Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
domingo, 23 de novembro de 2025
Eu Vivia Vestido de Dourado na Sombra do Futuro
Uma fábula política sobre poder, herança e liderança aprisionada
Chão de Estrelas
Raphael Rabello
Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Meu barracão no morro do salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas
Pareciam estranho festival!
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional
A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas os astros, distraída,
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão
Composição: Orestes Barbosa / Silvio Caldas.
domingo, 23 de novembro de 2025
Allende, Berlinguer e a esquerda hoje, por Luiz Sérgio Henriques
O Estado de S. Paulo
Na tradição da esquerda – como mostram Allende e Berlinguer – há um repertório alternativo a ser ‘aggiornato’ e requalificado
Um reel do escritor chileno Roberto Bolaño Ávalos, que circula nas redes, evoca comovidamente Salvador Allende e a tragédia do golpe de 1973. De modo contundente, Bolaño descreve a desilusão inicial dos jovens de então, que em vão esperavam as armas negadas pelo presidente em vias de ser deposto e morto. Allende aparecia como um conservador, capaz de cometer quase uma traição, fugindo à luta no momento decisivo. Sua imagem, no entanto, ao longo do tempo, iria se agigantar, ao evitar os horrores da guerra civil e poupar do aniquilamento toda uma geração ou a maior parte dela. É que a derrota de Allende e da Unidade Popular, naquele Chile tão distante, já estava definida pela política, não pelas armas, como se deduz das palavras de Bolaño.
Essa lição essencial seria apreendida em contexto diferente por outro político de exceção, o italiano Enrico Berlinguer. A ideia – recorrentemente frustrada – de chegar ao socialismo por método democrático, e não pela violência, também aquecia a imaginação da esquerda reunida em torno do Partido Comunista Italiano (PCI), na época o mais influente partido comunista do Ocidente. Nos dois países, a estrutura partidária se parecia: o centro ou a centro-direita estava ocupado por um partido de mesma denominação, a Democracia Cristã. E, sem um forte compromisso com as duas DCs, aquela ideia não se realizaria ou até se arruinaria dramaticamente, como no Chile.
Nem sempre sabemos bem como as concepções se formam e se difundem, mas aqui temos uma pista. Na socialdemocracia clássica, a transformação pacífica e a adesão à regra democrática era já uma conquista secular. Entre socialistas e comunistas, no entanto, é bem possível afirmar que, a partir de Allende e Berlinguer, algumas novidades se impuseram de modo permanente, a saber, a recusa programática da violência política e a busca de alianças ao centro, como garantia de mudanças gradativas, consensuais e pactuadas.
Exemplar, neste sentido, enquanto pôde dar frutos, o percurso chileno pós-ditadura pinochetista. A palavra concertación teve em si mais de um aspecto daquele compromesso storico proposto pelo PCI, que nos anos 1970 faria circular o lema alvissareiro da “democracia (política) como valor universal” – de resto, mais atual do que nunca. Não importa que, na Itália, a hipótese berlingueriana de mudança tenha malogrado ou que, no Chile, a partir da segunda década do século 21, a concertación tenhas e esvaziado, como enfraquecimento do centro representado especialmente pelos democratas-cristãos e socialistas. As realidades donovos éculo têm sido inesperadas, mas, ainda assim, impõem o reexame do caminho percorrido e a reconsideração dos fios dispersos.
De fato, os dois países foram varridos pelos maus ventos da extrema direita. A Itália, desde Silvio Berlusconi, conheceu a desestruturação do sistema de partidos do pósguerra, com o surgimento do desafio populista que afronta audaciosamente as democracias ocidentais. Não seria exagerado ver em Berlusconi, político sem escrúpulos e desenvolto homem de negócios, a figura precursora de líderes desconcertantes, como o próprio Donald Trump. O esvaziamento da concertación não se mede pelo fato de por duas vezes ter cedido a presidência a um personagem da direita tradicional, como Sebastián Piñera – a alternância, afinal, é um dado constitutivo da política democrática.
