-a se
bem que mal, como lhe disse. Logo a seguir, e na linha dos meus pensamentos,
surgiu-me outra dificuldade que também me atrapalhou bastante.
``Estava bem - vamos lá - que estivesse disposto a sacrificar-me, sem recompensa
nenhuma propriamente pessoal, isto é, sem recompensa nenhuma verdadeiramente
natural. Mas suponhamos que a sociedade futura não dava em nada do que eu
esperava, que nunca havia a sociedade livre, e que diabo é que eu, nesse case, me
estava sacrificando? Sacrificar-me a uma idéia sem recompensa pessoal, sem eu
ganhar nada com o meu esforço por essa idéia, vá; mas sacrificar-me sem ao menos
ter a certeza de que aquilo para que eu trabalhava, existiria um dia, sem que a própria
idéia ganhasse com o meu esforço - isso era um pouco mais forte... Desde já lhe digo
que resolvi a dificuldade pelo mesmo processo sentimental por que resolvi a outra;
mas advirto-o também que, do mesmo modo que a outra, resolvi esta pela lógica,
automaticamente, quando cheguei ao estado plenamente consciente do meu
anarquismo... V. depois verá... Na altura do que lhe estou contando, saí-me do apuro
com uma ou duas frases ocas. `Eu fazia o meu dever para com o futuro; o futuro que
fizesse o seu para comigo'... Isto, ou cousa que o valha...''
``Expus esta conclusão, ou, antes estas conclusões, aos meus camaradas, e eles
concordaram todos comigo concordaram todos que era preciso ir para a frente e fazer
tudo pela sociedade livre. É a verdade que um ou outro, dos mais inteligentes, ficaram
um pouco abalados com a exposição, não porque não concordassem, mas porque
nunca tinham visto as coisas assim claras, nem os bicos que estas coisas têm... Mas
enfim, concordaram todos... Iríamos todos trabalhar pela grande revolução social, pela
sociedade livre, quer o futuro nos justificasse, quer não! Formamos um grupo, entre
gente certa, e começamos uma grande propaganda - grande, é claro, dentro dos
limites doo que podíamos fazer. Durante bastante tempo, no meio de dificuldades,
embrulhadas, e por vezes perseguições, lá fomos trabalhando pelo ideal anarquista.''
O banqueiro, chegado aqui, fez uma pausa um pouco mais longa. Não acendeu o
charuto, que estava outra vez apagado. De repente teve um leve sorriso, e, com o ar
de quem chega ao ponto importante, fitou-me com mais insistência e prosseguiu,
clarificando mais a voz e acentuando mais as palavras.
- Nesta altura, disse ele, apareceu uma coisa nova. ``Nesta altura'' é modo de dizer.
Quero dizer que, depois de alguns meses desta propaganda, comecei a reparar numa
nova complicação, e esta é que era a mais séria de todas, esta é que era séria a
valer...
``V. recorda-se, não é verdade? Daquilo em que eu, por um raciocínio rigoroso,
assentei que devia ser o processo de ação dos anarquistas... Um processo, ou
processos, quaisquer pelo qual se contribuisse para destruir as ficções sociais sem, ao
mesmo tempo, estorvar a criação da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa
nenhuma a pouca liberdade dos atuais oprimidos pelas ficções sociais; um processo
que, sendo possível, criasse já alguma coisa da liberdade futura...''
``Pois bem: uma vez assente este critério, nunca mais deixei de o ter presente... Ora,
na altura da nossa propaganda em que estou falando, descobri uma coisa. No grupo
de propaganda - não éramos muitos; éramos quarenta, salvo erro - dava-se este caso:
criava-se tirana.''
- Criava-se tirania?... Criava-se tirania como?
- Da seguinte maneira... Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam;
uns impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam
outros por manhas e por artes para onde eles queriam. Não digo que fizessem isto em
coisas graves; mesmo, não havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o fato é
que isto acontecia sempre e todos os dias, e dava-se não só em assuntos
relacionados com a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns
iam insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns
eram chefes por imposição; outros eram chefes por manha. No fato mais simples isto
se via. Por exemplo: dois dos rapazes iam juntos por uma rua fora; chegavam ao fim
da rua, e um tinha que ir para a direita e outro para a esquerda; cada um tinha
conveniência em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro,
``venha V. comigo por aqui''; o outro respondia, e era verdade, ``Homem, não posso;
tenho que ir por ali'' por esta ou aquela razão... Mas afinal, contra sua vontade e sua
conveniência, lá ia com o outro para a esquerda... Isto era uma vez por persuasão,
outra vez por simples insistência, uma terceira vez por um outro motivo qualquer... Isto
é, nunca era por uma razão lógica; havia sempre nesta imposição e nesta
subordinação qualquer coisa de espontâneo, de como que instintivo... E como neste
caso simples, em todos os outros casos; desde os menos até aos mais importantes...
