Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 25 de julho de 2022
OS ASSASSINATOS DA RUA MORGUE
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"É possível que o dom de solucionar muito se fortaleça com o estudo da matemática, sobretudo
aquele ramo superior que injustamente, e apenas devido às suas operações retrógradas, se chama,
par excellence, de análise. Contudo, cálculo não é em si análise."
"toma-se por profundo o que é apenas complexo (um erro não incomum)."
"Observar com atenção é lembrar com clareza;"
"Mas é em questões além dos limites da simples regra que se evidencia a habilidade do analista."
"e a diferença no grau de informação obtida está não tanto na validade da dedução quanto na qualidade da observação. O conhecimento necessário é do que observar."
"Há entre a engenhosidade e a capacidade de análise uma diferença muito maior, na verdade, que
entre a fantasia e a imaginação, mas de caráter estritamente análogo. Ver-se-á, de fato, que o
engenhoso é sempre fantasioso, e o verdadeiramente imaginativo nunca mais que analítico."
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“Que canções cantava a Sereia, ou que nome assumiu Aquiles quando se escondeu entre
mulheres, apesar de serem questões intrigantes, não estão além de toda conjetura.”
Sir Thomas Browne
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Acume | Stefano Fiaschi | Flickr
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acume
4. Fig. Raciocínio, argumentação apurada, sutileza de espírito; ACUIDADE; AGUDEZA; ARGÚCIA; PERSPICÁCIA; VIVACIDADE [ Antôn.: estupidez, imbecilidade, inaptidão. ]
[F.: Do lat. acumen,ìnis]
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As características mentais descritas como analíticas são, em si, muito pouco susceptiveis de
análise. Só as apreciamos nos efeitos que causam. Delas sabemos, entre outras coisas, que
sempre são, para quem as possui em excesso, motivo do mais intenso prazer. Como o homem
forte exibe sua capacidade física deliciando-se nos exercícios que lhe exigem os músculos,
também se rejubila o analista com a atividade moral de destrinçar enredos. Tem prazer até
mesmo com as ocupações mais triviais que ponham em jogo seus talentos. Gosta de enigmas,
adivinhações, hieróglifos, exibindo nas soluções de cada um deles um grau de acume que parece
sobrenatural à compreensão comum. Seus resultados, proporcionados pela alma e essência
mesmas do método, têm na verdade toda a aparência da intuição.
É possível que o dom de solucionar muito se fortaleça com o estudo da matemática, sobretudo
aquele ramo superior que injustamente, e apenas devido às suas operações retrógradas, se chama,
par excellence, de análise. Contudo, cálculo não é em si análise. O jogador de xadrez, por
exemplo, faz o primeiro sem exercitar a segunda. Segue-se que o jogo de xadrez, em seus efeitos
sobre o caráter mental, é muitíssimo mal compreendido. Não estou escrevendo agora um tratado,
mas apenas prefaciando uma narrativa um tanto estranha com observações bastante casuais; aproveito pois a ocasião para afirmar que os mais altos poderes do intelecto reflexivo são empregados de maneira mais decisiva e útil pelo não ostentoso jogo de damas que por toda a complicada frivolidade do xadrez. Neste último, onde as peças têm movimentos diferentes e bizarros, com valores vários e variáveis, toma-se por profundo o que é apenas complexo (um erro não incomum). Entra em jogo poderosamente, aqui,
a atenção. Se ela falha por um instante, se se comete um descuido, isso resulta em prejuízo ou
derrota. Sendo os movimentos possíveis não apenas múltiplos, mas intricados, multiplicam-se as
possibilidades de tais descuidos; e em nove em cada dez casos, vence o jogador com maior
capacidade de concentração, e não o mais perspicaz. Na dama, ao contrário, onde os movimentos
são únicos e têm apenas pouca variação, diminuem-se as probabilidades de inadvertência, e
como queda relativamente sem uso a mera atenção, as vantagens obtidas por cada parte o são por
um acume superior. Para sermos menos abstratos, suponhamos um jogo de damas onde as peças
estejam reduzidas a quatro pedras, e onde, decerto, não se espera nenhum descuido. É óbvio que
aqui a vitória só pode ser decidida (sendo os jogadores iguais) por um movimento recherché,
resultado de algum poderoso trabalho do intelecto. Privado de recursos comuns, o analista lançase no espírito do adversário, identifica-se com ele, e não raras vezes vê assim, numa olhada, os
únicos meios (às vezes de fato absurdamente simples) pelos quais pode atraí-lo ao erro ou
apressá-lo para que erre um cálculo.
O uíste (whist) há muito é conhecido por sua influência no que se chama de poder de cálculo; e
sabe-se de homens do mais alto nível intelectual que sentem com ele um inexplicável prazer,
enquanto se abstêm do xadrez como um jogo frívolo. Sem dúvida, nada de natureza semelhante
onera tanto a faculdade de análise. O melhor jogador de xadrez da cristandade só pode ser pouco
mais que o melhor jogador de xadrez; mas a competência no uíste implica capacidade de sucesso
em toda empresa mais importante que ponha uma mente contra outra. Quando digo competência,
refiro-me àquela perfeição no jogo que inclui a compreensão de todas as fontes de onde se pode
extrair vantagem legítima. Não são múltiplas, e muitas vezes estão em recessos de pensamento
inteiramente inatingíveis pela compreensão normal. Observar com atenção é lembrar com
clareza; e, até aí, o jogador de xadrez concentrado se dará muito bem no uíste; uma vez que as
próprias regras de Hoyle (baseadas elas mesmas no simples mecanismo do jogo) bastam e são
em geral compreensíveis. Assim, ter uma memória retentiva e seguir "o manual" são pontos
geralmente encarados como a soma total do jogar bem. Mas é em questões além dos limites da
simples regra que se evidencia a habilidade do analista. Ele faz em silêncio uma legião de
observações e deduções. O mesmo fazem, também, seus companheiros; e a diferença no grau de
informação obtida está não tanto na validade da dedução quanto na qualidade da observação. O
conhecimento necessário é do que observar. Nosso jogador não se limita, em absoluto; nem, uma
vez que o objetivo é o jogo, rejeita deduções de coisas externas ao jogo. Examina o rosto do
companheiro, comparando-o cuidadosamente com o de cada um dos adversários. Pensa na
maneira de distribuir as cartas em cada mão; muitas vezes contando trunfo por trunfo, e honra
por honra, pelos olhares dados por quem os tem a cada um deles. Observa a variação de cada
rosto à medida que avança o jogo, recolhendo um fundo de idéias das diferenças na expressão de
certeza, surpresa, triunfo ou pesar. Pela maneira de fazer uma vaza, julga se a pessoa que a faz
pode fazer outra no naipe. Reconhece o que se joga como blefe pela maneira de lançar as cartas
na mesa. Uma palavra inadvertida ou casual; a queda ou virada acidental de uma carta, com a
ansiedade ou indiferença em relação a escondê-Ia; a contagem das vazas, com a ordem de sua
arrumação; embaraço, hesitação, avidez ou trepidação - tudo oferece, à sua intuição visivelmente
perceptiva, indícios do verdadeiro estado de coisas. Jogadas as primeiras duas ou três rodadas,
ele está de plena posse do conteúdo de cada mão, e daí em diante joga as cartas com uma
determinação tão absolutamente precisa quanto se os demais houvessem revelado as suas.
Não se deve confundir poder de análise com simples engenhosidade; pois enquanto o analista é
necessariamente engenhoso, o homem de engenho muitas vezes se mostra visivelmente incapaz
de análise. O poder de construção ou combinação, pelo qual em geral se manifesta a
engenhosidade, e ao qual os frenologistas (a meu ver de forma errada) atribuíram um órgão
separado, supondo-o uma faculdade primitiva, tem-se visto com tanta freqüência naqueles cujo
intelecto fora isso beira a idiotia, que chamou a atenção geral dos autores de tratados morais. Há
entre a engenhosidade e a capacidade de análise uma diferença muito maior, na verdade, que
entre a fantasia e a imaginação, mas de caráter estritamente análogo. Ver-se-á, de fato, que o
engenhoso é sempre fantasioso, e o verdadeiramente imaginativo nunca mais que analítico.
A narrativa seguinte parecerá ao leitor, de certa forma, um comentário sobre as proposições que
acabei de apresentar.
Morando em Paris na primavera e parte do verão de 18**, conheci ali um certo Monsieur C.
Auguste Dupin. Esse jovem cavalheiro era de uma excelente família, na verdade ilustre, mas, por
uma variedade de acontecimentos infaustos, fora reduzido a tal pobreza que a energia de seu
caráter sucumbira, e ele deixara de freqüentar o mundo, ou de cuidar da recuperação de sua
fortuna. Por cortesia dos credores, ainda permanecia em seu poder um pequeno resíduo do
patrimônio; e, com a renda resultante disso, ele conseguia, graças a uma rigorosa economia,
satisfazer as necessidades da vida, sem perturbar-se com seus aspectos supérfluos. Os livros, na
verdade, eram o seu único luxo, e em Paris pode-se obtê-los com facilidade.
Nosso primeiro encontro foi numa obscura livraria na Rue Montmartre, onde o acaso de
estarmos os dois à procura do mesmo volume, muito raro e notável, nos pôs em mais estreita
comunhão. Tornamos a ver-nos repetidas vezes. Eu estava profundamente interessado na
pequena história familiar que ele me detalhou, com toda a franqueza que se permite o francês
sempre que o tema é o simples eu. Fiquei espantado, também, com a vasta extensão de suas
leituras; e, acima de tudo, senti minha alma atiçada pelo desvairado fervor e o vivido frescor de
sua imaginação. Buscando em Paris os objetos que então buscava, senti que a companhia de um
homem daqueles seria para mim um inestimável tesouro; e confiei-lhe francamente essa
sensação. Combinou-se por fim que devíamos morar juntos durante minha estada na cidade; e
como minhas circunstâncias mundanas eram um pouco menos apertadas que as dele, coube-me
arcar com a despesa necessária para alugar e remobiliar, num estilo apropriado à melancolia um
tanto fantástica de nosso temperamento comum, uma mansão devastada pelo tempo e grotesca,
há muito desabitada, devido a uma superstição que não investigamos, e a ponto de cair, numa
parte isolada e triste do Faubourg St. Germain.
Fosse a rotina de nossa vida nessa casa conhecida pelo mundo, deveríamos ser encarados como
loucos - embora, talvez, como loucos de natureza inofensiva. Nossa reclusão era total. Não
recebíamos visitantes. Na verdade, a localização de nosso retiro fora cuidadosamente mantida em
segredo até de meus próprios conhecidos anteriores; e fazia muitos anos que Dupin deixara de
conhecer ou ser conhecido em Paris. Existíamos apenas dentro de nós mesmos.
