segunda-feira, 4 de julho de 2022

Como morrem as democracias?

*** Por Steven Levitsky - Legendado 176.597 visualizações 10 de set. de 2018 A Fundação FHC recebeu Steven Levitsky, cientista político americano e professor na Harvard University. Atualmente, ele está envolvido em pesquisas sobre a durabilidade dos regimes revolucionários, a relação entre o populismo e o autoritarismo competitivo, problemas de construção partidária na América Latina contemporânea, e o colapso do partido e as suas consequências para a democracia no Peru. Aqui na Fundação, Levitsky participou do debate “Como morrem as democracias”. O conteúdo completo do evento já está no nosso site: https://bit.ly/2ORhNr5 https://www.youtube.com/watch?v=8bX7EdK0-1M *************************************************** *** Pela décima vez Aracy de Almeida Ouça Pela décima vez Jurei não mais amar pela décima vez Jurei não perdoar o que ela me fez O costume é a força que fala mais forte do que a natureza E nos faz dar provas de fraqueza Joguei meu cigarro no chão e pisei Sem mais nenhum aquele mesmo apanhei e fumei Através da fumaça neguei minha raça chorando, a repetir: Ela é o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir Senti que o meu coração quis parar Quando voltei e escutei a vizinha falar Que ela só de pirraça seguiu com um praça ficando lá no xadrez Pela décima vez ela está inocente nem sabe o que fez Ouça Pela décima vez Composição: Noel Rosa **************************************************
segunda-feira, 4 de julho de 2022 Paulo Fábio Dantas Neto*: Três candidaturas democráticas, duas táticas e a defesa da República ameaçada Esta coluna esteve em recesso por quase um mês, por motivos vários, comunicados a leitores e ouvintes a cada semana. No final do artigo de 28.05 (“Os institutos de pesquisa e o jogo das preferências”), o último publicado antes desse hiato involuntário, prometi tratar, na semana seguinte, de possíveis repercussões de uma então recente pesquisa do Datafolha sobre as campanhas de Jair Bolsonaro, Ciro Gomes e Simone Tebet, em complemento a comentários que, naquele artigo, fiz sobre os efeitos daquela pesquisa sobre a campanha de Lula e a conduta do candidato. Durante os mais de trinta dias passados desde então, a pauta prevista para a coluna foi superada por inúmeros fatos políticos, de modo que não há mais sentido em correlacionar, a supostos efeitos daquela pesquisa, já antiga, andamentos atuais das quatro campanhas, ainda que a interpretação mais abrangente dos seus resultados - a alta probabilidade de vitória de Lula no primeiro turno – tenha sido revalidada, há uma semana, por nova pesquisa daquele mesmo instituto. Vou tratar, na verdade, das candidaturas de Lula, Ciro e Simone, tendo em conta a reiteração do prognóstico baseado no Datafolha. Há ressalvas, no entanto. Outros institutos não confirmam o prognóstico e a própria pesquisa recente do Datafolha revela aspectos pontuais que reduzem a distância entre Lula e Bolsonaro, se considerados certos segmentos pesquisados, embora a redução, no geral, seja mínima, dentro da margem de erro. Mantém-se o prognóstico, mas não se está diante de um processo drástico. A probabilidade apontada há um mês segue alta, mas não se mostra uma tendência consolidada. Mesmo assim, a campanha de Lula entrou na antessala da comemoração, parecendo, ao menos em público, não cogitar qualquer outro cenário, senão o da vitória antecipada. Vencer no primeiro turno tornou-se obsessão e tendo em vista esse objetivo máximo, qualquer 1x0, ou até mesmo um WO, tem valor de goleada. Esse estado de ânimo, otimista e plebiscitário, acentuou-se, nas hostes lulistas, diante de seguidos revezes sofridos, tanto pelos movimentos golpistas de Bolsonaro, voltados a chantagear a República, quanto pela estratégia liquidacionista do centrão para obter sua reeleição através do assalto ao erário público, por incontáveis atos de arbitrariedade e ilegalidade, cometidos com crescente ousadia e senso zero de dever público. Até aqui, posicionamentos firmes do Judiciário, da imprensa, da sociedade civil e da parte da sociedade política mobilizada em torno das demais candidaturas vêm conseguindo reduzir o espaço para investidas golpistas de Bolsonaro contra a credibilidade das instituições e a normalidade das eleições, redução que pode ser mensurada também por pesquisas junto aos eleitores, nas quais sua pregação não encontra eco. O presidente parece chover no molhado quando opta por chantagem e ameaça, tornando-se lugar comum dizer que ele fala apenas para o seu “cercado”. Por outro lado, a dura realidade da economia impõe-se quando, por exemplo, novo aumento de preços de combustíveis neutraliza previamente virtuais efeitos eleitorais pretendidos por seguidas alterações no comando da Petrobras e por uma mobilização do governo e do rolo compressor de Arthur Lira, na Câmara dos Deputados, que emparedou o Senado para interditar direitos federativos de estados e municípios em relação ao ICMS. A operação bem sucedida de fazer o Congresso aprovar aquela matéria de cunho autoritário e demagógico deixou, contudo, a impressão de uma vitória de Pirro. Afinal, ela rende, ao esquema bolsonarista, a justa fama de comprometer as finanças públicas e agora também a institucionalidade federativa e a capacidade de estados realizarem suas políticas sociais, sem que haja proveito eleitoral prático, que possa compensar pragmaticamente os demagogos pelo custo social dos atos cometidos. O presidente e a fronda fisiológica que passou a operar com ele fazem chover também no molhado quando transferem o foco das táticas do golpismo institucional para a demagogia eleitoral. Na conta de revezes mais