segunda-feira, 17 de outubro de 2022

PARADIGMAS CIRCUNSTANCIAIS EM DEBATE

*** DiarioVea Tomas Kuhn y los “Paradigmas” del conocimiento científico – DiarioVea *** Lula não pode pregar para convertidos, diz Simone Tebet *** *** Bolsonaro cita “petrolão” e conta com apoio de Moro; Lula rebate falando sobre sigilos de 100 anos 38.330 visualizações 17 de out. de 2022 ************************************************************* "Portanto, eu sugeriria que os historiadores dedicados à Antiguidade devessem não apenas estar dispostos a verificar os seus próprios modelos, e os modelos de seus pares, à luz das evidências disponíveis, mas devessem refletir longa e arduamente sobre os pressupostos ideológicos vinculados aos seus paradigmas dominantes. Se não questionarmos a nós mesmos, nos tornaremos simplesmente irrelevantes. E isto, a meu ver, é algo prejudicial." TRADUÇÕES Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 249-254 • ISSN 1518-4196 MODELOS E PARADIGMAS EM HISTÓRIA ANTIGA Josiah Ober1 Tradução: Moisés Antiqueira2 ___________ 1 Professor do departamento de Ciências Políticas e de Estudos Clássicos da Universidade de Stanford. Email: jober@stanford.edu 2 Professor vinculado ao curso de História da UNIOESTE – campus de Marechal Cândido Rondon. Email: mantiqpira@yahoo.com.br *********************************** *** Mulheres de Atenas, Chico Buarque 3.581.152 visualizações 7 de mar. de 2011 Mulheres de Atenas, Chico Buarque Um documento interessante: "Análise da letra de Mulheres de Atenas de Chico Buarque e Augusto Boal", Professor José Atanásio Rocha URL: https://web.archive.org/web/201108250... (consultado em 23711/2014) Música MÚSICA Mulheres De Atenas ARTISTA Chico Buarque ÁLBUM Mulheres De Atenas https://www.youtube.com/watch?v=MabbVn0Rlv4 ************************************************** PÓS DEBATE: ANÁLISE E BASTIDORES COM OS COLUNISTAS DO UOL *** Debate Lula x Bolsonaro: quem venceu? Presença de Moro, Carlos Bolsonaro, bastidores e repercussão https://www.uol.com.br/play/videos/noticias/2022/10/17/debate-lula-x-bolsonaro-quem-venceu-presenca-de-moro-carlos-bolsonaro-bastidores-e-repercussao.htm *************************************************************************** Bernardo Mello Franco Um olhar sobre a política e o poder no Brasil Lula não pode pregar para convertidos, diz Simone Tebet Senadora defende que PT se empenhe mais por eleitor de centro e pede reflexão sobre resposta a fake news: "Não podemos reagir na mesma moeda" Por Bernardo Mello Franco 16/10/2022 17h45 Atualizado há 18 horas ***
*** Simone Tebet anuncia apoio a LulaSimone Tebet anuncia apoio a Lula Maria Isabel Oliveira/Agência O GLOBO *** Simone Tebet subiu no palanque de Lula, mas não quer vestir vermelho. Além de defender uma mudança na paleta de cores da campanha, ela sustenta que o PT precisa se empenhar mais para conquistar eleitores de centro. A senadora se diz preocupada com o tom da disputa no segundo turno. Reclama das fake news e da aposta de Jair Bolsonaro na retórica de guerra santa. Nesta segunda, a emedebista participará do primeiro ato público com Lula: um encontro com religiosos em São Paulo. Leia os principais trechos da entrevista à coluna: Como avalia a disputa neste segundo turno? Lamentavelmente, aconteceu o que já esperávamos. O tom subiu muito, e a campanha foi para um campo extremamente perigoso para a democracia brasileira. O clima de guerra santa me preocupa muito. Não só por esta eleição, mas pelas que estão por vir. Precisamos enterrar o modo bolsonarista de fazer política. Sabemos da rejeição à esquerda, ao PT e ao próprio Lula. Neste ambiente, as mentiras e fake news colam mais facilmente. Há uma divisão na campanha de Lula sobre como reagir aos ataques. Qual é sua opinião? Combater fake news é necessário, mas não podemos reagir na mesma moeda. Isso faria da política um território de barbárie. Precisamos combater a mentira com a verdade. Como não estou acompanhando a guerra digital, não posso avaliar as reações coordenadas pelo André Janones. Mas ainda acredito na boa política, em defender o que é certo. Qual será seu papel na campanha de Lula? Quero usar o pouco capital político que tenho para dar segurança ao eleitor que tem certa aversão à esquerda. Pretendo mostrar que Lula fará um governo diferente, de conciliação. Vamos viver um tempo de reconstrução e de reunificação do Brasil. O presidente Lula tem consciência disso. Pretende aparecer mais ao lado dele até o dia 30? Não faço nada pela metade. Estou pronta para tudo o que eles acharem importante. Nesta semana vamos começar a viajar. Posso ir a todos os estados onde não tivermos divergências regionais. Uma exceção é Pernambuco, onde estamos em campos diferentes (Lula apoia Marília Arraes, do Solidariedade, e Tebet apoia Raquel Lyra, do PSDB). Lá, acho que houve um equívoco do ex-presidente. Ele poderia ter dito: “Na minha terra há duas mulheres valorosas, e o estado estará bem servido com qualquer uma delas”. O ex-presidenciável João Amoêdo declarou apoio a Lula e foi atacado por parte de seus antigos eleitores. Isso também aconteceu com a senhora? Sim. Fiz uma campanha tranquila, mas essa tranquilidade desmoronou em dois dias após o primeiro turno. Foram as 48 horas mais difíceis da minha vida política. Muitos aliados me imploraram pela neutralidade, dizendo que eu perderia capital político se apoiasse Lula. Mas eu sabia que tinha que tomar uma decisão. Deixei claro que o que está em jogo é muito maior do que cada um de nós. Meu estado (Mato Grosso do Sul) é extremamente conservador e bolsonarista, mas isso não me abala nem um pouco. Tenho convicção do meu papel. Sou de uma geração eu lutou pela redemocratização do país. Apoiar Lula contra Bolsonaro não é um ato de coragem, é um dever cívico. A senhora já aconselhou a campanha do PT a abandonar o vermelho. O que mais precisa mudar? A campanha não pode pregar para convertidos. Tem que dialogar com a parte mais conservadora do Brasil, que recebe fake news todo dia pelo celular. Muitos eleitores nem conseguem vislumbrar o que está em jogo: a democracia, os valores da Constituição de 1988. Precisamos conversar com essas pessoas. Elas não vão migrar para Lula por fidelidade ou por crença no PT. Precisamos mostrar que o ex-presidente está pronto para governar para todo o Brasil, dialogando com quem pensa diferente. Por isso defendi o uso do branco, que é a cor da paz e da união. Também defendo um aceno para os liberais na área econômica. Sei que a equipe de Lula não quer manter o teto de gastos, mas é preciso apresentar alguma âncora fiscal. Parece que eles já estão buscando uma alternativa para dar alguma tranquilidade ao mercado. Lula já indicou que pretende tê-la a seu lado num eventual governo. Se ele vencer, em que área gostaria de atuar? Posso contribuir na área de educação, no agronegócio... Estou pronta para ajudar em qualquer canto, mas não preciso de cargo nem de ministério para isso. Quando for necessário, vou apresentar minhas críticas construtivas. Como projeta seu futuro político? Está nos planos mudar o domicílio eleitoral para São Paulo? Não imaginava que minha mensagem fosse tocar tantos corações, especialmente das mulheres. Isso me trouxe uma grande responsabilidade com o eleitor de centro, que está cansado da polarização. Ainda estou tentando assimilar meu papel. Quais são meu tamanho e minha importância neste processo? Ainda não sei. Não estou preocupada com domicílio eleitoral nem com 2026. Estou preocupada com a guerra santa que está entrando na política brasileira. Isso pode não ter volta. Teme que Bolsonaro tente algum tipo de ruptura institucional se for derrotado nas urnas? Bolsonaro nunca teve condições de não passar a faixa se perder a eleição. No entanto, ele já conseguiu colocar dúvidas na cabeça de muita gente sobre a imparcialidade do Judiciário, da imprensa, do sistema eleitoral. Isso pode criar um ambiente de instabilidade para os próximos quatro anos. Precisaremos desconstruir, passo a passo, tudo de ruim que ele construiu. Recomendadas para você https://oglobo.globo.com/blogs/bernardo-mello-franco/post/2022/10/lula-nao-pode-pregar-para-convertidos-diz-simone-tebet.ghtml ***************************************************
*** segunda-feira, 17 de outubro de 2022 Marcus André Melo* - Orçamento