A questão chilena reside na presente dificuldade de estabelecer o necessário cordão sanitário em torno das forças disruptivas da extrema direita. Tradicional país de “três terços” – conservadores, centristas e progressistas, em condições de equilíbrio –, o Chile de agora vê uma direita autoritária no comando de toda a direita, o declínio do centro quase até o desaparecimento da DC, bem como uma esquerda dividida, em busca de identidade, mas por certo minoritária. Bem verdade que aos poucos, e com dificuldades, essa esquerda tem superado as veleidades “refundacionais” nascidas do estallido social de outubro de 2019. É significativo o fato de que dela tenha surgido Gabriel Boric, um dos personagens marcantes da esquerda latino-americana. Egresso do movimento social, que carregava extremismo em suas franjas, Boric rapidamente se credenciaria como um social-democrata de novo tipo, atento aos direitos humanos e, por isso, crítico coerente de regimes autoritários, inclusive de esquerda.
Deixando de lado as vicissitudes de governo, não por último o impacto do colapso venezuelano e o fluxo de imigrantes em desespero, esse é o legado que cumpre valorizar no ciclo eleitoral chileno e mesmo depois. O Zeitgeist está marcado por uma “direita plebeia”, capaz de manipular o medo e conquistar maiorias à base de ódio e ressentimento. Como tantas vezes já aconteceu, a miragem do homem forte parece seduzir a massa de indivíduos desconectados, atropelando violentamente as formas da política. Na tradição da esquerda – como mostram Allende e Berlinguer – há um repertório alternativo a ser aggiornato e requalificado. Não é possível ir adiante só com o tal repertório – ainda mais difícil, porém, é ignorá-lo.
*Tradutor e ensaísta, é coeditor das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Prisão não anula Bolsonaro na escolha do candidato de oposição a Lula
Publicado em 23/11/2025 - 07:56 Luiz Carlos Azedo
Brasília, Congresso, Eleições, Governo, Justiça, Memória, Partidos, Política, Política
O presidente do PL Valdemar Costa Neto não esconde o desejo de que Michelle seja a candidata. Os filhos preferem o irmão mais velho, o senador Flávio Bolsonaro
A prisão preventiva do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), decretada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, após a convocação de uma vigília por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), não sela o destino do bolsonarismo nem esvazia seu impacto no pleito de 2026. O movimento político criado por Bolsonaro é maior que sua condição jurídica e, embora enfraquecido, permanece vivo entre milhões de seguidores.
Bolsonaro está sob custódia do Estado, inelegível e condenado a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado, mas continua sendo a principal referência política da direita brasileira, à qual hegemonizou. A prisão reduz seu raio de ação e aumenta sua vulnerabilidade, mas não dispersa de imediato a base eleitoral que construiu nos últimos 10 anos. A “sombra de futuro” do “Mito” contingenciará os candidatos de oposição.
Leia também: Risco de fuga leva Bolsonaro à cadeia
Formulado pelo cientista político Robert Axelrod na Teoria dos Jogos, o conceito de “sombra de futuro” foi adotado pelo darwinista Richard Dawkins em “O Gene Egoísta” (Companhia das Letras), para entender a cooperação entre os seres humanos. Resumidamente, é a percepção que cada jogador tem sobre a duração da cooperação e necessidade de retaliação para sobrevivência.
Axelrod fez simulações matemáticas sobre o sistema “viver e deixar viver”, que se desenvolveu espontaneamente nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, quando os soldados ingleses e alemães, por muito tempo frente a frente, criavam acordos tácitos de não agressão; quando a rotação mudava ou o comando endurecia, o pacto se rompia para se restabelecer logo depois. Dawkins utiliza essa ideia para demonstrar como estratégias de cooperação entre adversários podem evoluir em razão da “sombra de futuro”.
