Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
sexta-feira, 10 de junho de 2022
FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO
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Jovem Pan
José Serra se posiciona contra 'reacionarismo do Bolsonaro e aventura petista' | Jovem Pan
José Serra*: Mais Brasília, menos Brasil
O Estado de S. Paulo
Iniciativas como o PLP n.º 18/2022 evidenciam os riscos e instabilidades inerentes ao atual arranjo federativo brasileiro.
A alta vertiginosa dos preços dos combustíveis e as respostas do governo federal ao problema, que de fato repercute de muitas maneiras sobre a população, trazem à tona, mais uma vez, os conflitos e as contradições que permeiam o atual arranjo federativo brasileiro. É sintomático que um problema conjuntural tenha desencadeado uma disputa interminável opondo Estados e União. Seu último capítulo tem por roteiro o Projeto de Lei Complementar (PLP) n.º 18/2022, discutido no Congresso Nacional com o objetivo de reduzir o ICMS incidente sobre combustíveis: uma nova versão do mais Brasília, menos Brasil.
O mundo vem lidando com um forte aumento do preço dos combustíveis depois que o petróleo atingiu cotações vistas pela última vez em 2008. Naquele ano, os contratos futuros do barril do Brent – o petróleo extraído do Mar do Norte e comercializado na Bolsa de Londres – chegaram a custar US$ 139. Hoje, estão valendo US$ 119, só que agora num mundo pós-pandemia e em guerra. Neste contexto inflacionário, o Brasil e diversos países discutem medidas para evitar que essa alta nos preços do petróleo chegue da mesma forma aos combustíveis.
Na Europa, há países criando impostos sobre ganhos de empresas para financiar subsídios à energia, como a Finlândia. Outras nações congelam temporariamente os preços, como a França, enquanto outras promovem subsídios para famílias de baixa renda, caso do Reino Unido. Portugal chegou a criar uma espécie de voucher para compra de combustível com recursos do orçamento provenientes do aumento da arrecadação de impostos sobre combustíveis.
Nos Estados Unidos, os governos estaduais anunciam a suspensão temporária de impostos. A medida vem sendo chamada de Tax Holiday – feriado sem impostos. Ao menos cinco Estados – Nova York, Connecticut, Flórida, Geórgia e Maryland – anunciaram suspensão temporária dos impostos estaduais sobre combustíveis.
No Brasil, estamos assistindo a um conflito federativo entre a União e as demais unidades federativas. De um lado, temos parte do Congresso Nacional e o Poder Executivo federal unidos na missão de invadir a autonomia fiscal dos Estados com o objetivo de reduzir, na marra, o ICMS sobre combustíveis. Do outro lado, os governos estaduais se opõem à medida tendo em vista os impactos fiscais e os riscos de subfinanciamento dos serviços públicos nas áreas da saúde, da educação e da segurança.
Para entender o problema, é importante ter claro quem faz o que no federalismo fiscal brasileiro. Os dados mostram, por um lado, que 100% do regime geral da previdência social, 95% da assistência social e 94% dos subsídios são bancados pelo orçamento federal. Por outro lado, os Estados e os municípios são responsáveis pela execução orçamentária de 67,8% da saúde, de 72% da educação e de 88,7% da segurança pública. Vale, também, dizer que 83,6% das compras governamentais são realizadas pelos governos subnacionais, gerando empregos e renda no País.
Também é preciso ter clareza da importância do ICMS na arrecadação tributária dos Estados e dos municípios. Trata-se do principal imposto do País, representando 21% da carga tributária total. Representa 80% da arrecadação tributária dos Estados, que repartem 25% da arrecadação com os municípios. Estimativas que circulam pelos corredores do Congresso mostram que o PLP 18 pode provocar perdas fiscais anuais para os Estados em torno de R$ 100 bilhões. Somente São Paulo perderia cerca de R$ 15 bilhões por ano.
O conflito federativo decorrente da crise dos combustíveis deve ser entendido nesse contexto. De um lado, a União tenta reduzir o ICMS sobre combustíveis mediante alteração de leis federais, valendo-se de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). O propósito é conter a alta de preços que alimenta a inflação, objeto de atuação do Banco Central, e afeta todos os segmentos populacionais. De outro, Estados e municípios veem sua arrecadação subitamente erodida por decisões do governo federal, com impacto direto nos setores de saúde e educação, cujo custeio é condicionado pelas receitas de ICMS.
Iniciativas como o PLP n.º 18/2022 evidenciam os riscos e instabilidades inerentes ao atual arranjo federativo brasileiro, em que questões conjunturais põem os entes em rota de colisão. Comparar, sem qualificar, o comportamento dos Estados brasileiros ao de seus congêneres americanos, que vêm reduzindo a tributação de combustíveis na crise, só confunde o debate e agrava o problema. É que, no federalismo americano, o governo federal e o Congresso Nacional não podem invadir a autonomia fiscal dos governos estaduais. Lá funciona para valer o mais América, menos Washington.