secreto e crédito político Folha de S. Paulo A lógica política das transferências discricionárias do governo federal O chamado orçamento secreto suscita questões. Por que surgiu? O que é novo no padrão orçamentário? Quem se beneficia? Quem captura o crédito político? Qual sua relação com a corrupção? A mudança no padrão deu-se no bojo da transformação radical do governo Bolsonaro. A rejeição do presidencialismo de coalizão deu lugar à formação de alianças com o centrão. O Leitmotiv foi a necessidade de um escudo Legislativo contra o risco de impeachment e os impasses na aprovação de agenda. O Executivo delegou a barganha em torno da parcela discricionária do orçamento às lideranças partidárias da coalizão. Antes, cabia a Casa Civil junto com os ministérios: a barganha era intra-ministerial em uma lógica partidária de distribuição de pastas. O Executivo buscou reduzir os custos políticos do padrão que rejeitara. Mas a delegação não implica abdicação: o controle do caixa permanece com o Ministério da Economia, o orçamento secreto continua autorizativo e não impositivo. Nada mudou. As principais mudanças —a concentração de recursos na rubrica RP9 a cargo do relator e a não identificação dos autores— permitiriam, em tese, a redução dos custos políticos potenciais. Afinal, o Executivo não se envolveria como antes. Mas o tiro saiu pela culatra. A delegação implica em concentração de poder na figura do relator? Ledo engano. O relator é nomeado pelo presidente da Comissão Mista do Orçamento (CMO) —são 84 membros indicados pelas lideranças, com proporcionalidade partidária. Ele pode ser substituído a qualquer momento pelo presidente, que é eleito pelos membros da CMO. É mero agente de uma maioria parlamentar. No passado, as transferências (que se viabilizam por emenda/convênio) beneficiaram o partido do Executivo (Brollo e Nannicini, 2012; Bueno, 2017; Meireles, 2019. Prefeitos do PT receberam 54% mais recursos do que os da oposição. Agora os ganhos se estenderam a coalizão. A ver. O efeito do alinhamento político com o governo federal entre 2003 e 2015 é considerável: equivale ao valor per capita médio do Bolsa Família, segundo Natália Bueno. As transferências são diminutas globalmente, mas expressivas localmente. Os municípios ficam com 50% do total, os estados com 30%; Oscips, etc, com 20%. A eleição de um prefeito alinhado com o presidente aumentava as transferências para os prefeitos mas reduzia significativamente as realizadas para as Oscips. E vice-versa: o objetivo, segundo Bueno, seria impedir que a oposição "sequestrasse" o crédito político gerado. David Samuels argumentou que essas transferências "invisíveis para o eleitor" não buscam crédito político, mas sim alimentar redes políticas corruptas. Ambos podem estar certos. *Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). *****************************************
segunda-feira, 17 de outubro de 2022 Bruno Carazza* - Os recados dos microdados eleitorais Valor Econômico Dados das urnas revelam preferência do eleitor A mordaça imposta por Jair Bolsonaro aos militares que fizeram a auditoria do funcionamento das urnas eletrônicas vale mais do que qualquer relatório para atestar a segurança e a confiabilidade do sistema brasileiro de votação, registro e contagem de votos. Com milhões de bolsonaristas mobilizados, bem como diversos órgãos civis e militares dos Três Poderes e ainda dezenas de entidades representativas da sociedade, não houve relato de nenhum incidente capaz de colocar em dúvida o resultado das urnas. Como acontece há décadas, a Justiça Eleitoral triunfou mais uma vez. Para além da eficiência e da segurança, nosso sistema eleitoral também é referência mundial na transparência e na qualidade dos dados divulgados. Qualquer cidadão pode acessar com relativa facilidade informações pessoais, arrecadação e despesas de candidatos, assim como o perfil do eleitorado e o resultado da votação. Tudo isso nos permite ter uma visão mais detalhada sobre os movimentos do jogo político e a preferência dos eleitores. Na primeira semana após o primeiro turno, imprensa e analistas se debruçaram sobre os resultados para extrair tendências, identificando quais regiões demonstraram uma preferência por este ou aquele candidato, se programas do governo deram voto ou quais estratégias de marketing eleitoral funcionaram melhor ou pior, e por aí vai. Existe, porém, uma base de dados do TSE que, por ser muito trabalhosa, quase não é explorada pelos analistas. O que é uma pena, pois ela nos permite uma visão quase microscópica do comportamento dos eleitores no dia da votação. Menos de 48 horas após o encerramento da votação, o Tribunal Superior Eleitoral disponibilizou no seu portal de dados abertos os arquivos do resultado das urnas em cada uma das quase 500 mil seções eleitorais espalhadas pelo território nacional e exterior. Trata-se de uma fonte valiosíssima de informações para verificar o que se passa na cabeça do eleitor brasileiro, uma vez que cada seção eleitoral comporta, em média, 330 cidadãos aptos a votar. O potencial de utilização desses dados para fins de análise eleitoral é multiplicado porque o mesmo TSE publica também no seu portal de transparência o perfil do eleitorado em cada uma dessas seções, indicando quantos eleitores estão aptos a votar de acordo com a sua faixa etária, estado civil, grau de escolaridade e gênero. Quer saber se Bolsonaro recebeu mais votos nas seções onde existem mais idosos ou se Lula realmente recebeu mais votos nas áreas com maioria feminina? Basta cruzar os dados da votação em cada seção com o seu perfil etário ou de gênero. Como em geral no Brasil a distribuição de renda tem um forte conteúdo territorial dentro de cada cidade, e ela está associada ao nível de escolaridade, esses dados também podem revelar muito sobre como pobres e ricos se posicionaram em relação a cada candidato. É claro que nem tudo é perfeito em relação a esses dados. Em primeiro lugar, os arquivos são muito pesados e dão um certo trabalho para serem manipulados. Além disso, o zoneamento eleitoral nem sempre guarda relação com as características econômicas das cidades - muitas vezes a mesma seção cobre bairros ricos e pobres que são vizinhos. Por fim, as informações sobre o perfil do eleitorado nem sempre são as mais atuais, pois as pessoas mudam de residência e não transferem seus títulos, além do que podem se casar e se divorciar, obter um nível maior de escolaridade e até trocar de gênero sem comunicar essas mudanças ao TSE. Para a felicidade dos estudiosos, o processo de recadastramento biométrico forçou cerca de 75% dos eleitores brasileiros a se dirigirem à Justiça Eleitoral na última década, levando a uma atualização dos dados. Uma evidência de como a biometria melhorou a qualidade dos dados é que, apesar de a taxa de abstenção continuar negativamente relacionada com o percentual de eleitores com biometria, o coeficiente de determinação foi baixo, na casa de 0,07. Tomando por base os dados da votação e do perfil dos votantes por seção eleitoral, quais conclusões podemos tirar desse primeiro turno em relação aos desempenhos de Lula e Bolsonaro? Vencedor do primeiro turno, o ex-presidente Lula demonstrou uma forte correlação positiva entre seus votos e o percentual de eleitores em cada seção com baixa escolaridade (analfabetos, semianalfabetos e com fundamental incompleto), assim com seus votos caem conforme há mais inscritos com nível superior na seção eleitoral. A evidência dos microdados eleitorais reforça a percepção de que Lula foi melhor nas regiões periféricas e de menor renda, onde se verifica um grau de escolaridade mais baixo. Em termos das interações com os demais candidatos, chama a atenção que há uma forte correlação negativa entre as votações de Lula e de Simone Tebet. Ou seja, nas seções onde a senadora sul-matogrossense foi melhor, Lula teve menos votos. Isso é um recado para a estratégia de eleitoral de Lula neste segundo turno: o tom de seu discurso pode não ter a mesma receptividade nas regiões onde residem os eleitores de Tebet. Num país tão dividido, os resultados de Bolsonaro vão na direção inversa da obtida pelo petista. O atual presidente tem pior desempenho nas seções de baixa escolaridade - nesse caso, a forte rejeição de Bolsonaro no Nordeste puxa o resultado para baixo, mas há uma correlação negativa entre escolaridade e voto bolsonarista também no Sudeste e Sul do país. Ao contrário do que seria de se esperar (e indicado pelas pesquisas), não há sinais significativos de uma rejeição maior a Bolsonaro nas seções com mais mulheres e nem uma preferência explícita por ele onde predominam os idosos. Na briga pelos votos angariados por Ciro e Simone no primeiro turno, os microdados das seções eleitorais revelam que Bolsonaro em geral foi melhor nas áreas que preferiram Tebet - em relação a Ciro, a correlação é negativa, mas estatisticamente irrelevante. Com as pesquisas passando por uma fase de credibilidade abalada, fica a dica para quem quiser mergulhar nos microdados do TSE. Dá trabalho, mas eles oferecem alguns insights muito valiosos para mapear as estratégias dos candidatos. *Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. *******************
