Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
terça-feira, 11 de novembro de 2025
IA DE FICÇÕES DISSIMULADAS, IA
Poesia | A Criança, de Fernando Pessoa
Música | Nara Leão - Tema de "Os Inconfidentes" (Chico Buarque / Cecilia Meireles)
terça-feira, 11 de novembro de 2025
‘Projeto de Derrite pode excluir PF, MP e afetar operações contra o crime organizado’, diz Gakiya, por Marcelo Godoy
O Estado de S. Paulo
Promotor jurado de morte pelo PCC analisou durante dois dias o substitutivo apresentado por Derrite e pede que votação seja adiada para que possíveis falhas sejam discutidas e corrigidas
O promotor Lincoln Gakiya está jurado de morte pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). No último mês, a polícia descobriu mais um plano da facção para assassiná-lo. É difícil pensar em uma voz com mais legitimidade do que o promotor para analisar as mudanças que o deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP) pretende fazer no projeto antifacção do governo federal. Ele estudou o texto no fim de semana e contou suas conclusões à coluna.
Acima das paixões políticas, Gakiya sabe o custo que mudanças legais podem trazer para a vida dos brasileiros e para a sua própria. Deve, portanto, ser ouvido por todos aqueles que têm honestidade de propósitos e não colocam os interesses eleitorais acima da necessidade de se aperfeiçoar a legislação para combater o crime organizado que pulou do estágio das organizações criminosas comuns para atingir aquele das organizações de tipo mafioso.
O alerta que Gakiya endereça aos parlamentares é preocupante. Ele teme que, se o substitutivo for aprovado como está, a Polícia Federal e o Ministério Público possam ser excluídos do combate ao crime organizado. Tudo por causa da redação do artigo 11 do substitutivo de Derrite, entregue menos de 24 horas depois de ele ser nomeado relator do projeto. O deputado disse à coluna que pretende ouvir os promotores e ainda pode modificar o texto.
Se o projeto do deputado Danilo Forte (União-CE), que classificava o crime organizado como terrorismo, excluía as polícias estaduais e os promotores do combate ao crime organizado, Derrite tentou consertar esse problema, mas pode ter criado outro. É o que explica Gakiya:
“O ponto principal é que o relatório do Derrite optou por fazer uma modificação na Lei Antiterrorismo, a lei 13.260/16. Ao contrário do projeto do Executivo, que previa uma alteração na Lei de Organizações Criminosas, a lei 12.850, criando condutas que tipificariam a organização criminosa qualificada.” Aqui está a origem de toda a confusão que pode atingir o combate ao crime organizado no Brasil.
É que terrorismo é crime federal. Ao equiparar as facções com o terrorismo, criava-se uma bagunça judicial, com a mudança de competência de milhares de processos, abrindo espaço para contestações e, portanto, para impunidade nos casos em andamento. Pior: a PF não tem estrutura para cuidar de todos os casos. O que fez Derrite para evitar isso? Explicitou que a competência dos Estados para punir esses crimes seria mantida. Mas o problema seria como ele fez isso, deixando a investigação expressamente a cargo das Polícias Civis estaduais.
É aqui que moraria a nova ameaça ao combate ao crime organizado, que poderia impedir no futuro, segundo a preocupação de Gakiya, que operações como a Zargun (que flagrou o deputado TH, no Rio), a Fim da Linha (transporte público em São Paulo), Salus Et Dignitas (cracolândia, em São Paulo) e Carbono Oculto sejam realizadas. Tudo dependeria de como a Justiça vai interpretar a lei. Gakiya explica:
“No caso também do artigo 11, do substitutivo do relator Derrite, se você verificar toda a apuração e a competência para julgamento de atos terroristas previstos na lei antiterrorismo, são da Polícia Federal e da Justiça Federal. Ok? E aí no parágrafo seguinte, Derrite já ressalva que nesse novo tipo penal, que ele incluiu no artigo 2º da lei antiterror – as organizações criminosas equiparadas ao terrorismo –, a investigação caberá às Polícias Civis."
Gakiya faz o alerta: “O texto não mencionou o Ministério Público. Então, ele coloca: ‘A investigação criminal caberá às polícias civis e a competência para processamento e julgamento será da Justiça Estadual, respeitando os critérios de competência previstos na legislação’. É, pelo texto, a exclusão da PF para atuar em investigação de qualquer caso de facção criminosa previsto nessa lei”. O promotor teme que, assim, o artigo seja interpretado.