Ironicamente, vemos o Ministério da Economia abraçar a tese do “mais Brasília, menos Brasil” às vésperas das eleições deste ano, apesar de a experiência internacional mostrar que existem outros caminhos. Abandonaram a ladainha do “mais Brasil, menos Brasília” usada como mantra nas eleições de 2018, quando lá defenderam a tese da maior autonomia para Estados e municípios.
*Senador (PSDB-SP)
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Maria Cristina Fernandes: Estelionato federativo
Valor Econômico
Ao avançar sobre o orçamento dos Estados, Congresso tenta sobrepujar governadores na intermediação de recursos
Num país em que mais da metade da população passa fome ou vai dormir com medo de não ter o que comer no dia seguinte, o presidente da República sempre precisará de bodes expiatórios. O da vez, para Jair Bolsonaro, são os governadores.
Ao encampar a contenda do ICMS e aprovar seus pressupostos, o Congresso vai além. Mais do que um estelionato eleitoral para baixar a inflação a marretadas, o que está em curso é um assalto à Federação, com consequências que extrapolam a era Bolsonaro.
Aposta-se numa mudança estrutural que entronize os parlamentares, definitivamente, como entrepostos do Orçamento nacional. O avanço das emendas parlamentares, particularmente das emendas de relator, não deu conta da tarefa. Sem ter como aumentar de imediato sua fatia nos gastos da República, o Congresso trata de diminuir aquela dos governadores.
Isso está claro no avanço sobre aquele que é o principal imposto do país, o ICMS. O governo federal e seus aliados no Congresso alegam que a receita dos Estados cresceu. A da União também. Todas abraçados à inflação. Misturam a arrecadação nominal com a real. Se colar, colou. Enquanto isso, garfam a capacidade permanente de arrecadação dos Estados.
Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da FGV, diz que as formas de compensação propostas são uma réplica dos pires que entregaram nas mãos dos governadores com a Lei Kandir, de 1996, quando uma outra rodada de isenção do ICMS obrigou os Estados a renegociar todos os anos os valores da compensação.
A nova temporada de oneração dos Estados, porém, se dá num momento de novas pressões sobre o orçamento de Estados e municípios com bondades sendo distribuídas com o chapéu alheio. Tome-se, por exemplo, o piso nacional dos professores. Seu aumento, de 33%, em janeiro deste ano, foi capitalizado por Bolsonaro como o maior da história, mas caiu no colo de prefeitos e governadores.
Em abril foi a vez de o Congresso aprovar o piso nacional da enfermagem. Não é apenas outra demanda histórica atendida com chapéu alheio. Além de onerar a folha de Estados e municípios, o piso pressionará os planos de saúde a fazer novos reajustes. Aprovadas as mudanças no ICMS, os hospitais públicos estaduais e municipais disporão de menos recursos para cuidar da população que vai ser expulsa dos planos.
Nos cálculos de Élida Graziane, se as perdas de R$ 115 bilhões estimadas pelo conselho de secretários de fazenda e pela confederação nacional dos municípios se concretizarem, a educação terá R$ 28,7 bilhões a menos e a saúde, R$ 14,6 bilhões. Na entrevista em que foi proposta a emenda constitucional para zerar o ICMS sobre combustíveis, o ministro Paulo Guedes arvorou-se a usar o critério de “essencialidade” como norte das políticas federais. A aplicá-lo à educação e à saúde públicas, governo e Congresso preferem reservá-lo para a gasolina da classe média.
É claro que há distorções no ICMS e que estados e municípios não devem ser poupados de esforços fiscais para reduzir o impacto da alta de combustíveis sobre os mais vulneráveis. Há inúmeras propostas na mesa, que se valem dos royalties aos dividendos distribuídos pela Petrobras. Pelas redes sociais, o governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, acrescentou mais uma. Foi uma resposta à proposta de emenda constitucional parar zerar o ICMS, bode na sala para a aprovação do projeto que fixa em 17% o limite da alíquota sobre combustíveis.
O governador acendeu o pavio: a suspensão, por dois anos, do pagamento da dívida do Estado. “Uso esse dinheiro para zerar o ICMS do diesel, etanol e gás de cozinha e reduzir a gasolina. Não precisa de PEC. É mais justo e rápido”, provocou.
Do outro lado há um vale-tudo para transferir a fatura. Há cerca de um mês, num almoço promovido por um ministro do Supremo Tribunal Federal com a presença de outros parlamentares, o presidente da Câmara já havia sondado a edição de uma PEC para os combustíveis a exemplo daquela que, no início da pandemia, recebeu o nome de “Orçamento de guerra”.