*** segunda-feira, 17 de outubro de 2022 Fernando Gabeira - Os subterrâneos da campanha O Globo Não é a primeira vez que Damares é acusada de fake news Analisar uma campanha política implica trabalhar muitas variáveis: pesquisas, ação de candidatos, arco de alianças e redes sociais, estas não apenas para definir a popularidade, mas para seguir as grandes lendas que propagam. O trabalho de análise das redes sociais é mais difícil, não só pela sua extensão, como também pelos instrumentos que definem sua eficácia. Às vezes, tento colocar a seguinte pergunta: o que dizem essas notícias escandalosas sobre o estado mental de um país? Compreendo que essa expressão é muito vaga, seria quase como perseguir algo que a antropologia descarta com razão: o caráter nacional. Já escrevi um artigo sobre a importância do diabo não só na campanha, como na cultura . Satanás continua sendo um personagem dominante nas lendas que circulam nas redes. Num país muito religioso, é natural que isso aconteça. Talvez possa lançar mão de algum outro instrumento, como o inconsciente coletivo. É uma invenção do psicólogo Carl Jung, que, para mim, tem um valor mais poético. Na visão dele, o inconsciente coletivo são ideias que atravessam os tempos, ideias que herdamos de nossos antepassados e nem sempre sabemos que influenciam nossa visão de mundo. Pode ser que aquele clima da Inquisição, o medo de estarmos ao lado do diabo sem reconhecê-lo, influencie as pessoas. No passado, isso não era uma questão apenas de fé, mas uma escolha de vida ou morte. O canibalismo é um componente singular da campanha política brasileira neste século XXI. Ele surgiu a partir de uma entrevista de Bolsonaro ao New York Times, em que deu a entender que comeria um índio. Nesse caso, também há toda uma história de pavor em nossas mentes. O primeiro best-seller sobre o Brasil no mundo foi o livro de Hans Staden, que escapou de ser comido pelos índios. O que restou realmente no fundo de nosso inconsciente: o medo de ser comido num ritual indígena ou a malícia das índias que examinavam as carnes brancas do prisioneiro europeu? O diabo e os canibais ainda sugerem uma linha de investigação possível, embora tão fantasiosa quanto as lendas que os colocam no topo da campanha. O que é difícil explicar são as palavras da senadora eleita Damares Alves sobre exploração sexual infantil na Ilha de Marajó. Ela comete uma ligeira imprecisão geográfica ao colocar Marajó na fronteira. Confundiu com o Amapá, que está um pouco adiante. Ainda assim, descreveu um quadro tétrico de crianças cujos dentes são arrancados para que não mordam ao dar prazer sexual. Ela não tem provas disso. Acossada, diz que ouviu na rua. Possivelmente imaginou essa situação e decidiu usá-la como instrumento de campanha. As crianças exploradas seriam salvas por ela e por Bolsonaro se não fossem impedidos pela imprensa, pelo Supremo e pelo Congresso. Há poucas pistas para estudar a imaginação que produz esse tipo de história. Damares ficou conhecida porque disse ter encontrado Jesus numa goiabeira. Na época, achei que não deveria ser criticada. Faço documentários sobre andarilhos e ouço histórias, visões fantásticas e, ao mesmo tempo, inofensivas. Reconheço o direito ao delírio. Mas isso de construir uma inominável tortura e se apresentar como a heroína que tentou combatê-la e foi impedida pelas instituições parece-me um pouco doentio, mesmo numa atmosfera de caldeirão do diabo onde ardem alguns adversários que serão comidos pelos canibais do partido rival. De um modo geral, o TSE tem determinado a retirada de postagens fantasiosas e ameaça com multa caso desobedeçam. Mas Damares foi ministra de Direitos Humanos e tornou-se senadora. Sua história mentirosa foi contada num templo da Assembleia de Deus, no contexto da campanha política de Bolsonaro. Não é a primeira vez que é acusada de difundir fake news. Se considerarmos essa prática natural, o diabo estará subindo em nossas goiabeiras. **************************************** *** My Girl Pato Fu Ouça My Girl I've got sunshine on a cloudy day When it's cold outside I've got the month of May I guess you´ll say what can make me feel this way? My girl, my girl, my girl talking about my girl, my girl... I've got so much honey the bees envy me I've got a sweeter song than the birds in the trees Well, I guess you´ll say what can make me feel this way? My girl, my girl, my girl talking about my girl, my girl I don't need no money, fortune or fame I've got all the riches, baby one man can claim Well, I guess you´ll say what can make me feel this way? My girl, my girl, my girl talking about my girl, my girl... ( talking about my girl ) I've got sunshine on a cloudy day with my girl... I've even got the month of May with my girl Ouça My Girl Composição: Ronald White / Smokey Robinson. *****************************************************************************
*** Análise da letra de Mulheres de Atenas | Chico Buarque e Augusto Boal. Mulheres de Atenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas Quando amadas, se perfumam Se banham com leite, se arrumam Suas melenas Quando fustigadas não choram Se ajoelham, pedem, imploram Mais duras penas Cadenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas Quando eles embarcam, soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam sedentos Querem arrancar violentos Carícias plenas Obscenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas Quando eles se entopem de vinho Costumam buscar o carinho De outras falenas Mas no fim da noite, aos pedaços Quase sempre voltam pros braços De suas pequenas Helenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas Elas não têm gosto ou vontade Nem defeito nem qualidade Têm medo apenas Não têm sonhos, só têm presságios O seu homem, mares, naufrágios Lindas sirenas Morenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Temem pro seus maridos, heróis e amantes de Atenas As jovens viúvas marcadas E as gestantes abandonadas Não fazem cenas Vestem-se de negro se encolhem Se confortam e se recolhem Às suas novenas Serenas Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas. Memória discursiva. “Mulheres de Atenas” faz referência a aspectos da sociedade ateniense do período clássico e a alguns episódios e personagens da mitologia grega. A letra faz uma alusão aos famosos poemas épicos Ilíada e Odisséia, ambos atribuídos a Homero. Penélope, mulher de Ulisses, herói do poema Odisséia, viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, período em que ela se porta com dignidade e absoluta fidelidade; mas, por um lado, sua formosura, e, por outro, os bens familiares atraem a cobiça de pretendentes, que julgavam seu marido morto. Ela lhes dizia que só escolheria o futuro marido após tecer uma mortalha, que, a bem da verdade, não fazia questão de terminar: passava o dia tecendo e, à noite às escondidas, desmanchava o trabalho realizado. E enquanto seu marido se mantinha ausente, embora por tanto tempo sem notícia, ela se vestia de longo, tecia longos bordados, ajoelhava-se, pedia e implorava para a deusa Atena que providenciasse o retorno de seu amado. Helena, filha de Zeus, era considerada a mulher mais bela do mundo. Sua história é uma das mais conhecidas na mitologia grega. Esposa de Menelau, rei de Esparta, foi seduzida e raptada por Páris, filho do rei de Tróia. Esse rapto deu origem à guerra de