E prossegue: “Como eu disse, todas as facções criminosas, pelo menos as que eu conheço, utilizam violência ou grave ameaça para intimidar, coagir ou constranger a população ou agentes públicos, com o propósito de impor ou exercer controle, domínio, influência total ou parcial sobre áreas geográficas, comunidades e territórios. Em maior ou menor proporção, todas as facções do Brasil estão abrangidas pelo texto da lei como organizações criminosas equiparadas a organizações terroristas”.
E conclui: “Portanto, no caso de crime praticado por essas organizações ou então o crime praticado por uma associação criminosa ou por uma milícia privada, mas que tem as condutas do artigo 2º, a Polícia Federal não terá atribuição para atuar. E tampouco o Ministério Público”.
Para o promotor, isso traz um vício legal, “uma inconstitucionalidade quando exclui o Ministério Público desta atribuição para investigação, porque caberia também ao Ministério Público as investigações desses crimes”. “Aqui, eles excluem a PF. Então, doravante, a Polícia Federal não poderia mais atuar em casos de investigação ligados a facções.” Derrite negou que esse fosse seu desejo. E é certo que esse não era o seu objetivo. Mas como evitar que isso seja entendido dessa forma na Justiça?
Gakyia analisa outro ponto que leva a essa interpretação: “No parágrafo único (no mesmo artigo 11) ainda se prevê o seguinte: quando houver repercussão interestadual ou transnacional dos fatos, e potencial de afetar a segurança nacional, desestabilizar a ordem pública internacional, aqui poderá o Ministério da Justiça – e só aqui – e, mediante provocação do governador, determinar a atuação conjunta ou coordenada das forças Policiais Federal e Estaduais".
Para o promotor, apesar da intenção de Derrite, esse dispositivo deixa explícito o problema: “Aqui está o o principal problema da lei. Ela não promove a integração. Pelo contrário, ela promove a desintegração. Ela incentiva a atuação isolada da Polícia Civil Estadual nos casos de crime envolvendo facções como Comando Vermelho e PCC, na medida em que ela só autoriza a atuação de forças federais, como a PF, se for solicitada pelo governador ao ministro da Justiça”.
Para Gakiya isso pode levar a contestações ao modelo atual de combate ao crime organizado. A Cracolândia em São Paulo só foi desmontada porque o traficante Leo do Moinho foi preso e a Favela do Moinho e o ecossistema do crime no centro foram desestruturados. E isso só foi possível, depois de décadas de fracasso do poder público, porque Gakiya e seus colegas do Ministério Público se uniram à Receita Federal, à PF e às polícias estaduais. Derrite sabe disso.
Segundo o promotor, esse artigo contém uma inconstitucionalidade, porque a PF já tem atribuição para investigações que tratam de crimes interestaduais e transnacionais. “Então, são vários problemas, mas o principal deles, acho que é uma legislação que não promove a integração. A Operação Carbono Oculto, a Operação Fim de Linha e a da Cracolândia não teriam obtido êxito se essa lei já estivesse em vigor.” Há muito Gakiya defende a criação de uma agência nacional antimáfia, o que nem Derrite nem o governo federal fizeram.
A exclusão do Ministério Público não se restringiria à investigação. Derrite copia o projeto do governo federal ao estabelecer um prazo de 48 horas para o promotor se manifestar em casos considerados urgentes pela autoridade policial. Investigações com milhares de páginas, como são as que envolvem o crime organizado, teriam de ser analisadas pela promotoria em horas, caso contrário, o juiz poderia decidir sem ouvir o Ministério Público.
Entre as omissões do projeto estariam o fato de ele deixar de fora a proposta do governo de agravar as penas para as organizações criminosas que praticam golpes na internet e, quando trata do sequestro de bens de bandidos, excluir das chamadas “medidas assecuratórias” a possibilidade de as vítimas pedirem o sequestro dos bens.
