Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 23 de junho de 2025
Espelho, Janela e Constituição
Epígrafe
“Discordar, dialogar, discutir é legítimo — afrontar a Constituição, jamais.”
— Ulysses Guimarães
Uma bússola para navegarmos no embate democrático.
“É do povo” — a janela, lembrando que democracia se faz com quem a vive.
Apólogo Constitucional
Era uma vez um espelho e uma janela. O espelho orgulhava-se de refletir rostos e movimentos — a cada manhã, políticos da direita, bem engomados e com discursos de moralidade envernizada, se contemplavam nele com adoração. Repetiam frases feitas como mantras, indignavam-se com escândalos seletivos e apontavam o dedo sujo para qualquer gesto alheio. O espelho devolvia apenas o que via: vaidade, autorreferência e uma verdade fragmentada pela moldura de suas convicções.
A janela, por sua vez, dava para a praça. Era ampla, aberta e deixava o vento entrar. Lá fora, o povo passava: crianças, mães, velhos, trabalhadores e gente sem legenda. A esquerda, de dentro da casa, dizia amá-los — mas, muitas vezes, os observava com desdém pedagógico, como se ainda esperasse educar a todos com o evangelho de um panfleto desbotado.
O espelho dizia à janela:
— Eles não merecem a vista. Veja o caos, a bagunça, o perigo! Feche-se.
A janela respondia:
— E você, que só vê a si mesmo, sabe o que é o mundo? Quem o olha demais acaba esquecendo que há mais do que si próprio.
Certo dia, uma Constituição antiga, mas robusta, atravessou o cômodo. Era uma senhora de traços firmes e olhar paciente, que carregava em sua bolsa as cláusulas pétreas da convivência. Ela fitou o espelho e a janela com o mesmo rigor.
— Espelho, é hora de refletir o que de fato há — e não apenas o que desejam ver.
— Janela, é hora de não apenas abrir-se, mas também escutar o que o vento traz — mesmo quando incomoda.
Na soleira, encostada à porta da democracia, uma semente brotava entre as rachaduras do chão. Nem o espelho a viu, nem a janela a notou. Mas a velha senhora a regava todos os dias com um pouco de bom senso e muito compromisso público. E murmurava, quase para si:
"Os sectários passam. O mandonismo murcha. Mas o que se planta em nome do comum, com liberdade e justiça, floresce — mesmo em tempos de emburrecimento."
"Moralismo de vitrine: quando a intolerância aponta o dedo, mas tropeça nos próprios desejos."
“Eu só peço que me leiam como fui escrita — com pluralidade e sem gritos.” — Constituição 1988
Título: “Não nasci para ser enfeite”: uma entrevista exclusiva com a Constituição de 1988
Em tempos de desordem e retórica vazia, a redação do Jornal da República convidou uma ilustre personagem para uma conversa íntima e urgente: a Constituição Federal de 1988. Símbolo da redemocratização, tantas vezes citada, distorcida e, ultimamente, ignorada, ela nos recebeu com o mesmo tom que marca sua existência — serena, plural e, apesar dos pesares, ainda esperançosa. A entrevista ocorreu numa manhã de junho, no Salão Nobre da Memória Democrática, onde a Carta repousa entre emendas e lembranças.
Jornal da República: Senhora Constituição, depois de quase quatro décadas, como a senhora se vê no Brasil de hoje?
Constituição (1988): Com a altivez de quem resistiu à tempestade, mas também com a melancolia de quem já foi lida com mais devoção. Não esperava ser perfeita — nenhum texto fundacional o é —, mas sempre acreditei que seria respeitada como bússola, não como biombo. Ultimamente, ando sendo dobrada como panfleto por uns e esquivada por outros.
Jornal da República: A senhora foi chamada de “Constituição Cidadã”. Ainda se sente assim?
CF/88: O apelido me honra, mas como toda alcunha, virou rótulo. Cidadania não é só ter direitos no papel; é ter voz, teto, tempo, pão, acesso e voto. Se só sou lembrada em CPIs, sabatinas e crises, algo se perdeu no caminho. Continuo cidadã, sim — mas ando sendo usada por quem despreza o povo que me escreveu.
Jornal da República: A senhora esteve sob ataque recentemente. Há quem diga que o país precisa de uma nova Constituição. O que pensa disso?
CF/88: Isso me lembra aquelas famílias que trocam a avó porque ela já não cozinha como antes. Não é trocando o vaso que se cura o clima. Quem fala em nova Constituição costuma esconder um velho autoritarismo disfarçado de modernização. Reformas? Claro, sou aberta a elas — já aceitei mais de 130 emendas. Mas querer me revogar por não atender a devaneios é outra coisa.
Jornal da República: E sobre a direita emburrada e a esquerda sem imaginação?
CF/88: Que saudades do tempo em que divergência era sinônimo de construção, não de cancelamento. A direita está emburrada, sim — mas é um emburramento performático, cheio de ódio com aparência de virtude. Já a esquerda anda repetitiva, girando num carrossel de conceitos que parou nos anos 80. Ambas me leem com olhos fechados: uma quer me rasgar, a outra me fossilizar. Eu só peço que me leiam como fui escrita — com pluralidade e sem gritos.
Jornal da República: Como é ser mulher num país que ainda luta por igualdade?
CF/88: Ah, essa pergunta me comove. Fui parida com a ajuda de 26 mulheres extraordinárias que enfrentaram um Congresso de 500 homens. Foi no meu ventre que se inscreveu, com coragem, que “homens e mulheres são iguais perante a lei”. Mas, confesso: fico triste quando vejo que essa igualdade ainda é teórica em muitos cantos. A misoginia tem mais lobby do que o batom.
Jornal da República: O que a senhora diria ao povo brasileiro neste momento de tensão e descrença?
CF/88: Que democracia é planta que se rega todo dia, mesmo quando não floresce. Que o Estado de Direito não é um luxo da esquerda nem um incômodo da direita — é o solo comum. E que, acima de tudo, não nasci para ser enfeite. Fui escrita com suor, lágrimas e acordos. Se hoje ando empoeirada, é porque alguns preferem o pó ao texto. Mas ainda estou aqui — esperando ser lida com olhos limpos.
Jornal da República: Por fim, senhora Constituição, qual é seu maior medo?
CF/88: Que o Brasil se esqueça de que não existe República sem república, nem liberdade sem memória. Meu maior medo não é ser violada — é ser esquecida. Porque, no esquecimento, morre não só o direito, mas também o futuro.
⚰️ Epitáfio
Aqui jaz o texto que sobreviveu a golpes, emburrecimentos e mutações — que resistiu, não por glória, mas pela fidelidade de seus leitores.
“Democracia em terapia: diagnosticando o que é liberdade e o que é embuste.”
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