Tróia, que os gregos promoveram para resgatar Helena; fato narrado em Ilíada de Homero. Embora Ulisses não figurasse no primeiro plano da Ilíada, nela é freqüentemente mencionado, como um viajante conduzido à terras distantes e herói da batalha de tróia. Por essa escolha Homero, o poeta, relaciona as duas epopéias. A esposa de Ulisses, a prudente Penélope, opõe-se à esposa infiel – senão verdadeiramente culpada – Helena, que na Ilíada é causa inicial da guerra. Por essas e outras razões a Odisséia está intimamente ligada à Ilíada. Assim, como uma referência histórica de um momento da humanidade que data de 5 séculos antes de Cristo, os autores de “Mulheres de Atenas” valem-se da ideologia de Odisséia para chamar a atenção das mulheres que ainda “vivem” e “secam” por seus maridos ao estilo ateniense. Após a narrativa da morte dos pretendentes de Penélope, o rei Agamêmnon, filho de Atreu, lamenta profundamente a morte dos que lhes eram caros e faz a seguinte referência à esposa de Ulisses, descrita em Odisséia, de Homero, na Rapsódia XXIV, p. 216, Abril Editora, edição de 1981: “A alma do filho de Atreu exclamou: ‘Ditoso filho de Laertes, industrioso Ulisses, grande era o mérito da que tomaste por esposa. Nobres os sentimentos da irrepreensível Penélope, filha de Icário, que soube manter-se sempre fiel a seu esposo Ulisses! Por isso, jamais perecerá a fama de sua virtude, e os Imortais inspirarão aos homens belos cantos em louvor da prudência de Penélope’”. Os autores também realizam um apurado trabalho com a linguagem, no que se refere tanto à construção das frases quanto à seleção e ao emprego das palavras. Para obtermos uma melhor compreensão desse texto, necessariamente teremos de percorrer os caminhos da história, da mitologia, e reconhecer o diálogo aberto com outros textos, contido em “Mulheres de Atenas”. Entretanto, não é nosso ofício nos deter extensivamente com a história que envolvia a sociedade ateniense na época de Odisséia. Por essa razão, e colaborando com o trabalho de estabelecer essas pontes, antes do desenvolvimento de nossa análise, de forma sucinta, apresentamos um trecho escrito pelo historiador Edward MacNall Burns sobre o comportamento das mulheres de Atenas dos séculos V e IV a.C.: “Embora o casamento continuasse a ser uma instituição importante para a procriação dos filhos, que se tornariam os cidadãos do Estado, há razão para se crer que a vida familiar tivesse declinado. Ao menos os homens de classes mais prósperas passavam a maior parte do tempo longe de suas famílias. As esposas, relegadas à uma posição inferior, deviam permanecer reclusas em casa. O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras1, algumas das quais eram naturais das cidades jônicas e demonstravam grande cultura. Os homens casavam para assegurar legitimidade ao menos a alguns de seus filhos e para adquirir prosperidade por meio do dote. Era também necessário, naturalmente, ter alguém para tomar conta da casa”. É comum, ainda nos dias de hoje, leitores menos avisados considerarem essa música como uma apologia à submissão e à subserviência feminina ao machismo brasileiro, a exemplo das mulheres da Grécia antiga. Aliás, isso aconteceu com muitas mulheres que se diziam feministas, algumas leitoras vacilantes e obtusas, que criticaram os autores porque julgaram a música “machista” – segundo elas, a letra da música sugeria que as mulheres de hoje tivessem o mesmo comportamento das mulheres da antiga Atenas. Não conseguiram perceber a inteligente ironia do texto... Onde se lê “Mirem-se...” sugere-se que se faça o contrário; dessa forma, o texto é um hino contra a submissão das mulheres que se sujeitam às regras ditadas pelas sociedades patriarcais. O próprio Chico Buarque, em uma entrevista à televisão Cultura, ao ser indagado sobre o pensamento das feministas da época, disse: “Elas não entenderam muito bem. Eu disse: mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocês vão ver o que vai dar. A coisa é exatamente ao contrário”. 1 mulher dissoluta, cortesã, prostituta elegante e distinta. Estrutura do Texto. Mesmo sendo uma letra de música, portanto um texto para ser ouvido, “Mulheres de Atenas” apresenta um primoroso trabalho formal. O texto se compõe, fundamentalmente, de cinco estrofes de nove versos cada uma. As estrofes apresentam um esquema fixo de rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o sétimo. Do ponto de vista métrico, é inegável a habilidade do autor que abusou de uma métrica eleboradíssima: os dois primeiros versos têm 14 sílabas poéticas: o terceiro, o quarto, o sexto e o sétimo têm oito; o quinto e o oitavo têm quatro e o nono tem duas. Os dois primeiros versos funcionam como refrão. As idéias básicas do poema são reafirmadas pelo fim do poema que traz o refrão como se quisesse inicial uma sexta estrofe. Por conta desse rol de advertências podemos verificar uma situação cíclica de ladainhas que não pretendem parar no poema. Ao introduzir no final do poema a repetição, como se fosse iniciar uma nova estrofe, o autor deixa livre para a reflexão do leitor que poderá buscar no subconsciente qualquer fato que se assemelha às advertências anteriores para completá-lo. Exatamente por conta disso é que o refrão vem no início de cada estrofe. O refrão apresentado nessa música nos remete à mesma estrutura usada nas cantigas medievais. O paralelismo apresentado nele é bastante semelhante ao das cantigas medievais, porém, com ligeiras alterações no segundo verso. O primeiro verso do refrão sempre se repete identicamente em todas as estrofes, introduzindo uma idéia de múltiplas escolhas no segundo verso, com poucas variações entre si em todas as estrofes, mantendo-se fixas as formas “pros seus maridos” e “Atenas”. A semelhança não reside somente no paralelismo, mas também na métrica de 14 sílabas poéticas, uma contagem marcante na Cantiga de Amor de Bernardo de Bonaval, entre os séculos XII e XIII, aproximadamente. Essa não é, sem dúvida, a primeira e única performance de Chico Buarque com semelhanças medievais. As músicas “Atrás da Porta” e “Com Açúcar Com Afeto”, por exemplo, são claros exemplos de cantigas medievais de amigo, de autoria masculina para um Eu-lírico feminino, cujo tema sugere um lamento pela ausência do amigo (amante). Esse é, sem dúvida, um recurso marcante nas cantigas medievais também usado nas músicas dos autores contemporâneos Caetano Veloso (Esse Cara) e Vinícius de Moraes (Pobre Menina Rica). O eixo paradigmático da canção. Do ponto de vista sintático, podemos destacar os sujeitos presentes na canção (SN – sintagma nominal) e seus respectivos predicados (SV – sintagma verbal). O ponto mais importante da canção está no segundo verso de cada estrofe. Ele tem sua carga significativa centrada no verbo, sempre em terceira pessoa do plural, tendo como SN ELAS, as mulheres de Atenas. Evidentemente, no coletivo, porém, representadas pelas figuras de Penélope e Helena. Há, também, outro SN que é introduzido no enredo e faz parte do contexto, sem importância central: ELES (soldados, seus maridos, bravos guerreiros, etc). A menção de Helena, uma figura de conduta antagônica à de Penélope, é feita no poema para expressar sua rara beleza. Assim seus maridos buscam os carinhos de outras “falenas” (outro SN), mas mantém em suas residências uma mulher de beleza maior para quem sempre voltam para os braços, sem reminiscência de seus atos extraconjugais. Mas o eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a presença dos verbos conjugados em 3ª pessoa do plural, como uma ação que ainda ocorre no presente do indicativo. Eles se fazem presentes no segundo verso de cada estrofe, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas. Assim, vivem, sofrem, despem-se, geram, temem, secam, são verbos se são colocados numa forma cíclica das funções e das vidas daquelas mulheres. Temos, assim, um ciclo que se inicia com o verbo viver e se fecha com o verbo secar, isto é, morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com a finalidade única de gerarem os filhos, pois o amor deles é desfrutado pelas famosas heteras (falenas) ou amantes; afora isso, só fazem sofrer e temer. Esses verbos resumem uma existência quase sem muito propósito e sem autonomia, como escravas de seus próprios maridos. Marcadores da narrativa