V. vê bem o caso?
- Vejo. Mas que diabos há de estranho nisso? Isso é tudo quanto há de mais natural...
- Será. Já vamos a isso. O que lhe peço que note é que é exatamente o contrário da
doutrina anarquista. Repare bem que isto se passava num grupo pequeno, num grupo
sem influência nem importância, num grupo a quem não estava confiada a solução de
nenhuma questão grave ou decisão sobre qualquer assunto de vulto. E repare que se
passava num grupo de gente que se unira especialmente para fazer o que pudesse
para o fim anarquista - isto é, para combate, tanto quando possível, as ficções sociais,
e criar, tanto quando possível, a liberdade futura. V. reparou bem nestes dois pontos?
- Reparei.
- Veja agora bem o que isto representa... Um grupo pequeno, de gente sincera
(garanto-lhe que era sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar
pela causa da liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido só uma coisa de
positivo e concreto - a criação entre si de tirania. E repare que tirania... Não era uma
tirania derivada da ação das ficções sociais, que, embora lamentável, seria
desculpável, até certo ponto, ainda que menos em nós, que combatíamos essas
ficções, que em outras pessoas; mas enfim, vivíamos em meio de uma sociedade
baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não pudéssemos de
todo fugir à sua ação. Mas não era isso. Os que mandavam nos outros, ou os levavam
para onde queriam, não faziam isso pela força do dinheiro, ou da posição social, ou de
qualquer autoridade de natureza fictícia, que se arrogassem; faziam-no por uma ação
de qualquer espécie fora das ficções sociais, uma tirania nova. E era uma tirania
exercida sobre gente essencialmente oprimida já pelas ficções sociais. Era, ainda por
cima, tirania exercida entre si por gente cujo intuido sincero não era senão destruir
tirania e criar liberdade.
``Agora ponha o caso num grupo muito maior, muito mais influente, tratando já de
questões importantes e de decisões de caráter fundamental. Ponha esse grupo a
encaminha os seus esforços, como o nosso, para a formação de um sociedade livre. E
agora diga-me se através desse carregamento de tiranias entrecruzadas V. entrevê
qualquer sociedade futura que se pareça com uma sociedade livre ou com um
humanidade digna de si própria...'''
- Sim: isso é muito curioso...
- É curioso, não é?...E olhe que há pontos secundários também muito curiosos... Por
exemplo: a tirania do auxílio...
- A quê?
- A tirania do auxílio. Havia entre nós quem, em vez de mandar nos outros, em vez de
se impor aos outros, pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o
contrário, não é verdade? Pois olhe que é o mesmo. É a mesma tirania nova. É do
mesmo modo ir contra os princípios anarquistas.
- Essa é boa? Em quê?
- Auxiliar alguém, meu amigo, é tomar alguém por incapaz; se esse alguém não é
incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supô-lo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no
segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso
parte-se, pelo menos inconscientemente, do princípio de que outrem é desprezível e
indigno ou incapaz de liberdade.
``Voltemos ao nosso caso... V. vê bem que este ponto era gravíssimo. Vá que
trabalhássemos pela sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse, ou
arriscando-nos, mesmo, a que ela nunca viesse. Tudo isso, vá. Mas o que era demais
era estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e não fazermos, de positivo,
mais que criar tirania, e não só tirania, mas tirania nova, e tirania exercida por nós, os
oprimidos, uns sobre os outros. Ora isto é que não pode ser...''
``Pus-me a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram
bons; as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos processos?
Com certeza que deveriam ser. Mas onde diabo estava o erro? Pus-me a pensar nisso
e ia dando em doido. Um dia, de repente, como acontece sempre nestas coisas, dei
com a solução. Foi o grande dia das minhas teorias anarquistas; o dia em que
descobri, por assim dizer, a técnica do anarquismo.''
Olhou-me um momento sem me olhar. Depois continuou, no mesmo tom.