recentes sofridos pela campanha de Bolsonaro na busca de melhorar sua imagem e reduzir sua rejeição entra também a grande repercussão, interna e externa, dos assassinatos do ambientalista Bruno Araújo e do jornalista Dom Phillips, que desnudaram ainda mais a criminosa desativação das políticas federais de proteção da Amazônia e de suas populações indígenas e ampliaram suspeitas de leniência e até de conluio para com atividades ilegais e mesmo criminosas na região. No mesmo registro negativo entra a prisão do ex-ministro da Educação, com expectativa de instalação de CPI sobre corrupção naquela pasta, além de um escândalo de proporções ainda não completamente mensuráveis envolvendo crimes de assédio sexual e moral cometidos por dirigentes da Caixa Econômica Federal. Material suficiente para não só confirmar as piores avaliações sobre a atitude política reacionária e incivilizada do governo como para desmentir sua pauta supostamente “positiva” de defesa de valores morais e de combate à corrupção. Na casa do ferreiro-mito sobram espetos de pau. Em conjunturas eleitorais normais esse passivo bastaria para que as intenções de voto no atual presidente desabassem, interditando sua reeleição nos termos das regras do jogo democrático. Impedido também de violar e atropelar essas regras, pela vigilância institucional e da opinião pública, Bolsonaro estaria caminhando, inexoravelmente, para se tornar passado, carta fora do baralho e seu desgoverno para ser lembrado apenas como lição exemplar do que não deve acontecer numa república democrática. O país estaria infeliz pela dor da experiência ainda em curso, mas confiante num futuro seguinte às urnas. No horizonte imediato poderia estar, talvez, uma goleada histórica, uma eleição consagradora de um Lula agregador de seus companheiros e eleitores antigos e também conciliado com todos os seus demais adversários, os de outrora, os de anteontem e os de ontem à noite. Um Lula que perdoa, que perde perdão e que é perdoado em nome do futuro aspirado em comum por uma nação plural; um líder disposto não só a defender seu legado como a corrigir erros do passado (seus e do seu partido) para obter uma segunda chance, dessa vez de reconstruir um país destroçado pela tragédia social extrema, pela ruína econômica, pela devastação ambiental e pelo retrocesso civilizatório, cultural e moral, do qual o recibo mais perturbador é a radicalização e rebaixamento da política ao rés do chão. País desorientado, sobrevivente a trancos e tropeços, bem diferente do recebido pelo mesmo Lula em 2003. Contraste que legitimaria as alianças e concederia ao futuro presidente o benefício da paciência. Ampla aliança e programa de governo negociado dentro dela são as condições capazes de permitir uma vitória inquestionável, vacinando as eleições e o novo governo contra os discursos e atos golpistas. O realismo analítico manda constatar que o protagonista dessa proeza cívica não está em cartaz. O Lula que temos assistido na vida real não é nem sombra pálida da liderança que o país possivelmente aclamaria e elegeria para conduzi-lo à saída mais segura do atoleiro. E, sendo justos, teremos que admitir que ele nunca se propôs a tanto, nem mesmo em 2002, o momento mais virtuoso (no sentido republicano) da sua trajetória. A missão que recebeu ali era de mudança dentro de uma continuidade. Tratava-se de fincar com raízes mais fundas no solo social um patamar democrático já conquistado pela sociedade que emergiu da ditadura e pela lucidez da geração de líderes políticos que o precedeu. Lula cumpriu parcialmente essa missão lá atrás, com resultados ponderáveis. Incluiu muito, como manda a democracia, mas desagregou muito também, na contramão da república, a casa comum que a abriga. Agora, vinte anos depois, trata-se de repelir um Zepelin que paira e dispara sobre nosso edifício comum, já bastante fissurado. O momento pede lideranças de outro tipo, capazes de reconstruir a República para que a democracia possa prosseguir, em terreno benigno, o incessante gerúndio pelo qual ela pode sempre vir a ser algo de novo, sem perder a sua integridade original que a Carta de 88 garante. O mesmo realismo analítico não pode subestimar dificuldades que o autodenominado centro democrático enfrenta para cumprir o papel que a esquerda não quer ou não pode cumprir. A começar pelo fato de que o centro não possui, neste momento, um quadro, homem ou mulher, que chegue perto da representatividade eleitoral de Lula. Em segundo lugar porque, dentro desse campo político, a prioridade até aqui têm sido, claramente, as eleições para o Congresso, fato que se explica tanto pelo que isso implica em termos de acesso a um fundo partidário vitaminado pelo fim do financiamento empresarial de eleições, quanto pela recente reforma eleitoral que introduziu novas regras de desempenho para a viabilização sistêmica de partidos políticos. Esses dois fatores afetam todos os partidos, não apenas os do centro, mas há um terceiro fator - o recente papel proeminente que o Legislativo desempenha na cogestão do país, via controle do orçamento - que incide mais fortemente sobre os partidos dos dois distintos “centros” (o centrão mais fisiológico e mais ideologicamente átono e o centro liberal-democrático, de que falamos aqui). Vale abrir parênteses para mostrar que, à parte a discussão - ademais pertinente - sobre o sentido ético e a substância política de decisões que se toma no Congresso, o maior protagonismo do Legislativo é um fato objetivo, para o “bem” e para o “mal”. Fato que se revela desde o segundo governo de Dilma Rousseff (quando se confrontou com o Executivo e produziu o impeachment, reverberando e potencializando