e da oralidade. Há muito, muito pouca característica de oralidade no poema, podendo somente ser percebida no refrão, mais notadamente no segundo verso de cada estrofe com a conjunção (em contração) “pros”. Na instância da narrativa não observamos fortes demarcações de tempo (não se define época ou momento histórico; considera-se um tempo genérico, falando no presente, mas se referindo a um passado indeterminado). Quanto ao espaço, este é demarcado como a cidade de Atenas, havendo menções de mares e de guerras (supostamente em terras distantes, fato denunciado pelas ausências e naufrágios de seus maridos). Quanto aos verbos, podemos afirmar que eles fazem a função da narrativa, exibindo a condição dos sujeitos atenienses. Entretanto, do ponto de vista gramatical destacamos que o autor dirige a narrativa ao conjunto de mulheres que se submetem aos valores da sociedade patriarcal no instante presente. Esse conjunto está representado gramaticalmente pelo sujeito da forma verbal de terceira pessoa do plural do imperativo afirmativo mirem-se (vocês). Observe que o verbo no imperativo não admite a classificação de sujeito indeterminado (a norma culta diz que só se emprega o imperativo quando se tem certeza do enunciatário da mensagem, daí não ser possível classificar o SN de um imperativo como indeterminado). Da instância lexical. Podemos destacar, para elucidar um pouco mais o poema, duas palavras estrategicamente citadas pelo autor: Cadena e Falena. Cadena é um espanholismo que significa “cadeia, corrente”. Se consultarmos o Aurélio, teremo s a seguinte definição: “Meio empregado para tirar dos chifres do touro, sem perigo, o laço que o prende”. Os dois sentidos significam um aprisionamento ou acorrentamento. Assim, cadenas nos remete à cadeia em que as mulheres de Atenas vivem, aprisionadas pelos desejos e caprichos de seus maridos. Falena no mesmo dicionário é explicada da seguinte forma: “Gênero de insetos lepidópteros, noctuídeos, que reúne mariposas noturnas cujas larvas, fitófagas, são nocivas a culturas vegetais”. Todavia o sentido emp regado aqui é metafórico, referindo-se a uma prostituta. Ao usar o verbete falena, o autor estabelece uma das metáforas mais significativas do poema. No sentido denotativo, falena significa mariposa de ação noturna, ou seja, que brilha a noite. No sentido conotativo, o termo falena é empregado no poema, fazendo uma alusão às prostitutas que brilham a noite, ou seja, que têm vidas noturnas, que são procuradas à noite pelos maridos. Assim, falena representa uma grande e importante metáfora que denuncia o comportamento narrado pelo historiador Edward MacNall Burns quando diz: “O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras”, conforme já o dissemos anteriormente. Do ponto de vista semântico, há um grande emprego de palavras com muita aproximação para corroborar a idéia condicional das mulheres atenienses. Podemos destacar algumas palavras mais próximas semanticamente: amadas... carinhos; pedem... imploram; fustigadas... penas; carícias... carinhos; gosto... vontade; sonhos... presságios; Por outro lado, há outras mais distantes semanticamente: amadas... fustigadas; violentos... amantes; violentos... carinho; defeito... qualidade; amadas... abandonadas; encolhem... confortam. Mas o grande sentido de distanciamento se encerra na grande antítese do poema: vivem... secam (no sentido de morrem). O diálogo entre os textos (intertextualidade) O diálogo que “Mulheres de Atenas” estabelece com o poema Odisséia, com a história e a mitologia da Grécia Clássica é o que podemos chamar de intertextualidade. O poema faz referências camufladas à obra mitológica grega de Homero, mais notadamente à história de Penélope, à despersonalização das mulheres de Atenas e à passagem pela ilha das sereias, vivida por Ulisses. É importante notar a forma subentendida que o autor se refere à Penélope no poema. Segundo a história de Penélope, em Odisséia, a virtuosa esposa de Ulisses convence seus pretendentes de que deveria fazer uma túnica, que serviria de mortalha para cobrir o corpo de Laertes, o venerável pai de Ulisses, que com a notícia do casamento de sua nora, morreria de depressão, dado ao avançado da idade. E como era costume das mulheres tecerem uma mortalha para os entes queridos que se encontravam prestas a deixar esse mundo, Penélope usa desse artifício para ganhar tempo com seus pretendentes, que aquiesceram de pronto, por ser uma proposta justa. Entretanto, ela nunca a terminaria, pois na tentativa de fazer com que seus pretendentes desistissem da idéia de disputar o lugar de Ulisses, ela desmanchava a noite o que fazia durante o dia. Então a esposa do aventureiro Ulisses é conhecida na mitologia grega como o símbolo da mulher que tece longos bordados, enquanto seus maridos se ausentam por períodos delongados. No poema de Chico Buarque essa referência à Penélope é feita na segunda estrofe: “Quando eles embarcam, soldados / Elas tecem longos bordados / Mil quarentenas”. Ao se referir às mulheres atenienses, o autor expõe a vida de completa subserviência a que elas se submetiam para seus maridos. Em Ilíada, Helena é usada pela deusa Vênus para servir como prêmio para o príncipe Páris. Ao apaixonar-se por ele, ela é tida como vulgar, por haver deixado de amar seu verdadeiro marido. Essa situação foi abordada e defendida por Górgias, um sofista e mestre da retórica clássica grega, que escreveu um discurso intitulado Elogio a Helena, em 414 a.C. A questão colocada por Górgias era que Helena, apesar de casada com Menelau e, do ponto de vista moral ligada a ele, tinha tamb ém o direito de apaixonar-se por Páris, dando vazão aos seus sentimentos. Na verdade, Vênus prometera a Paris não apenas Helena, mas o amor de Helena, dizendo: “... Se o amor é um deus, como poderia ter resistido e vencer o divino poder dos deuses quem é mais fraco do que eles? Se se trata de uma enfermidade humana e de um erro da mente, não há que se censurar como se fosse uma culpa, mas considerá-la apenas uma má sorte2”. Os versos que salientam uma absoluta despersonalização das mulheres de Atenas estão na quarta estrofe: “Elas não têm gosto ou vontade / Nem defeitos nem qualidade / Têm medo apenas”. Outra referência à epopéia de Homero é o momento da passagem de Ulisses, em sua longa viagem, pela ilha das Sereias, próximo ao golfo de Nápoles. Segundo o épico, Ulisses tapou com cera os ouvidos de seus companheiros e pediu que o amarrassem ao mastro do navio, para que nem ele nem a tripulação se deixassem seduzir pelo canto de morte das sereias, todavia, ele queria saber como era esse canto. Essa passagem não passa desapercebida pelo autor da música e é lembrada nos versos: “O seu homem, mares, naufrágios / Lindas sirenas / Morenas”. Sirenas, segundo o Aurélio, é o mesmo que sirene (objeto emissor de som, muito usado em navios) ou sereia. O aparelho que produz som tem esse nome por lembrar o hipnotizante canto das sereias da mitologia. 2 GÓRGIAS, Fragmentos y Testimonios, pp. 90-91. Tradução de Antônio Suáres Abreu, professor livre docente pela Universidade de São Paulo, in: A Arte de Argumentar – Gerenciando Razão e Emoção. Os recursos expressivos do texto É inegável que o texto de “Mulheres de Atenas” é bastante requintado e muito bem elaborado, tanto na sua estrutura quanto nas referências à cultura grega do período clássico. Numa primeira leitura ou acompanhamento da música somos fisgados pela emoção estética da música, podendo até nos determos em algumas passagens específicas. Mas só com sucessivas leituras, realizando um trabalho mais racional (sem perder a emoção) é que chagamos à uma interpretação mais rica do texto. A canção é inteiramente metaforizada. Isso faz dela um poema, embora haja um indício de narrativa ao passar uma idéia do que acontece com as mulheres em Atenas. Algumas metáforas mais expressivas podem ser destacadas facilmente na canção e sua significação é, quase sempre, muito sutil. Metáfora Sentido semântico Se banham com leite Não vêem o sol nem a cara da rua. Tecem longos bordados Preservam-se. Mil quarentenas Anos a fio à espera de seus maridos Aos pedaços Cansados, fatigados. Carícias Plenas Fazer sexo Falenas Prostitutas. Voltam pros braços Procuram Helena Beleza de mulher / mulher bela. Não têm sonhos Vida vazia Não