Era um capricho da fantasia do meu amigo (pois que mais devo chamá-Ia?) estar enamorado da
noite pela noite; e nessa bizarrerie, como em todas as suas outras, eu caí tranqüilamente;
entregando-me aos seus loucos caprichos com perfeito abandon. A negra divindade não morava
ela mesma conosco sempre; mas podíamos falsificar sua presença; à primeira luz da madrugada,
fechávamos todas as muitas janelas de nosso prédio; acendíamos duas velas que, com forte perfume, lançavam apenas os mais lívidos e débeis raios. Com a sua ajuda, ocupávamos nossas
almas em sonhos - lendo, escrevendo ou conversando, até o relógio avisar o advento da
verdadeira Treva. Então saíamos para as ruas, de braço dado, continuando os assuntos do dia, ou
vagando por lugares distantes até altas horas, à cata, entre as alucinadas luzes e sombras da
populosa cidade, daquela infinidade de excitação mental que oferece a tranqüila observação.
Nessas ocasiões, eu não podia deixar de observar e admirar em Dupin (embora, pela sua riqueza
de idéias, estivesse preparado para esperá-Ia) uma peculiar capacidade de análise. Também ele
parecia sentir um ávido prazer em exercê-Ia - embora não exatamente exibi-Ia - e não hesitava
em confessar o prazer que assim usufruía. Gabava-se comigo, dando uma baixa risadinha
chocalhada, de que a maioria dos homens, para ele, trazia janelas no peito, e acompanhava tais
afirmações com provas diretas e bastante espantosas do íntimo conhecimento que tinha do meu.
Nesses momentos, exibia uns modos frígidos e abstratos; uma expressão vaga nos olhos;
enquanto a voz, em geral um rico tenor, subia num agudo que teria soado petulante, não fosse a
enunciação deliberada e inteiramente distinta. Observando-o nesses estados de espírito, eu
muitas vezes me lembrava, meditativo, da antiga filosofia da Alma Bipartida, e divertia-me com
a fantasia de um duplo Dupin - o criativo e o solucionador.
Não se suponha, pelo que acabei de dizer, que estou expondo algum mistério, ou iniciando
alguma história fantástica. O que descrevi no francês era apenas resultado de uma inteligência
excitada, ou talvez doentia. Mas é melhor dar uma idéia do caráter de suas observações.
Descíamos certa noite uma longa rua de terra, nas vizinhanças do Palais Royal. Estando os dois
aparentemente ocupados em pensamentos, nenhum de nós dissera uma sílaba havia pelo menos
quinze minutos. De repente, Dupin rompeu o silêncio com as seguintes palavras:
- É um sujeitinho muito pequeno, deveras, e ficaria melhor no Théâtre des Variétés.
- Não há a menor dúvida - respondi, sem o perceber, e não observando a princípio (tão absorvido
vinha em reflexões) a maneira extraordinária como ele entrara em minhas meditações.
Um instante depois, refiz-me, e meu espanto foi profundo.
- Dupin - disse, gravemente -, isto está além da minha compreensão. Não hesito em dizer que
estou espantado, e dificilmente consigo acreditar em meus sentidos. Como foi possível você
saber que eu estava pensando em... - Fiz então uma pausa, para assegurar além de qualquer
dúvida que ele de fato sabia em que eu pensava.
- ...em Chantilly - ele disse. - Por que parou? Estava observando para si mesmo que o diminuto
físico dele não lhe servia para a tragédia.
Era exatamente o que constituía o objeto de minhas reflexões. Chantilly era um sapateiro
quondam da Rue St. Denis, que, ensandecido pelo palco, tentara fazer o papel de Xerxes, na
tragédia do mesmo nome de Crébillon, e como recompensa fora notoriamente desancado nos
pasquins.
- Diga-me, pelo amor de Deus - exclamei - o método... se método há... que lhe possibilitou
sondar assim minha alma nesse assunto.
Na verdade, sentia-me mais espantado do que me dispunha a expressar.
- Foi o fruteiro - respondeu meu amigo - que o levou à conclusão de que o remendão de solas não tinha altura suficiente para Xerxes et id genus omne.
- Fruteiro!.. . você me deixa pasmo... eu não conheço fruteiro nenhum.
- O homem que lhe deu um encontrão quando entramos na rua. . . mais ou menos uns quinze
minutos atrás.
Lembrei-me então que, de fato, um fruteiro, levando na cabeça um grande cesto de maçãs, quase
me derrubara, por acidente, quando passamos da Rue C** para a avenida onde agora estávamos;
mas o que isso tinha a ver com Chantilly, eu não entendia.
Não havia em Dupin uma só partícula de charlatônerie.
- Vou explicar - ele disse. - E para que você compreenda tudo claramente, refarei primeiro o
curso de suas meditações, do momento em que falei com você até o rencontre com o fruteiro em
questão. As maiores ligações de pensamento são as seguintes: Chantilly, Orion, Dr. Nichols,
Epicuro, estereotomia, as pedras da rua, o fruteiro.
Poucas pessoas não se divertiram, num ou noutro período da vida, refazendo os passos pelos
quais chegaram a determinadas conclusões em suas próprias mentes. A ocupação muitas vezes é
de grande interesse; e quem a tenta pela primeira vez fica espantado com a distância e
incoerência aparentemente ilimitáveis entre o ponto de partida e a chegada. Qual, pois, não deve
ter sido o meu espanto quando ouvi o francês dizer o que acabara de dizer, e não pude deixar de
reconhecer que dissera a verdade. Ele continuou:
- Nós vínhamos falando de cavalos, se me lembro bem, pouco antes de deixarmos a Rue C**.
Foi o último assunto que discutimos. Quando atravessamos para entrar nesta rua, o fruteiro, com
um grande cesto na cabeça, passou roçando rápido por nós, jogou você sobre um monte de
paralelepípedos, num lugar onde a rua está em obras. Você tropeçou num grande pedaço solto,
escorregou, torceu levemente o tornozelo, pareceu constrangido ou mal-humorado, murmurou
algumas palavras, voltou-se para olhar o monte de pedras e continuou a andar em silêncio. Eu
não prestava particular atenção ao que você fazia; mas comigo a observação se tornou,
ultimamente, uma espécie de necessidade.
"Você manteve os olhos no chão - olhando, com expressão petulante, os buracos e calombos no
calçamento (de modo que vi que ainda pensava nas pedras), até chegarmos ao pequeno beco
chamado Lamartine, que foi calçado, à guisa de experiência, com blocos de madeira superpostos
e pregados. Ali seu rosto se iluminou, e vendo seus lábios se moverem, não pude duvidar que
você murmurou a palavra "estereotomia", um termo muito afetadamente empregado para essa
espécie de calçamento. Sei que não poderia haver dito "estereotomia" para si mesmo sem ser
levado a pensar em átomos, e portanto na teoria de Epicuro; e como, quando discutimos o
assunto há não muito tempo, eu lhe disse como os vagos palpites desse nobre grego tiveram, de
maneira singular, mas com pouca atenção, confirmação na última cosmogonia nebular, senti que
você não deixaria de lançar o olhar para a grande nebufa de Orion acima, e sem dúvida esperei
que o fizesse. Você olhou para cima; e eu me assegurei então de que seguira corretamente seus
passos. Mas naquela irritada tirade sobre Chantilly publicada no Musée, o satirista, fazendo
algumas vergonhosas alusões à mudança de nome do remendão ao assumir a arte trágica, citou
um verso latino sobre o qual conversamos muitas vezes depois. Refiro-me ao verso:
Perdidit antiquum litera prima sonum.
Eu lhe havia dito que se trata de uma referência a Orion, que antes se escrevia Urion; e, por
certos sarcasmos ligados a essa explicação, sabia que você não podia havê-lo esquecido. Estava
claro, pois, que não deixaria de combinar as idéias de Orion e Chantilly. Vi que você as tinha
combinado pelo aspecto do sorriso que passou por seus lábios. Você se lembrou da imolação do
coitado do remendão. Até então, ia andando curvado; mas então eu o vi empertigar-se em toda a
sua altura. Tive então certeza de que pensara na figura diminuta de Chantilly. Nesse ponto,
interrompi sua meditação com a observação de que, de fato, ele era um sujeitinho muito pequeno
- que Chantilly ficaria melhor no Théâtre des Variétés"
Não muito depois disso, dávamos uma olhada numa edição vespertina da Gazette des Tribunaux,
quando os seguintes parágrafos detiveram nossa atenção:
"EXTRAORDINÁRIOS ASSASSINATOS. - Hoje de manhã, por volta das três horas, os
moradores do Quartier St. Roch foram despertados do sono por uma sucessão de gritos
terríveis, vindos, aparentemente, do quarto andar de uma casa na Rue Morgue, ocupada
apenas por Madame L'Espanaye e sua filha, Mademoiselle Camille L'Espanaye. Com
certo atraso, ocasionado pelas infrutíferas tentativas de entrar na casa à maneira
habitual, o portão foi arrombado com um pé-de-cabra, e entraram oito ou dez vizinhos,
acompanhados de dois gendarmes. A essa altura, os gritos já haviam cessado; mas,
quando o grupo se lançou pelo primeiro lance de escada acima, distinguiram-se duas ou
mais vozes rudes, em furiosa disputa, que pareciam vir da parte superior da casa. Quando
se alcançou o segundo lance, também esses ruídos já haviam cessado, e tudo ficara em
total silêncio. O grupo espalhou-se, e correu de aposento em aposento. Ao chegarem a um
grande quarto nos fundos do quarto andar (cuja porta, trancada, com a chave por dentro,
foi forçada), apresentou-se um espetáculo que causou a todos presentes não menos horror
que pasmo.
"O apartamento estava na mais completa desordem - os móveis quebrados e jogados para
todos os lados. Só havia uma armação de cama; e dela o colchão e a roupa de cama
haviam sido arrancados e jogados no meio do chão. Numa cadeira, via-se uma navalha,
coberta de sangue. Na lareira, dois ou três toros e grossas tranças de cabelos humanos
grisalhos, também encharcadas de sangue, e parecendo haver sido arrancadas pelas
raízes. No chão, três napoleões, um brinco de topázio, três grandes colheres de prata, três
menores de métal dAlger e duas bolsas contendo quase quatro mil francos em ouro. As
gavetas de um bureau, que ficava num canto, estavam abertas, e haviam sido,
aparentemente, revistadas, embora permanecessem nelas muitos artigos. Descobriu-se um
pequeno cofre de ferro sob o colchão e a roupa de cama (não sob a armação). Estava
fechado, com a chave ainda na porta. Nada continha, além de algumas velhas cartas e
outros papéis de pouca importância.
"Não se viam ali traços de Madame L'Espanaye; mas havendo-se observado uma
quantidade incomum de fuligem na lareira, fez-se uma busca nas chaminés, e (horrível de
contar!) o cadáver da filha, de cabeça para baixo, foi puxado dali para fora; haviam-no assim enfiado à força, a uma considerável distância, pela pequena abertura. O corpo
estava bastante quente. Examinado, viram-se muitas escoriações, sem dúvida causadas
pela violência com que fora empurrado para cima e puxado para baixo. Tinha muitos e
severos arranhões no rosto, e, na garganta, manchas roxas e profundas marcas de unhas,
como se a falecida houvesse sido morta por estrangulamento.
