Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022
CENTENÁRIO DE 22
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Roda Viva | Ruy Castro | 07/02/2022
26.604 visualizaçõesTransmitido ao vivo em 7 de fev. de 2022
Roda Viva
1,45 mi de inscritos
No Roda Viva, a jornalista Vera Magalhães recebe o escritor e jornalista Ruy Castro
Polêmico e provocador, ele vai discutir, entre outros temas, a Semana de Arte Moderna, que está completando 100 anos e que, segundo o jornalista, não foi tão revolucionária como se acredita e só aconteceu graças à ideia de um carioca, o pintor Di Cavalcanti.
Em entrevistas e em suas colunas na Folha de S.Paulo, Ruy Castro tem defendido a opinião de que os integrantes do movimento não apenas se esqueceram rapidamente das críticas que faziam à Academia Brasileira de Letras, como buscaram um lugar entre os acadêmicos. Entre eles, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchina e Manuel Bandeira. Por sua vez, Oswald de Andrade, o crítico mais feroz da Academia, não demorou muito para inscrever seu livro A Estrela do Absinto, no prêmio da entidade.
https://www.youtube.com/watch?v=P0DRCzgoccQ
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Nas entrelinhas: Arrocho na Lei Rouanet é um duro golpe contra a cultura
Publicado em 09/02/2022 - 06:39 Luiz Carlos AzedoCinema, Comunicação, Cultura, Economia, Governo, Literatura, Memória, Música, Política, Política, São Paulo, Teatro, Tecnologia
Desde a campanha, Bolsonaro defende mudanças na lei, pois crê que a política cultural é uma forma de dominação da esquerda
No mês do centenário da Semana de Arte Moderna, a cultura nacional sofreu um duro golpe do governo federal, que mudou as regras da Lei Rouanet e reduziu a capacidade de financiamento da nossa indústria cultural. É mais um elemento do ambiente político e ideológico tóxico que estamos vivendo, pautado pelo obscurantismo da política oficial. Não à toa, ocorre num momento tão simbólico como essa efeméride.
Marco da história de São Paulo, que emergia como centro dinâmico da economia brasileira e polo hegemônico da Primeira República, a Semana de Arte Moderna de 1922 foi uma ruptura com o parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica, que iria se somar e influenciar outras manifestações modernistas, que ocorriam no Rio de janeiro e outras capitais do país. Agora, parece que o governo quer fazer a roda da história voltar para trás e inviabilizar teatros, cinemas, a música, o audiovisual e, principalmente, a vida profissional de artistas, diretores e produtores culturais.
Há 110 anos, motivados pelo Centenário da Independência, artistas e intelectuais anunciaram o rompimento com as correntes literárias e artísticas anteriores, defendendo um novo ponto de vista estético e o compromisso com a independência cultural do país. Entre os dias 13 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, houve a exposição, no saguão, aberta ao público de 100 obras de arte que rompiam aqueles padrões, algumas das quais estão em grandes museus, e três sessões literárias e musicais noturnas. Inspirados nas vanguardas europeias e dispostos a promover a renovação da cultura brasileira, a força literária e artes plásticas conferiram à Semana de Arte de 1922 o caráter icônico que tem hoje, que se somou à mudança política que estava em curso, que iria desaguar na Revolução de 1930.
O modernismo no Brasil teve múltiplas manifestações, notadamente no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em Pernambuco, mas nenhuma delas com a mesma capacidade de traduzir, naquele momento, o fenômeno da industrialização, da urbanização e da imigração de estrangeiros, como ocorria em São Paulo. Por ironia, neste ano do Bicentenário da Independência, estamos assistindo a uma grande onda regressista no plano cultural, patrocinada pelo governo Bolsonaro, cujo objetivo é desarticular a nossa cultura e levar ao ostracismo seus mais importantes representantes.
Desfinanciamento
A maneira de fazer isso é levar ao colapso o financiamento da cultura e seus protagonistas. Ontem, o Diário Oficial da União publicou mudanças nas regras da Lei de Incentivo à Cultura, de 1991, conhecida como Lei Rouanet, a mola mestra da indústria cultural brasileira. Assinada pelo secretário especial de Cultura do governo federal, Mario Frias, a instrução normativa define valores que podem ser captados por projeto e por empresas, bem como cachês pagos aos artistas.
Como se sabe, a Lei Rouanet autoriza produtores a buscarem investimento privado para financiar iniciativas culturais. Em troca, as empresas podem abater parcela do valor investido no Imposto de Renda.
O valor máximo a ser captado caiu para R$ 6 milhões, para concertos sinfônicos, museus e memória, óperas, bienais, teatro musical, datas comemorativas (carnaval, Páscoa, festas juninas, Natal e ano-novo), inclusão de pessoa com deficiência, projetos educativos e de internacionalização da cultura brasileira. O prazo de captação foi reduzido para dois anos.
No caso de artista ou modelo solo, o limite dos caches caiu de até R$ 45 mil para até R$ 3 mil por apresentação. No caso das orquestras, o limite que pode ser pago ao músico por apresentação passou de R$ 2,25 mil para R$ 3,5 mil, porém, para o maestro, caiu de R$ 45 mil para R$ 15 mil.
No audiovisual, os valores foram mantidos, pois já haviam sido reduzidos: médias metragens, R$ 600 mil; festivais, R$ 400 mil; jogos eletrônicos e aplicativos educativos e culturais, R$ 350 mil; programação semestral de rádio, R$ 100 mil; episódios de programas de tevê, R$ 50 mil; infraestrutura de sites, R$ 50 mil; produção e conteúdo de internet, R$ 150 mil; e episódio de web série, R$ 15 mil.
Desde a campanha eleitoral de 2018, o presidente Jair Bolsonaro defende mudanças na Lei Rouanet. Influenciado pelo falecido escritor Olavo de Carvalho, acredita que a política cultural é uma forma de dominação da esquerda, “comunista”, por meio do chamado “marxismo cultural”. O termo foi adotado pela extrema-direita dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, para atribuir aos “judeus da Escola de Frankfurt” a busca pelo controle da sociedade pelo comunismo.