têm vontade Não amam Jovens viúvas marcadas Aprisionadas Não fazem cenas Subserviência, sem murmurar. Vestem-se de negro Viúvas Secam Morrem Despem-se pros maridos Fazem sexo Temem por seus maridos Inseguras Outro recurso muito presente é a antítese. Ao expressar a condição feminina da mulher ateniense, o autor valoriza suas palavras com idéias contrárias. Assim, podemos destacar: defeito... qualidade; vivem... secam (morrem); despem-se... vestem-se; gosto... vontade; amadas... abandonadas; embarcam (partem)... voltam; etc. Outro, menos abundantes, o anacoluto, é usado apenas para manter a construção idêntica das estrofes: “Lindas sirenas (sereias) / Morenas”; “Se confortam e se recolhem / às suas novenas / Serenas”; “Querem arrancar violentos / Carícias plenas”; etc. Alguns eufemismos são empregados no texto para atenuar a condição de dramaticidade exposta pelo autor. Destacamos alguns: Eufemismo Sentido semântico Se banham com leite Aprisionam-se em casa. Despem-se pros maridos São usadas pelos maridos Costumam buscar os carinhos Traem suas mulheres Se entopem de vinhos Embriagam-se Aos pedaços Imundos Falenas (mariposas) Prostitutas (Violentos), Carícias plenas Estupro, fazer sexo violentamente Não têm gosto ou vontades Mal amadas Nem defeito nem qualidade Abjeto (desprezível) Lindas sirenas Morenas Prostitutas Se confortam e se recolhem Se aprisionam Há outro recurso expressivo que aparece logo no início do texto, na primeira estrofe, que denuncia a degradante condição das mulheres de Atenas em total subserviência. É o emprego da Gradação. Nesse caso, o autor estabelece uma gradação com clímax ao empregar uma seqüência encadeada em ordem crescente: “Se ajoelham, pedem, imploram / Mais duras penas / Cadenas” (cadeias). O zeugma é outro recurso presente nessa canção. O autor se vale desse recurso para imprimir um ritmo de reflexão maior ao comparar a condição (ou estilo de viver) da mulher com a do homem; exemplo: “Elas não têm gosto ou vontade / Nem defeito nem qualidade / (elas) têm medo apenas” / (elas) Não têm sonhos, só têm presságios / O seu homem (tem) mares, naufrágios / Lindas sirenas / Morenas”. O zeugma é marcado pela elipse de um termo integrante da oração que foi mencionado anteriormente. Quando se refere à mulher, o autor usa o verbo “têm”, considerando que elas não têm sonhos, mas apenas prenúncios e agouro a respeito do futuro, portanto, têm medo apenas; já seu homem, esse tem o mar, o naufrágio (aventura) e lindas sereias morenas, ou mulheres para seus deleites, enquanto as esposas ficam encarceradas em casa, “banhando-se com leite”, pela ausência do ar da rua. Mas o recurso estilístico mais importante dessa música fica reservado para a ironia. Esse recurso permeia toda a canção e consiste em dizer o contrário do que se está pensando ou questionar certo tipo de comportamento com a intenção de ridicularizar, de ressaltar algum aspecto passível de crítica. È nesse sentido que o autor usa o verbo “mirem-se” para dizer não faça isso jamais, ou seja, tome cuidado com isso; evite isso. Não é a primeira vez que Chico usa de ironia em suas canções. Na música “Bom Conselho”, Chico trabalha ironicamente os provérbios tradicionais. Veja sua forma irônica de se referir a eles: Bom Conselho Ouça um bom conselho Eu lhe dou de graça Inútil mentir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança Venha meu amigo Deixe esse regaço Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu digo Faça como eu faço Aja duas vezes antes de pensar Corra atrás do tempo Vim de não sei onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio vento na minha cidade Vou para rua e bebo a tempestade... Conclusão do ponto de vista estilístico. “Mulheres de Atenas” é uma canção que pode ser considerada uma advertência para as mulheres contemporâneas que ainda vivem sob um modelo de uma sociedade patriarcal, com costumes praticados há quase 400 anos antes de Cristo, em Atenas, na Grécia antiga. Para expressar a idéia irônica que sugere uma mudança de vida, o autor provoca intertextualidade com as maiores obras sobre a mitologia grega: Ilíada e Odisséia, ambas atribuídas a Homero. Ao se referir àquelas obras, o poema traz como referência a história de duas mulheres que representam as mulheres atenienses: Penélope e Helena. A primeira, mulher de Ulisses, herói do poema Odisséia, viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, período em que ela se porta com dignidade e absoluta fidelidade. A segunda, motivo da guerra de Tróia, representa um símbolo da beleza para quem seus maridos voltam sempre correndo para seus braços, após deitarem-se e fartarem-se com suas famosas falenas (mulheres dissolutas, cortesãs, prostitutas elegantes e distintas). Composto de 5 estrofes de nove versos cada uma, o poema apresenta um esquema fixo de rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o sétimo. Os dois primeiros versos funcionam como refrão. As idéias básicas do poema são reafirmadas pelo fim do poema que traz o refrão como se quisesse inicial uma sexta estrofe, entretanto, sugere uma continuidade às advertências proferidas. Os sujeitos da história são as mulheres de Atenas, no sentido coletivo. Por isso, o eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a presença dos verbos conjugados em 3ª pessoa do plural, como uma ação que ocorre no momento presente. É por isso que a advertência é dirigida para as mulheres que ainda se submetem ao sistema patriarcal, em completa subserviência aos seus desditosos maridos, até morrerem. Tais verbos marcam uma situação cíclica, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas que vivem, sofrem, despem-se, geram, temem, secam, em que o verbo viver se une com o verbo secar, isto é, morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com a finalidade única de gerarem os filhos, pois o amor deles é desfrutado pelas famosas heteras (falenas), ou amantes; afora isso, só fazem sofrer e temer. Não é só do ponto de vista estrutural que “Mulheres de Atenas” é surpreendente. Semanticamente, ela se pauta sobre uma grande ironia. Assim, a grande surpresa da canção fica por conta do sentido irônico que o autor estabelece na mensagem que procura passar para as mulheres que não perceberam que ainda vivem centenas de séculos atrás, secando-se por seus maridos, sem serem amadas ou tratadas com dignidade. O movimento feminista trouxe várias conquistas nas últimas décadas e a evolução da condição feminina tem alterado o comportamento geral, de homens e mulheres, no sentido de um equilíbrio maior na distribuição de funções, no trabalho e na vida em família. Entretanto, há mulheres que ainda não perceberam essa mudança nem a importância de seu papel na sociedade contemporânea. Por isso, Chico faz a advertência, sugerindo que elas mudem de conduta e tomem outros rumos. Assim, o autor exprime-se do contrário daquilo que se está pensando, ou seja, NÃO é para seguir o exemplo daquelas mulheres de Atenas. Mirem-se no exemplo delas e façam o contrário! A ironia não se prende somente à falta de clareza da própria condição da mulher. O autor estende sua ironia também aos homens que se consideram superiores e elevados, em relação ao sexo feminino. Tomando como base o segundo verso de cada estrofe veremos que sempre quando se refere aos homens atenienses, Chico faz complementos enaltecendo suas características. O exagero e a insistência da exposição das qualificações superiores masculinas tornam-se cansativos e chamam bastante a atenção daqueles homens que, na visão das mulheres de Atenas, são heróis, mas, por outro lado, são cativos de suas falenas, de sereias, aventuras, naufrágios e morte prematura, por inconseqüências de seus atos vulgares. Assim, o que parece querer enaltecer as habilidades e as características dos maridos atenienses torna-se outra ironia de grande dimensão. Os seus maridos, orgulho e raça, poder e força, bravos guerreiros, procriadores, heróis e amantes, na verdade são ausentes, agressivos, mal amantes, violentos, irresponsáveis e infiéis. É nesse sentido que ironicamente o autor se refere à supremacia masculina dos maridos das “Mulheres de Atenas”. Esse é, sem dúvida, um majestoso texto, como muitos outros desse poeta ainda pouco conhecido e não tão bem avaliado: o nosso grande Chico Buarque de Holanda.