Lira mira na retirada de travas fiscais como o teto de gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal. É o que lhe falta para conseguir uma maior paridade de armas com os governadores. Não é coincidência que esta guerra em torno do ICMS tenha explodido num momento em que as duas maiores lideranças do Centrão, Lira e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, sejam oposição nos seus Estados. Não porque almejem a cadeira.
Com o poder de que dispõem, ambos poderiam se eleger governadores em Alagoas e no Piauí. Preferem, no entanto, ficar onde estão, desde que mantenham o poder local, nos seus estados e nos dos aliados, que garante a recondução de seus mandatos e de suas bases.
Não teriam ascendência sobre ministérios, autarquias, agências reguladoras e tribunais federais se estivessem sentados na cadeira de governador de estados carentes. Só estenderiam o pires para o ministro da Economia, sem condições de disputar poder com ele, como hoje o fazem.
Arthur Lira e Ciro Nogueira não vivem numa bolha. Têm acesso às evidências cada vez menores de reeleição de Bolsonaro. Esta continua a ser a prioridade, mas, a cada rodada de pesquisa, o fortalecimento do Congresso sobre o Orçamento passa a ser o plano A.
Nesse intento, contam com a adesão do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), cuja pauta, assim como a de Lira, é a recondução ao cargo. Isso passa por segurar a execução de um lote de emendas depois da eleição, quando se saberá quais parlamentares serão reconduzidos, mas vai além.
Não têm hoje como dar curso ao desejo, já explicitado pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), de uma Constituinte que alveje o pacto federativo e a autonomia de estados e municípios. Mas agem, como resume Élida Graziane, para executar, à sua maneira, o plano DDD (desobrigar, desvincular e desindexar) de Paulo Guedes sobre a receita dos Estados.
Com uma entre muitas diferenças. Ao longo dos últimos anos, as despesas dos estados foram submetidas a um número cada vez maior de crivos. Já aquelas sob o controle do Congresso precisaram da intervenção do STF para terem um mínimo de transparência. Cobrado sobre a publicidade das emendas de relator, Lira já mandou que os órgãos de controle acompanhassem as redes sociais dos parlamentares. É o plano E de escárnio.
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Adriana Fernandes*: Fome de gasolina
O Estado de S. Paulo
A desoneração não ficará restrita aos tempos atuais e, portanto, vai tirar recursos de outras políticas bem mais importantes para atender os brasileiros que têm fome
O Brasil tem hoje 33 milhões de pessoas passando fome. Nada pode ser mais importante na discussão política no Congresso neste exato momento do que o aumento do número de brasileiros que não têm o que comer, como mostrou a nova edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19.
O acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia contribuíram para piorar o quadro estarrecedor. São 14 milhões a mais de pessoas do que no ano passado, e o Congresso está próximo de gastar, no mínimo, R$ 30 bilhões com a desoneração da gasolina, produto que vai beneficiar pessoas que têm carro e que ainda por cima é um poluente. Tudo para queda de R$ 1,65 no litro.
O projeto em tramitação no Congresso, com grande chance de passar sem mudanças, torna a gasolina um produto “essencial” para os brasileiros. Será uma política permanente. A desoneração não ficará restrita aos tempos atuais e, portanto, vai tirar recursos de outras políticas bem mais importantes para atender os brasileiros que têm fome.
As lideranças políticas que falam de risco de um ambiente explosivo para defender as medidas silenciaram com o dado da fome. O desenho do Auxílio Brasil, programa que substituiu o antigo Bolsa Família, está se mostrando ineficiente, como apontaram especialistas. A fila aumenta, e todos se calam.
A oposição no Congresso segue fingindo que não é com ela essa desoneração, mas vai aprovar a redução da tributação da gasolina. Mesmo depois que os efeitos da guerra na Ucrânia passarem, os Estados não poderão mais aumentar esse tributos para desestimular combustíveis poluentes e estimular as fontes de energia renováveis. O detalhe principal é que não há nenhuma garantia de que haverá repasse da queda dos tributos aos preços.
É tanto desespero em nome das eleições em Brasília que nem esse ponto básico está sendo levado em conta no pacotão dos combustíveis para reduzir o preço nas bombas. A área econômica não queria de jeito nenhum um subsídio à gasolina. Foi vencida na reunião da segunda-feira, na qual o trio de presidentes – Bolsonaro, Lira e Pacheco – fechou acordo para tratorar a aprovação de um projeto que fixa um teto de 17% para combustíveis, energia, combustíveis, energia, telecomunicações e transportes e reduzir a zero os tributos federais sobre a gasolina e o etanol.
O relatório do senador Fernando Bezerra do projeto do ICMS prevê eficácia imediata do teto. É isso que importa nas negociações políticas. É bem capaz que a fome seja usada agora para novas concessões que em nada beneficiam os que mais precisam. Afinal, o Brasil tem fome de quê?
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