sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

VERGONHA E ESPERANÇA

----------- "Uma Esperança" - Clarice Lispector - [ Voz de Aracy Balabanian ]
---------- Missioni - Uma história sobre brasileiros em guerra Capa comum – 10 novembro 2023 por Maurício Ricardo (Autor) 4,9 de 5 estrelas 97 avaliações de clientes "Eduardo e Orlando foram amigos na infância, mas acabaram separados por suas diferenças sociais e raciais no Brasil da primeira metade do século XX. Já adultos, reencontram-se como soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e vão lutar juntos na Itália. Num pequeno vilarejo nos Apeninos, chamado Missioni, os dois descobrirão que os nazistas não são seus únicos inimigos. Descobrirão também o valor do amor e da amizade em meio aos horrores da guerra. O livro é ambientado no Brasil e na Itália e cobre um período de 25 anos na vida dos personagens. Usando elementos históricos, Missioni é uma história de ficção que dialoga com fatos importantes da vida brasileira, numa trama cheia de ação, emoção e romance." ----------- Radamés Gnattali — Nóis Não Usa os Bleque Tais Choro e Poesia _________________________________________________________________________________________________________ ---------- (SÓ CONSIGO ENUNCIAR E DESCREVER AS REGRAS DESSE UNIVERSO USANDO O PRESENTE, SENDO TÃO IMUTÁVEIS COMO ERAM PARA MIM AOS DOZE ANOS. -------------
---------- Por Ivandro Menezes 7 de outubro de 2022 A vergonha, de Annie Ernaux Há uma França na obra de Annie Ernaux, ao mesmo tempo, particular, inscrita nos acontecimentos de sua vida, e; uma outra pública, de todos, reconhecível em seus modos, preconceitos, contradições. Em sua prosa, Ernaux revela que é possível que algo pessoal, tão íntimo, seja também político. A vergonha, mais recente lançamento da Prêmio Nobel de Literatura de 2022 no Brasil, reúne todos os elementos presentes nas obras que o antecederam, porém aprofunda recortes e distinções de classes socioeconômicas, conduzindo o leitor não a uma crítica estéril e impessoal (daquelas que fazem parecer um penduricalho no texto, algo desatrelado da narrativa, que funciona como pretexto para a crítica), mas tomando para si como parte siginificativa do lugar que ocupa e que busca compreender. Ernaux trabalha bem esse deslocamento da filha de operários que se distancia de seu mundo, de sua família ao adquirir uma educação formal. O capital cultural a distingue dos pais e vizinhos. Essa perpectiva (bourdieuriana?) se faz presente noutros livros da autora (como em O lugar e O acontecimento). Em termos práticos, a impede de partilhar momentos de dor e dificuldade, deslocando-a a um lugar externo, de observadora de um mundo tão seu e tão outro. Eis o ponto de vista da narradora: entre o passado, o remoto ano de 1952, quando Ernaux tinha apenas 12 anos e testemunha a tentativa de feminicído do pai, e; o presente, quando essa mulher madura reflete sobre o sentimento de vergonha que sentiu. “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde.” É a partir desse acontecimento que Ernaux reconstrói minuciosamente o seu lugar (físico e metafórico). Com rigor antropológico, afinal declara que gostaria de ser etnóloga de si mesmo, demarca limites, muros, fronteiras e zonas de perigo e segurança, observando e descrevendo hábitos e fatos sociais. Com atenção, descreve cada centímetro de existência, revelando as inadequações que a conduzem a sentimentos de culpa, medo e vergonha. O texto tem tons rudimentar e exploratório. Em certas passagens parece abandonar por completo o evento desencadeador da narrativa para se concentrar nesses aspectos socioantropológicos, a exemplo dos atinentes a pesquisa realizada em arquivos, com o intuito de reconstruir os eventos daqueles domingo de junho de 1952. Ernaux tenta situar no mundo em derredor a tentativa de feminicído ocorrida na cozinha de sua casa. Se por um lado parece distanciar-se, de outro aponta para essa tentativa voraz de distanciar toda carga emocional e traumática, além do peso produzido pelo silêncio optado pela família, que nunca mais falou daquela tarde. Um movimento implica o outro, a tentativa de distanciamento pessoal e afetivo é que conduz ao mergulho no entorno. Aqui Ernaux revela originalidade, fugindo de retratar o cotidiano, o atenado súbito e furioso de seu pai à vida de sua mãe sob outras