- Pensei assim... Temos aqui uma tirania nova, uma tirania que não é derivada das
ficções sociais. Então de onde é que ela derivada? Será derivada das qualidades
naturais? Se é, adeus sociedade livre! Se uma sociedade onde estão em operação
apenas as qualidades naturais dos homens - aquelas qualidades com que eles
nascem, que devem só à Natureza, e sobre as quais não temos poder nenhum -, se
uma sociedade onde estão em operação apenas essas qualidades é um amontoado
de tiranias, quem é que vai mexer o dedo mínimo para contribuir para a vinda dessa
sociedade? Tirania por tirania, fique a que está, que ao menos é aquela a que
estamos habituados, e que por isso fatalmente sentimos menos que estaríamos uma
tirania nova, e com o caráter terrível de todas as coisas tirânicas que são diretamente
da Natureza - o não haver revolta possível contra ela, como não há revolução contra
ter que morrer, ou contra nascer baixo quando se preferia ter nascido alto. Mesmo, eu
já lhe provei que, se por qualquer razão não é realizável a sociedade anarquista, então
deve existir, por ser mais natural que qualquer outra salvo aquela, a sociedade
burguesa.
``Mas seria esta tirania, que nascia assim entre nós, realmente derivada das
qualidades naturais? Ora o que são as qualidades naturais? São o grau de
inteligência, de imaginação, de vontade, etc., com que cada um nasce - isto no campo
mental, é claro, porque as qualidades naturais físicas não vêm para o caso. Ora um
tipo que, sem ser por uma razão derivada das ficções sociais, manda noutro, por força
que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais. Domina-o
pelo emprego das suas qualidades naturais. Mas há uma coisa a ver: esse emprego
das qualidades naturais será legítimos, isto é, será natural?''
``Ora qual é o emprego natural das nossas qualidades naturais? O servir os fins
naturais da nossa personalidade. Ora dominar alguém será um fim natural da nossa
personalidade? Pode sê-lo; há um caso em que pode sê-lo: é quando esse alguém
está para nós num lugar de inimigo. Para o anarquista, é claro, quem está num lugar
de inimigo, é qualquer representante das ficções sociais e da sua tirania; mais
ninguém, porque todos os outros homens são homens como ele e camaradas
naturais. Ora, V. bem vê, o caso da tirania, que tínhamos estado criando, era exercida
sobre homens como nós, camaradas naturais, e, mais ainda, sobre homens duas
vezes nossos camaradas, porque o eram também pela comunhão do mesmo ideal.
Conclusão: esta nossa tirania, se não era derivada das ficções sociais, também não
era derivada das qualidades naturais; era derivada duma aplicação errada, duma
perversão, das qualidades naturais. E essa perversão, de onde é que provinha?''
``Tinha que provir de uma de duas cousas: ou de o homem ser naturalmente mau, e
portanto todas as qualidades naturais serem naturalmente pervertidas; ou de uma
perversão resultante da longa permanência da humanidade numa atmosfera de
ficções sociais, todas elas criadoras de tirania, e tendente, portanto, a tornar já
instintivamente tirânico o uso mais natural das qualidades mais naturais. Ora, destas
duas hipóteses, qual é que seria a verdadeira? De um modo satisfatório - isto é,
rigorosamente lógico ou científico - era impossível determinar. O raciocínio não pode
entrar com o problema, porque ele é de ordem histórica, ou científica, e depende do
conhecimento de fatos. Por seu lado, a ciência também nos não ajuda, porque, por
mais longe que recuemos na história, encontramos sempre o homem vivendo sob um
ou outro sistema de tirania social, e portanto sempre num estado que nos não permite
averiguar como é o homem quando vive em circunstâncias pura e inteiramente
naturais. Não havendo maneira de determinar ao certo, temos que pender para o lado
da maior probabilidade; e a maior probabilidade está na segunda hipótese. É mais
natural supor que a longuíssima permanência da humanidade em ficções sociais
criadoras de tirania faça cada homem nascer já com as suas qualidade naturais
pervertidas no sentido de tiranizar, do que supor que qualidades naturais podem ser
naturalmente pervertidas, o que, de certo modo, representa una contradição. Por isso
o pensador decide-se, como eu me decidi, com uma quase absoluta segurança, pela
segunda hipótese.''
``Temos, pois, que uma coisa é evidente... No estado social presente não é possível
um grupo de homens, por bem intencionados que estejam todos, por preocupados que
estejam todos só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade,
trabalharem juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania, sem criar entre si
uma tirania nova, suplementar à das ficções sociais, sem destruir na prática tudo
quanto querem na teoria, sem involutariamente estorvar o mais possível o próprio
intuito que querem promover. O que há a fazer? É muito simples... É trabalharmos
todos para o mesmo fim, mas separados.''
- Separados?
- Sim. V. não seguiu o meu argumento?
- Segui.
- E não acha lógica, não acha fatal esta conclusão?
- Acho, sim, claro... Disse eu: trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados.