Adaptado por Olavo de Carvalho, o termo vem sendo usado no Brasil para caracterizar uma suposta ameaça de ditadura gayzista, feminista, abortista, globalista, libertina etc. Na cabeça de Bolsonaro, a mudança mira a esquerda. Na realidade, aprofunda a crise de financiamento da indústria cultural, duramente atingida pela pandemia.
https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-arrocho-na-lei-rouanet-e-um-duro-golpe-contra-a-cultura/?fbclid=IwAR2xbmCW-EJ-xXU4pxRKj7YGc-eUNU9Ye0CyrvvYXVh5wwy0HGzidfxvSmY
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SEMANA DE ARTE MODERNA
Ruy Castro: 'A Semana de 22 arrombou uma porta aberta'
O autor e biógrafo Ruy Castro, que lança agora 'As Vozes da Metrópole' em que lista mais de 40 nomes que fizeram parte da Semana de Arte de 1922
AE
Agência Estado
postado em 30/12/2021 12:09
(crédito: Chico Cerchiaro)
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(crédito: Chico Cerchiaro)
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Benjamim Costallat, Théo-Filho, Chrysanthème, Agrippino Grieco - para a grande maioria dos leitores de hoje, esses nomes pouco ou nada significam. Mas, no Rio de Janeiro dos anos 1920, eles formavam uma constelação de escritores, que traduziam com perfeição a ebulição e a modernidade vivida pela cidade. Uma geração que registrou desde fatos mundanos, como festas regadas a álcool e cocaína, até conflitos sociais e políticos. A partir da década de 1930, porém, iniciou-se um gradual e bem sucedido processo de esquecimento desses autores.
"Um dos motivos é que eles eram jornalistas e escritores profissionais, não playboys e diletantes, membros de uma ação entre amigos", critica o autor e biógrafo Ruy Castro, que lança agora As Vozes da Metrópole (Companhia das Letras), em que lista 41 desses nomes que estão fora do catálogo. "Além disso, não tiveram seus nomes martelados diariamente desde os anos 1950 pela indústria acadêmica da USP."
Castro acredita que muitos desses autores banidos das prateleiras já praticavam uma literatura modernista antes mesmo da eclosão da Semana de Arte de 1922, mas, mesmo assim, foram tachados de "pré-modernistas", o que também ajudou em seu processo de esquecimento. Sobre o assunto, ele respondeu por e-mail as seguintes perguntas.
Quais motivos explicariam o esquecimento hoje da literatura desses autores?
Um dos motivos é que eles eram jornalistas e escritores profissionais, não playboys e diletantes, membros de uma ação entre amigos. Trabalhavam no mercado, e o mercado é dinâmico. Além disso, não tiveram seus nomes martelados diariamente desde os anos 1950 pela indústria acadêmica da USP. Mas o principal motivo foi a criminosa divisão da literatura brasileira, que desqualificou a geração dos primeiros 20 anos do século 20 como "pré-modernista" - como se ela só tivesse existido para fazer a preliminar do jogo principal, que seria a Semana de Arte Moderna. É uma piada, não? Alguns deles eram Euclides da Cunha, Edgar Roquette-Pinto, Lima Barreto, João do Rio, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Julia Lopes de Almeida, Gilka Machado, Carmen Dolores, Orestes Barbosa, Alvaro Moreyra, Agrippino Grieco, Elysio de Carvalho, Adelino Magalhães. Esse pessoal pode fazer a preliminar de alguém no Brasil?
Qual a força do movimento modernista nesse esquecimento, uma vez que aqueles autores não se enquadram perfeitamente nas propostas da turma da Semana de 22?
Foi a força da propaganda e das frases feitas, uma delas a de que a Semana foi um rompimento. Mas rompimento com quê? O verso livre e sem rima já era praticado por Mario Pederneiras desde 1910 e depois por Manuel Bandeira. Os contos de Adelino Magalhães, todos em livro antes de 1920, já tinham fluxo da consciência, ações simultâneas e até palavrões. Orestes Barbosa já escrevia naquele estilo telegráfico, picotado, que depois seria copiado por Oswald de Andrade. A Academia já não era levada a sério no Rio desde a morte de Machado de Assis, em 1908. E os poetas parnasianos já estavam desprestigiados muito antes da morte de Olavo Bilac em 1918. Nas artes plásticas, em 1922, já existiam Vicente do Rego Monteiro e Ismael Nery. Em música, Villa-Lobos, Luciano Gallet, Pixinguinha, Sinhô, sem falar em Ernesto Nazareth. A Semana, portanto, arrombou uma porta aberta. Quando se diz que o Brasil de 1922 era um atraso, que precisava ser "atualizado", e que Mario e Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Sergio Milliet, Candido Motta Filho e outros vieram para nos salvar, leia-se: quem precisava ser atualizado eram eles, que até pouco antes eram parnasianos - e alguns continuaram sendo...
Os autores relacionados no livro sofreram igual esquecimento? O caso de Chrysanthéme foi o mais acentuado?
Não, Chrysanthéme foi apenas uma. Exceto Euclydes, toda aquela geração foi cancelada pela USP. O próprio Lima Barreto, que Mario de Andrade chamava de "escritor de bairro", só foi redescoberto nos anos 50. Gilka Machado está tendo o reconhecimento que merece? E João do Rio? A poesia modernista resume-se hoje nos poemas-piada do Oswald. Se não for poema-piada não é "moderno". Mas Fernando Pessoa, T. S. Eliot, Paul Valéry, Federico Garcia Lorca e o próprio Pound, todos daquela época, nunca fizeram poema-piada. Será que não eram modernos?
É possível dizer que a literatura daqueles autores só foi possível existir na década de 20, quando o entusiasmo pela modernização alimentava a ideia da decadência dos costumes?