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*** TRADUÇÕES Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 249-254 • ISSN 1518-4196 MODELOS E PARADIGMAS EM HISTÓRIA ANTIGA Josiah Ober1 Tradução: Moisés Antiqueira2 1 Professor do departamento de Ciências Políticas e de Estudos Clássicos da Universidade de Stanford. Email: jober@stanford.edu 2 Professor vinculado ao curso de História da UNIOESTE – campus de Marechal Cândido Rondon. Email: mantiqpira@yahoo.com.br Assim como não se pode criar uma figura geométrica sem postulados preliminares, é impossível escrever história sem empregar, a priori, suposições e analogias. Refletir sobre a história, bem como em relação a outros processos cognitivos, requer que se mova do mais simples para o mais complexo, daquilo que é mais bem conhecido para aquilo que é menos. Consequentemente, todos os historiadores utilizam modelos, estejam ou não conscientes desse processo. Aqueles historiadores, que desejam assinalar as premissas dos modelos que empregam, expõem à avaliação dos críticos as bases teóricas de seus estudos. Isto, a meu ver, configura um ponto positivo. Os modelos históricos são derivados da experiência e da razão de um indivíduo, ou de um grupo, e não há modelo isento de valores. O uso de modelos compreende a transposição, para o passado, de aspectos da ideologia que não são próprios daquele passado. Ideologia, de acordo com a minha definição, incluí suposições a respeito da natureza e do comportamento humano, opiniões acerca da moralidade e da ética, _________________________ 1 Professor do departamento de Ciências Políticas e de Estudos Clássicos da Universidade de Stanford. Email: jober@stanford.edu 2 Professor vinculado ao curso de História da UNIOESTE – campus de Marechal Cândido Rondon. Email: mantiqpira@yahoo.com.br **** princípios políticos gerais e atitudes diante das relações sociais.3 Logo, no que concerne à minha proposta, a utilização de modelos configura uma parte inevitável do processo historiográfico e, invariavelmente, os modelos envolvem a importação de ideologia. Ademais, a escolha do modelo e da estrutura é influenciada pela ideologia. Na medida em que é impossível, para aquele que emprega um determinado conjunto de modelos, entender todos os aspectos ideológicos dos modelos que ele utiliza, a objetividade perfeita resulta impossível. Mas esta conclusão não deve ser motivo de desespero. A tomada de consciência em relação à influência da ideologia auxiliará os historiadores a compreender as principais restrições inerentes a qualquer modelo. E, tal como Chester Starr o apontou, faz parte do trabalho dos críticos o apontamento de fatores ideológicos para os quais o próprio autor não se mostrou atento. 4 Há, é claro, uma grande diversidade de modelos para a escolha do historiador, variando em suas origens e nos clamores por veracidade que estabelecem em benefício próprio. Alguns modelos proclamam uma exclusiva e universal validade: o materialismo marxista tradicional, por exemplo, declara ter descoberto a chave universal para a mudança social a partir da evolução da relação entre as classes no interior do modo de produção; todos os fenômenos que não se enquadram neste modelo são vistos pelos marxistas tradicionais como 3 Para uma definição mais aprofundada, cf. OBER, Josiah. Mass and elite in democratic Athens: rhetoric, ideology and the power of the people. Princeton: Princeton University Press, 1989. p. 38- 40. Este livro se pretende enquanto um exemplo de abordagem dos modelos e paradigmas que advogo no presente artigo. 4 STARR, Chester G. The flowed mirror. Lawrence: Kansas City, 1983. p. 32. “epifenômenos” ou parte da “superestrutura” e, assim sendo, indignos de um estudo mais sério. Outros modelos são derivados da análise de circunstâncias históricas específicas e aplicados para circunstâncias históricas menos conhecidas. Estes “modelos circunstanciais” não se baseiam, tipicamente, em alegações universalistas acerca da verdade e tampouco assumem uma exclusividade em termos explanatórios. Ao contrário, são defendidos tendo por base a sua adequabilidade. A questão que se faz a partir de tal modelo não é “este modelo explicará toda a história?”, mas antes “ele ajudará a esclarecer aspectos específicos de uma sociedade sobre a qual estou interessado?”. Tendo em vista a incapacidade do historiador no sentido de alcançar uma posição “externa”, objetiva, livre de ideologias, não deveriam todos os modelos ou produtos historiográficos derivados daqueles necessariamente serem considerados como possuidores de um valor analítico/explanatório equivalente entre si? A resposta intuitiva é, certamente, “não”. E penso que esta conclusão intuitiva pode ser defendida, se nós substituirmos o propósito inatingível da “verdade objetiva” pela busca por “significado e utilidade”. A realidade do passado histórico nunca pode ser reproduzida – e, portanto, nunca pode ser completamente compreendida. Mas o passado pode ser representado de maneira significativa e útil. Com isto, quero dizer que nenhum produto historiográfico pode recriar o passado em toda a sua riqueza e complexidade, mas o historiador pode almejar modelar o passado sob formas que sejam tanto aceitáveis quanto passíveis de comprovação. Considere a analogia oferecida pela cartografia. Nenhum mapa consegue reproduzir a realidade, mesmo a de uma pequena região geográfica, em qualquer momento dado. Nenhum modelo de escala pode fazer justiça a toda complexidade da topografia, geologia, biologia, distribuição demográfica e assim por diante, no que tange, digamos, à moderna Ática.5 E, em que pese isto, é possível produzir mapas da Ática que são tanto significativos quanto úteis. Por exemplo, um mapa rodoviário da Ática que possibilitasse a uma motorista dirigir do promontório de Súnion para Maratona, sem que ela se perdesse, representa aspectos significativos da Ática de um modo útil. Por sua vez, nossa hipotética motorista pode testar o mapa contra suas próprias percepções. Se, à medida que ela dirige, ela percebe muitas encruzilhadas ou trevos que não constam do mapa rodoviário, ela julgará o mapa inadequado e, pois, inútil. Por outro lado, talvez ela perceba também a existência de edificações, árvores e formações geológicas que não foram detalhadas no mapa rodoviário. Mas isto não a levaria a afirmar que o mapa seria inútil, visto que o interesse principal da motorista é se deslocar de Súnion para Maratona e o mapa se arroga ser apenas um mapa rodoviário, não um mapa universal que contém todas as características perceptíveis. Se a motorista está interessada nesses outros aspectos da Ática, ela pode se voltar para outros mapas que não exibem estradas, mas que antes representam, de uma maneira significativa, características geológicas, topográficas e etc.. Cada mapa será julgado pelos seus usuários de acordo com a sua clareza e a sua precisão ao representar aquilo que alega representar. 5 NT: a Península da Ática corresponde à área geográfica em que se localiza a cidade grega de Atenas. Um modelo histórico ou produto historiográfico deve representar algum aspecto do passado de uma forma que seja significativa e útil. Por “útil”, quero dizer que o modelo – tal como um mapa – devesse auxiliar o leitor/usuário a ir de um ponto para outro: diacronicamente de um ponto do passado para outro ou sincronicamente de um conjunto de fenômenos para um conjunto coetâneo de fenômenos. O leitor/usuário de um modelo (e aqui eu incluo produtos historiográficos os quais, por si mesmos, “modelam” ou representam aspectos do passado) julgará o modelo a partir de critérios similares àqueles empregados por nossa hipotética motorista. O leitor questionará se o modelo dá conta de todos os fenômenos perceptíveis – isto é, a evidência apresentada ao leitor – que ele deveria englobar, considerado o escopo que o modelo proclama abranger. Se o leitor tem ciência de um significativo corpo de evidências relevantes, as quais o modelo não contempla, ele provavelmente julgará o modelo como inútil. Este é, penso, o processo que tem conduzido muitos historiadores a rejeitar os clamores por modelos universalistas/exclusivistas. Por outro lado, o leitor pode considerar que o modelo introduziu características que comprovadamente não existiam no passado. Um exemplo seria demonstrado por A. W. Gomme, quanto à falta de validade da aplicação dos modernos modelos de operações navais no que diz respeito à navegação militar entre os antigos, uma vez que as antigas naves de guerra não poderiam permanecer nos mares por mais do que dois ou três dias.6 O critério da “utilidade”, portanto, permite testar os modelos e consequentemente 6 GOMME, Arnold Wycombe. A forgotten factor of Greek naval strategy. Journal of Hellenic Studies, Londres, vol. 53, p. 16-24, 1983. ***** MODELOS E PARADIGMAS EM HISTÓRIA ANTIGA Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 249-254 • ISSN 1518-4196 decidir que o “modelo A” é melhor que o “modelo B”. Um modelo ou produto historiográfico é (de acordo com minha proposta) “significativo” na medida em que faça sentido para os leitores e possua valor heurístico para eles: ou seja, na medida em que auxilie as pessoas a agir no “mundo real” e a avaliar, por si mesmas, o significado e as implicações de suas ações e das ações dos outros, ao analisar tais ações em um contexto mais amplo. O estudo da Antiguidade não corresponde a um sistema fechado, autorreferente. As interpretações a respeito do passado inevitavelmente se encaixam em contextos extradisciplinares, e podem afetar, de maneira significativa, a tomada de decisões e as ações por parte de “não historiadores” – como deixa claro, por exemplo, o corrente “debate entre os historiadores” na Alemanha. 