Trabalharmos todos para o mesmo fim anarquista, cada um contribui com o seu
esforço para a destruição das ficções sociais, que é para onde o dirige, e para a
criação da sociedade livre do futuro; e trabalhando separados não podemos, de modo
nenhum, criar tirania nova, porque nenhum tem ação sobre o outro, e não pode
portanto, nem, dominando-o, diminuir-lhe a liberdade, nem, auxiliando-o, apagar-lha.
``Trabalhando assim separados e para o mesmo fim anarquista, temos as duas
vontades - a do esforço, e a da não criação de tirania nova. Continuamos unidos,
porque o estamos moralmente e trabalhamos do mesmo modo para o mesmo fim;
continuamos anarquistas, porque cada um trabalha para a sociedade livre; mas
deixamos de ser traidores, voluntários ou involuntários, à nossa cousa, deixamos
mesmo de poder sê-lo, porque nos colocamos, pelo trabalho anarquista isolado, fora
da influência deletéria das ficções sociais, no seu reflexo hereditário sobre as
qualidades que a Natureza deu.''
``É claro que toda esta tática se aplica ao que eu chamei de período de preparação
para a revolução social. Arruinadas as defesas burguesas, e reduzida a sociedade
inteira ao estado de aceitação das doutrinas anarquistas, faltando só fazer a revolução
social, então, para o golpe final, é que não pode continuar a ação separada. Mas
nessa altura, já a sociedade livre estará virtualmente chagada; já as coisas serão de
outra maneira. A tática a que me refiro só diz respeito à ação anarquista em meio da
sociedade burguesa, como agora, como no grupo a que eu pertencia.''
``Era esse - até que enfim! - o verdadeiro processo anarquista. Juntos, nada valíamos,
que importasse, e, ainda por cima, nos tiranizávamos, e nos estorvávamos uns aos
outros e às nossas teorias. Separados, pouco também conseguiríamos, mas ao
menos não estorvávamos a liberdade, não criávamos tirania nova; o que
conseguíamos, pouco que fosse, era realmente conseguido, sem desvantagem nem
perda. E, de mais a mais, trabalhávamos assim separados, aprendíamos a confiar
mais em nós mesmos, a não nos encostarmos uns aos outros, a tornarmo-nos mais
livres já, a prepararmo-nos, tanto pessoalmente, como aos outros pelo nosso exemplo,
para o futuro.''
``Fiquei radiante com essa descoberta. Fui logo expô-la aos meus camaradas... Foi
uma das poucas vezes em que fui estúpido na minha vida. Imagine V. que eu estava
tão cheio da minha descoberta que esperava que eles concordassem...''
- Não concordaram, é claro...
- Repontaram, meu amigo, repontaram todos! Uns mais, outros menos, tudo
protestou!... Não era isso!... Isso não podia ser!... Mas ninguém dizia o que era ou o
que é que havia de ser. Argumentei e argumentei, e, em resposta aos meus
argumentos, não obtive senão frases, lixo coisas como essas que os ministros
respondem nas câmaras quando não têm resposta nenhuma... Então é que eu vi com
que bestas e com que covardões estava metido! Desmascararam-se. Aquela corja
tinha nascido para escravos. Queriam ser anarquistas à custa alheia. Queriam a
liberdade, logo que fossem os outros que lha arranjassem, logo que lhe fosse dada
como um rei dá um título! Quase todos eles são assim, os grandes lacaios!
- E V., escamou-se?
- Se me escamei! Enfureci-me! Pus-me aos coices. Dei por paus e por pedras. Quase
que me peguei com dois ou três deles. E acabei por me vir embora. Isolei-me. Veio-me
um nojo àquela carneirada toda, que V. não imagina! Quase que descri no
anarquismo. Quase que decidi não me importar mais com tudo aquilo. Mas, passados
uns dias, voltei a mim. Pensei que o ideal anarquista estava acima destas quizílas.
Eles não queriam só brincar aos libertários? Não estava eu para brincar num caso
desses. Eles não tinham força para combater senão encostados uns aos outros, e
criando, entre si, um simulacro novo da tirania que diziam querer combater? Pois que
o fizessem, os parvos, se não serviam para mais. Eu é que não ia ser burguês por tão
pouco.
``Estava estabelecido que, no verdadeiro anarquismo, cada um tem que, por sua
própria forças, criar liberdade e combater as ficções sociais. Pois por minha própria
forças eu ia criar liberdade e combater as ficções sociais. Ninguém queria seguir-me
no verdadeiro caminho anarquista? Seguiria eu por ele. Iria eu só, com os meus
recursos, com a minha fé, desacompanhado até do apoio mental dos que tinham sido
meus camaradas, contra as ficções sociais inteiras. Não digo que fosse um belo gesto,
nem um gesto heróico. Foi simplesmente um gesto natural. Se o caminho tinha que
ser seguido por cada um separadamente, eu não precisava de mais ninguém para o
seguir. Bastava o meu ideal. Foi baseado nestes princípios e nestas circunstâncias
que decidi, por mim só, combater as ficções sociais.''