perspectivas. Nesse sentido, não recorre a dor, ao sofrimento, trazendo um relato íntimo sob uma luz psicanalítica, mas etnográfico e, por conseguinte, não um relato de si, mas de outro. O texto desnudo, ou seja, sem firulas, direto e objetivo, consegue dar a narrativa consistência, concisão e precisão. Soa simples, sem deixar entrever a sofisticação e o jogo que maneja bem. Por outro lado, aparece de modo mais rudimentar que em outros de seus livros (v. O acontecimento). A brevidade de seu relato também é acertada, pois num só golpe prende o leitor, desconcertando-o, quer pela sensação de que precisa reler para encontrar detalhes não percebido, quer pela capacidade de fazer refletir sobre as pessoas envolvidas no relato pessoal compreendendo-as como partes integrantes de um sistema, de uma estrutura social. Em A vergonha, Ernaux confirma a consistência de seu projeto literário, no qual o íntimo e pessoal é também público e político. Longa vida a Annie Ernaux! https://www.literaturabr.com/2022/10/07/a-vergonha-de-annie-ernaux/ _________________________________________________________________________________________________________ ---------- ------------- Prova de Carinho / Nois Nao Usa As Bleque Tais --------------- Prova de Carinho Adoniran Barbosa Com a corda mi Do meu cavaquinho Fiz uma aliança pra ela Prova de carinho Com a corda mi Do meu cavaquinho Fiz uma aliança pra ela Prova de carinho Quanta serenata Eu tenho que perder Pois meu cavaquinho Já não pode mais gemer Quanto sacrifício Eu tive que fazer Para dar a prova pra ela Do meu bem querer Com a corda mi Do meu cavaquinho Fiz uma aliança pra ela Prova de carinho Com a corda mi Do meu cavaquinho Fiz uma aliança pra ela Prova de carinho Quanta serenata Eu tenho que perder Pois meu cavaquinho Já não pode mais gemer Quanto sacrifício Eu tive que fazer Para dar a prova pra ela Do meu bem querer Com a corda mi Do meu cavaquinho Fiz uma aliança pra ela Prova de carinho Com a corda mi Do meu cavaquinho Fiz uma aliança pra ela Prova de carinho Composição: Herve Cordovil / Adoniran Barbosa. https://www.youtube.com/watch?v=Q6u9qHuxnb4 _________________________________________________________________________________________________________ ---------- ---------- Radamés Gnattali & Adoniran Barbosa - Tema de Amor (Eles Não Usam Black Tie) ---------- Considere os versos da canção abaixo:Nosso amor é mais gostosoNossa saudade dura maisNosso abraço mais apertadoNós não usa as "bleque tais"!O samba "Nóis não usa as bleque tais", composto por Adoniran Barbosa e Gianfrancesco Guarnieri, serviu de trilhasonora para a peça Eles não usam black-tie (1958). A respeito do assunto, assinale a alternativa correta.a) A escolha de um samba como trilha sonora diminuiu a contundência da crítica social pretendida pelo autor da peça,Gianfrancesco Guarnieri.b) A diferença entre o amor "mais gostoso" e o amor de quem usa "bleque-tais", com vantagem para o primeiro, dilui o efeitoda oposição entre interesses coletivos e individuais, tema central da peça.c) O samba, entoado na peça pelo personagem Chiquinho, colabora para a representação e valorização da cultura popular.d) Tião, que usa "black-tie" (smoking e gravata), representa na peça o opressor, cujo poder é empregado para reprimir agreve organizada pelos moradores do morro.e) A valorização da vida simples e a consequente rejeição da possibilidade de ascensão social conduzem aos finais trágicosde Tião e de Otávio #UFPR #VESTIBULAR A alternativa correta é: c) O samba, entoado na peça pelo personagem Chiquinho, colabora para a representação e valorização da cultura popular. Na letra de Adoniran Barbosa, o uso do termo "bleque tais" está escrito de uma forma aportuguesada na expressão em inglês "black-tie", o que já expressa uma valorização da cultura popular brasileira. Nas suas letras, Adoniran costumava expressar o modo de falar das pessoas de sua comunidade. Um modo de falar coloquial, espontâneo e que nem sempre estava de acordo com a norma padrão. Além disso, o fato de ele exaltar o afeto e o calor humano do seu povo na forma de samba contribui ainda mais para essa valorização. https://www.blogger.com/blog/post/edit/8761611736633123803/6884596715309274214 _________________________________________________________________________________________________________ -----------