"Após uma completa investigação de cada parte da casa sem outras descobertas, o grupo
saiu para um pequeno pátio calçado no fundo do prédio, onde se achava o cadáver da
velha senhora, com a garganta tão inteiramente cortada que, ao tentarem erguê-Ia, a
cabeça caiu. O corpo, como a cabeça, estava mutilado de uma forma pavorosa - a cabeça
de tal maneira que dificilmente retinha alguma semelhança de humanidade.
"Para esse horrível mistério, ainda não há, acreditamos, a mais leve pista.”
O jornal do dia seguinte tinha as seguintes informações a mais:
"A Tragédia da Rue Morgue. Muitos indivíduos foram interrogados em relação a esse
extraordinaríssimo e pavorosíssimo affaire" [a palavra affaire ainda não tinha, na
França, o pouco peso que nos transmite a nós], "mas nada surgiu que lance alguma luz
sobre ele. Damos abaixo o material dos depoimentos recolhidos:
"Pauline Dubourg, lavadeira, declara que conhecia as falecidas havia três anos, tendo
lavado para elas nesse período. A velha senhora e sua filha pareciam viver em bons
termos - muito carinhosas uma com a outra. Eram excelentes pagadoras. Não podia falar
sobre seu modo ou meios de vida. Acredita que Madame L. lia a sorte para ganhar o
sustento. Tinha fama de possuir dinheiro guardado. Nunca encontrou ninguém na casa
quando ia buscar as roupas e as levava para casa. Tinha certeza de que elas não
dispunham de criados a seu serviço. Parecia não haver móveis em qualquer parte da casa,
além do quarto andar.
"Pierre Moreau, tabaqueiro, declara que vendeu pequenas quantidades de tabaco e rapé a
Madame L'Espanaye durante quase quatro anos. Nasceu no bairro e sempre residiu ali. A
falecida e sua filha ocupavam a casa em que os cadáveres foram encontrados havia mais
de seis anos. Antes, era ocupada por um joalheiro, que sublocava os aposentos de cima a
várias pessoas. A casa era propriedade de Madame L'Espanaye. Ela ficou insatisfeita com
o abuso das instalações pelo locatário e mudou-se para lá, recusando-se a alugar
qualquer parte. A velha senhora era caduca. Testemunhas viram a filha umas cinco ou
seus vezes em três anos. As duas viviam uma vida demasiado reclusa - tinham fama de ter
dinheiro. Ouvira dizer entre os vizinhos que Madame L'Espanaye lia a sorte - não
acreditava. Nunca viu ninguém entrar na casa, a não ser a velha senhora e a filha, um
carregador, uma ou duas vezes, e um médico, umas oito ou dez vezes.
"Muitas outras pessoas, vizinhos, deram depoimentos no mesmo sentido. Não se falou de
ninguém que freqüentasse a casa. Não se sabia se havia algum parente vivo de Madame L.
e sua filha. As janelas da frente raras vezes eram abertas. As do fundo viviam fechadas,
com exceção da do grande quarto de trás do quarto andar. A casa era boa -não muito velha.
"Isidore Muset, gendarme, declara que foi chamado à casa por volta das três horas da
manhã, e encontrou vinte ou trinta pessoas no portão, tentando entrar. Abriu-o à força,
finalmente, com uma baioneta - não com um pé-de-cabra. Teve pouca dificuldade para
abri-lo, por ser um portão duplo ou dobrável, e sem ferrolho embaixo ou em cima. Os
gritos continuaram até o portão ser forçado - e então cessaram de repente. Pareciam
gritos de uma pessoa (ou pessoas) em grande agonia - altos e prolongados, não curtos e
rápidos. Uma testemunha subiu a escada na frente. Ao chegar ao primeiro andar, ouviu
duas vozes em ruidosa e furiosa discussão - uma delas grossa, a outra muito mais aguda -
uma voz muito estranha. Distinguiu algumas palavras da primeira, que era de um francês.
Tinha certeza de que não era voz de mulher. Distinguiu as palavras 'sacré' e 'diable'. A voz
aguda era de estrangeiro. Não tinha certeza se era voz de homem ou mulher. Não
entendeu o que dizia, mas acreditava que a língua era a espanhola. O estado do quarto e
dos corpos foi descrito por essa testemunha como o descrevemos ontem.
"Henry Duval, vizinho, artesão em prata de ofício, declara que foi o primeiro do grupo a
entrar na casa. Corrobora em geral o depoimento de Muset. Assim que forçaram a
entrada, tornaram a fechar a porta, para manter fora a multidão que se formou muito
depressa, apesar do tardio da hora. A voz aguda, pensa essa testemunha, era italiana.
Tinha certeza de que não era francesa. Não tinha certeza se era voz de homem. Podia ser
de mulher. Não conhecia a língua italiana. Não distinguiu as palavras, mas estava
convencido pela entonação de que quem falava era italiano. Conhecia Madame L. e a
filha. Conversara freqüentemente com as duas. Tinha certeza de que a voz aguda não era
de nenhuma das falecidas.
Odenheimer, restaurateur. Essa testemunha apresentou-se espontaneamente para depor.
Não falando francês, foi interrogado por meio de um intérprete. É nativo de Amsterdã.
Passava pela casa na hora dos gritos. Duraram vários minutos - provavelmente dez. Eram
longos e altos - muito terríveis e angustiantes. Foi um dos que entraram no prédio.
Corroborou os depoimentos anteriores em todos os aspectos, menos um. Tinha certeza de
que a voz aguda era de homem - um francês. Não podia distinguir as palavras. A voz era
áspera - não tanto aguda como áspera. Não podia chamar de uma voz aguda. A voz
grossa disse repetidas vezes 'sacré' e 'diable', e uma vez 'mon Dieu'.
"Jules Mignaud, banqueiro, da firma Mignaud et fils, Rue Deloraine. É o Mignaud pai.
Madame L'Espanaye tinha algumas posses. Abrira uma conta em sua casa bancária na
primavera do ano de *** (oito anos antes). Fazia freqüentes depósitos em pequenas
somas. Não tirara nada até o terceiro dia antes da morte, quando sacou em pessoa a soma
de quatro mil francos. Essa soma foi paga em ouro, e mandaram um funcionário à sua
casa com o dinheiro.
"Adolphe Le Bon, funcionário da Mignaud et fils, declara que no dia em questão, por volta
do meio-dia, acompanhou Madame L'Espanaye à sua residência com os quatro mil
francos, em duas bolsas. Aberta a porta, apareceu Mademoiselle L'Espanaye, que tomou
de suas mãos uma das bolsas, enquanto a velha senhora o aliviava da outra. Ele então fez
uma mesura e partiu. Não viu ninguém na rua no momento. É uma rua lateral - muito
solitária.
"William Bird, alfaiate, declara que fez parte do grupo que entrou na casa. É inglês. Mora
em Paris há dois anos. Foi um dos primeiros a subir a escada. Ouviu a discussão. A voz
grossa era de um francês. Distinguiu várias palavras, mas não se lembra de todas. Ouviu
claramente 'sacré' e 'mon Dieü. Havia um barulho no momento, como de pessoas lutando -
um barulho de coisas arrastadas e passos. A voz aguda era muito alta - mais alta que a
grossa. Tem certeza de que não era voz de inglês. Parecia de alemão. Podia ser de mulher.
Não entende alemão.
"Quatro das testemunhas acima referidas, chamadas de novo, declararam que a porta do
quarto no qual se encontrou o corpo de Mademoiselle L. estava trancada por dentro
quando o grupo lá chegou. Tudo em completo silêncio - nenhum tipo de barulho ou
gemido. Ao forçarem a porta, não se viu ninguém. Encontraram as janelas, dos quartos da
frente e dos fundos, fechadas e aferrolhadas por dentro. Uma porta entre os dois quartos
estava fechada, mas não trancada. Também fechada a porta que dava do quarto da frente
para o corredor, com a chave por dentro. Um quartinho na frente da casa, no quarto
andar, no fim do corredor, estava aberto, a porta entreaberta. Velhas camas, caixas e
coisas assim amontoavam-se nesse quartinho. Foram cuidadosamente retiradas e
revistadas. Nenhuma polegada de qualquer parte da casa deixou de ser cuidadosamente
revistada. Fizeram-se varreduras, acima e abaixo, nas chaminés. A casa tem quatro
andares, com águas-furtadas. Uma porta de alçapão no teto estava pregada firme -
parecia não haver sido aberta em anos. O tempo transcorrido entre as vozes ouvidas em
discussão e o arrombamento da porta do quarto foi diferente nas declarações das
testemunhas. Algumas estimaram o tempo em, no mínimo, três minutos - outras, no
máximo, em cinco. A porta foi aberta com dificuldade.
"Alfonso Garcio, agente funerário, declara que mora na Rue Morgue. É nativo da
Espanha. Fez parte do grupo que entrou na casa. Não subiu a escada. É nervoso, e receou
as conseqüências daquela agitação. Ouviu as vozes discutindo. A voz grossa era de um
francês. Não distinguiu o que se dizia. A voz aguda era de um inglês - disso tem certeza.
Não entende a língua inglesa, mas conclui pela entonação.
"Alberto Montani, confeiteiro, declara que estava entre os primeiros a subirem a escada.
Ouviu as vozes em questão. A grossa era de um francês. Distinguiu várias palavras. Quem
falava parecia estar repreendendo. Não distinguiu as palavras da voz aguda.
Falava rápido e desigual. Pensa que era a voz de um russo. Corrobora o testemunho
geral. É italiano. Jamais conversou com um nativo da Rússia.
"Várias testemunhas, chamadas de novo a depor, atestaram que as chaminés de todos os
quartos do quarto andar eram estreitas demais para admitir a passagem de um ser
humano. Com 'varreduras', referiam-se a escovas cilíndricas, como as empregadas pelos
limpadores de chaminés. Passaram-se essas escovas para cima e para baixo em cada
fumeiro da casa. Não há passagem nos fundos pela qual alguém pudesse haver descido
quando o grupo subia a escada. O corpo de Mademoiselle L'Espanaye estava tão
firmemente socado na chaminé que só pôde ser baixado depois que quatro ou cinco do
grupo juntaram suas forças.