Suspendeu um pouco o discurso, que se lhe tornara quente e fluido. Retomou-o de ali
a pouco, com a voz já mais sossegada.
- É um estado de guerra, pensei eu, entre mim e as ficções sociais. Muito bem. O que
posso eu fazer contra as ficções sociais? Trabalho sozinho, para não poder, de modo
nenhum, criar qualquer tirania. Como posso eu colaborar sozinho na preparação da
revolução social, na preparação da humanidade para a sociedade livre? Tenho que
escolher um de dois processos, dos dois processos que há; caso, é claro, não possa
servir-me de ambos. Os dois processos, são a ação indireta, isto é, a propaganda, e a
ação direta, de qualquer espécie.
``Pensei primeiro na ação indireta, isto é, na propaganda. Que propaganda poderia eu
fazer só por mim? À parte esta propaganda que sempre se vai fazendo em conversa,
com este ou aquele, ao acaso e servindo-nos de todas as oportunidades, o que eu
queria saber era se a ação indireta era um caminho por onde eu pudesse encaminhar
a minha atividade de anarquista energicamente, isto é, de modo a produzir resultados
sensíveis. Vi logo que não podia ser. Não sou orador e não sou escritor. Quero dizer,
sou capaz de falar em público, se for preciso, e sou capaz de escrever um artigo de
jornal; mas o que eu queria averiguar era se o meu feitio natural indicava que,
especializando-me na ação indireta, de qualquer das duas espécies ou em ambas, eu
poderia obter resultados mais positivos para a idéia anarquista que especializando os
meus esforços em qualquer outro sentido. Ora a ação é sempre mais proveitosa que a
propaganda, exceto para os indivíduos cujo feitio os indica essencialmente como
propagandistas - os grandes oradores, capazes de eletrizar multidões e arrastá-las
atrás de si, ou os grandes escritores, capazes de fascinar e convencer com os seus
livros. Não me parece que eu seja muito vaidoso, mas, se o sou, não me dá, pelo
menos, para me envaidecer daquelas qualidades que não tenho. E, como lhe disse,
nunca me deu para me julgar orador ou escritor. Por isso abandonei a idéia da ação
indireta como caminho a dar à minha atividade anarquista. Por exclusão de partes, era
forçado a escolher a ação direta, isto é, o esforço aplicado à prática da vida, à vida
real. Não era a inteligência, mas a ação. Muito bem. Assim seria.''
``Tinha eu pois que aplicar à vida prática o processo fundamental de ação anarquista
que eu já tinha esclarecido - combater as ficções sociais sem criar tirania nova,
criando já, caso fosse possível, qualquer coisa da liberdade futura. Ora como diabo se
faz isso na prática?''
``Ora o que é combater na prática? Combater na prática é a guerra, é uma guerra,
pelo menos. Como é que se faz guerra às ficções sociais? Antes de mais nada, como
é que se faz guerra? Como é que se vence o inimigo em qualquer guerra? De uma de
duas maneiras: ou matando-o isto é, destruindo-o; ou aprisionando-o, isto é,
subjugando-o, reduzindo-o à inatividade. Destruir as ficções sociais não podia eu
fazer; destruir as ficções sociais só o podia fazer a revolução social. Até ali, as ficções
sociais podiam estar abaladas, cambaleando, por um fio; mas destruídas, só o
estariam com a vinda da sociedade livre e a queda positiva da sociedade burguesa. O
mais que eu poderia fazer nesse sentido era destruir - destruir no sentido físico de
matar - um ou outro membro da classes representativas da sociedade burguesa.
Estudei o caso, e vi que era asneira. Suponha V. que eu matava um ou dois, ou uma
dúzia de representante da tirania das ficções sociais... O resultado? As ficções sociais
ficariam abaladas? Não ficariam. As ficções sociais não são como um situação política
que pode depender de um pequeno número de homens, de um só homem por vezes.