Os autores cariocas dos anos 20 não precisavam se deslumbrar com a modernização. Já estavam acostumados a ela. Em 1922, o Rio tinha prédios de 10 andares com elevador, 20 jornais diários, farta iluminação elétrica, sexo, drogas, praia, Carnaval. A cidade não dormia. Os modernistas, à luz dos lampiões a gás, é que viam tudo isso como novidade - e, para eles, era mesmo... Vide a revista Klaxon, de 1922. O título Klaxon, que significa buzina, refere-se ao culto do automóvel e da velocidade, não? Eles ainda se empolgavam com isso em 1922. O Rio tinha a Fon-Fon, também uma referência aos carros. Só que a Fon-Fon era de 1905 e era uma revista comercial, que disputava nas ruas com dezenas de outras - não era lida somente pelos que escreviam nela, como a Klaxon. E todo mundo pode achar a capa da Klaxon bonitinha, mas tente ler hoje os artigos dela, naquelas coleções fac-símile que vivem sendo reeditadas.
Finalmente, a Revolução de 30 foi a pá de cal nesse tipo de escrita, entre outras coisas?
Foi uma pá de cal, sim. Principalmente na escrita modernista. Quando Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Lúcio Cardoso, Marques Rebelo, Dyonelio Machado e Erico Verissimo apareceram a partir de 1930, tudo mudou por aqui. Aliás, assim como a Semana condenou os autores pré-22 ao "pré-modernismo", a Revolução de 30 instituiu um "pós-modernismo" que despachou a Semana de forma fulminante para o passado. E com razão, porque Oswald, Menotti, Guilherme, Candido Motta Filho e os outros eram produtos típicos da República Velha. Eram cama e mesa com Washington Luiz, Julio Prestes e a elite quatrocentona, à qual vários deles pertenciam. Representavam tudo que a Revolução de 30 veio derrubar. Enfim, o Modernismo só tinha sentido na República do Café com Leite e, quando esta acabou, os poemas-piada, pau-brasis e antropofagias foram enterrados junto. Até, claro, serem ressuscitados e entronizados pela USP.
Serviço:
As Vozes da Metrópole
Autor: Ruy Castro
Cia das Letra
464 págs., R$ 79,90 e R$ 39,90 e-book
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/12/4974254-ruy-castro-a-semana-de-22-arrombou-uma-porta-aberta.html
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FONTE: FOLHA DE S.PAULO
Como a Semana de 22 virou vanguarda oficial depois de 50 anos esquecida
FEBRUARY 05, 2022
[resumo] Semana de Arte Moderna teve seu processo de institucionalização iniciado em 1972, quando sua história tíbia passou a ser revista para ganhar a força de verdade incontestável, em meio a celebrações ufanistas da ditadura nos 150 anos da Independência, avalia autor.
Bem ou mal, tudo se discute no Brasil. Pode-se contestar a imagem nazarena, quase bíblica, de Tiradentes —ninguém sabe direito como ele era. Ou denunciar que, na cena do Ipiranga às margens plácidas, dom Pedro não estava a cavalo, mas num burrico —Pedro Américo, o pintor, quis tornar a coisa mais heroica e marcial. Ou insinuar que o marechal Deodoro, monarquista, não sabia que, ao depor dom Pedro 2º, estava proclamando a República —seus colegas só lhe contaram metade do plano.
Enfim, vale tudo. Menos questionar a Semana de Arte Moderna de 1922. E muito menos neste ano do seu centenário, quando se completará o processo, iniciado há 50 anos, de sua institucionalização.
Não se pode mais duvidar de que a Semana foi o "marco zero" da cultura brasileira. Tudo que aconteceu antes, de Pero Vaz de Caminha a Machado, não passou de um aquecimento para o main event, que foi ela, e dela derivou tudo de moderno que veio depois, da antropofagia à dieta do glúten. Suas bandeiras e conquistas foram decisivas: a Semana enterrou o parnasianismo, liquidou o soneto e desmoralizou os pronomes bem colocados.
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A artista plástica Tarsila do Amaral durante entrevista em sua casa - 15.out.1972/Folhapress
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É verdade que, exceto por dois ou três textos, não há como garantir o que se disse naquelas noites no Theatro Municipal de São Paulo, mas ali fomos certamente informados da existência do arranha-céu, do automóvel e do avião. Diz-se que a plateia, ofendida, vaiou os participantes —alguns deles, pelo menos.
Foi uma Semana de três noites, mais exatamente uma soirée, uma matinê e outra soirée. Mas suas consequências estão sendo estudadas até hoje. Nenhum outro ágape literário brasileiro a supera em bibliografia. Somente nos últimos meses, o volume de teses, estudos e análises a respeito já pode ser calculado em toneladas —as máquinas das editoras não param de rodar.
Nenhum teve sua história tantas vezes contada e convertida numa grande lenda urbana, a que novos episódios continuam sendo acrescentados, formando um épico em progresso. E nenhum teve a obra de seus luminares tão copiosamente aceita —dela fizeram-se e fazem-se filmes, peças de teatro, shows, discos, performances, documentários, exposições e, mais importante, incontáveis reedições de seus livros.
É verdade que tudo isso só se intensificou de 1972 para cá. Antes não era assim. Durante os primeiros e longos 50 anos a partir de 1922, só os sobreviventes da Semana e os suspeitos de sempre falavam dela. Os aniversários passavam em silêncio e muitos dos seus livros, hoje tão festejados, estavam estacionados nas edições originais, encalhadas nos armários de seus autores. Como seus livros não existiam, não influenciavam ninguém.
Mas as coisas mudaram. Hoje podemos escolher entre incontáveis reedições de cada título —pela capa, pelo prefácio, pelas notas de pé de página, pelas fotos, pelas ilustrações de Tarsila ou Anita. Pena que tais reedições se refiram exclusivamente aos livros de dois autores: Oswald de Andrade e Mário de Andrade.