"Paul Dumas, médico, declara que foi chamado para ver os corpos por volta do amanhecer. Achavam-se os dois lá no colchão da cama, no quarto onde se encontrou
Mademoiselle L. O cadáver da senhorita estava muito machucado e escoriado. O fato de
haver sido enfiado pela chaminé acima bastaria para explicar essa aparência. A garganta
fora muito esfolada. Havia vários arranhões fundos logo abaixo do queixo, junto com uma
série de manchas lívidas, que eram evidentes marcas de dedos. Tinha o rosto
pavorosamente descorado, e os globos oculares saltados. A língua fora em parte decepada
com os dentes. Descobriu-se uma grande mancha na boca do estômago, produzida, ao que
parecia, pela pressão de um joelho. Na opinião de M. Dumas, Mademoiselle L'Espanaye
fora estrangulada até a morte por pessoa ou pessoas desconhecidas. O cadáver da mãe
achava-se horrivelmente mutilado. Todos os ossos da perna e braço direitos haviam sido
mais ou menos despedaçados. A tíbia esquerda muito rachada, assim como todas as
costelas do lado direito. Todo o corpo pavorosamente machucado e descolorado. Não foi
possível dizer como os ferimentos haviam sido infligidos. Um pesado porrete de madeira,
ou uma larga barra de ferro - uma cadeira -, qualquer arma grande, pesada e contundente
haveria produzido tais resultados, se brandida nas mãos de um homem muito forte.
Nenhuma mulher poderia haver infligido os golpes, com qualquer arma. A cabeça da
falecida, ao ser vista pelas testemunhas, achava-se inteiramente separada do corpo, e
também muito despedaçada. A garganta fora evidentemente cortada com um instrumento
muito afiado - provavelmente uma navalha.
"Alexandre Etienne, barbeiro, foi chamado com M. Dumas para examinar os corpos.
Corroborou o depoimento e as opiniões de M. Dumas.
"Nada mais de importância veio à luz, embora se interrogassem várias outras pessoas.
Um assassinato tão extraordinário, e tão intrigante em todos os aspectos, jamais foi
cometido em Paris - se de fato se cometeu um assassinato afinal. A polícia está
inteiramente perdida - uma ocorrência incomum em casos dessa natureza. Não se vê, no
entanto, sombra de alguma pista."
A edição vespertina do jornal declarava que continuava a maior excitação no Quartier St. Roch -
que a casa fora cuidadosamente revistada de novo, mas sem nenhum resultado. Um pós-escrito,
porém, dizia que Adolphe Le Bon fora detido e preso - embora nada parecesse incriminá-lo, além
dos fatos detalhados.
Dupin pareceu singularmente interessado no andamento do caso - pelo menos, foi o que julguei
pela maneira como não fez comentários. Só depois do anúncio de que Le Bon 'ora preso foi que
ele pediu minha opinião sobre os assassinatos.
Eu só podia concordar com toda a Paris, considerando-os um mistério insolúvel. Não havia
meios de identificar o assassino.
- Não devemos julgar os meios - disse Dupin - por essa casca de investigação. A polícia
parisiense, tão gabada por seu acume, é astuta. Não há método em seus processos, além do
método do momento. Eles fazem uma enorme ostentação de medidas; mas, não raro, são tão maladaptados aos objetivos propostos que nos lembram Monsieur Jourdain pedindo o seu robe-dechambre - pour mieux entendre la musique. Os resultados atingidos por eles não raras vezes são
surpreendentes, mas, na maioria, alcançados por simples diligência e atividade. Quando não se dispõe dessas qualidades, seus planos fracassam. Vidocq, por exemplo, tinha bons palpites, e era
homem perseverante. Mas, sem pensamento educado, errou continuamente pela própria
intensidade da investigação. Prejudicava sua visão segurando o objeto perto demais. Podia ver,
talvez, um ou dois pontos com incomum clareza, mas ao fazer isso, necessariamente, perdia de
vista a questão como um todo. Portanto, é possível sermos profundos demais. A verdade não está
sempre num poço. De fato, no que se refere ao conhecimento mais importante, creio que está
invariavelmente na superfície. A profundidade está nos vales onde a procuramos, não nos topos
das montanhas onde ela se encontra. Os modos e origens desse tipo de erro estão bem
exemplificados na contemplação dos corpos celestes. Olhar uma estrela em relances... vê-la de
uma forma lateral, voltando para ela as partes exteriores da retina (mais susceptíveis a fracas
impressões de luz que o interior), é ver distintamente a estrela ... é ter a melhor apreciação de seu
brilho ... um brilho que enfraquece na mesma proporção em que voltamos nossa atenção em
cheio para ela. No último caso, um maior número de raios bate de fato no olho, mas no primeiro
há uma capacidade mais refinada de compreensão. Com uma profundidade indevida,
confundimos e debilitamos o pensamento; e é possível fazer a própria Vênus desaparecer do
firmamento com um escrutínio demasiado permanente, demasiado concentrado ou demasiado
direto.
"Quanto a esses assassinatos, façamos uma certa investigação nós mesmos, antes de formarmos
uma opinião sobre eles. Vai nos proporcionar diversão. [Eu julguei esse um termo curioso, assim
aplicado, mas nada disse.] E além do mais, Le Bon certa vez me prestou um serviço pelo qual
não sou ingrato. Vamos ver a casa com nossos próprios olhos. Conheço G**, o Prefeito de
Polícia, e não terei dificuldade para obter a permissão necessária."
Obtivemos a permissão e fomos logo à Rue Morgue. Trata-se de uma dessas vias públicas
miseráveis, que liga a Rue Richelieu e a Rue St. Roch. Era tarde avançada quando lá chegamos,
pois esse bairro fica muito longe daquele em que moramos. Encontramos logo a casa; ainda
havia muitas pessoas olhando as janelas de cima fechadas, com uma curiosidade inútil, do lado
oposto da rua. Era uma casa parisiense comum, com um portão, ao lado do qual havia uma
casinha envidraçada, com uma portinhola corrediça na janela, indicando uma loge de concierge.
Antes de entrarmos, percorremos a rua, descemos por um beco e depois, virando mais uma vez,
passamos pelos fundos do prédio - Dupin examinando, enquanto isso, toda a vizinhança, além do
casa, com minuciosa atenção, para a qual eu não via objetivo possível.
Refazendo nossos passos, chegamos de novo à frente da morada, tocamos e, após mostrarmos
nossas credenciais, fomos admitidos pelo agente encarregado. Subimos a escada - e entramos no
quarto onde fora encontrado o corpo de Mademoiselle L'Espanaye, e onde ainda jaziam as duas
falecidas. Havia-se deixado, como sempre, permanecer a desordem do quarto. Nada vi além do
que fora dito na Gazette des Tribunaux. Dupin escrutinizou cada coisa - não excetuando os
corpos das vítimas. Passamos então aos outros quartos, e ao pátio; um gendarme nos
acompanhando a toda parte. A investigação nos ocupou até o anoitecer, quando partimos. A
caminho de casa, meu companheiro entrou por um momento na redação de um dos jornais
diários.
Eu disse que os caprichos de meu amigo eram múltiplos, e que je les ménagais
{9}
. -para esta frase
não há equivalente inglês. Deu-lhe na veneta, então, recusar toda conversa sobre o tema do
assassinato, até o meio-dia do dia seguinte. Então me perguntou, de repente, se eu observara alguma coisa peculiar na cena da atrocidade.
Alguma coisa na maneira de ele enfatizar a palavra peculiar me causou um arrepio, sem saber
por quê.
- Não, nada peculiar - eu disse; - nada mais, peio menos, do que eu e você vimos publicado no
jornal.
- Receio que A Gazette - ele respondeu - não compreendeu o verdadeiro horror da coisa. Mas
deixe para lá a ociosa opinião desse jornal. Parece-me que este mistério é considerado insolúvel
pelo motivo mesmo que devia fazê-lo ser visto como de fácil solução... quer dizer, o caráter outré
de suas características. A polícia foi confundida pela aparente ausência de motivo... não pelo
próprio assassinato ... mas pela atrocidade do assassinato. Também estão intrigados pela aparente
impossibilidade de conciiiar as vozes ouvidas na discussão com o fato de que não se encontrou
ninguém lá em cima, além da assassinada Mademoiselle L'Espanaye, e de que não havia meios
de saída sem que o grupo a subir visse. A louca desordem do quarto; a pavorosa mutilação do
corpo da velha senhora; essa consideração, junto com as há pouco mencionadas, e outras que não
preciso citar, bastou para paralisar as forças, fazendo falhar completamente seu louvado acume,
dos agentes do governo. Caíram no erro grosseiro, mas comum, de confundir o incomum com o
abstruso. Mas é por esses desvios do plano do comum que a razão tateia seu caminho, se o faz,
na busca da verdade. Em investigações como a que agora fazemos, não se deve tanto perguntar
"que aconteceu", mas "que aconteceu que nunca aconteceu antes" Na verdade, a facilidade com
que vou chegar, ou já cheguei, à solução do mistério está na proporção direta de sua aparente
insolubilidade aos olhos da polícia.
Eu o fitava mudo, pasmo.
- Estou agora à espera - ele continuou, olhando a porta de nosso aposento -, estou agora à espera
de uma pessoa que, embora talvez não seja o autor da carnificina, deve ter estado em alguma
medida implicado em sua perpetração. Da pior parte dos crimes cometidos, é provável que ele
seja inocente. Espero estar certo nesta suposição; pois sobre ela construo minha expectativa de
interpretar todo o enigma. Espero o homem aqui. .. nesta sala. .. a qualquer momento. É verdade
que ele pode não vir; mas a probabilidade é de que venha. Se vier, será necessário detê-lo. Aqui
estão as pistolas; e nós dois sabemos usá-las quando a ocasião o exige.
Peguei as pistolas, mal sabendo o que fazia ou acreditando no que ouvia, enquanto Dupin
prosseguia, em grande parte como num solilóquio. Já falei de sua maneira abstrata nesses
momentos. Dirigia seu discurso a mim; mas a voz, embora de jeito nenhum alta, tinha aquela
entonação em geral empregada quando se fala a alguém muito distante. Os olhos, com um ar
vazio, olhavam só a parede.
- Que as vozes ouvidas a discutir - ele disse - pelo grupo na escada não eram das próprias
mulheres, foi plenamente provado pelos depoimentos. Isso nos livra de toda dúvida sobre a
questão de saber se a velha senhora poderia primeiro haver destruído a filha e depois se
suicidado. Toco neste ponto apenas por uma questão de método; pois a força de Madame
L'Espanaye não estaria absolutamente à altura da tarefa de enfiar o cadáver da filha pela chaminé
acima, como foi encontrado; e a natureza dos ferimentos em sua própria pessoa exclui
inteiramente a autodestruição. O assassinato, pois, foi cometido por uma terceira parte; e as
vozes dessa terceira parte foram as ouvidas na discussão. Deixe-me chamar sua atenção agora...
não para todos os depoimentos sobre essas vozes... mas para o que havia de peculiar nesses
depoimentos. Você observou alguma coisa peculiar neles?
Observei que, embora todas as testemunhas concordassem em supor que a voz grossa era de um
francês, havia muito desacordo sobre a voz aguda, ou, como a qualificou um indivíduo, áspera.