----------- José de Souza Martins* - A política na religião Valor Econômico Há um ataque ao Brasil religioso, agravado por sua extensão ao Brasil político, por igrejas e seitas cuja concepção de fé é a de uma fé de guerra santa contra as demais visões de mundo No final de novembro, os desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo atenderam a pedido da Procuradoria Geral de Justiça que questionava a constitucionalidade de dispositivo do Regimento Interno da Câmara Municipal de Araraquara. O que obrigava a leitura de seis versículos da Bíblia Sagrada, pelos vereadores, em rodízio, por ordem alfabética, no início de cada sessão. A Bíblia ficaria aberta no recinto em página determinada, como num templo evangélico. Em 2017, em sua primeira sessão ordinária da Câmara, a vereadora Thainara Faria, do Partido dos Trabalhadores, católica praticante, na época estudante de direito, hoje advogada e deputada, foi à tribuna e declarou que não participaria do rodízio. Invocou a laicidade do Estado brasileiro, definida na Constituição. A reação da vereadora causou polêmica, apesar de suas fundamentadas razões. A norma inserida no Regimento da Câmara, em 2006, tinha uma definição maliciosa que colocava em situação adversa e estigmatizante quem, mesmo invocando a Constituição, optasse por não fazer a leitura. O discordante deveria solicitar a retirada de seu nome, indevida e compulsoriamente nela incluído, da lista de rodízio dos leitores do trecho da Bíblia preconizado. Ficava ele ou ela, assim, indevidamente exposto como se fosse pessoa não identificada com valores religiosos. A responsabilidade pela negativa não era entendida como da maioria obediente, numa ação irregular, e sim do desobediente cumpridor da Constituição. Autoritarismo de minoria e não precedência dos direitos da maioria. O notório abuso da norma foi levado à consideração do Ministério Público pelo jornalista Eduardo Banks, em 2021, que apontou outras câmaras municipais envolvidas em idêntica irregularidade, como a de Itapecerica da Serra e a de São Carlos, podendo-se aí incluir a de Rio Preto. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça acolheu o pedido da Procuradoria Geral de Justiça. Por unanimidade os desembargadores entenderam ser inconstitucional a regra da Câmara de Araraquara, entendimento que se aplica às regras de mesmo vício de todas as câmaras municipais do estado de São Paulo. A decisão se refere a que a anomalia julgada fere a isonomia que supostamente deveria haver entre religiões ou entre denominações religiosas. Isto é, igualdade de oportunidade de usar textos religiosos nas instituições públicas em favor do ponto de vista de determinada religião. O que é provavelmente um equívoco em face da Constituição, pois não se trata de um direito. Outras religiões ou crenças poderiam invocar o suposto direito e incluir a leitura de seus textos sagrados nas sessões das câmaras. A fragilidade da decisão não está no prejuízo à isonomia, mas no desconhecimento de que religião, no Brasil, é questão privada desde quando estabelecida a separação entre Estado e Igreja. Cada um tem o direito de ter sua religião, mas não tem o direito de impô-la a outros. Porque passariam as câmaras a maior parte do tempo rezando e funcionando como recinto de nova e peculiar religiosidade, a do testemunho de fé fora do lugar, por meio da invasão das instituições públicas. Continua pendente, no entanto, a questão da compreensão jurídica da laicidade do Estado brasileiro. A qual já se tornara clara quando os tribunais reconheceram que desde o Império, quando o Brasil acolheu a reivindicação de países estrangeiros, que tinham aqui seus negócios e seus súditos, para que lhes fosse garantido o direito do exercício comunitário de sua fé, ainda que em edifícios sem forma exterior de templo. Era e é o entendimento de que religião é uma questão privada, praticada nos recintos do sagrado. Os evangélicos estão na contramão desse processo. Por iniciativa e inspiração externa, desde os anos 1950, há um ataque ao Brasil religioso, agravado por sua extensão ao Brasil político, por igrejas e seitas cuja concepção de fé é a de uma fé de guerra santa contra as demais visões de mundo, religiosas ou não. Isso reduziu o espaço de legitimidade das igrejas protestantes históricas, que já não são religiões de afirmação da identidade