Por algum motivo, os outros modernistas de primeira hora, homens que ajudaram a pôr a Semana em pé e viveram as vaias e os aplausos no Municipal, foram evaporados da saga. Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Sergio Milliet, Rubens Borba de Moraes e Candido Motta Filho tornaram-se no máximo figurantes e, hoje, se e quando lembrados, é sempre por algum motivo extra-modernismo —Rubens Borba de Moraes passou à posteridade como bibliófilo; Candido Motta Filho, como avô de Nelson Motta; e Sergio Milliet, por que mesmo?
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Participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no teatro Municipal, em São Paulo (SP) - Museu da Imagem e do Som
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E qual fã da Semana se lembrará de Tácito de Almeida, Agenor Barbosa e A. C. Couto de Barros? É como se só tivessem existido para fazer número entre o abrir e o fechar das cortinas. E há outro que, não podendo ser extinto da história —afinal, estava lá, no palco, comungando intimamente com os campeões—, foi reduzido ao papel de inimigo: Plínio Salgado.
O processo de depuração da Semana não podia se limitar ao elenco. Era preciso estendê-lo à narrativa —porque aquela que os documentos da época contavam era tíbia, micha, inconclusiva. Em 1972, ano de oba-obas e triunfalismos oficiais, deu-se início à sua atualização. Com base nas versões revistas e ampliadas dos fatos por Oswald a partir dos anos 1940 e, desde então, tomadas como verdades pétreas, saiu toda uma nova história da Semana e do modernismo. Da qual, assim como da infalibilidade do papa —no caso, papas—, não é permitido duvidar.
Em seu "Diário Confessional", numa anotação de 23 de janeiro de 1952, Oswald de Andrade cita o então presidente Getúlio Vargas, "numa frase que corre mundo", ligando a Semana de Arte Moderna à "renovação política de 1930". E Oswald acrescenta: "Eu mesmo já juntei, no ano de 1922, dois fenômenos de explosão nacional —a Semana, em fevereiro, e a insurreição do Forte de Copacabana, em julho. E esta prenunciava a revolução de 1924 em São Paulo e o vitorioso movimento de 30". E com isso temos, segundo Oswald, o novo DNA da Semana como um movimento politicamente contestador.
Antes de correr mundo, a frase de Getúlio nasceu num discurso escrito para ele por um de seus assessores no Estado Novo, o poeta Cassiano Ricardo, o mesmo que Oswald, um dia, chamara de "ratazana ao molho pardo" e, depois, pensando melhor, classificaria de "o maior poeta brasileiro". Quanto à relação que Oswald diz ter feito entre a Semana e as insurreições políticas que se lhe seguiram, seria interessante conhecer esse documento —desde que de 1922, não dos anos 40.
Mostra revê Semana de 22 e o modernismo no Brasil
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Mostra revê Semana de 22 e o modernismo no Brasil
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Se ele existir, será a revelação de que os homens de 22 contribuíram para a derrubada de um regime, a República do Café com Leite, ao mesmo tempo em que eram seus ardentes partidários. Mas é improvável que tal papel apareça. Em 1922, Oswald, Guilherme de Almeida, Tácito de Almeida, Candido Motta Filho e Rubens Borba de Moraes, filhos de ricas famílias cafeeiras e sem um único dia de trabalho em seus currículos, eram dândis ligados ao PRP (Partido Republicano Paulista), o braço político das oligarquias, liderado pelo então governador de São Paulo Washington Luiz.
O PRP, coadjuvado de longe pelo PRM (Partido Republicano Mineiro), conduzia os destinos da República e, do seu ponto de vista, com grande sucesso —o analfabetismo cobria 70% da população e as eleições eram viciadas para que as sucessões políticas não oferecessem surpresas. O órgão oficial do PRP era o jornal Correio Paulistano, cujo redator político, Menotti del Picchia, ia diariamente ao Palácio dos Campos Elíseos para submeter a manchete e o editorial a Washington Luiz —este, por sinal, crítico ad hoc de dança do jornal.
Em 1922, no Rio, e em 1924, em São Paulo, grupos de jovens oficiais do Exército foram às armas contra o regime. O governo federal esmagou as duas rebeliões, à custa do massacre dos "18 do Forte" por 2.000 soldados nas areias de Copacabana, em 22, e do bombardeio aéreo da cidade de São Paulo, em 24.
Se os modernistas, em pleno tiroteio, escreveram a favor dos insurgentes que estavam dando a vida contra o governo, esses textos também ainda não apareceram. Nem aparecerão, por um simples motivo: eles estavam do lado do governo e,indiretamente, os tiros eram também contra eles.
Um relato hilariante seria o do poeta francês Blaise Cendrars. Mal chegado a São Paulo naquele julho de 1924, teve de fugir correndo com seus amigos Oswald, Tarsila, dona Olivia Penteado, Paulo Prado, René Thiollier e outros, rumo às suas fazendas no interior, com as balas zunindo por suas orelhas (Menotti fugiu de trem com o novo governador Carlos de Campos). Terá Blaise se perguntado quem atirava contra quem e por quê? Dias depois, com a derrota dos insurgentes e o restabelecimento do status quo, todos voltaram aliviados para seus salões. O modernismo era o status quo.
Exposição revê legado do modernismo na arte contemporânea; conheça obras
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Exposição revê legado do modernismo na arte contemporânea; conheça obras
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A conversão da Semana a um contexto mais conveniente se faz até sozinha. Em muitos artigos e reportagens sobre os desdobramentos revolucionários da Semana, é intrigante a ocorrência de observações como "Não por coincidência, poucas semanas depois, fundou-se o Partido Comunista do Brasil" —como se uma coisa tivesse a ver com a outra. Mas por que teria?