Até ontem, a oposição vivia um cenário “viver e deixar viver” ao redor de Bolsonaro. Ele estava inelegível, mas em casa; condenado, mas ativo politicamente; acuado judicialmente, mas ainda comandante da oposição. Havia um equilíbrio político instável: o STF, sobretudo na figura de Moraes, impunha limites e sanções; Bolsonaro testava essas linhas com discursos, postagens indiretas, mobilização de aliados e ameaças veladas; o Congresso manejava pautas de segurança pública e anistia; governadores de direita se projetavam nacionalmente surfando na agenda da ordem.
À sombra de Bolsonaro
Dono do maior ativo eleitoral da oposição, Bolsonaro segue capaz de arbitrar candidaturas, de transferir votos e de, eventualmente, caso um aliado chegue ao poder, ser beneficiado por uma anistia aprovada por um Congresso conservador ou por um futuro indulto presidencial.
Essa hipótese — de que o líder permanece no jogo, ainda que em posição defensiva — funciona como um estabilizador da própria direita: ninguém rompe com Bolsonaro, ninguém se proclamava herdeiro sem sua bênção, todos esperam um gesto do líder.
Leia mais: Da Presidência à prisão preventiva
Ronaldo Caiado (União), governador de Goiás; Romeu Zema (Novo), de Minas; Ratinho Junior (PSD), do Paraná; e Eduardo Leite (PSD), Rio Grande do Sul, aguardam uma definição de Bolsonaro. Corre por fora, Ciro Gomes (PSDB). Único potencialmente capaz de unificar toda a oposição, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), é uma esfinge: “decifra-me ou te devoro!”.
Sem apoio formal de Bolsonaro, o governador paulista não será candidato à Presidência; sua “sombra de futuro” é muito maior. Pode se reeleger ao Palácio dos Bandeirantes e aguardar 2030 à frente do poderoso governo paulista para disputar a Presidência.
A prisão preventiva de Bolsonaro encurta tudo. Na lógica de Axelrod, quando a duração é menor, o tempo torna mais difícil sustentar a cooperação. Governadores, parlamentares, lideranças evangélicas e empresários aliados passam a se perguntar se vale a pena seguir postergando decisões estratégicas.
É nesse contexto que a figura de Tarcísio de Freitas ganha centralidade. Entretanto, a “sombra de futuro” de Tarcísio, caso eventualmente chegue ao poder, frustraria as ambições do clã Bolsonaro, possivelmente, até 2034.
Esse tempo é suficiente para que o capital eleitoral do ex-presidente se disperse entre as demais lideranças de oposição. Por essa razão, o presidente do PL Valdemar Costa Neto não esconde o desejo de que a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro seja candidata. Os filhos Eduardo Bolsonaro (PL-SP), deputado federal que se autoexilou nos Estados Unidos; e Carlos Bolsonaro, que deve se candidatar ao Senado em Santa Catarina, preferem o nome do irmão mais velho, o senador Flávio.
Colateralmente, a eventual candidatura de Tarcísio à Presidência embaralha o cenário eleitoral em São Paulo: primeiro, o vice-presidente Geraldo Alckmin reaparece como favorito na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes; segundo, instala-se uma disputa pelo espólio bolsonarista entre o influenciador Pablo Marçal; o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB); e o deputado Guilherme Derrite (Progressistas), que reassumiu a secretaria de Segurança de São Paulo. Tarcísio é prisioneiro da “sombra de futuro” de Bolsonaro: uma coisa é ser apresentado como sucessor; outra é parecer alguém que aproveita a fragilidade do chefe para atalhar o poder.