- Esse era o próprio depoimento - disse Dupin -, não a peculiaridade do depoimento. Você não
observou nada diferente. E no entanto, havia uma coisa a ser observada. As testemunhas, como
você observa, concordaram sobre a voz grossa; nesse ponto, foram unânimes. Mas em relação à
voz aguda, a peculiaridade é... não que hajam discordado. .. mas que, quando um italiano, um
inglês, um espanhol, um holandês e um francês tentaram descrevê-Ia, cada um falou dela como
de um estrangeiro. Todos têm certeza de que não era a voz de um dos seus compatriotas. Todos a
dizem parecida ... não com a voz de um indivíduo de algum país cuja língua ele fala... mas o
inverso. O francês supõe que era a voz de um espanhol, e que "poderia haver distinguido
algumas palavras se conhecesse espanhof'. O holandês afirma que era de um francês; mas vemos
declarado que, "não entendendo francês, essa testemunha foi interrogada por intermédio de um
intérprete". O inglês acha que a voz era de um alemão, e "não entende alemão". O espanhol "tem
certeza" de que era de um inglês, mas "julga pela entonação", inteiramente, "uma vez que não
tem conhecimento de inglês". O italiano acredita que a voz era russa, mas "nunca conversou com
um nativo da Rússia". Um segundo francês diverge, além disso, do primeiro, e tem certeza de
que a voz era de um italiano; mas "não conhecendo essa língua", é, como o espanhol, convencido
"pela entonação". Ora, como deve ter sido estranhamente não familiar essa língua, sobre a qual
se pôde obter depoimentos desses!... em cujos tons, mesmo cidadãos de cinco grandes divisões
da Europa não reconheceram nada familiar! Você dirá que podia ser a voz de um asiático... de
um africano. Nem asiáticos nem africanos abundam em Paris; mas, sem negar a dedução,
chamarei agora a sua atenção para três pontos. A voz é qualificada por uma das testemunhas
como "mais áspera que aguda". É descrita por dois outros como "rápida e desiguaf. Nenhuma das
testemunhas mencionou palavra alguma. .. sons semelhantes a palavras... como distinguível.
"Eu não sei", continuou Dupin, "que impressão devo ter causado, até agora, em sua
compreensão; mas não hesito em dizer que as deduções legítimas mesmo dessa parte dos
depoimentos - a parte sobre as vozes grossa e aguda - são em si suficientes para engendrar uma
suspeita que deve orientar todo progresso posterior na investigação do mistério. Eu disse
'deduções legítimas'; mas com isso não expresso tudo que quero dizer. Pretendia sugerir que as
deduções são as únicas apropriadas, e que a suspeita surge inevitavelmente delas como resultado
único. Qual é essa suspeita, porém, eu não vou dizer ainda. Quero apenas que você tenha em
mente que, para mim, teve força suficiente para dar uma forma definitiva - uma certa tendência -
às minhas investigações no quarto.
"Transportemo-nos agora, em imaginação, àquele quarto. Que procuraremos primeiro ali? Os
meios de saída empregados pelos assassinos. Não é demasiado dizer que nenhum de nós acredita
em fatos sobrenaturais. Madame e Mademoiselle L'Espanaye não foram destruídas por almas. Os
autores do fato eram seres materiais e escaparam por meios materiais. Então como? Felizmente,
só há um modo de raciocinar sobre esse ponto, e esse modo tem de .levar-nos a uma decisão
definitiva. Examinemos, um por um, os possíveis meios de fuga. Está claro que os assassinos se
achavam no quarto onde Mademoiselle L'Espanaye foi encontrada, ou pelo menos no quarto
vizinho, quando o grupo subiu a escada. É pois apenas nesses dois aposentos que temos de buscar saídas. A policia desnudou o piso, o teto e a argamassa das paredes, em todas as direções.
Nenhuma saída secreta haveria escapado à sua vigilância. Mas, não confiando nos olhos deles,
eu examinei com os meus. Não havia, pois, saídas secretas. As duas portas dos quartos para o
corredor estavam firmemente trancadas, com as chaves por dentro. Voltemo-nos para as
chaminés. Estas, embora de largura normal por uns oito ou dez palmos acima do fogo, não
admitem em toda a sua extensão o corpo de um gato grande. Sendo assim, absoluta a
impossibilidade de saída pelos meios já declarados, ficamos reduzidos às janelas. Por uma das da
frente, ninguém poderia haver escapado sem chamar a atenção da multidão na rua. Os assassinos
têm de haver passado, pois, pelas do quarto dos fundos. Ora, chegados a esta conclusão da
maneira inequívoca que chegamos, não nos cabe, como raciocinadores, rejeitá-la pelas aparentes
impossibilidades. Só nos resta provar que essas aparentes "impossibilidades", na verdade, não o
são.
"Há duas janelas no quarto. Uma delas não está obstruída por móveis, e fica inteiramente à vista.
A parte de baixo da outra é oculta pela cabeceira da armação da cama, empurrada contra ela. A
vidraça da primeira foi encontrada firmemente trancada por dentro. Resistiu à máxima força
daqueles que tentaram levantá-la. Haviam aberto um grande buraco, com uma pua no caixilho da
esquerda, e enfiado quase até a cabeça um prego bastante forte. Ao examinar a outra janela, viuse um prego semelhante, pregado de maneira semelhante; e uma vigorosa tentativa de erguer a
vidraça também fracassou. A polícia convenceu-se então de que a saída não se dera por esse
lado. E, portanto, julgou-se supérfluo retirar os pregos e abrir as janelas.
"Meu exame foi um pouco mais detalhado, e o foi pelo motivo que já apresentei -porque era ali,
eu sabia, que se tinha de provar que todas as aparentes impossibilidades não o eram na realidade.
"Prossegui pensando assim - a posteriori. Os assassinos fugiram por uma daquelas janelas. Assim
sendo, não podiam haver tornado a fechá-las por dentro, como foram encontradas; - consideração
que deteve, por sua obviedade, o escrutínio da polícia neste ponto. Mas as vidraças estavam
trancadas. Tinham, pois, de ter a possibilidade de trancar-se por si mesmas. Não havia como
fugir a esta conclusão. Aproximei-me do caixilho não obstruído, retirei o prego com alguma
dificuldade e tentei erguer a vidraça. Ela resistiu a todos os meus esforços, como eu previra. Eu
sabia agora que devia haver uma mola oculta; e essa corroboração de minha idéia me convenceu
de que minhas premissas, pelo menos, eram corretas, por mais misteriosas que ainda parecessem
as circunstâncias em torno dos pregos. Uma cuidadosa busca logo trouxe à luz a mola oculta.
Apertei-a, e, satisfeito com a descoberta, abstive-me de levantar a vidraça.
"Repus então o prego e examinei-o com atenção. Uma pessoa que passasse por aquela janela
podia havê-la fechado de novo, e a mola haveria pegado - mas o prego não seria reposto. A
conclusão era clara, e mais uma vez estreitava o campo de minhas investigações. Os assassinos
tinham de haver fugido pela outra janela. Supondo, então, que as molas em cada vidraça fossem
iguais, como era provável, tinha-se de descobrir uma diferença entre os pregos, ou pelo menos
entre os modos de fixá-los. Subindo no estrado da cama, olhei minuciosamente, por cima da
cabeceira, o segundo caixilho. Descendo a mão por trás da tábua, logo descobri e apertei a mola,
que era, como eu supunha, idêntica à da janela vizinha. Olhei então o prego. Era tão robusto
quanto o outro, e aparentemente se encaixava da mesma maneira - enterrado quase até a cabeça.
"Você dirá que fiquei intrigado; mas, se assim pensa, deve haver entendido mal a natureza das
deduções. Para usar uma expressão do esporte, eu não cometera nenhuma 'falta'. Jamais perdera, nem por um instante, o faro. Não havia falha em nenhum elo da cadeia. Eu rastreara o segredo
até o seu resultado último - e esse resultado era o prego. Ele tinha, repito, em todos os aspectos a
aparência do seu irmão na outra janela; mas esse fato era uma absoluta nulidade (por mais
conclusivo que parecesse) quando comparado com a idéia de que ali, naquele ponto, terminava a
pista. 'Tem de haver alguma coisa errada', eu disse, 'no prego'. Toquei-o; e a cabeça, com cerca
de uma polegada da haste, saiu em meus dedos. O resto do prego ficou no buraco da pua, onde
fora quebrado. A fratura era velha (tinha as bordas enferrujadas), e fora aparentemente feita por
uma martelada, que enterrara um pouco, no pé da vidraça de baixo, a parte da cabeça do prego.
Repus então com cuidado essa parte da cabeça no buraco de onde a tirara, e a semelhança de um
prego completo era tot. . I -- não se via a fissura. Apertando a mola, ergui delicadamente a
vidraça algumas polegadas; a cabeça subiu com ela, permanecendo firme no buraco. Baixei a
vidraça, e a semelhança do prego inteiro ficou outra vez perfeita.
"Decifrado, até ali, estava esse enigma. O assassino havia fugido pela janela atrás da cama.
Caindo por si mesma após a saída dele (ou talvez deliberadamente fechada), a janela fora presa
pela mola; e era a retenção dessa mola que a polícia tomara pelo prego - considerando assim
desnecessário investigar mais.
"A questão seguinte era o modo da descida. Sobre este ponto, eu me satisfizera em meu passeio
com você em torno da casa. A cerca de cinco pés e meio [1,67m] do caixilho passa um páraraios. De sua haste, seria impossível alguém alcançar a própria janela, quanto mais entrar por ela.
Observei, no entanto, que as janelas do quarto andar eram daquele tipo que os carpinteiros
parisienses chamam de ferrades - um tipo raramente usado hoje, mas muitas vezes visto em
velhas mansões de Lyons e Bordéus. Têm a forma de uma porta comum (inteiriça, não dupla), a
não ser que a metade de baixo é em gelosia ou trabalhada em treliça - proporcionando assim
excelentes pontos para alguém se agarrar. No caso presente, essas janelas têm uns bons três pés e
meio [1,06m] de largura. Quando as vimos dos fundos da casa, estavam as duas meio abertas -
quer dizer, em ângulo reto com a parede. É provável que a polícia, como eu, tenha examinado o
fundo da casa; mas, se o fez, olhando as ferrades pela extensão da largura (como deve ter feito),
não percebeu a grande largura em si, ou, de qualquer modo, não a levou na devida consideração.
Na verdade, havendo-se convencido de que por ali não poderia ocorrer nenhuma fuga, faria
naturalmente uma investigação muito superficial. Era claro para mim, porém, que a janela da
cabeceira da cama, se aberta até encostar na parede, chegaria a dois palmos do pára-raios. Era
também evidente que, com um extraordinário grau de atividade e coragem, podia-se assim
efetuar a entrada na janela pelo pára-raios. Chegando à distância de dois pés e meio [76cm]
(supomos agora a janela toda aberta), um ladrão poderia agarrar-se bem ao trabalho de treliça.