O promotor ressalta que Derrite abraçou partes importantes da proposta do governo. Ele lista o sequestro cautelar de bens, o confisco extraordinário dos recursos do crime organizado com a inversão do ônus da prova, a infiltração por meio de pessoas jurídicas e a proibição de contratar com o setor público. E também elogia acréscimos, como o agravamento das condenações, que podem chegar a 65 anos, e também da execução das penas, aumentando o prazo para um mínimo de 70% para a progressão de regime carcerário, proibindo o livramento condicional.
O deputado se recusou a chamar as organizações criminosas de terroristas, alegando que só as estava equiparando aos grupos terroristas porque seria melhor mexer nessa lei do que alterar a Lei de Organizações Criminosas. Chamou a lei de Novo Marco Legal de Combate ao Crime Organizado. Gakiya aponta, porém, que o substitutivo transforma quase todo tipo de quadrilha ou bando em organização criminosa equiparada ao terrorismo por meio de 11 condutas que abrangem práticas que quase todos têm, como usar ameaça em um certo território.
Assim, em vez de concentrar contra o que realmente importa, como o PCC, o CV, o TCP e as milícias, tudo passaria a ser punido com 20 a 40 anos de prisão, fazendo com que a polícia disperse recursos ao ir atrás de pés de chinelo e tratar qualquer bandidinho como perigoso terrorista, tornando ineficiente a lei. Seria necessário diferenciar melhor as organizações que se infiltram e ameaçam o Estado daquelas de mera repercussão local.
A lição aqui é a ensinada pela Itália e Gakiya a ouviu dos procuradores antimáfia daquele país: Onde tudo é máfia, nada mais será máfia. Odiar bandido é fácil. Mas é preciso saber combatê-los com inteligência. O promotor tem todos os motivos do mundo para odiar o crime. Ele e sua família pagam um preço altíssimo em razão de seu comprometimento na luta contra as máfias.
A conclusão de Gakiya é um apelo aos deputados. “Esse substitutivo, um texto com essa abrangência e complexidade, não pode ser obra de uma cabeça só. Ele precisa ser discutido pela sociedade civil, pelas instituições, pelos especialistas e submetido a um amplo debate, porque esse projeto de lei nem sequer foi submetido a debate: não houve audiências públicas para tratar do PL antifacção do governo”. É preciso ter coordenação e integração de forças.
O promotor lembra que, em menos de 24 horas, o relator nomeado apresentou um texto, que irá à votação na terça-feira. “Creio que seja necessário a abertura para audiências públicas para melhorar o texto do projeto. Ele classifica praticamente todas as organizações criminosas ou as facções do Brasil como organizações terroristas por equiparação. E aí não adianta falar que não é organização terrorista, que apenas os atos é que são equiparados a terroristas. Os efeitos são exatamente os mesmos em termos legais. A gente precisa tomar cuidado”, conclui. Não basta agravar penas e o regime em que são cumpridas. Boas intenções não bastam.
terça-feira, 11 de novembro de 2025
COP entre o mito da queda do céu e a tragédia do presente, por Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense
Belém precisa enfrentar o autoengano dos chefes de Estado e líderes de grandes corporações; discursos inflamados e compromissos frágeis são a contradição da conferência
“Se os xamãs desaparecerem, o céu cairá. Os brancos terão matado todos eles com sua fumaça de epidemia e seus metais. Então, ele desabará porque não haverá mais ninguém para sustentá-lo. Tudo virará noite outra vez, e os espíritos das florestas e das águas se vingarão de nossa loucura”. Há um elo profundo entre esse alerta dos xamãs Yanomami — que sustentam o céu com seus cantos e rituais — e a cena devastadora do tornado que atingiu o Paraná na véspera da abertura da COP30, em Belém.
Na cosmovisão Yanomami, descrita acima por Davi Kopenawa em A Queda do Céu, o desmatamento e o garimpo ilegal não são apenas agressões materiais, mas forças que corroem o equilíbrio espiritual do mundo. Quando o homem destrói a floresta, o céu começa a desabar. Por isso mesmo, na abertura da COP30, houve tensão simbólica e política. Ao afirmar que “é momento de impor uma nova derrota aos negacionistas”, na abertura da conferência do clima, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resgata o fio civilizatório da luta global contra a destruição ambiental e a desinformação.