o discurso e a ação da Lava-Jato) ), segue no de Michel Temer (quando cooperou com o Executivo, produziu reformas importantes e defendeu o mandato interino do presidente contra a mesma Lava-Jato) e também no de Bolsonaro, quando, nos dois primeiros anos ocupou - sem também questionar a continuidade do mandato do presidente - o vácuo deixado pelo seu desgoverno, dando governabilidade ao País nos limites constitucionais de suas prerrogativas, com destaque para o amparo que propiciou, no primeiro ano da pandemia, a governos estaduais, municipais e cidadãos vulneráveis; e em 2021/2022, quando exerce o papel inédito de Poder Executivo de fato, no que diz respeito à gestão do orçamento. Isso transformou o centrão, de um arquipélago atomizado de parlamentares cooptáveis em que cada ilha vivia da fisiologia própria, num ator político relativamente coeso, que em vez de alugar seus mandatos ao governo, aluga para si, de modo inédito, prerrogativas de um governo inoperante. A ascensão de Arthur Lira (que foi mais processo endógeno à Câmara do que uma criação de Planalto) marca a tomada daquela Casa pelo antigamente chamado “baixo clero”. Em contraste com o período de Rodrigo Maia, nessa nova fase a Carta Constitucional passa da condição de âncora para a de peteca. Aí está a mais significativa derrota do centro liberal-democrático nesse difícil quatriênio. Privado do Poder Executivo durante os tempos do PT, sediava no Congresso a sua força, quando perdeu de vez também essa trincheira, nesse caso para o Centrão, cansado de coadjuvância. A crônica desse processo deve registrar também o erro político fatal que foi a hesitação desse centro democrático no apoio ao governo de transição de Michel Temer, abandonando-o ao centrão, e a consequente incapacidade desse centro democrático de se organizar de modo competitivo para as eleições de 2018. No desastre daquelas eleições estão suas digitais e não apenas as da esquerda liderada pelo PT. Como o centro não tem um Lula para pretender contrabalançar nas urnas o poder que emana do Congresso, as eleições legislativas tornaram-se, a princípio, ainda mais vitais para os partidos do centro liberal democrático. Quando a direção do MDB ensaia, com a candidatura de Simone Tebet, uma inflexão nessa conduta, é claro que está encontrando dificuldades advindas do longo tempo de hibernação nos bastidores da pequena política, em detrimento de comparecer à arena plebiscitária. Largar esse cacoete demora. Parênteses fechado, creio ter explicado a segunda dificuldade do centro para criar ambiente afortunado na corrida presidencial. Mas é preciso trazer uma terceira dificuldade que se apresenta para esse segmento político (se a ele se considerar agregada a candidatura de Ciro Gomes) assumir algum protagonismo na missão dos democratas de remeter Bolsonaro ao passado. Refiro-me à dificuldade de diálogo entre uma visão mais liberal em economia (que prevalece nas primeiras incursões de Simone Tebet nessa seara) e o “sotaque Unger”, que marca há tempos o “neo-nacional-desenvolvimentismo” de Ciro. A realidade eleitoral exigirá flexibilizações de ambos e o compromisso comum com uma pauta social conectada de modo realista à economia poderá ser um cupido eficaz. O mesmo cupido que poderá atuar para favorecer um entendimento de ambos com a esquerda, num eventual segundo turno. As dificuldades serão comparativamente maiores (embora não impeditivas) num diálogo futuro com a esquerda, dada a atual versão passadista da inflexão populista do PT, que já dura quase década e meia, desde que o pragmatismo econômico de Palocci perdeu-se na crise econômica mundial de 2008. Entre Simone e Ciro uma maior convergência de discurso sobre economia pode se impor no caso de cogitarem uma fusão dos seus projetos eleitorais ainda no primeiro turno. Essa hipótese não é admitida apenas pela lógica eleitoral de criar e fortalecer um terceiro polo de competição, mas é também sinalizada pela presença de Tasso Jereissati na chapa de Simone e pelas disposições mutuamente simpáticas entre os dois pré-candidatos, que ficaram explícitas, por exemplo, durante suas passagens pela festa popular do último Dois de Julho em Salvador. Aqui vale parênteses também (este menor) para dizer como a festa baiana deixou simbolicamente patentes características das quatro candidaturas. As duas principais procuraram, de modos diferentes, acoplar suas marcas à data cívica. A de Bolsonaro com uma motociata na contramão da festa, pretendendo, meio em vão, concorrer com ela à distância; a de Lula, entrando em contato e associando-se às celebrações, mas procurando, com relativo êxito, fazê-las desaguar em ato politicamente situado no estádio da Fonte Nova, periferia bem mais próxima da festa do que a orla escolhida por Bolsonaro. Descentramento extremo, no caso do capitão-piloto; descentramento moderado, no do experimentado condutor de massas. Um contraste, porém, menor do que o que se deu com os dois candidatos menos lembrados por eleitores pesquisados. Ciro e Simone foram penetrados pela festa, indo até onde suas pernas podem chegar, isto é, ficaram literalmente ao pé da cabocla e do caboclo. Mas, longe de chorarem, mergulharam animados em corpo-a-corpo à antiga, tradição política do Dois de Julho, afinal. Se aceitamos como premissa que as forças democráticas têm como objetivo derrotar Bolsonaro nas urnas e frustrar também seus intentos golpistas, para que essa vitória eleitoral signifique ganhar, levar e governar, então o dilema dessas forças não é pequeno, por três razões. Primeiro, a eleição presidencial é plebiscitária; segundo, Lula é hoje a liderança capaz de vencer Bolsonaro em tal eleição (Ciro ou Tebet também