Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
domingo, 10 de abril de 2022
VII
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Mude a vida correndo.
Correndo, mude a vida.
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S. Bernardo - Graciliano Ramos
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VII
Por esse tempo encontrei em Maceió, chupando uma
barata na Gazeta do Brito, um velho alto, magro, curvado,
amarelo, de suíças, chamado Ribeiro. Via-se perfeitamente
que andava com fome. Simpatizei com ele e, como
necessitava um guarda-livros, trouxe-o para S. Bernardo. Dei-lhe
alguma confiança e ouvi a sua história, que aqui reproduzo pondo os
verbos na terceira pessoa e usando quase a linguagem dele.
Seu Ribeiro tinha setenta anos e era infeliz, mas havia sido moço e
feliz. Na povoação onde ele morava os homens descobriam-se ao
avistá-lo e as mulheres baixavam a cabeça e diziam:
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, seu major.
Quando alguém recebia cartas, ia pedir-lhe a tradução delas. Seu
Ribeiro lia as cartas, conhecia os segredos, era considerado e major.
Se dois vizinhos brigavam por terra, seu Ribeiro chamava-os,
estudava o caso, traçava as fronteiras e impedia que os contendores se
grudassem.
Todos acreditavam na sabedoria do major. Com efeito, seu Ribeiro
não era inocente: decorava leis, antigas, relia jornais, antigos, e, à luz da
candeia de azeite, queimava as pestanas sobre livros que encerravam
palavras misteriosas de pronúncia difícil. Se se divulgava uma dessas
palavras esquisitas, seu Ribeiro explicava a significação dela e
aumentava o vocabulário da povoação.
Os outros homens, sim, eram inocentes.
Acontecia às vezes que uma dessas criaturas inocentes aparecia
morta a cacete ou a faca. Seu Ribeiro, que era justo, procurava o
matador, amarrava-o, levava-o para a cadeia da cidade. E a família do
defunto ficava sob a proteção do major.
Também acontecia que uma sujeitinha começava a chorar e acabava
confessando que estava pejada. Seu Ribeiro descobria o sedutor,
chamava o padre, e o casamento se realizava na capela da povoação.
Nascia um menino — e seu Ribeiro era o padrinho.
O major decidia, ninguém apelava. A decisão do major era um
prego.
Não havia soldados no lugar, nem havia juiz. E como o vigário residia longe, a mulher de seu Ribeiro rezava o terço e contava histórias
de santos às crianças. É possível que nem todas as histórias fossem
verdadeiras, mas as crianças daquele tempo não se preocupavam com a
verdade.
Seu Ribeiro tinha família pequena e casa grande. A casa estava
sempre cheia. Os algodoais do major eram grandes também. Nas
colheitas a população corria para eles. E os pretos não sabiam que eram
pretos, e os brancos não sabiam que eram brancos.
Na verdade seu Ribeiro infundia respeito. Se havia barulho na feira,
levantava o braço e gritava:
— Quem for meu me acompanhe.
E a feira se desmanchava, o barulho findava, todo o mundo seguia o
major porque todo o mundo era do major.
Nas noites de S. João uma fogueira enorme iluminava a casa de seu
Ribeiro. Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do
major tinha muitas carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam
em redor dela, de braço dado. Assava-se milho verde nas brasas e
davam-se tiros medonhos de bacamarte. O major possuía um bacamarte,
mas o bacamarte só se desenferrujava pelos festejos de S. João.
Ora, essas coisas se passaram antigamente.
Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do major
cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro.
O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em
cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de
polícia.
Trouxeram máquinas — e a bolandeira do major parou.
Veio o vigário, que fechou a capela e construiu uma igreja bonita.
As histórias dos santos morreram na memória das crianças.
Chegou o médico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu
Ribeiro entristeceu, emagreceu e finou-se.
O advogado abriu consultório, a sabedoria do major encolheu-se —
e surgiram no foro numerosas questões.
Efetivamente a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens
adotaram gravatas e profissões desconhecidas. Os carros de bois
deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automóvel, a gasolina, a
eletricidade e o cinema. E impostos.As moças e os rapazes não rodeavam, de braço dado, as fogueiras de
S. João: dançavam o tango, no frevo.
Um dia seu Ribeiro reconheceu que vivia numa casa grande demais.
Vendeu-a e adquiriu outra, pequena. Como havia agora liberdade
excessiva, a autoridade dele foi minguando, até desaparecer.