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O poder político das fábulas
Introdução — Fábula como metáfora política
Como alegoria do momento político vivido na cena nacional, a fábula A Fábula do Camaleão Preso e a Floresta em Suspense sintetiza, pela linguagem simbólica, as tensões, expectativas e disputas que se formam quando um líder carismático perde mobilidade, mas não abandona sua capacidade de influência. A seguir, o trecho que inspira a análise:
A Fábula do Camaleão Preso e a Floresta em Suspense
Na grande Floresta do Sul vivia um Camaleão famoso, conhecido por ter reunido sob sua sombra muitos animais diferentes. Durante anos, sua capacidade de mudar de cor encantou milhões: ora vestia tons de fogo, ora de aço, ora de tempestade. Cada cor parecia confirmar que ele era o líder natural da mata.
Certo dia, porém, o Camaleão foi capturado pelas Águias do Alto Rochedo, guardiãs da Lei da Floresta. Acusaram-no de tentar dobrar as regras sagradas da mata e colocaram-no numa cela de pedra. Ele não podia mais sair, nem subir nos troncos para discursar. Só lhe restava a própria sombra, projetada entre as grades.
A Sombra de Futuro
Embora aprisionado, a sombra do Camaleão se estendia longe — tão longe que muitos animais ainda viviam à espera de seus sinais. Essa sombra, que alguns sábios chamavam de “sombra de futuro”, fazia com que todos acreditassem que o Camaleão poderia, de algum modo, influenciar seus destinos.
Leões, Raposas, Ursos e até Macacos permaneciam atentos, medindo cada passo para não parecerem traidores. Ninguém ousava disputar abertamente sua herança. Todos esperavam um gesto vindo das grades.
Os Animais que Queriam Ser Reis
Enquanto isso, três grupos se formavam no coração da mata:
O grupo da Onça Serena, que defendia que ela deveria carregar o estandarte deixado pelo Camaleão;
O grupo do Lobo Ancião, que alegava ter a experiência necessária para ocupar o trono;
O grupo do Falcão das Estradas, rápido e eficiente, mas cauteloso para não parecer oportunista diante da prisão do Camaleão.
Outros animais — Tatus, Lontras, Tucanos e Morcegos — aguardavam o momento certo para escolher um lado.
O Tempo se Encurta
As estações giravam. As Eleições da Floresta se aproximavam. A cada dia, a sombra do Camaleão precisava esticar-se mais para alcançar seus antigos aliados.
Os animais começaram a cochichar:
— Até quando esperaremos?
— Vale a pena viver à sombra de alguém atrás das grades?
— Se escolhermos outro rei, ele nos punirá quando sair?
— E se nunca sair?
A cooperação vacilava como um pacto à beira do rompimento.
O Macaco Observador
Um velho Macaco aproximou-se da cela:
— Dize-me, amigo: qual é tua cor agora? A esperança ou o passado?
O Camaleão sorriu:
— Minha cor é a cor da sobrevivência. Enquanto minha sombra existir, ninguém ousará escolher outro rei sem olhar para ela.
A Floresta Decide
Às vésperas da eleição, os animais perceberam que, com ou sem sua bênção, o próximo governante seria herdeiro do Camaleão.
O Falcão temia parecer oportunista.
A Onça temia parecer títere.
O Lobo temia parecer antiquado.
O Camaleão temia perder o trono mesmo atrás das grades.
A sombra pesava sobre todos como nuvem que hesita em chover.
Moral da História
Quem governa apenas pela força da própria sombra descobre, cedo ou tarde, que sombras não votam — e que nenhuma floresta vive eternamente à espera de um camaleão mudar de cor.
O Tempo Não Pára
Ney Matogrosso
Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou um cara
Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara
Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não pára
Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta
A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não pára
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
Não pára, não, não pára
Eu não tenho data pra comemorar
Às vezes os meus dias são de par em par
Procurando uma agulha num palheiro
Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros
Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam o país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro
A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não pára
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
Não pára, não, não pára
Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta
A tua piscina tá cheia de ratos
Tuas idéias não correspondem aos fatos
O tempo não pára
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
Não pára, não, não pára
Composição: Cazuza.
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