o seriam, mas o tempo do verbo expressa a distância entre uma quase certeza e uma quase loteria, já que não existe hoje a hipótese de Lula ficar fora do segundo turno); terceiro, uma inédita vitória de Lula no primeiro turno é incerta e, se ocorrer, dificilmente se dará por larga margem. Dito isso, o dilema é sobre o melhor caminho para alcançar o objetivo de remeter Bolsonaro ao passado, barrando nas urnas tanto a reeleição quanto sua continuidade via golpe. São visíveis, nas táticas eleitorais em curso, dois caminhos: apostar em larga vitória de Lula já no primeiro turno – relativizando o terceiro dado da realidade – ou considerar os três dados (eleição plebiscitária, dianteira de Lula e uma disputa acirrada entre ele e Bolsonaro) e investir no crescimento de candidaturas alternativas de centro para garantir um segundo turno em que possa se dar, afinal, a goleada improvável de ocorrer no primeiro turno. Por óbvio, Lula e a esquerda escolheram o primeiro caminho. Ciro, Tebet e partidos que se colocam como centro democrático distinto da esquerda e do centrão bolsonarista trilham o segundo. Anda não se pode saber qual deles prevalecerá. Mas é importante que ambos os campos democráticos (o da esquerda e o do centro) tratem essas diferenças como elas são, ou seja, como diferenças táticas que não podem ser conduzidas de modos drásticos, que comprometam uma possível estratégia comum de enfrentar Bolsonaro no segundo turno, se houver. Trocando em miúdos: Ciro Gomes e Simone Tebet precisarão encarar a volta de Lula ao governo como uma hipótese legítima e até provável, que não necessariamente será nefasta e dependerá da política que ele pratique; e Lula precisará acatar a realidade e a legitimidade das demais candidaturas anti-bolsonaristassem endossar uma campanha de voto útil que pretenda remover essas candidaturas com argumentos espúrios como o de que estariam “fazendo o jogo” de Bolsonaro. Lula tem legitimidade para pretender nas urnas o lugar de presidente. Mas não mostra poder obtê-lo hoje por amplo consenso, ao menos no primeiro turno. Diante do inimigo comum, as forças democráticas poderão construir esse consenso num segundo turno e, aí sim, vir a vitória por ampla maioria, necessária para exorcizar o golpe contra as eleições e o futuro governo. Lula poderá vencer sem isso? Tudo indica que sim, mas se sua maioria for estreita, o país seguirá dividido e a república ameaçada. Nas atuais circunstâncias - pelas quais as duas principais preferências políticas conforme pesquisas possuem um grau extremo de intensidade, sendo que uma delas já deixou claro que não aceitará a derrota - uma vitória relativamente apertada não pode ter o mesmo resultado político de uma vitória por ampla margem. Num caso, Bolsonaro teria que ser muito pressionado pelas instituições a entregar o poder, sendo realista contar que resistirá insistindo no argumento de uma suposta “fraude” que teria lhe subtraído a chance de ir a um segundo turno. Não cabe ilusões a respeito. Ele resistirá em qualquer situação, como é próprio de sua mentalidade despótica. Mas em condições de eleição renhida, com resultado apertado, ele poderá apoiar sua narrativa numa minoria, além de politicamente ativa, numericamente significativa. No outro caso, de ampla aliança e inquestionável vitória no segundo turno – que vejo como o melhor cenário, pelo qual democratas deveriam trabalhar - seu discurso golpista careceria de respaldo social para produzir o caos e a confrontação subversiva, condições para o discurso poder virar ato. Ainda há tempo para que esse cenário se concretize. De outro lado, na contramão das aspirações, estende-se sobre o conjunto do sistema político a suspeita de leniência ou, pior, a de que está corrompido - em parte ativa, em parte passivamente - pela ofensiva desesperada do esquema governista para reverter a tendência eleitoral fixada nas pesquisas. Nessa direção vai a gravíssima capitulação do Senado, ao votar, no último dia 30.06, sob rito sumário, uma PEC quatro vezes aviltante da República: esfarela a Constituição (na substância do seu mérito e nos procedimentos para emendá-la), aumenta a ruína, já imensa, das finanças públicas, desrespeita os milhões de brasileiros que penam na miséria, ao reduzir a política à mais enganosa e odiosa demagogia e entrega ao aventureiro extremista que ocupa o palácio de governo o instrumento do estado de emergência que, sob seu manejo, poderá submeter as eleições e o país a consequências imprevisíveis. As futuras edições desta coluna deverão ser escritas sob o impacto dessa decisão, que nada teve de trivial e representa um fato novo – por sua abrangência e ousadia - na marcha do golpe que nos ameaça. *Cientista político e professor da UFBa https://gilvanmelo.blogspot.com/2022/07/paulo-fabio-dantas-neto-tres.html **************************************************************************** *** Porque Bolsonaro quer distância do presidente português 2.861 visualizações 4 de jul. de 2022 Jornalista levanta uma tese interessante: descortesia do presidente brasileiro não teve nada a ver com visita de Marcelo Rebelo a Lula. Olá. Eu sou o cartunista Maurício Ricardo. Atuo como chargista e jornalista há mais de 30 anos. Estou usando esse canal pra postar meus vlogs e desabafos. https://www.youtube.com/watch?v=9-TI1qsVCkI **************************************************