COP30 é um grito de socorro. Ao mesmo tempo, um êxito do multilateralismo, se levarmos em consideração o boicote regressivo e obscurantista de líderes, como os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e da Argentina, Javier Milei. É uma situação paradoxal: mistura esperança e melancolia devido à constatação de que os compromissos do Acordo de Paris estão fragilizados diante das guerras, do protecionismo e do cansaço moral das nações.
O mito e a meteorologia se cruzam, o espiritual e o científico convergem. No Paraná, o redemoinho que ceifou vidas e arrasou casas pode ser lido como mais um sinal de ruptura cósmica: a natureza responde ao desequilíbrio imposto pela ganância e pela indiferença. A metáfora indígena confere à COP uma cosmovisão ancestral. Belém não é apenas o espaço de uma cúpula diplomática, mas o território onde a Amazônia, coração climático do planeta, tenta sustentar o céu — o teto comum da humanidade. Os xamãs e os cientistas estão denunciado a mesma tragédia: o risco de o mundo ruir sob o peso de suas próprias emissões, de sua cegueira tecnológica e de seu egoísmo político.
Ao associar a crise climática às tragédias recentes — o tornado paranaense, o furacão Melissa no Caribe —, Lula politizou a questão: “Sem o Acordo de Paris, o mundo estaria fadado ao aquecimento catastrófico de quase cinco graus”. No entanto, as modelagens oficiais mostram que nem o objetivo de 2° C será cumprido. O planeta avança, ainda que mais lentamente, rumo a um aquecimento entre 2° C e 3° C. Ou seja, rumo a catástrofes mais frequentes e danos irreversíveis.
Metas e resultados
Belém precisa enfrentar o autoengano dos chefes de Estado e líderes de grandes corporações; discursos inflamados e compromissos frágeis são a contradição da conferência. A diplomacia ambiental não deve substituir metas por promessas nem resultados por narrativas. Nesse aspecto, o lançamento do fundo para florestas tropicais, com a ambição de quadruplicar a produção global de combustíveis sustentáveis, é um esforço para manter viva a ideia de que é possível conciliar desenvolvimento e preservação, num momento em que o consenso científico alerta que o tempo está se esgotando.
Mas a situação internacional não é das mais favoráveis. A ausência de Trump e de Milei é uma estratégia política. Há uma “internacional da negação”, a aliança ideológica dos países que tratam a agenda climática como ameaça à soberania nacional e obstáculo ao crescimento econômico. Trata-se, também, de uma grande batalha cultural e civilizatória. Trump ironiza a “rodovia dos ambientalistas”. Para Milei, o mercado resolverá a crise climática.
Esses gestos minam a credibilidade do sistema ONU, que enfrenta o momento mais difícil desde sua criação, em 1945, e dificultam a construção de acordos vinculantes. Na verdade, o peso inercial das economias fósseis é o maior obstáculo ao sucesso da COP. As emissões globais se aproximam de 60 gigatoneladas de CO². Mesmo que todas as metas nacionais fossem cumpridas, cairiam apenas para 50 GT até 2035. O cenário geopolítico agrava o impasse. As guerras da Europa e do Oriente Médio desviam recursos para o setor bélico e elevam a demanda por energia fóssil.
A China, embora invista pesadamente em energia solar e eólica, ainda depende do carvão para sustentar sua industrialização. A Índia acelera suas emissões; os Estados Unidos avançam a passos lentos; e a Rússia em guerra continua a aumentá-las. Na Europa, os partidos verdes sofrem derrotas eleitorais, reflexo do cansaço social diante dos custos da transição. Entretanto, é preciso “coragem de identificar barreiras e integrá-las à agenda de desenvolvimento”, como disse o embaixador André Corrêa do Lago, presidente da COP30.
Embora seja a grande potência ambiental do planeta, por suas florestas e produção de energia limpa, o Brasil também precisa fazer o dever de casa. Matriz energética limpa e tradição diplomática de mediação não bastam. É preciso coerência interna, ou seja, combater o garimpo, frear o desmatamento e proteger os povos indígenas.
Não basta sustentar o céu no discurso: é preciso impedir sua queda na prática.
O Poder Moderador do Jeitinho
Por L.D. SEPÚLVEDA — Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal
Há algo de curioso — e preocupante — na recente tentativa de ressuscitar, entre nós, o velho “Poder Moderador”. Sim, aquele mesmo, nascido com D. Pedro I e sepultado com a Monarquia, que colocava o Imperador acima dos três poderes. Pois bem: volta e meia, alguém tenta exumar o defunto jurídico e lhe dar farda nova.