Seu Ribeiro tinha um filho, que jogava futebol, e uma filha, que
usava fitas, muitas fitas. Acharam o lugar atrasado e fugiram. Seu
Ribeiro escondeu-se, cheio de vergonha. Amofinou-se uma semana,
desfez-se dos cacarecos e foi procurar os filhos. Não os encontrou:
andavam por aí, ela pelas fábricas, ele no exército.
Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu enfermarias de
indigentes, dormiu nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de loterias,
tornou-se bicheiro e agente de sociedades ratoeiras. Ao cabo de dez
anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cento e cinquenta milréis de ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.
Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:
— Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de
um automóvel, seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o
diabo.
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GRACILIANO RAMOS Angústia
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(...) Os músculos de mestre Domingos eram do velho Trajano. Os músculos e o
ventre de Quitéria também. Sinha Germana concebia e paria no couro de boi, a
que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Quitéria engendrava filhos no chão,
debaixo das catingueiras, atrás do curral, e despejava-os na esteira da Isidora, em
partos difíceis. Crias de cores e idades diferentes espalhavam-se por aquela
ribeira, várias de Trajano, cabras alatoados que apareciarn de longe em longe e
pediam a bênção do velho às escondidas. Os partos de sinha Germana perderam-se: escapou apenas Camilo Pereira da Silva, que parafusou no romance e me
transmitiu esta inclinação para os impressos.
Quitéria e outras semelhantes povoaram a catinga de mulatos fortes e
brabos que pertenciam a Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva. São do
meu tempo os dois últimos partos de Quitéria. Sinha Terta, parteira da fazenda,
batia a taramela do quarto pegado à cozinha. Trajano rondava a porta, preocupado
com a cria, que não era dele. Depois da abolição, já sem forças, ainda conservava
os modos de patriarca. Estava arrasado, aos sábados subia à vila, entrava na
carrasparza, encostava-se ao ombro de mestre Domingos, babando-se: - "Negro!
Tu não respeitas teu senhor não, negro?" Não o alcancei gerando filhos nas
pretas, mas alcancei os cabras que lhe pediam a bênção cochichando e vi-o nas
pontas dos pés rondando o quarto de Quitéria, interessando-se pelos moleques,
como se fossem dele.
Quitéria esperneava, espojava-se e soprava na esteira, as varas da isidora
estalavam. Havia silêncio, rumores esquisitos, roncos, voz de sinha Terta, que a de
Quitéria acompanhava, arrastada e nasal:
Minha santa Margarida,
Não estou prenha nem parida.
Tire-me este corpo morto
Que eu tenho na barriga.
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
Meu avô serenava.
As outras pretas da fazenda tinham deixado a cozinha depois de 88, e
Trajano era senhor de uma escrava só, que se deitara com ele sob as catingueiras
e não queria ser livre. Conheci Trajano decadente, excedendo-se na pinga e já
sem prestígio para armar cabroeira e ameaçar a cadeia da vila.
GRACILIANO RAMOS
ANGÚSTIA
https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnx2aXZhbGl2cm9zYnJhc2lsfGd4OjExODU0NWQzMzhiNzkzYWE
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O sétimo mandamento: contra os ladrões
Anselmo Borges
DN Diário de Notícias
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Anselmo Borges
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24 Julho 2021 — 00:15
TÓPICOS
Anselmo Borges
Opinião
1- Há um mandamento da lei de Deus (quem é que ainda se lembra que os mandamentos são dez?) - o sétimo - que diz: "Não roubarás."
Antes de mais, é preciso esclarecer que os mandamentos da lei de Deus - o Decálogo - são dados em nome do Deus libertador do povo escravizado no Egipto. Todo o Antigo Testamento tem como eixo essa experiência essencial da libertação da escravidão. Assim, por paradoxal que pareça, os mandamentos, em última análise, resumem-se nesta ordem: sois livres, não escravizeis ninguém, não vos deixeis escravizar por nada nem por ninguém, não sejais escravos de vós próprios.