O partido foi fundado sob pesada clandestinidade, no Rio e em Niterói, e, como é óbvio, nenhum jornal noticiou —donde nenhum membro da Semana ficou sabendo. A Semana, por sua vez, também se deu quase na clandestinidade, já que os jornais do Rio e do resto do país a ignoraram e, com isso, nenhum dos fundadores do partido (nem mesmo Astrojildo Pereira, o único intelectual entre eles) tomou conhecimento.
Mas a principal contradição deste "não por coincidência" é que, mesmo que a Semana e o Partido Comunista soubessem um do outro, não podiam estar em lados mais opostos: os comunistas, a fim de ver o sangue dos latifundiários, e os modernistas, filhos dos ditos latifundiários ou comensais de seus salões.
Será possível imaginar o barbeiro Abilio Nequete, primeiro secretário-geral do partido, tendo o presidente Epitácio Pessoa como seu padrinho de casamento com uma tecelã? Não. Mas foi o que aconteceu em 1926, quando Oswald e Tarsila se casaram tendo o presidente Washington Luiz como padrinho. Um momento brilhante da alegre camaradagem entre o modernismo e o poder se deu em maio de 1929, na campanha presidencial de Júlio Prestes, governador de São Paulo e candidato de Washington Luiz à sua sucessão no Catete.
Oswald engajou um certo "Clube da Antropofagia" —o que seria?— nos festejos e promoveu recital no Theatro Municipal, para o qual contratou no Rio o sambista Sinhô e lhe encomendou um samba em homenagem a Júlio Prestes. O qual foi "Eu Ouço Falar" ("Eu ouço falar/ Que para o nosso bem/ Jesus já designou/ Que seu Julinho é quem vem..."), "dedicado a Oswald de Andrade".
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O diário inédito de Oswald de Andrade
O diário inédito de Oswald de Andrade
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Um dos organizadores do evento, o jornalista Raul de Castro, assim o descreveria no Diário Popular: "Depois do espetáculo, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral ofereceram uma festa a Sinhô", escreveu. E continuou: "Também aí o sr. Júlio Prestes, que via com olhos simpáticos o movimento antropofágico, compareceu, para se misturar com Raul Bopp, Rubens do Amaral, Jayme Adour da Câmara, Oswaldo Costa, Nelson Tabajara, Pagu, Celso Antônio, Brecheret, Gilberto Araújo e outros desvairados intelectuais.
A certa altura da festa, Sinhô se instalou no piano e tocou um saracoteado cateretê paulista, para que a cozinheira de Tarsila desse uma demonstração de sua habilidade coreográfica. Não resistindo ao ritmo vivaz da música de sua terra, o [governador] se levantou da poltrona e desafiou a cozinheira de Tarsila para novos passos da dança de terreiro. O acontecimento causou sensação porque o sr. Júlio Prestes se mostrou um hábil dançarino de cateretê".
Infelizmente, o cateretê antropofágico ficaria por ali. "Eleito" presidente em março de 1930, Júlio Prestes não chegou a tomar posse. Com a derrubada de Washington Luiz no dia 24 de outubro e sua substituição por Getúlio Vargas, era o fim da República do Café com Leite. E, desta vez não por coincidência, do modernismo.
Washington Luiz, pedalando o ar, deixou o Palácio Guanabara, no Rio, e foi conduzido ao Forte de Copacabana, onde passou os 30 dias seguintes até ser embarcado para Lisboa. Em São Paulo, Júlio Prestes abrigou-se no consulado inglês, do qual partiu para Londres e, depois, para Paris.
Já as biografias de Oswald, casado então com Pagu, omitem seus passos naqueles dias. Não se sabe se foi procurado, solidarizou-se com os amigos em desgraça ou foi apenas ignorado. Mais provável esta última hipótese, já que Rudá, seu filho com Pagu, nascera apenas um mês antes e não se sabe de fugas ou escapadas do casal. Seria fascinante saber por onde andou Oswald naqueles últimos meses de 1930 (desde que em texto da época, não de 20 anos após o fato), mas isso não é possível.
Nos livros, sua história dá um salto e pula direto para sua conversão política, de um capitalismo liberal e festivo para um ardente esquerdismo, induzido por Pagu. Vira-se mais uma página e, em 1931, já temos um Oswald magicamente "filiado ao Partido Comunista". Mas não há como comprovar essa filiação. Ela não consta dos registros do partido, nem das memórias dos comunistas de então nem dos prontuários da polícia.
Quem foi Oswald de Andrade
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Quem foi Oswald de Andrade
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Não se sabe se seu nome foi submetido por alguém, severamente analisado e, se aprovado pelo grupo, para que célula ele foi designado e sob a responsabilidade de quem. Fala-se de uma breve aproximação com o jornalista e escritor Pedro Motta Lima, autor do primeiro romance proletário, "Bruaá", de 1929. Mas Motta Lima, assim como Astrojildo Pereira, Otavio Brandão e Leoncio Basbaum, estava sob ameaça de expulsão pelos novos dirigentes operários, empenhados em impor a linha obreirista ordenada pela Internacional.
Eles eram jornalistas e intelectuais, daí sujeitos a "desvios pequeno burgueses". Pois se nomes como aqueles, com uma sólida história no partido, já não eram tidos como confiáveis, imagine Oswald, incapaz de sustentar uma opinião por dez minutos. O próprio jornal "O Homem do Povo", que ele editou com Pagu em 1931 e só durou duas semanas, propunha-se a falar para as massas, mas não conseguia conter sua vocação para a piada. Nenhum homem do povo o lia.
Afastada a hipótese de filiação, restou a Oswald ser, na prática, um torcedor do partido, condição em que acompanhou Pagu em algumas ações, no papel de babá de Rudá —ficava com ele em casa enquanto ela saía com uma arma na bolsa. Como algumas dessas ações se passavam no Rio, dizia-se que Oswald era comunista no Rio e capitalista em São Paulo, onde se sustentava com a venda de terrenos da família —entre outros, o bairro de Cerqueira César, que lhe tomou a vida inteira para liquidar.