*** segunda-feira, 4 de julho de 2022 Marcus André Melo*: Bolsonaro e as relações Executivo-Legislativo Folha de S. Paulo A tragédia dos comuns fiscal é resultado de incentivos políticos desalinhados Jacques Lambert (1901-1991), autor do clássico "Os Dois Brasis" (1953), foi pioneiro no estudo do presidencialismo latino-americano, que caracterizou como "regime de preponderância presidencial". Argumentou que nele o presidente era muito mais poderoso constitucionalmente que seu congênere americano; desfrutava de amplas prerrogativas (veto parcial, iniciativa exclusiva de leis, amplo poder regulamentador, entre outras), e exercia "leadership sobre o Legislativo". "Os projetos de lei apresentados pelo governo têm muito mais possibilidade de transformar-se em leis do que as propostas dos membros do congresso". (Argumento corroborado empiricamente pelos colegas Fernando Limongi e Argelina Figueiredo). Sim, o presidente contava também com o poder de nomear, demitir e contratar. Seu argumento não era puramente institucionalista: "O direito de iniciativa em matéria de legislação não é causa de sua preponderância: ao contrário, o êxito de suas iniciativas, sim, é consequência de sua preponderância". E concluía augurando a crise atual: "Essa preponderância presidencial tornou-se uma característica permanente, à qual se está tão habituado que, na sua ausência, o regime não consegue funcionar". É o que estamos observando. O multipartidarismo, segundo Lambert, obrigava o Executivo a apoiar-se em coalizões, e a impotência das assembleias reforça a preponderância presidencial. "As divisões dos partidos e a indisciplina de seus membros aumentariam as possibilidades de manobra do presidente". Hoje, o padrão se inverteu. A Constituição de 1988 expandiu significativamente os poderes do Executivo. Lambert não podia antecipar a colossal fragmentação partidária que teria lugar desde os anos 2010. Mas o mais surpreendente tem sido o enfraquecimento brutal do poder executivo. O protagonismo do Congresso no quadro atual não se confunde com uma revalorização do legislativo. Pelo contrário. Sob o parlamentarismo, as coalizões governativas são responsabilizadas eleitoralmente pelos resultados de decisões de governo. Mas, sob o presidencialismo com Congresso ultrafragmentado e omissão presidencial, gera-se incentivos fiscais perversos. Os partidos membros da coalizão não são responsabilizados e, portanto, não têm incentivos para garantir resultados coletivos. Muitos inclusive integrarão os próximos governos. O resultado é a conhecida tragédia dos comuns. Lambert argumentava que uma das razões da preponderância presidencial era a "frequência das circunstâncias excepcionais". Sim, agora vemos o estado de emergência ser invocado no assalto ao Tesouro. O protagonista, no entanto, é o Legislativo. *Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). *************************************
*** segunda-feira, 4 de julho de 2022 Bruno Carazza: Receita nº 1 para ser eleito: já ter um cargo Valor Econômico Não há ativo mais precioso na política do que já ter mandato Átila Lins (PSD-AM) é o deputado federal mais longevo na atualidade. Depois de três mandatos na Assembleia Legislativa de seu Estado, ele chegou a Brasília em 1º de fevereiro de 1991 e nunca mais saiu. Ao todo, já são quase 44 anos ininterruptos no poder. Nesse período, passou por Arena, PDS, PFL, PPS, PMDB, PSD, PP e na janela partidária deste ano voltou ao PSD. O alagoano Renan Calheiros iniciou sua carreira política no mesmo ano de 1978, ao vencer a eleição para deputado estadual pelo partido de oposição à ditadura, o velho MDB. Em 1982 consegue se eleger deputado federal, reelegendo-se em 1986. Derrotado na disputa ao governo de seu Estado em 1990, deu a volta por cima quatro anos depois, ao tornar-se senador. Desde então, já são quatro mandatos consecutivos, ao longo dos quais sobreviveu a diversos escândalos e exerceu a Presidência do Senado duas vezes. O sistema político brasileiro tem características que induzem à pulverização de candidaturas. Temos dezenas de partidos, poucos deles com identidade própria. Além disso, milhares de candidatos são lançados em busca de uma vaga no Congresso Nacional, fazendo campanha em territórios muito grandes e populosos. Essas características deveriam gerar maior competitividade nas eleições, resultando numa maior alternância de mandatos a cada ciclo de quatro anos. No entanto, não é o que normalmente ocorre. Muito já se falou sobre a alta taxa de renovação das eleições de 2018, mas apesar dos efeitos devastadores da Lava-Jato, do forte movimento antipolítica e da onda de candidatos novatos eleitos na esteira de Bolsonaro, 59,2% dos deputados federais que tentaram se reeleger foram vitoriosos - o que não foi tão inferior assim à taxa de 69,7% verificada em 2014. Apesar de as regras do sistema eleitoral incentivarem a concorrência, outras forças do sistema político atuam na direção contrária, criando vantagens para aqueles que já ocupam um cargo (os incumbentes) frente aos seus desafiantes. Em qualquer lugar do mundo aqueles que já possuem um cargo eletivo largam na frente na briga por um novo mandato. O próprio exercício do poder é um anabolizante natural, pois garante visibilidade na mídia e permite levar obras e benefícios a seus redutos eleitorais. Mas no Brasil nossa classe política trata de turbinar essas vantagens. Apenas no ano passado, os 513 deputados, em conjunto, tiveram direito a R$ 208.655.392,66 de cota parlamentar, utilizados para custear passagens aéreas, aluguel de veículos, publicidade, pesquisas e consultorias - uma baita ajuda para divulgar seu mandato. Além disso, há os fundos eleitoral e partidário. Alocados aos partidos de acordo com o seu desempenho nas eleições passadas, o controle sobre a sua distribuição cabe aos dirigentes de cada sigla - que acabam privilegiando a si mesmo, claro. Nas eleições de 2018, cada um dos 413 deputados que tentaram a reeleição recebeu de seus partidos, em