O que há de mau nas ficções sociais são elas, no seu conjunto, e não os indivíduos
que as representam senão por serem representantes delas. Depois, um atentado de
ordem social produz sempre uma reação; não só tudo fica na mesma, mas, as mais
das vezes, piora. E, ainda por cima, suponha, como é natural, que, depois de um
atentado, eu era caçado; era caçado e liquidado, de uma maneira ou outra. E suponha
que eu tinha dado cabo de uma dúzia de capitalistas. Em que vinha isso tudo dar, e
resumo? Com a minha liquidação, ainda que não por morte, mas por simples prisão ou
degredo, a causa anarquista pedia um elemento de combate; e os doze capitalistas,
que eu teria estendido, não eram doze elementos que a sociedade burguesa tinha
perdido, porque os elementos componentes da sociedade burguesa não são
elementos de combate, mas elementos puramente passivos, pois o `combate' está,
não nos membros da sociedade burguesa, mas no conjunto de ficções sociais, em que
essa sociedade assenta. Ora as ficções sociais não são gente, em quem se possa dar
tiros... V. compreende bem? Não era como o soldado de um exercito que mata doze
soldados de um exército contrário; era como um soldado que mata doze civis da
nação do outro exército. É matar estupidamente, porque não se elimina combatente
nenhum... Eu não podia portanto pensar em destruir, nem no todo nem em nenhuma
parte, ficções sociais. Tinha então que subjugá-las, que vencê-las subjugando-as,
reduzindo-as à inatividade.''
Apontou para mim o indicador direito súbito.
- Foi o que eu fiz!
Retirou logo o gesto, e continuou.
- Procurei ver qual era a primeira, a mais importante, das ficções sociais. Seria a essa
que me cumpria, mais que a nenhuma outra, tentar subjugar, tentar reduzir à
inatividade. A mais importante, da nossa época pelo menos, é o dinheiro. Como
subjugar o dinheiro, ou, em palavras mais precisas, a força, ou a tirania do dinheiro?
Tornando-me livre da sua influência, da sua força, superior portanto à influência,
reduzindo-o à inatividade pelo que me dizia respeito a mim. Pelo que me dizia respeito
a mim, compreende V.?, porque eu é que o combatia; se fosse reduzi-lo à inatividade
pelo que respeita a toda a gente, isso não seria já subjugá-lo, mas destruí-lo, porque
seria acabar de todo com a ficção do dinheiro. Ora eu já lhe provei que qualquer ficção
social só pode ser ``destruída'' pela revolução social, arrastada com as outras na
queda da sociedade burguesa.
``Como podia eu tornar-me superior à força do dinheiro? O processo mais simples era
afastar-me da esfera da sua influência, isto é, da civilização; ir para um campo comer
raízes e beber água das nascentes; andar nu e viver como animal. Mas isto, mesmo
que não houvesse dificuldade em fazê-lo, não era combater uma ficção social; não era
mesmo combater: era fugir. Realmente, quem se esquiva a travar um combate não é
derrotado nele. Mas moralmente é derrotado, porque não se bateu. O processo tinha
que ser outro - um processo de combate e não de fuga. Como subjugar o dinheiro,
combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e tirania, não evitando o seu
encontro? O processo era só um - adquiri-lo, adquiri-lo em quantidades bastante para
lhe não sentir a influência; e em quanto mais quantidade o adquirisse, tanto mais livre
eu estaria dessa influência. Foi quando vi isto claramente, com toda a força da minha
convicção de anarquista, e toda a minha lógica de homem lúcido, que entrei na fase
atual - a comercial e bancária, meu amigo - do meu anarquismo.''
Descansou um momento da violência, novamente crescente, do seu entusiasmo pela
sua exposição. Depois continuou, ainda com um certo calor, a sua narrativa.
- Ora V. lembrasse daquelas duas dificuldades lógicas que eu lhe disse que me
haviam surgido na princípio da minha carreira de anarquista consciente?... E V.
lembra-se de eu lhe dizer que naquela altura as resolvi artificialmente pelo sentimento
e não pela lógica? Isto é, V. mesmo notou e muito bem, que eu não as tinha resolvido
pela lógica...
- Lembro-me, sim...
- E V. lembra-se de eu lhe dizer que mais tarde, quando acertei por fim com o
verdadeiro processo anarquista, as resolvi então de vez, isto é, pela lógica?
- Sim.
- Ora veja como ficaram resolvidas... As dificuldades eram estas: não é natural
trabalhar por qualquer coisa, seja o que for, sem uma compensação natural, isto é,
egoísta; e não é natural dar o nosso esforço a qualquer fim sem ter a compensação de
saber que esse fim se atinge. As duas dificuldades eram estas; ora repare como ficam
resolvidas pelo processo de trabalho anarquista que o meu raciocínio me levou a
descobrir como sendo o único verdadeiro... O processo dá em resultado eu enriquecer;
portanto, compensação egoísta. O processo visa ao conseguimento da liberdade; ora
eu, tornando-me superior à força do dinheiro, isto é, libertando-me dela, consigo
liberdade. Consigo liberdade só para mim, é certo; mas é que como já lhe provei, a
liberdade para todos só pode vir com a destruição das ficções sociais, pela revolução
social. O ponto concreto é este: viso liberdade, consigo liberdade: consigo a liberdade
que posso... E veja V.: à parte o raciocínio que determina este processo anarquista
como o único verdadeiro, o fato que ele resolve automaticamente as dificuldades
lógicas, que se podem opor a qualquer processo anarquista, mais prova que ele é o
verdadeiro.