As peripécias políticas de Oswald costumam ser confundidas com as de Pagu, esta, sim, militante que pagou o preço —perseguições, risco de vida e 23 prisões. Até que, em 1932, o partido ordenou a Pagu que se afastasse de Oswald, por ele ser "ligado a burgueses". E era mesmo, um desses o advogado Vicente Rao, velho amigo dele e, dali a pouco, ministro da Justiça de Getúlio (1934-37).
A tentativa de atribuir à Semana e a si próprio uma face progressista foi uma preocupação constante de Oswald a partir dos anos 1940. Para isso, precisou "corrigir" fatos, rever opiniões e antecipar datas. Fez isso, por exemplo, na edição de 1940 de seu romance "Os Condenados", que ele informa ter "sido escrito de 1917 a 1921".
Mas, ao se ler as últimas páginas de "A Escada", terceira parte do livro, o personagem, nitidamente Oswald, renega a sua "cretina aristocracia de artista" e se assume como um soldado "a reboque do proletariado", "preso para sempre às cordas da revolução social". Oswald, em 1921, um soldado a reboque do proletariado e preso às cordas da revolução social? Nossa Senhora Aparecida, sua santa de devoção e a quem ele dedicava livros, não iria gostar.
Mas, de fato, não se pode fugir das coincidências. Terá sido por uma delas que, depois de levar seus primeiros 50 anos em silêncio e sem queixas, tudo tenha mudado para a Semana de Arte Moderna a partir de 1972? Foi o ano em que, às retumbantes comemorações do Sesquicentenário da Independência, somou-se o cinquentenário da Semana, subitamente festejado com pompas. Por que isso de repente?
O escritor Franklin de Oliveira, em "A Semana de Arte Moderna na Contramão da História" (Topbooks, 1993), não viu nisso uma coincidência. "O mais perverso dos ditadores militares do ciclo de 64, o general Médici, consagrou a Semana de Arte Moderna como o evento central da cultura brasileira contemporânea. (...) Quando a Semana completou 50 anos, [ele] a incorporou ao calendário do putsch que instaurou no país o poder militar."
Veja como Tarsila e Oswald, casal icônico da Semana de 1922, se vestiam
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Veja como Tarsila e Oswald, casal icônico da Semana de 1922, se vestiam
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Outro escritor, Luis Martins, ex-marido de Tarsila, viu nas comemorações um exagero. Para ele, a Semana fora "a batalha de Itararé —aquela que não houve". E Yan de Almeida Prado, veterano da Semana, em seu libelo "A Grande Semana de Arte Moderna" (Edart, 1976), listou as entidades que inflaram o cinquentenário: o Ministério da Educação, o Conselho Federal de Cultura, o governo do Estado de São Paulo "e outras entidades oficiais e para-oficiais".
Tudo isso resta ser averiguado, mas alguns fatos saltam do noticiário daquele tempo. Na esteira do "Brasil grande" e do "milagre brasileiro", o governo Médici decidiu usar o sesquicentenário da Independência para gerar um sentimento ufanista e positivo, daí buscar no passado "episódios inspiradores" —o principal, trazer de Portugal os ossos de dom Pedro 1º, que chacoalharam durante meses pelo país até ganharem merecido descanso no Museu do Ipiranga.
Todos os ministérios foram chamados a criar eventos. O da Educação era comandado pelo coronel Jarbas Passarinho, não um militar comum. No Pará, fora cronista e editor de revistas de caserna, publicara em 1959 um romance, "Terra Encharcada", premiado pela Academia de Letras local, e se achava um intelectual. Sim, é o mesmo que, ministro do Trabalho no governo Costa e Silva, passou à história por sua frase no dia 13 de dezembro de 1968, ao assinar o AI-5: "Às favas os escrúpulos da consciência".
À frente do MEC em 1972, pode ter sido dele a ideia de associar a Semana aos conceitos de "independência e nacionalismo", motes do sesquicentenário, e, com o apelo ao Pau Brasil e à Antropofagia, ao "resgate dos valores indígenas". O órgão executor das comemorações no setor era o Conselho Federal de Cultura, criado em 1967 no governo Castello Branco e cujo primeiro diretor, Josué Montello, declarou ser sua principal atribuição "melhorar a imagem do regime ante os meios de
comunicação".
Em 1972, o diretor do conselho era o político e historiador Arthur Cezar Ferreira Reis, próximo de Luiz da Camara Cascudo e Ascenso Ferreira, modernistas do Norte e do Nordeste. Outro braço do MEC atuante nas comemorações foi o Instituto Nacional do Livro, dirigido pela romancista Maria Alice Barroso.
Ela aprovou a ideia de o INL dividir com a editora Civilização Brasileira a publicação da obra completa de Oswald de Andrade em 11 volumes a preços subsidiados, cada exemplar custando metade que um livro convencional (saíram dez). Por que Oswald, até então um autor invendável, e por que a Civilização? Porque, em 1971, com a perseguição ao editor Ênio Silveira pela ditadura, a Civilização estava sob o comando de Mario da Silva Brito, velho amigo de Oswald e autor de "História do Modernismo Brasileiro", então a Bíblia da Semana.
Os subprodutos das comemorações foram muitos. Oswald e Mário de Andrade, este com sua obra na Martins, tornaram-se questões do vestibular, o que fez de seus livros leitura obrigatória pelos estudantes. A USP comprou a coleção e o arquivo de Mário. O governo de São Paulo adquiriu a biblioteca de Guilherme de Almeida e fez da sua casa um museu.
Houve uma grande exposição no Masp. E o próprio Ministério das Relações Exteriores, sob o embaixador Mario Gibson Barbosa, promoveu uma exposição, "Brasil - 1º Tempo Modernista 1917-29", que levou o ano circulando pelas embaixadas do Brasil na Europa e na América Latina.