e diversidade das crenças mas religiões de intolerância e em nome dela religiões de conflito social, ideológico e político. O uso político-partidário da religião, por parte de pastores e de igrejas, agrava o cenário nas anomalias da indistinção entre púlpito e gazofilácio (a caixa de coleta do dízimo), entre fé e ódio, entre ambição de salvação e ambição de poder. O que vem transformando essas igrejas em instrumentos de destruição provável justamente da fé evangélica no Brasil e da democracia que lhes é garantia de direito, de atualização e de sobrevivência. *José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022). _________________________________________________________________________________________________________ ---------
---------- Fernando Gabeira - O estranho mundo a que o Brasil voltou O Estado de S. Paulo A turbulência mundial parece também se voltar para a América do Sul; e o realismo mágico sul-americano parece ter se expandido para o mundo O Brasil voltou, diz o slogan internacional do País, rompendo com a era de isolamento de Bolsonaro. O Brasil é de novo um protagonista, afirmam os jornais. De fato, num mesmo período de tempo o País ocupou a presidência do Conselho de Segurança (CS) da ONU, do G-20 e do Mercosul. Antes mesmo de tomar posse, Lula foi ao Egito e afirmou, no discurso em Sharm el-Sheik, que o País protegeria a Amazônia e se empenharia, em nível global, no combate às mudanças climáticas. De uma só vez, o Brasil desfazia o nó do isolamento e indicava que iria considerar seus recursos naturais com a importância estratégica que mereciam. Ocorre que o mundo ao qual o Brasil estava voltando vivia também uma guerra na Europa. As guerras no Iêmen ou em vários países africanos não aparecem na cena internacional. A Rússia invadira a Ucrânia e era preciso se posicionar. Lula reagiu de acordo com os princípios da política externa nacional: buscar soluções pacíficas e negociadas para os conflitos. Mas seu desejo de conciliar acabou colidindo com o próprio discurso. A Ucrânia torceu o nariz para a sua afirmação de que numa guerra a culpa era dos dois. E os países ocidentais não receberam bem sua crítica sobre o envio de armas para a Ucrânia. O pêndulo poderia ter se voltado para o país invadido. Mas o Brasil acabou parecendo ser mais simpático a Putin. Não sei explicar essa ligeira tendência. Creio que a Rússia ainda é vista a partir da literatura da revolução e, mesmo, de seu combate contra as tropas hitleristas na Segunda Guerra. Quando fui a Rússia, na Copa de 2018, pesquisei uma dúzia de livros sobre a saga da oposição e os meandros do governo Putin. Constatei que quase todos eram desconhecidos no Brasil. A repressão a manifestantes democráticos, o envenenamento de opositores, o flerte da Rússia de Putin com a extrema direita, tudo isso passa muito rápido. Ainda agora, a decisão do governo Putin de criminalizar o movimento LGBT e igualá-lo ao extremismo não é vista como parte de um todo reacionário e coerente. Putin é um criminoso procurado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). A tendência do governo é de relativizar essa acusação. Não se trata só de sermos signatários do tratado que criou o tribunal. O problema é que, acossados pelos desmandos de Bolsonaro, o TPI foi usado como defesa. Valeria para Bolsonaro e não vale para Putin. O segundo grande momento do ano foi o atentado terrorista do Hamas, matando e queimando crianças e idosos e violentando mulheres. Lula afirmou que era um atentado terrorista. Mas o governo não classifica o Hamas como terrorista porque a ONU não o faz. Na presidência do CS da ONU, o Brasil realizou um grande trabalho pelo cessarfogo. A moção que redigiu e encaminhou teve 12 votos a favor e só não vigorou por causa do veto dos EUA. De qualquer maneira, abriu caminho para uma proposta mais branda de Malta, que acabou sendo aceita. Da mesma forma, a diplomacia brasileira conseguiu retirar com êxito quem estava em Israel, na Cisjordânia e mesmo na Faixa de Gaza. Isso passa aos brasileiros a sensação de que não são esquecidos quando colhidos por grandes problemas no exterior. Lula tem criticado as ações de Israel, que, no combate ao Hamas, está punindo toda a população de Gaza. A preocupação com os civis em Gaza é internacional. O próprio papa usou a expressão terrorismo para definir a matança