média, R$ 1,2 milhão para custear suas campanhas. Em comparação, seus 8.165 concorrentes receberam uma média de apenas R$ 66.137,00. A depender do partido e do político, a fatia do bolo pode ser ainda maior. Naquele mesmo ano, Átila Lins recebeu do seu antigo partido, o PP, a “bagatela” de R$ 1.897.386,00. Renan Calheiros, por sua vez, conseguiu se reeleger com a ajuda de R$ 2.015.600,00 do MDB. Essas cifras se referem à eleição de 2018, quando o valor do fundo eleitoral foi de R$ 1,7 bilhão e o partidário, R$ 710 milhões. Na campanha deste ano, porém, o montante de recursos públicos à disposição dos partidos será de R$ 4,9 bilhões (eleitoral) e R$ 1,1 bilhão (partidário). É de se esperar, portanto, que o montante a ser destinado aos parlamentares que tentarão renovar seus mandatos será muitas vezes maior. Como se não bastasse, temos ainda os bilhões das emendas de relator sendo distribuídos pelas cúpulas da Câmara, do Senado e da Presidência da República. Convertido em obras e equipamentos, o orçamento secreto funciona como um doping para a reeleição de deputados e senadores. Seja pela via dos votos dados em gratidão pela população atendida, seja pela possibilidade de superfaturamento de contratos que levam ao financiamento ilícito de campanhas, não é à toa que a lista das indicações de emendas de relator não para de crescer no Congresso. Ter acesso aos bilhões das cotas parlamentares, orçamento secreto e fundos partidário e eleitoral é a receita mais fácil para se ganhar uma eleição. O problema é que são poucos os privilegiados que desfrutam dessas benesses. *Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. ***********************
*** LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. Clayton Mendonça Cunha Filho* Lançado em 2018 nos Estados Unidos e traduzido para o português, no Brasil, ainda no mesmo ano, pela editora Zahar, o livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é certamente um caso de best-seller imediato. Embora bastante recente, o livro já recebeu mais de cem citações da sua versão brasileira e quase oitocentas da sua versão original1 e segue suscitando debates e recebendo elogios ao redor do mundo, impulsionado por um Zeitgeist mundial em que a democracia enfrenta visíveis processos de erosão e ruptura. O livro busca mostrar como a democracia pode e é frequentemente subvertida por dentro, pelas mãos de líderes e atores de tendência autoritária que, navegando através de suas mesmas instituições e poderes, terminam por transformá-la em um regime distinto e autocrático, sem necessariamente precisar utilizar das forças armadas ou de um golpe de Estado clássico. Segundo os autores, a morte da democracia atualmente viria principalmente através de medidas anunciadas com nobres intenções, tais como combate à corrupção ou segurança nacional, e coberta de vernizes democráticos, frequentemente avalizadas por instituições como parlamentos ou cortes de justiça. A subversão democrática na maioria das vezes se daria através de medidas graduais e se iniciaria, na verdade, já através de medidas simbólicas e discursos polarizadores que buscam construir a ideia de ilegitimidade dos opositores. E prossegue através da captura ou neutralização de instituições de controle, tais como Procuradorias, Cortes de Justiça ou Tribunais de Contas, removendo seus membros mais independentes e/ou preenchendo-as com lealistas fanáticos, tanto para diminuir os riscos e limitações que tais instituições representariam aos objetivos do autocrata, quanto pelo potencial que representam na coerção dos adversários, que passam a enfrentar um campo de atuação cada vez mais desnivelado. E, apesar de as tendências autoritárias de líderes autocráticos serem frequentemente reconhecíveis e por vezes mesmo explicitamente anunciadas, desde muito antes de suas chegadas ao poder, tais líderes acabam sendo "normalizados" por parte de elites políticas que neles enxergam a possibilidade de se livrar de adversários incômodos. Minimizando os riscos ao próprio regime democrático, aproveitam-se de maneira interessada dos abusos contra seus adversários e terminam na maioria das vezes engolidos pelo avançar do processo. O livro consta de nove capítulos e uma introdução bem encadeados entre si, nos quais os autores alternam entre a apresentação de suas teses ilustradas com casos ao redor do mundo, em distintos tempos, e capítulos onde as aplicam a episódios da história estadunidense. Assim é que, após resumir as teses do livro na Introdução, Levitsky e Ziblatt descrevem no Capítulo 1 os processos de chegada ao poder de outsiders autoritários em alianças com atores da elite política que pensavam instrumentalizá-los e se veem por eles engolidos. Já no Capítulo 2, focam em episódios semelhantes da história política dos EUA em que, no entanto, tais outsiders se viram barrados antes da presidência pelo papel de guardiões democráticos que atribuem aos partidos políticos e suas elites; e, no Capítulo 3, prosseguem com a análise das mudanças introduzidas no sistema de primárias dos partidos do país e que as teriam tornado potencialmente mais porosas à passagem de líderes dessa natureza, sendo Trump uma espécie de culminação do processo. Nos Capítulos 4 e 5, por sua vez, retornam às ideias mais gerais acerca da morte democrática, descrevendo em detalhes, no quarto capítulo, os processos internos de tomada gradual de poder pelos autocratas eleitos através da cooptação das instituições de controle e da perseguição e afastamento dos principais adversários; e, no quinto, desenvolvem sua tese principal. Para os autores, além de boas constituições e instituições eficientes, a democracia para funcionar