A ideia de o governo exibir a Semana como um momento de rebeldia da cultura brasileira não se chocava com o fato de que, em 1972, a imprensa estava sob censura, o governo institucionalizara a tortura e, sob o decreto 477, professores e estudantes acusados de subversão podiam ser expulsos e presos. Afinal, em 1922, não havia contradição entre o palco do Municipal e a República do Café com Leite.
Resenha: Metrópole à Beira Mar
por Isabela Fontanella em 29/01/2020 em Notícias | Nenhum Comentário
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Essa resenha é uma parceria do Portal Deviante com a Cia da Letras, que disponibiliza livros do seu catálogo para os nossos redatores escreverem as resenhas. Livro de hoje: Metrópole à Beira Mar.
Graça Aranha, Oswaldo Cruz, Siqueira Campos, Gago Coutinho, Sacadura Cabral, Cardeal Arcoverde… os cariocas reconhecerão estes nomes como ruas, praças e estações de metrô da cidade, e Metrópole à Beira-Mar conta a história desses e de tantos outros personagens que marcaram seus nomes na história. Podemos dizer que esse livro é uma biografia (gênero de especialidade do autor Ruy Castro), mas ao invés de contar a história de uma pessoa, conta a de uma cidade – o Rio de Janeiro. Como toda biografia, o personagem principal vai se desenvolvendo ao longo da trama, passa por maus bocados e outros de momentos inspiração divina, daqueles que mudam o curso da História. Bem, o Rio de Janeiro não só mudou, mas fez história na década de 1920, e é isso que o livro se dispõe a contar.
O autor decide começar o livro descrevendo o cenário que envolvia a cidade no final da década de 1910: a Europa lidava com o final da 1ª Guerra Mundial, o mundo inteiro via suas populações dizimadas pela gripe espanhola e no Brasil, a economia precisava se adaptar rápido devido ao conflito internacional e à menor demanda por café. Por todo o pessimismo que envolveu os anos 1910, o último carnaval da década se destoa, e a festa se torna histórica. Um dos motivos é que as pessoas se jogaram na folia com a justificativa que aquele poderia ser seu último Carnaval, se a epidemia da gripe espanhola espalhasse mais. Talvez um dos marcos mais conhecidos de 1919 é a estreia de um dos blocos ainda hoje mais famosos: o Cordão do Bola Preta.
Além do protagonismo do Carnaval, é importante lembrar o que o Rio de Janeiro representava para a época. A cidade era cortada por bondes elétricos (pasmem cariocas contemporâneos, eram 60 linhas que ligavam as ruas do centro aos bairros), era uma das única no país com iluminação pública elétrica, o Rio era a sede da primeira universidade do país, da Academia Brasileira de Letras e de diversos cinemas e teatros. Tudo muito avant-garde. O Rio fervilhava com jornais – lembre-se que era a capital federal, centro da política e do poder – e consequentemente era habitada por inúmeros jornalistas, muitos dos quais escreviam sobre várias áreas e também se dedicavam a outras artes. Havia aqueles que trabalhavam nas páginas policiais de março a janeiro e como cronistas de Carnaval em fevereiro, nada de surpreendente. A cidade era um fervilhar das artes, especialmente das letras. A capital atraia todos aqueles que buscavam uma vida melhor, seja através do pincel, da pena ou de um cargo público. O Rio era a cara da modernidade que se instaurava no mundo, sempre influenciado por Paris. O próprio autor de Metrópole à Beira-Mar descreve o clima da cidade assim: “O sexo, as drogas, a censura, a política e temas sociais estavam na atmosfera, no jornalismo e na literatura do Rio. As palavras, a seu serviço, não tinham para onde fugir.” E quem queria fugir do Rio?
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Para os brasileiros de hoje, pode ser curioso que há 100 atrás São Paulo fosse um coadjuvante com pouco espaço no cenário nacional. Os livros de história indicam que São Paulo começa a despontar ao ser a sede da ruptura promovida pela Semana de Arte Moderna de 1922, mas o Rio já era frequentado por uma grande parte dos artistas envolvidos com o modernismo. Então por que não realizar a semana aqui? Porque a modernidade da vida e das artes já convivia com os cariocas desde os anos 1910 e apresentar o modernismo como uma enorme ruptura cultural não seria nada escandaloso no Rio – o futuro das artes sempre conviveu com os velhos parnasianos nos cafés da Cidade Maravilhosa.
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Tanto que o Rio é onde a história do teatro brasileiro nasce – mesmo que futuramente todo esse movimento viesse a ser reduzido pela historiografia. O nome de Procópio Ferreira ainda tem reconhecimento, mas outros como Leopoldo Fróes ficara-me aquecidos. Além disso, teatros históricos, que ajudaram a formar artistas e plateias caíram no esquecimento ou suas histórias foram minimizadas em expressões como “comédia de Trianon” – em referência a um dos teatros mais movimentados da capital nacional na época e que teve muito mais do que comédias em seus cartazes. Para muitos jovens, a expressão “teatro de revista” nem faz sentido, mas foi um movimento expoente nas suas exibições “críticas, cômicas e musicadas dos acontecimentos do ano” e ao longo do tempo ganhou o formato mais famoso com coristas, coreografais e músicas. Mas, talvez o grande legado dessa arte foi criar e/ou popularizar expressões que usamos até hoje como forrobodó, etc. e tal, tim-tim por tim-tim.
Uma das grandes características da década de 1920 no Rio são as muitas novidades para as mulheres: os cortes de cabelo à la garçonne e os vestidos com bainhas mais altas, que deixavam as nucas e canelas femininas de fora – uma loucura. Mas a grande revolução acontece para lá da moda. Muitas mulheres já se destacavam na sociedade carioca, como a escritora Julia Lopes de Almeida (cujo marido foi aceito na Academia Brasileira de Letras como em compensação a ela – que como mulher não poderia entrar), a mecenas Laurinda Santos Lobo e a jornalista Emília Bandeira de Mello (mais conhecida pelos pseudônimos de Júlio de Castro e Carmem Dolores). Todas elas já carregavam bandeiras feministas e se colocavam em papeis de protagonismo ao circularem pelos principais espaços da capital em pé de igualdade com seus maridos (quando não com mais prestígio que eles).