Soltando então a haste do pára-raios, apoiando o pé firmemente na parede e empurrando-a,
poderia mover a janela de modo a fechá-Ia, e, se imaginamos a janela aberta nessa ocasião,
projetar-se dentro do quarto.
"Desejo que você tenha sobretudc em mente que eu falei em um grau bastante extraordinário de
atividade como requisite. para o sucesso num feito tão arriscado e dificil. Pretendo mostrar-lhe,
primeiro, que se poderia realizar a coisa: - mas, segundo e principalmente, quero gravar em sua
compreensão o caráter bastante extraordinário - quase sobrenatural dessa agilidade que poderia
havê-lo conseguido.
"Você dirá, sem dúvida, usando a linguagem da lei, que, 'para montar minha argumentação, eu devia mais subestimar que insistir numa plena avaliação da atividade exigida neste caso: Talvez
seja essa a prática na lei, mas não é o costume da razão. Meu objetivo último é apenas a verdade.
Meu propósito imediato é levá-lo a justapor essa atividade bastante extraordinária de que acabo
de falar àquele grito bastante peculiar (ou áspero) e àquela voz desigual sobre cuja nacionalidade
não se encontraram duas pessoas que concordassem, e em cuja fala não se detectou nenhuma
silabação."
A essas palavras, passou por minha mente uma vaga e incompleta idéia do que Dupin queria
dizer. Pareceu-me estar à beira da compreensão, sem chegar a compreender - como os homens,
às vezes, se vêem à beira da lembrança, sem conseguir, no fim, lembrar. Meu amigo prosseguiu
com seu discurso.
- Você verá - disse - que mudei a questão do modo de saída para o de entrada. Eu pretendia
transmitir a idéia de que as duas foram feitas da mesma maneira, no mesmo ponto. Voltemos
agora ao interior do quarto. Examinemos as aparências ali. As gavetas da cômoda, dizem, foram
revistadas, embora muitos artigos de vestuário continuassem lá dentro. A conclusão aqui é
absurda. É um mero palpite... e bastante tolo. .. e nada mais.
Como vamos saber que os artigos encontrados nas gavetas eram todos os que essas gavetas
continham originalmente? Madame L'Espanaye e sua filha viviam uma vida demasiado reclusa
... não viam ninguém ... raras vezes saíam ... não precisavam de muitas mudas de roupa. As
encontradas eram de qualidade tão boa quanto as que se pode encontrar na posse dessas
senhoras. Se um ladrão houvesse levado algumas, por que não levou as melhores... por que não
levou todas? Numa palavra, por que abandonou quatro mil francos em ouro para estorvar-se com
uma trouxa de roupa? O ouro foi abandonado. Quase toda a soma mencionada por Monsieur
Mignaud, o banqueiro, foi descoberta, em bolsas, no chão. Quero que você afaste pois dos
pensamentos a idéia errada de motivo, engendrada nos cérebros da polícia por aquela parte da
investigação que fala do dinheiro entregue na porta da casa. Coincidências dez vezes mais dignas
de nota que essa (entrega de dinheiro e assassinato cometido três dias depois de o receberem) nos
acontecem a cada hora de nossas vidas, sem chamar sequer uma atenção passageira. As
coincidências, em geral, são grandes obstáculos no caminho daquela classe de pensadores
educados para nada conhecer da teoria das probabilidades - a teoria à qual os mais gloriosos
objetos de pesquisa humana devem os mais gloriosos esclarecimentos. No caso presente, se o
ouro houvesse desaparecido, o fato de sua entrega três dias antes constituiria mais que uma
coincidência. Corroboraria essa idéia de motivo. Mas, nas circunstâncias reais do caso, se
devemos supor o ouro como o motivo desse crime, temos também de imaginar o perpetrador
como um idiota tão vacilante que abandonou, juntos, seu ouro e seu motivo.
'Tendo agora firmes na mente os pontos para os quais chamei sua atenção - a voz peculiar, a
agilidade extraordinária e a espantosa ausência de motivo num assassinato tão singularmente
atroz como este - olhemos agora a própria chacina. Aí está uma mulher estrangulada até a morte
e enfiada por uma chaminé acima de cabeça para baixo. Os assassinos comuns não empregam
um modo de assassinato desses. Menos ainda se livram do cadáver dessa forma. Na maneira de
enfiar o cadáver na chaminé, você admitirá que há alguma coisa de demasiado outré - alguma
coisa inteiramente inconciliável com nossas idéias normais de ação humana, mesmo quando
supomos que os atores sejam os homens mais depravados. Pense, também, como deve ter sido
grande a força que poderia socar o corpo para cima numa tal abertura, com tanta força que, como se descobriu, o vigor de várias pessoas mal foi suficiente para arrastá-lo para baixo!
'Volte-se, agora, para outros indícios do emprego de um vigor espantoso. Na lareira, havia
grossas tranças - muito grossas - de cabelos humanos grisalhos. Foram arrancadas pelas raízes.
Você está ciente da força necessária para arrancar assim da cabeça mesmo vinte ou trinta fios
juntos. Viu as madeixas em questão tão bem quanto eu. As raízes (uma visão hedionda!) tinham
grudados fragmentos da carne do couro cabeludo -sinal seguro do poder prodigioso exercido
para desenraizar talvez um milhão de fios de uma vez. A garganta da velha senhora não foi
apenas cortada, mas a cabeça absolutamente decepada do corpo; o instrumento foi uma simples
navalha. Quero que você veja também a brutal ferocidade desses atos. Não falo nada das
manchas no corpo de Madame L'Espanaye. Monsieur Dumas e seu digno coadjutor Monsieur
Etienne declararam que foram infligidas por um instrumento contundente; e até agora esses
cavalheiros estão corretos. O instrumento contundente foi claramente os paralelepípedos do pátio
no qual
a vítima caiu da janela atrás da cama. Essa idéia, por mais simples que pareça agora, escapou à
polícia pelo mesmo motivo que a largura da janela - porque, devido ao caso dos pregos, a
percepção dos policiais fora hermeticamente lacrada contra a possibilidade de as janelas haverem
sido sequer abertas.
"Se agora, além de tudo isso, você refletiu corretamente sobre a curiosa desordem do quarto,
conseguimos até então combinar as idéias de agilidade espantosa, força sobre-humana, brutal
ferocidade, carnificina sem motivo, horrorosa grotesquerie, absolutamente alheia à humanidade,
e uma voz de tom estrangeiro para os ouvidos de homens de muitos países, e desprovida de toda
silabação distinta ou inteligível. Que resultado, assim, se seguiu? Que impressão causei em sua
imaginação?'
Senti um arrepio na pele quando Dupin me fez a pergunta.
- Foi um louco - disse - que fez isso... algum maníaco varrido, fugido de uma Maison de Santé
vizinha.
- Em alguns aspectos - ele respondeu - sua idéia não é irrelevante. Mas jamais se constatou que
as vozes dos loucos, mesmo nos piores paroxismos, correspondam àquela voz peculiar ouvida
das escadas. Os loucos são de algum país, e sua língua, por mais incoerentes que sejam as
palavras, sempre tem a coerência da silabação. Além disso, o cabelo de um louco jamais é como
este que tenho na mão. Desgrudei este pequeno tufo dos dedos rigidamente fechados de Madame
L'Espanaye. Diga-me o que depreende disto.
- Dupin! - eu disse, inteiramente consternado; - esse cabelo é bastante extraordinário. .. isso não é
cabelo humano!
- Eu não disse que é - ele disse; - mas, antes de decidirmos esse ponto, quero que você veja um
desenho que fiz aqui neste papel. É uma descrição em fac-simile do que foi descrito numa parte
do depoimento como "manchas roxas e profundas marcas de unhas" na garganta de Madame
L'Espanaye, e em outra (pelos Monsieurs Dumas e Etienne) como uma "série de manchas
lívidas, evidentes marcas de dedos".
- Você perceberá - continuou meu amigo, abrindo um papel sobre a mesa à nossa frente - que
este desenho dá a idéia de um aperto firme e fixo. Não se vêem escorregos. Cada dedo reteve - possivelmente até a morte da vítima - o pavoroso aperto com que originalmente se cravou. Tente
agora pôr todos os seus dedos, ao mesmo tempo, nas respectivas marcas que vê.
Fiz em vão a tentativa.
- É possível que não estejamos dando a esta questão um julgamento justo - ele disse. - O papel
está aberto sobre uma superfície plana; mas a garganta humana é cilíndrica. Eis aqui um toro de
madeira, de circunferência mais ou menos igual ao da garganta. Enrole o papel em torno dele e
tente de novo.
Eu o fiz; mas a dificuldade foi ainda mais óbvia que antes.
- Isto - eu disse - não é marca de mão humana.
- Agora leia - ele disse - este trecho de Cuvier.
Era uma minuciosa explicação anatômica e descrição geral do grande orangotango ruço das ilhas
das índias Ocidentais. A estatura gigantesca, a força e atividade prodigiosas, a selvagem
ferocidade e as tendências imitativas desses mamíferos são bastante conhecidas de todos.
Entendi imediatamente todo o horror do assassinato.
- A descrição dos dedos - eu disse, ao acabar a leitura - está em exato acordo com esse desenho.
Vejo que nenhum animal além do orangotango, da espécie aqui mencionada, poderia ter deixado
as marcas que você desenhou. O tufo de pêlos vermelhos, também, é de aspecto idêntico ao da
fera de Cuvier. Mas não compreendo os detalhes desse pavoroso mistério. Além disso, havia
duas vozes na discussão, e uma delas era inquestionavelmente de um francês.
- É verdade; e você se lembrará de uma expressão atribuída quase unanimemente pelas
testemunhas a essa voz: - a expressão "mon Dieu!" Isso, nas circunstâncias, foi exatamente
caracterizado por uma das testemunhas (o confeiteiro Montani) como uma expressão de
advertência ou repreensão. Sobre essas duas palavras, pois, construí sobretudo minhas
esperanças de plena solução do enigma. Um francês conhecia o assassino. É possível.. . na
verdade, muito mais que provável. .. que estivesse inocente de toda participação no que ocorria.
O orangotango pode ter escapado dele. Ele pode tê-lo encontrado no quarto; mas, nas agitadas
circunstâncias que se seguiram, jamais poderia havê-lo recapturado. Continua solto. Não
continuarei com esses palpites. .. pois não tenho o direito de chamá-los mais que isso... uma vez
que as tênues reflexões em que se baseiam mal têm profundidade suficiente para que meu
próprio intelecto possa apreciá-los, e que não posso pretender torná-los inteligíveis à
compreensão de outrem. Chamemo-los de palpites, pois, e falemos deles como tais. Se o francês
em questão está de fato, como suponho, inocente dessa atrocidade, este anúncio, que deixei
ontem à noite, ao voltarmos para casa, na redação de Le Monde (um jornal dedicado a questões
de navegação, e muito procurado por marinheiros) o trará à nossa residência.