``Pois foi este o processo que eu segui. Meti ombros à empresa de subjugar a ficção
dinheiro, enriquecendo. Consegui. Levou um certo tempo, porque a luta foi grande,
mas consegui. Escuso de lhe contar o que foi e o que tem sido a minha vida comercial
e bancária. Podia ser interessante, em certos pontos sobretudo, mas já não pertence
ao assunto. Trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais, lutei mais, ganhei mais
dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim. Não olhei o processo - confesso-lhe, meu
amigo, que não olhei o processo; empreguei tudo quanto há - o açambarcamento, o
sofisma financeiro, a própria concorrência desleal. O quê?! Eu combatia as ficções
sociais, imorais e antinaturais por excelência, e havia de olhar a processos?! Eu
trabalhava pela liberdade, e havia de olhar as armas com que combatia a tirania?! O
anarquista estúpido, que atira bombas e dá tiros, bem sabe que mata, e bem sabe que
as suas doutrinas não incluem a pena de morte. Ataca uma imoralidade com um
crime, porque acha que essa imoralidade pede um crime para se destruir. Ele é
estúpido quanto ao processo, porque, como já lhe mostrei, esse processo é errado e
contraproducente como processo anarquista; agora quanto à moral do processo ele é
inteligente. Ora o meu processo estava certo, e eu servia-me legitimamente, como
anarquista, de todos os meios para enriquecer. Hoje realizei o meu limitado sonho de
anarquista prático e lúcido. Sou livre. Faço o que quero, dentro, é claro, do que é
possível fazer. O meu lema de anarquista era a liberdade; pois bem, tenho a
liberdade, a liberdade que, por enquanto, na nossa sociedade imperfeita, é possível
ter. Quis combater as forças sociais; combati-as, e, o que é mais, venci-as.''
- Alto lá! Alto lá! disse eu. Isso estará tudo muito bem, mas há uma cousa que V. não
viu. As condições do seu processo eram, como V. provou, não só criar liberdade, mas
também não criar tirania. Ora V. criou tirania V. como açambarcador, como banqueiro,
como financeiro sem escrúpulos - V. desculpe, mas V. é que disse -, V. criou tirania. V.
criou tanta tirania como qualquer outro representante das ficções sociais, que V. diz
que combate.
- Não, meu velho, V. engana-se. Eu não criei tirania. A tirania, que pode ter resultado
da minha ação de combate contra as ficções sociais, é uma tirania que não parte de
mim, que portanto eu não criei; está nas ficções sociais, eu não ajuntei a elas. Essa
tirania é a própria tirania das ficções sociais; e eu não podia, nem me propus, destruir
as ficções sociais. Pela centésima vez lhe repito: só a revolução social pode destruir
as ficções sociais; antes disso, a ação anarquista perfeita, como a minha, só pode
subjugar as ficções sociais, subjugá-las em relação só ao anarquista que põe esse
processo em prática, porque esse processo não permite uma mais larga sujeição
dessas ficções. Não é de não criar tirania que se trata: é de não criar tirania nova,
tirania onde não estava. Os anarquistas, trabalhando em conjunto, influenciando-se
uns aos outros como eu lhe disse, criam entre si, fora e à parte das ficções sociais,
uma tirania; essa é que é uma tirania nova. Essa, eu não a criei. Não a podia mesmo
criar, pelas próprias condições do meu processo. Não, meu amigo; eu só criei
liberdade. Libertei um. Libertei-me a mim. É que o meu processo, que é, como lhe
provei, o único verdadeiro processo anarquista, me não permitiu libertar mais. O que
pude libertar, libertei.
- Está bem... Concordo... Mas olhe que, por esse argumento, a gente quase que é
levado a crer que nenhum representante das ficções sociais exerce a tirania...
- E não exerce. A tirania é das ficções sociais e não dos homens que as encarnam;
esses são, por assim dizer, os meios de que as ficções se servem para tiranizar, como
a faca é o meio que se pode servir o assassino. E V. decerto não julga que abolindo as
facas abole os assassinos... Olhe... Destrua V. todos os capitalistas do mundo, mas
sem destruir o capital... No dia seguinte o capital, já nas mãos de outros, continuará,
por meio desses, a sua tirania. Destrua, não os capitalistas, mas o capital; quantos
capitalistas ficam?... Vê?...