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E por falar em grandes revoluções sociais, seria impossível passar pelos anos 20 e por Metrópole à Beira-Mar sem falar da criação do ritmo que hoje conhecemos como samba, um movimento liderado por Sinhô. Os primeiros anos do século XX viram o nascimento das modas, as mudanças no maxixe e as influências internacionais que aos poucos foram se misturando até chegar no bairro da Estácio, casa dos primeiros bambas e compositores do que hoje são reconhecidos como os primeiros sambas. Influenciados pela música e através da vontade de se destacar, os ranchos – que podem ser comparados a enormes blocos de carnaval que desfilavam com carros enfeitados – evoluiriam para as escolas de samba, mais organizadas, temáticas, e já trazendo as tradicionais baianas. Ruy Castro descreve que a primeira ala das baianas foi composta por homens com vestimentas tradicionais que escondiam suas navalhas (arma de preferência da época) por baixo dos babados só para “garantir que nada aconteceria”. A pioneira escola de samba, “Deixa Falar”, fez questão de se denominar “escola de samba” simplesmente para se diferenciar dos ranchos. E tudo isso sonorizado pela invenção dos surdos, tamborins e cuícas.
Como falei na abertura desta resenha, a narrativa de Ruy Castro é inevitavelmente recheada de famosos que viriam a dar seus nomes a diversos espaços público na cidade. Talvez a maior habilidade deste livro é trazer tantos personagens relevantes sem atropelar a história da própria cidade, que a final de contas, é a protagonista deste livro. Mas é impossível negar que a história da cidade é escrita pelas mãos de homens e mulheres que fizeram do Rio o que é. Como Lima Barreto, um escritor brilhante, alcoólatra, negro e preconceituoso, crítico ferrenho da modernidade que avassalava o Rio, mas apaixonado pela cidade. Ou Heitor Villa-Lobos, um exímio contador de histórias, tão fantasiosas que era impossível separar a verdade da imaginação (incluindo sua data de nascimento, que poderia ser qualquer ano entre 1881 e 1887 segundo seus documentos).Quantas pessoas sabem que o Cardeal Arcoverde fica na história da cidade por ler liderado a procissão que desceu com a imagem de S. Sebastião – padroeiro da cidade – do Morro do Castelo para que este fosse demolido e desse espaço para os pavilhões da Exposição Internacional do Centenário da Independência e posteriormente aos arranha-céus? Sim cariocas, havia um morro no meio do que hoje é o Castelo, e cujas terras deram origem ao aterro do Flamengo – pasmem.
Por sinal, o ano do centenário da independência – 1922 – foi de grandes ebulições políticas que influenciariam bastante a história da cidade e do país: é fundado o partido comunista do Brasil no mesmo ano que nasce o Centro D. Vital – uma instituição que visava retomar a força da Igreja, da direita, da moral e dos bons costumes. Esta última, ganha certa influência no governo e impõe uma forma censura contra livros considerados pornográficos. Nada mais eram do que obras descrevendo o sexo e o adultério que já existiam por todas as esquinas da cidade. Para quem não se lembra, 1922 também é o ano do massacre aos 18 do Forte (que segundo relatos nunca foram 18), na tentativa de derrubar a política do café com leite. Uma mudança política que viria a cavalo oito anos depois.
A década de 1920 realmente não deixou nada a desejar, e revolucionou até os esportes. Os clubes de futebol e remo, que já existiam antes, se proliferaram, se organizaram em ligas, se profissionalizaram e caíram no gosto de todos os públicos. As mulheres ganhavam cada vez mais espaço: poetisas, como Gilka Machado, estrearam nas letras com temáticas sensuais, falando de desejo sem pudor. As educadoras levantaram suas vozes, por exemplo, Leolinda Daltro lutou contra a educação indígena pela religião e fundou o primeiro partido dedicado à mulher (mesmo que essas só viriam a ter direito a voto em 1932). E quem sabia que Cecília Meirelles, poeta famosa, também teve atuação crucial em batalhas educacionais? Também foi a década das ciências: aposto que poucos sabem que Albert Einstein e Marie Curie vieram ao Rio em 1925 e 26 respectivamente para apresentar suas teorias e conversar com cientistas brasileiros. E eu descobri lendo este livro que que Antoine de Saint-Exupéry (autor de o Pequeno Príncipe) visitava o Brasil com certa frequência quando trabalhava como piloto da Compagnie Generale Aeropostale (empresa de correio aéreo).
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Por mais que Ruy Castro se dedique a contar muitas narrativas esquecidas ou desconhecidas, não poderia faltar na história da cidade momentos que entraram para a História, com letra maiúscula mesmo, como o nascimento do jornal mais famoso do país (o Globo), a construção do Cristo Redentor, o desenvolvimento do rádio, o surgimento de Carmem Miranda, dentre tantos outros nomes que ainda conhecemos e com o quais convivemos até hoje, 100 anos depois.
Metrópole à Beira-Mar se dispõe a contar a década de 1920 no Rio de Janeiro, e cumpre seu papel com graça, leveza e uma infinidade de detalhes históricos, frutos de um trabalho incessável de pesquisa. Definitivamente não é uma leitura leve e blasé, mas também não é essa a proposta. Eu recomendo a leitura a todos que, como eu, amam conhecer detalhes das esquinas da cidade, entender o que fizeram tantos homens e mulheres para merecer ter seus nomes nas ruas da cidade, e acima de tudo, para lembrar que mais do que História, as cidades têm alma.
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Isabela Fontanella
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Formada em Relações Internacionais e apaixonada por economia, finanças e investimentos. Seu grande objetivo é parar de trabalhar e deixar o dinheiro fazer isso por ela.
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