7 A maior parte dos historiadores, creio, intuitivamente compreende a função heurística de se interpretar o passado e reconhece que as ações humanas dispõe de validade moral; e esta compreensão intuitiva torna improvável que os historiadores tratarão todos os modelos como se possuíssem valor equivalente. Para que o passado seja acessível enquanto ferramenta heurística, é preciso que seja ordenado: todo indivíduo deve, em um determinado momento, “ajeitar” certos modelos ao conceder a eles uma primazia explanatória. Os historiadores profissionais normalmente assumem (ou, ao menos, procuram assumir) o controle do 7 NT: O “debate entre os historiadores” (Historikerstreit, em alemão), se refere à controvérsia política e intelectual que eclodiu na então Alemanha Ocidental na segunda metade da década de 1980, no que respeitava às atrocidades cometidas pelo regime nazista e os possíveis paralelos que poderiam, ou não, ser estabelecidos com crimes engendrados no interior da União Soviética. processo de ordenamento/preparação porque, entre outros: a) eles próprios são chamados para esclarecer o passado de uma maneira que seja significativa para os não profissionais (por exemplo, em palestras para graduandos) e eles mesmos reconhecem sua obrigação social de fornecer uma avaliação plausível; b) eles sentem que possuem um interesse “corporativo” em controlar as interpretações a respeito do passado; e c) eles têm um desejo racional de, baseado em parte em um interesse próprio, constatar que as interpretações do passado utilizadas por políticos, por exemplo, estejam alicerçadas nos mais altos padrões possíveis de honestidade e rigor. Um conjunto integrado de modelos explanatórios pode ser descrito como um paradigma; um conjunto de modelos consagrados que permaneça, em geral, utilizado por um longo período de tempo, é chamado de paradigma dominante. O conceito de paradigma foi desenvolvido por Thomas Kuhn em sua análise da sociologia do conhecimento científico.8 Kuhn argumentou que a história da ciência moderna poderia ser explicada pelo consequente estabelecimento, questionamento e superação de uma sequência de paradigmas. Conforme Kuhn, os cientistas de qualquer área tendem a aderir a um único paradigma até o momento em que se amealhe uma massa 8 KUHN, Thomas S. The structure of scientific revolutions. 2nd. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1970. (NT: No Brasil, a edição mais recente da obra corresponde à: KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011). Este artigo é uma versão revisada da introdução à comunicação que apresentei como parte de um simpósio temático sobre “A Reconstrução da História Política Ateniense”, durante reunião da Associação Filológica Americana, realizada em janeiro de 1989. Gostaria de agradecer aos colegas que participaram do simpósio e aos membros da plateia por seus esclarecedores comentários e críticas. *** TRADUÇÕES Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 249-254 • ISSN 1518-4196 crítica de dados não explicados por aquele paradigma. O antigo paradigma é então descartado e se adota um novo, capaz de dar conta dos dados conhecidos. Um paradigma histórico dominante, pois, consistirá na principal ferramenta explanatória que a maioria dos historiadores de uma dada época provavelmente utilizará para analisar “x” aspectos de uma determinada sociedade do passado. A formulação de um paradigma histórico, por sua natureza, inevitavelmente acaba por enfatizar a importância de certas categorias da atividade social e certos produtos culturais do passado, ao passo que obscurece outras. O processo de ordenamento supõe que as atividades e os produtos salientados pelo paradigma sejam “fundamentais” para uma compreensão heuristicamente significativa da sociedade em questão. As categorias da atividade e os produtos culturais relegados a um segundo plano, de acordo com o paradigma dominante, podem não desaparecer de vista, mas são necessariamente apresentadas de forma a parecerem relativamente insignificantes. Isto pode, obviamente, ser problemático como, por exemplo, no caso de longevos paradigmas dominantes que obscurecem a contribuição das mulheres e a opressão que sofreram nas sociedades grega e romana. Porém, a inevitável tendência dos paradigmas, no sentido de enfatizar ou obscurecer, não é um argumento contra os paradigmas, mas antes um argumento em favor de um processo contínuo de reformulação dos mesmos. O desenvolvimento e a aplicação de paradigmas históricos são, acredito, necessários e inevitáveis, dada a sociologia do conhecimento histórico. Mas, ao contrário dos cientistas, os historiadores da Antiguidade não dispõem do benefício de um constante acúmulo de novos dados significativos, a partir dos quais nossos paradigmas poderiam ser averiguados e questionados. O perigo, portanto, reside no fato de nossos paradigmas se tornarem ossificados e seus pressupostos ideológicos ocultados, graças ao emprego constante dos mesmos. Talvez nos inclinemos a esquecer de que os paradigmas que usamos repousam sobre modelos baseados em ideologias, a ponto de começarmos a conceber nossos produtos paradigmáticos como a “verdade objetiva”. Enquanto isto, tendo em mente os avanços em outras disciplinas acadêmicas e as alterações no sistema de valores da sociedade como um todo, a ideologia que subsiste em nossos paradigmas pode se tornar exponencialmente alheia aos interesses daqueles que se situam fora de nosso campo do conhecimento. O resultado deste processo é que o valor heurístico das leituras “profissionais” acerca da Antiguidade, enquanto meio para a explicação do presente, é diminuído, e nosso trabalho perde sentido (contemporâneo). Ao final, a historiografia sobre a Antiguidade pode acabar reduzida a debates intradisciplinares a respeito de questões que são de primordial significância dentro de nosso paradigma, mas desprovidas de sentido para qualquer um fora de nosso campo. Entrementes, dado o valor heurístico intrínseco à ideia de Antiguidade, a função de interpretá-la para um público mais vasto será assumida por pessoas que talvez não tenham o conhecimento adequado ou o respeito pelas evidências. Portanto, eu sugeriria que os historiadores dedicados à Antiguidade devessem não apenas estar dispostos a verificar os seus próprios modelos, e os modelos de seus pares, à luz das evidências disponíveis, mas devessem refletir longa e arduamente sobre os pressupostos ************************************** MODELOS E PARADIGMAS EM HISTÓRIA ANTIGA Espaço Plural • Ano XIII • Nº 27 • 2º Semestre 2012 • p. 249-254 • ISSN 1518-4196 ideológicos vinculados aos seus paradigmas dominantes. Se não questionarmos a nós mesmos, nos tornaremos simplesmente irrelevantes. E isto, a meu ver, é algo prejudicial. ********************************************* *** Pra Você Guardei o Amor (part. Ana Cañas) Nando Reis Ouça Pra Você Guardei o … Pra você guardei o amor Que nunca soube dar O amor que tive e vi sem me deixar Sentir sem conseguir provar Sem entregar e repartir Pra você guardei o amor Que sempre quis mostrar O amor que vive em mim vem visitar Sorrir, vem colorir solar Vem esquentar e permitir Quem acolher o que ele tem e traz Quem entender o que ele diz No giz do gesto, o jeito pronto Do piscar dos cílios Que o convite do silêncio Exibe em cada olhar Guardei sem ter porquê Nem por razão Ou coisa outra qualquer Além de não saber como fazer Pra ter um jeito meu de me mostrar Achei, vendo em você E explicação nenhuma isso requer Se o coração bater forte e arder No fogo o gelo vai queimar Pra você guardei o amor Que aprendi vendo os meus pais O amor que tive e recebi E hoje posso dar livre e feliz Céu cheiro e ar na cor que o arco-íris Risca ao levitar Vou nascer de novo Lápis, edifício, tevere, ponte Desenhar no seu quadril Meus lábios beijam signos feito sinos Trilho a infância, terço o berço Do seu lar Guardei sem ter porquê Nem por razão Ou coisa outra qualquer Além de não saber como fazer Pra ter um jeito meu de me mostrar Achei, vendo em você Explicação nenhuma isso requer Se o coração bater forte e arder No fogo o gelo vai queimar Pra você guardei o amor Que nunca soube dar O amor que tive e vi sem me deixar Sentir sem conseguir provar Sem entregar e repartir Quem acolher o que ele tem e traz Quem entender o que ele diz No giz do gesto, o jeito pronto Do piscar dos cílios Que o convite do silêncio Exibe em cada olhar Guardei sem ter porquê Nem por razão Ou coisa outra qualquer Além de não saber como fazer Pra ter um jeito meu de me mostrar Achei, vendo em você Explicação nenhuma isso requer Se o coração bater forte e arder No fogo o gelo vai queimar Ouça Pra Você Guardei o … Composição: Nando Reis. https://www.letras.mus.br/nando-reis/1491960/#radio:pato-fu ******************************************************************

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