Nos últimos meses, em meio a debates sobre segurança pública e reorganização das polícias, reapareceu a tentação de enxergar nas Forças Armadas um papel “moderador” dos conflitos institucionais. É a velha ideia de que haveria um “poder neutro”, capaz de arbitrar quando Executivo, Legislativo e Judiciário se desentendem. O Supremo Tribunal Federal, em boa hora, já afirmou — com a solenidade que o tema exige — que a Constituição de 1988 não comporta quartas instâncias nem tutores da República. No Estado Democrático de Direito, o poder é moderado pela lei, e não pelos fuzis.
Mas o fantasma do “moderador” é persistente. Agora ele reaparece, disfarçado de articulação política e burocrática, quando projetos de lei — sob o pretexto de combater o crime organizado — propõem reorganizar competências da segurança pública (Art. 144 da Constituição) com a desenvoltura de quem troca cadeiras de lugar numa repartição.
Um exemplo emblemático é o projeto de lei relatado por um deputado que, curiosamente, também ocupa o cargo de Secretário de Segurança Pública de São Paulo. Nada contra a coincidência de funções — o problema é quando o acúmulo de papéis ameaça confundir os planos da Federação e da Constituição. Afinal, quem legisla não deve executar, e quem executa não deve legislar. Essa é a viga mestra da separação dos poderes.
A proposta — ou ao menos seus rumores — sugere transferir competências investigativas da Polícia Federal para as polícias civis dos Estados. Eis o ponto sensível: a Constituição é clara ao delimitar quem faz o quê. Alterar essa partitura por meio de uma lei ordinária seria como mudar o tom de uma sinfonia soprando pela flauta errada — soa mal e desafina o concerto federativo.
Não é preciso ser constitucionalista para perceber o risco. No Brasil, a fronteira entre “interpretação criativa” e “violação disfarçada” é tênue. E é nesse fio de navalha que floresce o que um certo antropólogo chamou, com genial ironia, de “o jeitinho brasileiro”. O mesmo “jeitinho” que, quando praticado pelos poderosos, ganha verniz jurídico e nome francês: raison d’État.
O “sabe com quem está falando?” ainda ecoa pelos corredores do poder, vestido agora de parecer técnico ou de relatoria estratégica. É o velho autoritarismo tropical, de chinelos e toga, que se insinua nas brechas da Constituição — sempre em nome da eficiência, da segurança, ou do combate ao crime.
O risco maior, contudo, não é jurídico: é moral. Porque quando o Estado naturaliza atalhos, ensina o cidadão a fazer o mesmo. O jeitinho, que começa nos gabinetes, termina na esquina — e, de exceção em exceção, a regra se dissolve.
O papel do Direito, no entanto, não é enfeitar abusos com laços de legalidade. É lembrar, a cada geração, que poder moderado é poder limitado. Fora disso, o que há é apenas a velha tentação de um Brasil tutelado — e o “sabe com quem está falando?” travestido de dispositivo constitucional.
L.D. Sepúlveda
Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal
No Dia do Professor, Cristovam Buarque afirma que 'não é um desejo do Brasil ser campeão mundial de educação'
Ex-ministro e professor ainda destacou que a educação básica precisa de uma atenção maior.
Por g1 Caruaru
15/10/2021 17h52 Atualizado há 4 anos
Parecer Simulado de Cristovam Buarque sobre o Relatório Técnico-Crítico do ENEM 2025
1. Introdução
Recebo este relatório como quem recebe um espelho: ele reflete o Brasil que somos e o país que ainda não conseguimos ser.
Os números do ENEM, frios na aparência, ganham aqui temperatura humana. O autor, ao “esmigalhar o recôndito dos dados”, como ele próprio diz, realiza um exercício que ultrapassa a estatística — e adentra o terreno da ética republicana e da pedagogia social.
2. Mérito Analítico
O texto é sólido, rigoroso e, ao mesmo tempo, literário.
Não há tecnocracia cega: há sociologia viva.
O autor compreende que o ENEM, mais que um exame, é uma metáfora do pacto inconcluso entre democracia e igualdade.