Por isso, ao contrário do que se julga, este sétimo mandamento não está imediatamente referido à propriedade e ao roubo da propriedade, mas ao roubo do Homem, isto é, ao roubo daquilo que faz do Homem ser humano: a liberdade. Mas, por outro lado, também se percebe que este mandamento - não roubarás -, embora se não refira directamente à propriedade, inclui a propriedade, pois, como disse o teólogo Heinz Zahrnt, há um vínculo estreito entre propriedade e liberdade: "A propriedade garante a liberdade e torna autoconsciente." Em certa medida, o que o Homem "é" também depende do que ele "tem". Isso é dito até na palavra "posses" (teres), do latim "posse" (poder): ela refere o que o Homem possui e também o que ele pode ou não: comer, vestir-se, dar a si mesmo ou a alguém uma alegria, construir uma casa, ter acesso à cultura, ajudar um necessitado ou um amigo. Por outro lado, não é só o ter, não é a quantidade do que se possui que determina por si só o grau de liberdade. A propriedade proporciona liberdade, mas também pode levar à não liberdade, pois pode conduzir à loucura de confundir a existência com a posse de bens e à escravização de outros seres humanos.
Assim, este mandamento "determina a relação entre propriedade e liberdade num duplo sentido: previne contra o perigo de perder a liberdade própria", na medida em que alguém se deixa escravizar pelo ter; previne contra o perigo do roubo da liberdade dos outros, "na medida em que, apropriando-nos da sua propriedade, nos apropriamos também da sua liberdade". Ora, "quem se apropria de homens torna-os mercadoria" e dispõe deles como meio. Cá está o crime da exploração do trabalho infantil, tomada de reféns, recrutamento forçado de trabalhadores, comércio de carne branca para a prostituição, salários injustos... "Que pode haver verdadeira liberdade sem propriedade cada um pode dizê-lo a si próprio, mas não pode exigi-lo aos outros."
O roubo começa e está presente das maneiras mais diversas, até na vida quotidiana: viajar nos transportes públicos sem bilhete, não chegar a horas ao trabalho, evasões fiscais, estragar a natureza, construções sem garantia, declarações falsas de doença, fogo posto, má condução nas estradas, incompetência no desempenho das diferentes tarefas e funções, tráfico de drogas, branqueamento de capitais, danificar a propriedade pública e privada, irresponsabilidade no uso e aplicação dos dinheiros públicos, corrupção activa e passiva, falsificações alimentares, tirar aos outros o seu tempo precioso...
Depois, há os grandes e os pequenos roubos, com uma diferença, a que já Martinho Lutero se referia há quinhentos anos, com estas palavras (tradução um pouco livre): "Quando olhamos para o mundo hoje através de todas as camadas sociais, constatamos que não passa de um grande, enorme, covil cheio de grandes ladrões... Aqui, seria necessário calar quanto aos pequenos ladrões particulares, para atacar os grandes e violentos, que diariamente roubam não uma ou duas cidades, mas a Alemanha inteira... Assim vai o mundo: quem pode roubar pública e notoriamente vai em paz e livre e recebe aplausos. Em contraposição, os pequenos ladrões, se são apanhados, têm de carregar com a culpa, o castigo e a vergonha. Os grandes ladrões públicos devem, porém, saber que perante Deus são isso mesmo: os grandes ladrões."
O que Lutero disse há quinhentos anos referindo-se à Alemanha continua válido hoje, talvez mais do que nunca, em Portugal. E então entende-se: assim, por mais milhões, milhões, milhares de milhões de apoios da Europa, continuamos na cauda...
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O sétimo mandamento: contra os ladrões
© Ilustração Vítor Higgs / DN
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2 - A globalização arrasta consigo inevitavelmente questões gigantescas e desperta paixões que nem sempre permitem um debate sereno e racional.
O teólogo Hans Küng procurou contribuir também para este debate, que assenta, segundo ele, em quatro teses: a globalização é: "1. inevitável, 2. ambivalente (com ganhadores e perdedores), 3. não calculável (pode levar ao milagre económico para todos ou ao descalabro), 4. mas também - e isto é o mais importante - é dirigível." Isto significa que precisamente a globalização económica exige uma globalização no domínio ético. Impõe-se um consenso ético mínimo quanto a valores, atitudes e critérios, um ethos mundial para uma sociedade e uma economia mundiais. É o próprio mercado global que exige um ethos global.
É claro que, se quiser ter futuro, a Humanidade se tem de tornar sujeito comum da responsabilidade pela vida. Ou a Humanidade como todo se torna sujeito do seu futuro e da responsabilidade pela vida em geral ou pura e simplesmente não haverá futuro para ninguém. Em termos simples e cínicos, se se quiser: se não quisermos ser solidários por razões de ética e humanidade, sejamo-lo ao menos por razões de egoísmo esclarecido.
Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia
https://www.dn.pt/opiniao/o-setimo-mandamento-contra-os-ladroes-13966428.html
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https://www.efuturo.com.br/materialbibliotecaonine/3532S-Bernardo.pdf
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