Entregou-me um papel, que eu li:
"CAPTURADO - No Bois de Boulogne, de manhã cedo no dia *** (a manhã do
assassinato), um orangotango muito grande e ruço, da espécie de Bornéu. O dono (que se
constatou ser marinheiro de um navio maltês) pode recuperar o animal, após identificá-lo
satisfatoriamente e pagar algumas despesas resultantes de sua captura e manutenção.
Procurar na Rue *** n° ***, Faubourg St. Germain - no terceiro andar.”
- Como foi possível - perguntei - você saber que o homem era marinheiro, e de um navio maltês?
- Eu não sei - disse Dupin. - Não tenho certeza disso. Aqui, no entanto, está um pequeno pedaço
de fita, que pela forma e aparência gordurosa foi evidentemente usada para prender os cabelos de
um desses rabichos dos quais os marinheiros tanto gostam. Além disso, este nó é daqueles que
poucos marinheiros sabem dar, e peculiar aos malteses. Peguei a fita no pé do pára-raios. Não
podia pertencer a nenhuma das falecidas. Ora, se afinal estou errado em minha dedução a partir
desta fita, de que o francês era um marinheiro de um navio maltês, ainda assim não posso ter
feito nenhum mal dizendo o que disse no anúncio. Se estiver errado, ele simplesmente suporá
que fui desnorteado por alguma circunstância sobre a qual não se dará o trabalho de perguntar.
Mas se eu estiver certo, marcou-se um importante tento. Conhecedor, apesar de inocente, do
assassinato, o francês naturalmente hesitará em responder ao anúncio. .. em reclamar o
orangotango.
Raciocinará assim: "Eu sou inocente; sou pobre; meu orangotango tem grande valor. .. para
alguém em minhas circunstâncias, uma fortuna em si. por que deveria eu perdê-lo por medo
ocioso do perigo? Aí está ele, ao meualcance. Foi encontrado no Bois de Boulogne... a enorme
distância da cena daquela carnificina. Como se pode jamais supor que um animal feroz foi o
autor do feito? A polícia está perdida. .. não produziu a mais leve pista. Se algum dia rastrearem
o animal, seria impossível provar que eu sei do assassinato. Acima de tudo, eu sou conhecido. O
autor do anúncio me designa como dono do bicho. Não sei até onde vai o conhecimento dele. Se
eu não reclamar uma propriedade de tão grande valor, que se sabe que possuo, tornarei o animal,
pelo menos, sujeito à suspeita. Não é de meu proveito chamar a atenção para mim mesmo ou
para o animal. Vou responder ao anúncio, pegar o orangotango e mantê-lo preso até passar essa
história." Nesse momento, ouvimos um passo na escada.
- Esteja pronto - disse Dupin - com as pistolas, mas não as use nem mostre enquanto eu não der o
sinal.
A porta da frente da casa fora deixada aberta, e o visitante entrara, sem tocar a campainha, e
subira vários degraus da escada. Agora, porém, parecia hesitar. Acabamos por ouvi-lo descer.
Dupin correu para a porta, quando mais uma vez o ouvimos subindo. Não voltou uma segunda
vez, mas avançou decidido, e bateu na porta de nossa sala.
- Entre - disse Dupin, num tom alegre e caloroso.
Entrou um homem. Era um marinheiro, evidentemente - uma pessoa alta, robusta e de aparência
musculosa, com uma certa expressão ousada, não inteiramente antipática. Tinha mais da metade
do rosto, muito queimado de sol, oculta por suíças e o mustachio. Trazia consigo um cacete de
carvalho, mas fora isso parecia desarmado. Fez uma mesura desajeitada, desejou-nos "boa noite"
num francês que, embora um tanto de Neufchâtel, ainda indicava bastante origem parisiense.
- Sente-se, meu amigo - disse Dupin. - Creio que veio buscar o orangotango. Palavra de honra,
eu lhe invejo a posse dele; um animal excelente, e sem dúvida muito valioso. Quantos anos
supõe que tenha?
O marinheiro inspirou fundo, com o ar de um homem aliviado de um fardo insuportável, e
respondeu, num tom seguro:
- Não tenho como saber ... mas não pode ter mais de quatro ou cinco anos. O senhor está com ele
aqui?
- Oh, não; não temos instalações para mantê-lo aqui. Está numa estrebaria na Rue Dubourg,
perto. O senhor pode pegá-lo pela manhã. Por certo está preparado para identificar a propriedade.
- Por certo que sim, senhor.
- Vou sentir separar-me dele - disse Dupin.
- Eu não pretendo que o senhor tenha tido todo esse trabalho por nada, senhor -disse o homem. -
Não podia esperar isso. Estou inteiramente disposto a pagar uma recompensa por haver achado o
animal ... quer dizer, qualquer coisa razoável.
- Bem - respondeu meu amigo -, isso é muito justo, decerto. Deixe-me pensar!.. . quanto pedirei?
Oh! Já lhe digo. Minha recompensa será o seguinte. O senhor me dará toda informação de que
dispõe sobre esses assassinatos na Rue Morgue.
Dupin disse as últimas palavras num tom muito baixo, e muito calmo. Com a mesma calma,
também, dirigiu-se para a porta, trancou-a e pôs a chave no bolso. Depois tirou uma pistola do
peito e colocou-a, sem o menor alvoroço, em cima da mesa.
O rosto do marinheiro enrubesceu como se ele lutasse com uma sufocação. O homem saltou de
pé e pegou o cacete; mas no momento seguinte caiu de volta no assento, tremendo
violentamente, e com o rosto da própria morte. Não disse uma palavra. Tive pena dele, do fundo
do coração.
- Meu amigo - disse Dupin, num tom bondoso -, o senhor está se assustando sem necessidade. ..
está mesmo. Não pretendemos fazer-lhe nenhum mal, eu lhe dou minha palavra de cavalheiro, e
de francês, de que não pretendemos machucá-lo. Sei perfeitamente bem que o senhor é inocente
das atrocidades na Rue Morgue. Não adianta, porém, negar que está de algum modo implicado
neles. Pelo que eu já disse, deve saber que tenho meios de informação sobre este assunto ...
meios com os quais o senhor jamais poderia haver sonhado. Agora a coisa está no seguinte. O
senhor nada fez que pudesse ter evitado. .. nada, certamente, que o torne culpado. Não foi
culpado nem de roubo, quando poderia ter roubado impunemente. Por outro lado, é obrigado por
todos os princípios de honra a confessar tudo que sabe. Um homem inocente está preso agora,
acusado de um crime cujo culpado o senhor pode apontar.
O marinheiro recobrara em grande parte a presença de espírito, enquanto Dupin dizia essas
palavras; mas desaparecera seu porte ousado original.
- Com a ajuda de Deus! - disse, após uma breve pausa. - Eu vou contar ao senhor tudo que sei
desse caso; mas não espero que acredite na metade do que vou dizer ... eu seria um tolo deveras
se esperasse. Contudo, sou inocente, e vou abrir o peito, mesmo que morra por isso.
Em resumo, o que declarou foi o seguinte. Fizera ultimamente uma viagem ao Arquipélago
Índico. Um grupo do qual era membro desembarcou em Bornéu e foi ao interior numa excursão
de diversão. Ele e um companheiro capturaram o orangotango. Havendo morrido esse
companheiro, ele ficou com a posse exclusiva do animal. Após muito trabalho, causado pela
intratável ferocidade do cativo durante a viagem de volta, conseguiu por fim alojá-lo em
segurança em sua própria casa em Paris, onde, para não atrair para si a desagradável curiosidade
dos vizinhos, mantinha-o cuidadosamente isolado, até o momento em que se recuperasse de um ferimento no pé, de um estrepe a bordo do navio. O objetivo último era vendê-lo.
Ao voltar para casa de uma farra de marinheiros na noite, ou melhor, manhã do assassinato,
encontrou a fera em seu quarto, que arrombara vindo de um quartinho ao lado, onde estivera,
segundo ele pensava, confinada em segurança. Navalha na mão, e com a cara coberta de espuma,
sentava-se diante de um espelho, tentando a operação de barbear-se, na qual sem dúvida vira
antes o dono pelo buraco da fechadura do quartinho. Aterrorizado com a visão de uma arma tão
perigosa na posse de um animal tão feroz, e tão bem habilitado a usá-la, o homem, por alguns
instantes, não soube o que fazer. Acostumara-se, porém, a acalmar a criatura, mesmo nos estados
mais ferozes, com o uso de um chicote, e a isso recorreu então. Ao ver o chicote, o orangotango
saltou imediatamente pela porta do quarto, desceu a escada e dali, por uma janela, infelizmente
aberta, ganhou a rua.
O francês seguiu-o desesperado; o macaco, ainda com a navalha na mão, parava de vez em
quando, voltava-se e gesticulava para seu perseguidor, até que este quase o alcançava. Ele então
partia de novo. Dessa maneira a caçada prosseguiu por muito tempo. As ruas estavam em
profundo silêncio, pois eram quase três horas da manhã. Ao cruzarem um beco atrás da Rue
Morgue, a atenção do fugitivo foi atraída por uma luz que vinha da janela aberta do quarto de
Madame L'Espanaye, no quarto andar de sua casa. Correndo para lá, o animal vira o pára-raios,
subira com inconcebível agilidade, agarrara a folha da janela, inteiramente aberta contra a
parede, e assim lançara-se diretamente na cabeceira da cama. Todo o ato não durou um minuto.
A janela foi de novo aberta com o pé pelo orangotango ao entrar no quarto.
O marinheiro, enquanto isso, achava-se ao mesmo tempo eufórico e perplexo. Tinha agora fortes
esperanças de recapturar a fera, que dificilmente escaparia da armadilha em que se aventurara, a
não ser pelo pára-raios, onde poderia ser interceptada ao descer. Por outro lado, havia muito
motivo para ansiedade sobre o que ela poderia fazer dentro da casa. Essa última reflexão levou o
homem a seguir ainda o fugitivo. Sobe-se sem dificuldades num pára-raios, sobretudo um
marinheiro; mas, quando ele chegou à altura da janela, que ficava muito à sua esquerda, teve a
carreira detida; o máximo que podia fazer era esticar-se para ter um vislumbre do interior do
quarto. Ao tê-lo, quase caiu pelo excesso de horror. Foi então que se ouviram aqueles gritos
hediondos na noite, que acordaram assustados os moradores da Rue Morgue. Madame
L'Espanaye e sua filha, vestindo roupas de dormir, aparentemente haviam estado ocupadas em
arrumar alguns papéis na arca de ferro já mencionada, que fora rolada para o meio do quarto.
Estava aberta, o conteúdo ao lado, no chão. As vítimas deviam estar sentadas de costas para a
janela; e, pelo tempo decorrido entre a entrada do animal e os gritos, parece provável que não o
viram logo. O bater da janela naturalmente seria atribuído ao vento.