necessitaria do que eles chamam de regras não escritas que a protejam. Uma cultura política de tolerância mútua entre os adversários e o que eles chamam de reserva institucional (forbearance), ou seja, o "ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito" (p. 107) constituiriam as grades de proteção necessárias à sobrevivência da democracia. Sua ausência implica polarizações excessivas, transformando adversários em inimigos essenciais e a competição democrática em um confronto sem meios-termos possíveis em que predominaria o oposto da reserva, chamada por eles de jogo duro constitucional (constitutional hardball), cujo resultado último não pode ser outro que a aniquilação da própria democracia. Nos três capítulos seguintes, Levitsky e Ziblatt voltam novamente suas atenções ao caso estadunidense, descrevendo no Capítulo 6 as origens e o desenvolvimento das grades de proteção nos EUA, bem como momentos em que as mesmas foram ameaçadas ou mesmo ruíram, como durante a Guerra Civil, e seu processo de reconstrução após o fim da ocupação dos estados derrotados do Sul e que teriam então resistido firmemente pelo menos até os anos 1980. Os autores, no entanto, admitem, ao fim do capítulo, que devem "concluir com uma advertência perturbadora. As normas que sustentam nosso sistema político repousavam, num grau considerável, em exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a desdemocratização do Sul e a consolidação das leis de Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no século XX" (p. 140). Após as políticas de inclusão dos anos 1960 que desmantelaram a segregação racial sulista, o país teria finalmente se democratizado plenamente, mas a polarização política e as ameaças às grades de proteção voltaram a crescer cada vez mais. No Capítulo 7, então, passam a descrever com exemplos concretos o abandono cada vez maior das regras não escritas sobretudo por parte do Partido Republicano, que passa a se enraizar cada vez mais nos conservadores estados do Sul, incrementando significativamente a polarização. Anteriormente, a heterogeneidade constitutiva dos partidos políticos estadunidenses, com democratas conservadores no Sul racista, mas progressistas no Norte liberal, e republicanos conservadores no Norte, mas progressistas no Sul, conferia certo equilíbrio e proteção ao sistema, segundo sua interpretação. Por fim, no Capítulo 8, os autores se concentram em descrever as sucessivas violações de Donald Trump às grades de proteção do país e as possíveis consequências nefastas que daí adviriam para o futuro democrático estadunidense. Levitsky e Ziblatt concluem o livro no Capítulo 9, "Salvando a Democracia", o qual iniciam admitindo mais uma vez que a excepcionalidade democrática dos EUA estivera ancorada na exclusão racial e que as tentativas de superá-la no século XX teriam trazido de volta a polarização e os ataques às grades de proteção que estariam ameaçando a democracia no país atualmente. Tentando, talvez, passar um tom algo mais otimista, voltam-se em seguida a listar alguns países ao redor do mundo em que a democracia estaria sendo aumentada ou pelo menos ainda plenamente preservada, e que seriam, segundo eles, ainda a "vasta maioria", embora a lista apresentada pareça duvidosa ao incluir o Brasil entre os países em que a democracia ainda "permanece intacta" (p. 195). Mesmo que o livro tenha sido publicado em 2018 e, portanto, os autores não tenham podido considerar os efeitos trazidos pela presidência do claramente autocrático (pelos critérios do livro) Jair Bolsonaro, é imperdoável para pesquisadores do quilate dos dois autores considerar que o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o qual se utilizou eminentemente das táticas de jogo duro constitucional por eles apontada no Capítulo 5, não tenha sequer arranhado nossa democracia. Levitsky e Ziblatt, então, passam a conjecturar três possíveis cenários para os EUA pós-Trump: um cenário otimista e considerado improvável, em que os esforços autoritários do presidente são plenamente derrotados e restaura-se a democracia com todas as suas grades de proteção e respeito às regras não escritas; um outro cenário pessimista, considerado por eles como possível, mas ainda não tão provável em que Trump triunfa plenamente e mata de vez o que resta de democracia no país; e uma terceira possibilidade, que consideram a mais provável no futuro imediato, em que a democracia dos EUA passa a viver sem as regras de contenção e com efeitos perigosos e imprevisíveis no longo prazo. Os autores terminam o capítulo e o livro tentando apontar caminhos para a restauração democrática e insistem na reconstrução da tolerância mútua e na reserva institucional como parte fundamental dos mesmos, apresentando como casos de sucesso a reconstrução da direita alemã no pós-Guerra e a ampla coalizão chilena da Concertação que teria permitido o regresso do país à democracia após a ditadura pinochetista. Como visto, embora traga de fato exemplos concretos de atores e processos que minaram a democracia por dentro em várias épocas e lugares distintos – da Alemanha nazista ao Peru de Fujimori, passando pela Venezuela chavista, as Filipinas de Marcos, e a contemporânea Hungria de Orbán, entre alguns outros casos – e tenha um título "genérico" sobre a morte democrática, levando a crer tratar-se de uma obra de foco teórico geral, o livro é, na verdade, fundamentalmente uma análise do caso estadunidense sob a presidência de Donald Trump (2017-). Embora isso possa vir a frustrar em alguma medida alguns leitores que eventualmente cheguem ao livro buscando uma abordagem mais "universal", não constitui exatamente um problema na medida em que um foco