Sua crítica é legítima: o ENEM democratiza o sonho, mas ainda não democratiza o acesso real à educação de qualidade que permita sonhar com consistência.
Ao lembrar que “a presença é resistência”, o autor toca um ponto essencial — a persistência de milhões de jovens que atravessam adversidades para afirmar seu direito de existir como cidadãos cognoscentes.
3. Dimensão Ideológica
Concordo com a leitura de que o ENEM se converteu em rito meritocrático, ainda que tenha nascido como instrumento de inclusão.
Mas gostaria de acrescentar: o problema não está no mérito em si, e sim na falsa neutralidade das condições de partida.
Num país onde as escolas são desiguais, o mérito se torna privilégio mascarado.
Por isso, precisamos resgatar o espírito republicano da igualdade de oportunidades, e não apenas medir desempenhos.
O tema da redação — o envelhecimento — foi bem analisado.
Entretanto, eu o leria também como metáfora de um país envelhecido nas suas estruturas de exclusão, e que precisa rejuvenescer o pacto educativo.
4. Dimensão Ecológica
A crítica ecológica, pouco comum em relatórios educacionais, é notável.
A observação de que o ENEM possui custo ambiental e simbólico é pertinente.
Mais que uma questão de logística, o autor sugere uma pedagogia ecológica do próprio ato educativo — que deve ensinar o país a aprender sem destruir.
Educar é também cuidar do planeta.
5. Estilo e Espírito
O texto é técnico, mas não desumano.
Tem a prosa de quem olha para os números e vê pessoas.
O autor demonstra consciência republicana, recusando o elitismo travestido de neutralidade.
A conclusão — “o ENEM não mede apenas o conhecimento dos estudantes; mede a capacidade do país de oferecer condições para que o saber floresça como direito, e não como privilégio” — é, a meu ver, de beleza ética e precisão política.
6. Considerações Finais
Este relatório é um ato de cidadania intelectual.
Cumpre o dever republicano de transformar estatística em consciência.
Ele não propõe apenas melhorar o exame; propõe reconstruir o pacto educacional brasileiro, em que o saber, a justiça e o meio ambiente se reconhecem mutuamente.
Se me permitem a liberdade de um poeta que acredita na educação como esperança, eu diria:
“O ENEM é o espelho da escola brasileira: ainda trincado, mas refletindo a luz de um sol que insiste em nascer.”
Cristovam Buarque
Professor, educador, democrata, republicano e aprendiz do Brasil.
Entre Engrenagens e Espelhos: o Dilema das Greves e a Múmia de Édipo
1. Introdução: o Retorno dos Engenheiros ao Espelho
Há algo de profundamente cíclico — e tragicômico — na história brasileira.
No primeiro quartel da década de 1980, o Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro (SENGE-RJ) agitava-se em torno de pautas trabalhistas e de soberania nacional, tendo em sua direção uma elite técnica que, por ironia do destino, se via mais próxima do poder do que da oficina. Já no primeiro quartel da década de 2020, os engenheiros e técnicos da Petrobras ocupam o papel inverso: agora, são eles os grevistas que enfrentam uma empresa estatal dirigida por companheiros ideológicos de outrora.
Como num conto de Machado de Assis, a cidade é a mesma — o Centro do Rio, entre o Obelisco da Avenida Rio Branco e o Edifício São Borja —, e o enredo, embora atualizado em código binário e transmissões digitais, conserva a velha essência do teatro social brasileiro: o empregado contra o patrão que um dia foi seu igual.
2. O Sindicato dos Engenheiros e o Eco do Milagre
Fundado em 1931, o SENGE-RJ nasceu sob o signo da modernização.
Foi a mão institucional que deu forma à Lei do Salário Mínimo Profissional (4.950-A/66) e consolidou a engenharia como instrumento de soberania nacional.
Nos anos 1980, quando a economia ainda suspirava os últimos vapores do “milagre”, o sindicato sediado no Edifício São Borja, na Cinelândia, abrigava assembleias fervilhantes e discursos técnicos com aroma de revolução.
Naquela época, os engenheiros — bem pagos, respeitados e próximos do poder — falavam sobre “os trabalhadores” com o tom sacerdotal de quem abençoa fiéis.