Quando o marinheiro olhou para dentro, o gigantesco animal já havia agarrado Madame
L'Espanaye pelos cabelos (soltos, pois ela os estivera penteando) e passava a navalha pelo seu
rosto, imitando os movimentos de um barbeiro. A filha jazia prostrada e imóvel; desmaiara. Os
gritos e bracejos da velha senhora (durante os quais os cabelos lhe foram arrancados da cabeça)
tiveram o efeito de transformar em ira as intenções aparentemente pacíficas do orangotango.
Com uma vigorosa passada do braço musculoso, quase decepou a cabeça do corpo. A visão do
sangue inflamou sua fúria num frenesi. Rangendo os dentes, e chispando fogo dos olhos, ele
voou sobre o corpo da moça e enterrou-lhe as terríveis garras na garganta, mantendo o aperto até
ela expirar. Seus olhares errantes e desvairados caíram nesse momento na cabeceira da cama, acima da qual mal se percebia o rosto de seu dono, rígido de horror. A fúria da fera, que sem
dúvida ainda se lembrava do temido chicote, tornou-se medo na mesma hora. Consciente de
haver merecido castigo, ele pareceu desejar ocultar seus pavorosos atos, e pôs-se a saltar pelo
quarto, numa agonia de agitação nervosa; derrubando e quebrando os móveis ao passar por eles,
e arrancando o colchão e lençóis da cama da armação. Para concluir, agarrou primeiro o cadáver
da filha e enfiou-o pela chaminé acima, como foi encontrado; depois o da velha senhora, que se
apressou a jogar de cabeça pela janela.
Quando o macaco se aproximou do caixilho com seu mutilado fardo, o marinheiro encolheu-se
horrorizado na haste do pára-raios, e mais deslizando que descendo por ele, correu logo para casa
- temendo as conseqüências da carnificina, e satisfeito em abandonar, no seu terror, toda
preocupação com o destino do orangotango. As palavras ouvidas pelo grupo na escada eram as
exclamações de horror e pavor do francês, misturadas com os demoníacos balbucios do animal.
Dificilmente tenho mais alguma coisa a acrescentar. O orangotango deve ter escapado do quarto,
pela haste do pára-raios, pouco antes do arrombamento da porta. Deve ter fechado a janela ao
passar por ela. Foi depois capturado pelo próprio dono, que conseguiu por ele uma soma muito
grande no Jardin des Plantes. Le Bon foi instantaneamente libertado após nossa narrativa das
circunstâncias (com alguns comentários de Dupin) no bureau do Prefeito de Polícia. Esse
funcionário, por mais boa vontade que tivesse para com meu amigo, não pôde esconder de todo
sua frustração com o rumo que tomara o caso, e fez uma ou duas observações sarcásticas sobre o
acerto de cada um cuidar de seus assuntos.
- Deixe que ele fale - disse Dupin, que não julgara necessário responder. - Que discurse; vai
aplacar sua consciência. Estou convencido de que o derrotei em seu próprio castelo. Mesmo
assim, o fato de haver falhado na solução do mistério não é de modo algum essa coisa
surpreendente que ele supõe; pois, na verdade, nosso amigo Prefeito é de algum modo astuto
demais para ser profundo. Não há estorne em seu bom senso. Só tem cabeça, sem corpo, como os
quadros da Deusa Laverna... ou, na melhor das hipóteses, só cabeça e ombros, como um
bacalhau. Mas não deixa de ser uma boa criatura. Gosto dele sobretudo pelo seu golpe magistral
de hipocrisia, com o qual ganhou fama de engenhosidade. Refiro-me à sua maneira de
"niercequiest, etdexpliquercequinestpas"
{10}
.
Tradução de Marcos Santarrita
https://visionvox.net/biblioteca/c/Contos_Os_100_Melhores_Contos_de_Crime_e_Mist%C3%A9rio_da_Literatura_Universal.pdf
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Rodrigo Haidar: “Liberdade de expressão termina quando começa o Código Penal"
3.351 visualizações 25 de jul. de 2022
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Sinopse Completa
Monsieur Dupin: um honrado cidadão de Paris que, usando apenas a observação aguçada e a lógica, desvenda casos considerados insolúveis pelas autoridades. Em Os assassinatos na rua Morgue, mãe e filha são assassinadas em um apartamento fechado, sem qualquer sinal de arrombamento. Depois de ouvir gritos estridentes, vizinhos entram e saem da cena do crime, cada um com uma especulação diferente sobre quem teria sido o assassino. A fama de Dupin se espalha pela cidade e ele é convidado pelo comissário de polícia para investigar o desaparecimento de uma jovem vendedora de perfumes. Para solucionar O mistério de Marie Rogêt, ele sequer precisa sair de casa: recortes de jornal bastam. Em A carta roubada, nosso detetive demonstra uma argúcia ainda maior. Um documento desaparece, e qualquer denúncia às autoridades levaria à revelação de seu conteúdo comprometedor. Mas, Dupin é desafiado a roubar a carta de volta.Nossa edição, traduzida por Isadora Prospero, traz ilustrações de Fernanda Azou e apresentação de Adriana Cecchi, criadora do Redatora de M*%$. Nos posfácios, Daise Lilian, professora da UFCG, contextualiza a obra de Poe, e Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (USP), analisa a influência da obra de Poe em nosso imaginário sobre o crime, a lei e a ordem. Alberto Mussa, premiado autor policial brasileiro, escreve sobre a influência intelectual e afetiva de Edgar Allan Poe em sua trajetória.A edição também garante acesso a duas videoaulas com Cláudia Fusco, mestre em Science Fiction Studies pela Universidade de Liverpool, para enriquecer a sua experiência.
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Mulher é encontrada morta em apartamento no centro de SP
3.531 visualizações 25 de jul. de 2022 Uma mulher que estava desaparecida foi encontrada morta em um apartamento no centro de SP. No local estava o filho dela, de apenas 8 meses, com sinais de desnutrição.
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Brasil
SP: grávida é encontrada morta em casa ao lado da filha de 8 meses
Polícia Civil procura companheiro da vítima, apontado como principal suspeito do crime. Bebê estava no berço, desidratada e desnutrida
Cleomar Almeida
25/07/2022 10:38,atualizado 25/07/2022 10:52
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Vítima de feminicídio, Sandra Maria de Sousa é encontrada morta em apartamento na região da Sé, Centro de São PauloReprodução
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São Paulo – Uma mulher de 34 anos foi encontrada morta, em cima da cama, com marcas de agressão, em um apartamento na região da Sé, Centro de São Paulo, nesse domingo (24/7). Segundo a Polícia Militar, o corpo de Sandra Maria de Sousa Silva estava com sangue na região do nariz e da cabeça e duas perfurações, que aparentavam ser de algum tipo de arma branca.
A filha recém-nascida de Sandra, uma bebê de 8 meses de vida, foi resgatada dentro do berço, ao lado do corpo da mãe, com sinais de desidratação e desnutrição. Ela foi encaminhada para um pronto-socorro da região e passa bem. Familiares da vítima contaram à TV Globo que a mulher estava grávida de um mês.
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Vítima de feminicídio, Sandra Maria de Sousa é encontrada morta em apartamento na região da Sé, Centro de São Paulo
Vítima de feminicídio, Sandra Maria de Sousa é encontrada morta em apartamento na região da Sé, Centro de São PauloReprodução
Machucados encontrados na criança de 8 meses encontrada ao lado do corpo da mãe no Centro de São Paulo, após feminicídio registrado pela polícia
Machucados encontrados na criança de 8 meses encontrada ao lado do corpo da mãe no Centro de São Paulo, após feminicídio registrado pela políciaReprodução: PMSP
Sandra Maria de Sousa Silva, mulher encontrada morta dentro de apartamento no Centro de São Paulo
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Vítima de feminicídio, Sandra Maria de Sousa é encontrada morta em apartamento na região da Sé, Centro de São Paulo
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Machucados encontrados na criança de 8 meses encontrada ao lado do corpo da mãe no Centro de São Paulo, após feminicídio registrado pela polícia
Machucados encontrados na criança de 8 meses encontrada ao lado do corpo da mãe no Centro de São Paulo, após feminicídio registrado pela políciaReprodução: PMSP
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Vizinhos e amigas disseram que chamaram um chaveiro para abrir a porta do apartamento após o sumiço da mulher, na sexta-feira (22/7), e por causa do forte odor que era exalado de dentro do imóvel. O principal suspeito é o companheiro de Sandra, que foi visto pelos vizinhos saindo do apartamento da moça no mesmo dia com bolsas na mão.
Mais sobre o assunto
“A gente ficou sabendo por uma amiga dela, que me ligou mais cedo perguntando se ela estava comigo, na minha casa. Eu falei para ela que não estava, aí ela falou que viria na casa para ver o que tinha acontecido porque já tinha dois dias que ela estava sumida”, disse a irmã da vítima.
Segundo a polícia, familiares da vítima têm fortes suspeitas de que o crime foi praticado pelo companheiro dela. “Ela tinha me ligado de vídeo na sexta-feira, estava com a boca meio machucada e esse homem estava lá na casa dela com ela. Eu perguntei se ele tinha batido nela, mas ela falou que não”, disse a irmã.
A 1ª Delegacia de Defesa da Mulher, no Cambuci, registrou o caso como feminicídio. O suspeito do crime está sendo procurado pela polícia.
O Metrópoles não conseguiu contato da defesa do suspeito, já que o nome dele não foi divulgado pela polícia, até o momento em que este texto foi publicado, mas o espaço segue aberto para manifestações.
https://www.metropoles.com/brasil/sp-gravida-e-encontrada-morta-em-casa-ao-lado-da-filha-de-8-meses
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"O segredo da felicidade é você estar onde você está." Pensamento Indiano
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O segredo da felicidade não é fazer sempre o que se quer, mas querer sempre o que se faz.Leon Tolstói
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Pseudociências: Frenologia, Demonologia e Fisionomia
4.931 visualizações 26 de ago. de 2019 MEUS CURSOS:
Criminologia
http://twixar.me/ZFKK
Direito Penal - Geral:
http://twixar.me/2Gx3
Direito Penal - Especial:
http://twixar.me/RnQ3
Meus livros:
MANUAL DE CRIMINOLOGIA:
http://twixar.me/cPg1
Livros de Questões Comentadas:
PC/SP: http://twixar.me/lCd1
CESPE: http://twixar.me/hCd1
Polícia Civil: http://twixar.me/1Cd1
Polícia Federal: http://twixar.me/wCd1
AOCP: http://twixar.me/9Cd1
Polícia Militar: http://twixar.me/YCd1
CESGRANRIO: http://twixar.me/PCd1
Direito Penal e Processual Penal: http://twixar.me/yCd1
TRE- Tribunal Regional Eleitoral: http://twixar.me/zCd1
#Frenologia #Demonologia #Fisionomia #Pseudociências #Criminologia #DiegoPureza
https://www.youtube.com/watch?v=sXnpkYWFD9Q
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