mais restrito, de fato, frequentemente permite uma análise mais aprofundada de qualquer fenômeno concreto. Além disso, se é correta a tese dos autores de que a democracia estadunidense se encontra atualmente em perigo devido a processos iniciados nas últimas décadas e exacerbados pela presidência Trump, tampouco se trataria de qualquer caso, visto que os EUA representam para muitos, com ou sem razão e dentro ou fora dos próprios EUA, uma representação simbólica da própria ideia de democracia e exercem influência desproporcional ao redor do mundo. O problema é que os autores parecem não levar às últimas conclusões o alcance do argumento desenvolvido e uma análise aprofundada do mesmo pareceria indicar um veredicto ainda mais pessimista acerca da preservação da democracia no atual contexto mundial do que eles parecem considerar. Se toda a grande pax democrática estadunidense esteve baseada, como eles mesmos admitem, na exclusão racial e as grandes rupturas dessa estabilidade vieram da adoção de políticas de inclusão, não seria um grande wishful thinking a proposta de preservação democrática por meio de amplas coalizões interpartidárias em que os atores voluntariamente freiam suas iniciativas para não derrotar completamente a oposição? O livro é repleto de metáforas esportivas, o que certamente facilita sua leitura pelo público leigo e isso é extremamente positivo, mas será mesmo possível salvar a democracia apenas pela adesão voluntária dos vencedores à reserva institucional como numa partida de basquete de rua, como sugerem Levitsky e Ziblatt? Extrapolando os achados dos autores para outros países, recorde-se que quando do início da redemocratização da América Latina, nos anos 1980, as perspectivas de sua consolidação aos olhos da Ciência Política eram invariavelmente pessimistas devido a sua extrema desigualdade socioeconômica. Quando a persistência democrática nos anos 1990-2000 colocou em questão tal diagnóstico pessimista, autores como Kurt Weyland (2004) consideraram que a ampla adesão ao neoliberalismo na região havia contribuído para essa estabilidade por retirar da agenda política questões redistributivas que historicamente tinham melindrado as elites da região e ensejado rupturas democráticas, embora reconhecendo que isso, ao mesmo tempo, diminuíra a qualidade de nossas democracias. As décadas seguintes do novo milênio trouxeram a vários países da região questionamentos a essa hegemonia neoliberal, com experimentos redistributivos e intervencionistas em geral bastante moderados, mas que, mesmo assim, propiciaram o retorno da polarização, e mesmo golpes de Estado manu militari, como na Venezuela (2002) e Honduras (2009), ou interdições parlamentares, como no Paraguai (2012) e Brasil (2016). Seria então realmente possível imaginar a preservação democrática apenas pela autorrestrição dos atores políticos em contextos em que há realmente grandes questões em jogo, em que, se talvez não sejam plenamente de soma zero, é preciso que alguém perca algo para que outros grupos possam superar sua situação de exclusão? Voltando ao caso dos EUA, nas últimas páginas do livro, os autores analisam – e rejeitam – sugestões de superação da polarização política no país por meio do abandono, pelo Partido Democrata, dos interesses de minorias e das políticas de identidade em geral em prol de "recapturar a assim chamada classe trabalhadora branca" (p. 213), propondo em vez disso a adoção de políticas sociais universalistas de combate às desigualdades estruturais do país para fortalecer a democracia e gerar bases para coalizões interpartidárias que restaurassem as grades de proteção. Mas o quão factível seria realmente a proposta se ele dependesse, para sua execução, da anuência do mesmo Partido Republicano cada vez mais sólido na defesa de interesses econômicos das megaelites econômicas? De fato, infelizmente, a proposta acaba soando mais como utopia do que como concretude, sobretudo se lida à luz de relatos como os de Wolfgang Streeck (2018) sobre o abandono progressivo pelo Grande Capital dos compromissos democráticos que sustentaram a Era de Ouro do Estado do Bem-Estar na Europa e que tanto contribuíram aos desgastes e desencantos cidadãos para com a democracia, a partir de meados dos anos 1980. Em suma, o livro de Levitsky e Ziblatt oferece uma narrativa sucinta e em linguagem acessível acerca dos processos contemporâneos de erosão democrática e constitui-se em leitura importante, no momento, tanto para pesquisadores do tema quanto para o público em geral. Contudo as soluções sugeridas parecem fundamentadas muito mais em um normativismo voluntarista do que na análise plena dos desdobramentos das teorias e fatos relatados ao longo do livro. É um bom ponto de partida para a discussão de como as democracias morrem, mas, longe da palavra final, sobretudo se de salvá-las se trata. REFERÊNCIAS STREECK, W. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. WEYLAND, K. Neoliberalism and Democracy in Latin America: a mixed record. Latin American Politics and Society, v. 46, n. 1, p. 135-157, Spring 2004. * Professor-Adjunto do Departamento de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Mestrado em Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI). 1 110 citações da versão em português, 795 da versão em inglês. Dados obtidos no GoogleScholar, consultados em 21/04/2020. https://revistas.ufpi.br/index.php/conexaopolitica/article/view/10428/html ***************************************************************************** *** Música | Teresa Cristina: Pela décima vez (Noel Rosa) https://www.youtube.com/watch?v=9-TI1qsVCkI

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