Mas, como em Lima Barreto, havia por trás dessa liturgia o escrivão Isaías: o funcionário modesto, o datilógrafo, o calculista subalterno que via as greves passarem pelas janelas, sem nunca poder parar de trabalhar. Esses eram os verdadeiros corpos que sustentavam a retórica.
3. 2025: a Revolta dos Técnicos do Milagre Perdido
Quarenta e cinco anos depois, o cenário inverte-se.
Em novembro de 2025, a Petrobras, símbolo máximo da engenharia nacional, é sacudida por uma greve que ecoa — mas inverte — a de outrora.
Agora, os engenheiros e técnicos são os grevistas; enfrentam não o capital privado, mas o Estado, personificado por um governo aliado, do mesmo partido que, décadas antes, foi a vanguarda do sindicalismo.
O drama adquire contornos quase mitológicos: Édipo diante da esfinge, o Partido dos Trabalhadores diante da própria imagem refletida.
A múmia de Édipo — decifra-me ou te devoro — reaparece em forma de pauta salarial e plano de cargos.
E talvez, como no labirinto de Borges, cada corredor da Petrobras leve não à solução, mas a outro espelho, outra greve, outro governo.
4. Os Cenários: Entre o Obelisco e o Concreto
Figura 1 – Sede da Petrobras, Rio de Janeiro.
A gigante estatal, orgulhosa herdeira da campanha “O Petróleo é Nosso”, volta a ser palco de conflito entre capital e trabalho. Em 2025, petroleiros rejeitam proposta da direção e iniciam greve nacional.
(Fonte: Poder360, 2025)
Figura 2 – Obelisco da Avenida Rio Branco, Cinelândia.
Monumento de 1905, vizinho ao Edifício São Borja, sede histórica do SENGE-RJ. Testemunhou a transição da monarquia para a República e, depois, a das elites técnicas para o proletariado das engrenagens.
(Foto: Flavilidades Cotidianas, 2020s)
O obelisco, imóvel e silencioso, viu passar generais, sindicalistas e bacharéis.
Hoje, talvez olhasse — se tivesse olhos — para os engenheiros grevistas da Petrobras e reconhecesse neles os netos tardios dos burocratas de terno branco que um dia lhe acenaram da janela do São Borja.
5. Conclusão: O Espelho, o Populismo e a Lapa
Machado de Assis, funcionário público na Lapa, poderia rir desse espetáculo, onde os mesmos personagens trocam de papéis a cada meio século.
Lima Barreto escreveria um editorial indignado sobre a repetição das ilusões.
E Borges, com seu humor glacial, talvez dissesse que as greves brasileiras são ficções que se escrevem em espelhos de concreto: em cada reflexo, o oprimido e o opressor trocam de lugar.
Assim, entre o engenheiro sindicalista de 1980 e o petroleiro grevista de 2025, passa um rio subterrâneo de ironias — um labirinto carioca onde Édipo e a múmia disputam quem decifra quem.
E o Brasil, como sempre, observa de um café da Lapa, com um sorriso cansado e a sensação de que tudo, de fato, permanece como d’antes.
P.S. – Nota Oficial da Petrobras
Leia a íntegra da nota:
“A Petrobras informa que as reivindicações dos empregados da Petrobras estão sendo tratadas no âmbito das negociações referentes ao Acordo Coletivo de Trabalho 2025/2027, que seguem em andamento de forma construtiva e respeitosa.
“Novas reuniões de trabalho estão previstas para as próximas semanas, com o objetivo de identificar eventuais oportunidades de aprimoramento e pontos de convergência entre as partes.
“A Petrobras respeita o direito de manifestação dos empregados e, em caso de necessidade, a companhia adotará medidas de contingência para a continuidade de suas atividades.”
(Fonte: Poder360 – “Petroleiros rejeitam proposta da Petrobras e anunciam greve”
, 11 de novembro de 2025.)
Aprovação rápida da MP do Setor Elétrico empobreceu debate, diz professor Para Jerson Kelman, a condução dos congressistas na votação do texto levou à exclusão de temas relevantes sobre geração distribuída...
Congresso em Pauta | Congresso aprova medida provisória com novas regras para setor elétrico
TV Alese
7 de nov. de 2025
Programa exibido no dia 06 de novembro de 2025.
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