- Sim; V. tem razão.
- Ó filho, o máximo, o máximo, o máximo que V. me pode acusar de fazer é de
aumentar um pouco - muito muito pouco - a tirania das ficções sociais. O argumento é
absurdo, porque como já lhe disse, a tirania que eu não devia criar, e não criei, é
outra. Mas tem mais um ponto fraco: é que, pelo mesmo raciocínio, V. pode acusar um
general, que trava combate pelo seu país, de causar ao seu país o prejuízo do número
de homens do seu próprio exercito que teve que sacrificar para vencer. Quem vai à
guerra, dá e leva. Consiga-se o principal; o resto...
- Está muito bem... Mas olhe lá outra coisa... O verdadeiro anarquista quer a liberdade
não só para si, mas também para os outros... Parece-me que quer a liberdade para a
humanidade inteira...
- Sem dúvida. Mas eu já lhe disse que, pelo processo que descobri que era o único
processo anarquista, cada um tem de libertar-se a si próprio. Eu libertei-me a mim; fiz
o meu dever simultaneamente pra comigo e para com a liberdade. Por que é que os
outros, os meus camaradas, não fizeram o mesmo? Eu não os impedi. Esse é que
teria sido o crime, se os tivesse impedido. Mas eu nem sequer os impedi ocultandolhes o verdadeiro processo anarquista; logo que descobri o processo, disse-o
claramente a todos. O próprio processo me impedia de fazer mais. Que mais podia
fazer? Compeli-los a seguir o caminho? Mesmo que o pudesse fazer, não o faria,
porque seria tirar-lhes a liberdade, e isso era contra os meus princípios anarquistas.
Auxiliá-los? Também não podia ser, pela mesma razão. Eu nunca ajudei, nem ajudo,
ninguém, porque isso, sendo diminuir a liberdade alheia, é também contra os meus
princípios. V. o que me está censurando é eu não ser mais gente que uma pessoa só.
Por que me censura o cumprimento do meu dever de libertar, até onde eu o podia
cumprir? Por que não os censura antes a eles por não terem cumprido o deles?
- Pois sim, homem. Mas esses homens não fizeram o que V. fez, naturalmente, porque
eram menos inteligentes que V., ou menos fortes de vontade, ou...
- Ah, meu amigo: essas são já as desigualdades naturais, e não sociais... Com essas
é que o anarquismo não tem nada. O grau de inteligência ou de vontade de um
indivíduo é com ele e com a Natureza; as próprias ficções sociais não põem praí nem
prego nem estopa. Há qualidade naturais, como eu já lhe disse, que se pode presumir
que sejam pervertidas pela longa permanência da humanidade entre ficções sociais;
mas a perversão não está no grau da qualidade, que é absolutamente dado pela
Natureza, mas na aplicação da qualidade. Ora uma questão de estupidez ou de falta
de vontade não tem que ver com a aplicação dessas qualidade, mas só com o grau
delas. Por isso lhe digo: essas são já absolutamente as desigualdades naturais, e
sobre essas ninguém tem poder nenhum, nem há modificação social que a modifique,
como não me pode tornar a mim alto ou a V. baixo...
``A não ser... A não ser que, no caso desses tipos, a perversão hereditária das
qualidades naturais vá tão longe que atinja o próprio fundo do temperamento... Sim,
que um tipo nasça para escravo, nasça naturalmente escravo, e portanto incapaz de
qualquer esforço no sentido de se libertar... Mas nesse caso..., nesse caso..., que têm
eles que ver com a sociedade livre, ou com a liberdade?... Se um homem nasceu para
escravo, a liberdade, sendo contrária à sua índole, será para ele uma tirania'''
Houve uma pequena pausa. De repente ria alto.
- Realmente, disse eu, V. é anarquista. Em todo o caso, dá vontade de rir, mesmo
depois de o ter ouvido, compara o que V. é com o que são os anarquistas que praí
há...
- Meu amigo, eu já lho disse, já lho provei, e agora repito-lho... A diferença é só esta:
eles são anarquistas só teóricos, eu sou teórico e prático; eles são anarquistas
místicos, e eu científico; eles são anarquistas que se agacham, eu sou um anarquista
que combate e liberta... Em uma palavra: eles são pseudo-anarquistas, e eu sou
anarquista.
E levantamos-nos da mesa.
Lisboa, janeiro de 1922.
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