generalizada. Países como a Irlanda também criticam a maneira como Israel desenvolve a luta. Não apoiar incondicionalmente Netanyahu não significa necessariamente voltar as costas para Israel, desde que se mantenha a visão estratégica de dois Estados como saída para a crise. Um ou outro adjetivo, uma ou outra frase não chegam a abalar relações entre países. Se nos atemos exclusivamente às manifestações diplomáticas oficiais, o Brasil consegue navegar bem nesta crise e deve retirar ainda mais 180 pessoas de Gaza. Só que a turbulência parece se voltar também para a América do Sul. Neste campo, o papel de mediador do Brasil é essencial. A Venezuela quer tomar Essequibo da Guiana. É uma região de 159 mil km2 com 11 bilhões de barris de petróleo e muito minério. Americanos e chineses a exploram. Mas tudo acontece perto da fronteira do Brasil e, caso a crise se acentue, depois do plebiscito venezuelano, o País terá um importante papel. Lula já indicou sua posição. Não parece apoiar nenhum tipo de conflito e certamente será um mediador decisivo, caso aconteça algo. Nunca se sabe se Maduro fez o plebiscito só para se fortalecer, pois a oposição não poderia votar contra. Pode ser que o use apenas como um trunfo nas eleições presidenciais. Difícil prever com precisão os passos de Maduro. É um homem que recebe orientação de passarinhos, assim como Milei recebe orientação de um cachorro. O ano que começou reverberando o discurso de Sharm elSheik termina com outro discurso, de Dubai. O Brasil já não promete só mudar de rumo, mas se dispõe a liderar o mundo no campo ambiental, pelo exemplo. Dubai foi sede da COP mais ambígua da História. Seu presidente, o sultão Al Jaber, dirige a empresa petroleira dos Emirados e deu declarações duvidando da condenação científica dos combustíveis fósseis. E o Brasil, candidato a líder na transição energética mundial, aproveitou a oportunidade para aderir à Opep+. O realismo mágico sulamericano parece ter se expandido para o mundo. _________________________________________________________________________________________________________ ---------
--------- Clarice Lispector: uma esperança Foto por RoosRoja. “Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustenta sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve o grito abafado de um de meus filhos: – Uma esperança! e na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça, numa parede. Pequeno reboliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser. – Ela quase não tem corpo, queixei-me. – Ela só tem alma, explicou meu filho, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros das parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender. – Ela é burrinha, comentou o menino. – Sei disso, respondi um pouco trágica. – Esta agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita. – Sei, é assim mesmo. – Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pela antenas. – Sei, continuei mais infeliz ainda. Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse. – Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim. – Andava mesmo devagar – estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo. Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu detrás de um quadro uma aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança: – É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte… – Mas ela vai esmigalhar a esperança!, respondeu o menino com ferocidade. – Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros – falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança. O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, como o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não há dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo. Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve quebra, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexi o braço e pensei: ‘e essa agora? que devo fazer?’ Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada“. (1) O Facetas deseja um Feliz Natal com Esperança para Esperançar. São os votos de Gomes, Angel e Winnie. Fonte: 1. Clarice Lispector. Uma esperança. In: O primeiro beijo & outros contos. Editora Ática: São Paulo, 1990. _________________________________________________________________________________________________________

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