quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

MINEIRINHO

------------ Nas Entrelinhas: Com COP28 esvaziada, acordo frustra ambientalistas Publicado em 14/12/2023 - 07:31 Luiz Carlos AzedoPolítica A responsabilidade está sendo transferida para os países com grandes extensões de florestas (sumidouros naturais de carbono), que podem mitigar a poluição produzida no Hemisfério Norte Na adolescência, o sonho do jovem deputado federal Amom Mandel (Cidadania-AM), hoje um campeão de votos aos 22 anos (foi eleito por 288.555 eleitores), era participar de uma Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP. Por isso, ser um dos parlamentares que representaram o Congresso brasileiro na COP28, em Dubai, parecia ser a realização desse grande objetivo para quem é um ativista ambiental desde os 12 anos. Idealizador do Projeto Galho Forte, com objetivo de transformar Manaus numa cidade verde e sustentável, Amom dedica parte dos fins de semana às comunidades ribeirinhas, limpeza de rios e plantio de árvores frutíferas, com a distribuição de mudas cuja meta é chegar a uma árvore por voto que recebeu. Como vereador, em dois anos de mandato, plantou 7.537 arvores, equivalentes à sua votação em 2020, quando fora eleito. O jovem parlamentar voltou de Dubai muito decepcionado. “Fiz questão de percorrer todas as salas. A maioria reunia meia dúzia de pessoas, entre as quais o orador com a palavra e aquele que o sucederia, embora os temas fossem muito importantes”, disse. O Brasil levou uma grande delegação, com inédita participação de representantes indígenas. Mas “a discussão de fundo ficou restrita aos representantes oficiais dos países e não enfrentou, como deveria, a questão dos combustíveis fosseis”. Esse desfecho explica os sentimentos de Amom, que denuncia sistematicamente a gravidade do impacto do aquecimento global, do desmatamento e das queimadas no Amazonas, que transformou Manaus numa das cidades mais poluídas do mundo. O acordo final da 28ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas é considerado apenas um pequeno avanço em relação à questão central do clima: a redução gradual do uso de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural) para diminuir a emissão de gases de efeito estufa, responsáveis pelas mudanças climáticas, que têm impactado o planeta e alteram o clima na Amazonia, tanto quanto o desmatamento. O texto não define como será a transição energética, quais recursos financeiros serão utilizados e, principalmente, não fala em eliminar totalmente os combustíveis fósseis. A necessidade de reduções profundas, rápidas e sustentadas da emissão de carbono, caso a humanidade queira limitar o aumento da temperatura global em 1,5°C, é uma constatação cientificamente comprovada, mas não foram levadas em devida conta pelos representantes de 195 nações. Cientistas e ambientalistas de todas as nacionalidades estão frustrados com isso. Encerrada ontem, a COP28 foi convocada para estabelecer o fim do uso dos combustíveis fósseis na produção de energia. O documento final até aponta, pela primeira vez, a necessidade de uma transição energética, mas não leva em conta a meta da ONU de extinguir o uso desses poluentes até 2050. Carvão e gás O acordo determina que os países devem se “afastar dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos”, sem determinar como isso deve acontecer. Responsável pela geração de 37% da eletricidade no mundo, o carvão é responsável por 30% do efeito estufa, mas, sobre isso, a resolução retrocede em relação à COP26. Os combustíveis de transição podem desempenhar um papel importante para a transição energética, garantindo segurança, mas foram tratados genericamente. O acordo afirma apenas que os países devem acelerar o uso de sistemas de energia com emissões zero ou baixas, utilizando tecnologias renováveis, nucleares e de captura e armazenamento de carbono. Ou seja, abre a brecha para o gás natural, que produz dióxido de carbono (CO²). Quem mais ganha com isso é a Rússia. Na questão da captura de carbono, houve avanço ao defender tecnologias com zero ou baixa emissão de carbono para fazer a transição energética. A captura pode minimizar o impacto dos gases do efeito estufa. Empresas e países têm desenvolvido diferentes tecnologias para reter, armazenar e transformar o carbono retirado da atmosfera em outras substâncias, como o bicarbonato de sódio. Os ambientalistas criticam a falta de investimentos dos países desenvolvidos nesse setor. A responsabilidade está sendo transferida para os países com grandes extensões de florestas (sumidouros naturais de carbono), que podem mitigar a poluição produzida principalmente no Hemisfério Norte. Mas precisam de investimentos dos países mais ricos e poluidores. Compartilhe: _________________________________________________________________________________________________________ -------------
------------ Brasil precisa se preparar para o colapso da China e da globalização 23 de novembro de 2023 Apertem os cintos. A globalização durou enquanto havia dinheiro barato e demografia favorável. Não é mais esse o cenário – e os próximos anos serão ainda mais difíceis. O envelhecimento populacional reduzirá drasticamente o volume de recursos disponíveis e o número de consumidores, emperrando o funcionamento da economia mundial, prevê o estrategista geopolítico Peter Zeihan, autor do best-seller The End of the World is Just the Beginning – Mapping the Collapse of Globalization. “O desequilíbrio entre oferta e demanda que o mundo precisa absorver é imensa. Não é algo politicamente sustentável – mesmo que a China fosse considerada uma nação aliada, algo que ela não é,” Peter disse ao Brazil Journal. “Esse sistema não funciona mais.” ------------
------------ Com comentários diretos e muitas vezes contra o consenso, Peter arregimentou uma pequena legião de fãs para o seu canal do YouTube, onde tem 688 mil inscritos e posta análises diariamente. Um vídeo recente sobre o possível colapso chinês viralizou e passou dos 2 milhões de visualizações. Em dezembro chegará às livrarias a nova edição de seu primeiro best-seller, The Accidental Superpower, de 2014. Em cada um dos capítulos há um comentário sobre como os assuntos tratados evoluíram na última década. Ex-estrategista da consultoria Stratfor, Peter segue a tradição de enfatizar a relevância de aspectos geográficos e demográficos em suas análises. Falando sobre a perspectiva das exportações brasileiras, ele observou que o elevado custo de transporte é um fator secundário enquanto a China estiver disposta a bancar as importações — mas alerta que o eventual colapso do consumo chinês poderá inviabilizar parte dos produtores. “Não há razão para o Brasil ser apenas um país com uma pá que manda tudo para o exterior,” disse Zeihan. Para ele, o País caiu numa arapuca, e os brasileiros deveriam melhorar suas relações com os EUA, cuja economia deverá resistir melhor à reversão da globalização. A seguir, os principais trechos da entrevista. Muitos gestores e analistas têm afirmado que vivem hoje no cenário geopolítico mais complicado de suas carreiras. Qual a sua avaliação? É ainda mais complicado do que era nos 60 ou nos anos 70? Do ponto de vista de um gestor financeiro, é muito pior e vai piorar consideravelmente. Nas décadas de 60 e 70, a situação geopolítica estava em grande parte relacionada com petróleo e energia. O outro lado da Guerra Fria não era financeiramente ativo, e o mundo em desenvolvimento era muito limitado no seu envolvimento, geralmente de maneira indireta por meio de empréstimos. Hoje temos muito mais correntes cruzadas. O volume de recursos é maior e o número de jogadores é significativamente maior. As perturbações no equilíbrio geopolítico afetam uma indústria que lidava até pouco tempo atrás com um ambiente rico em capital, de crescimento constante e a ascensão do mundo em desenvolvimento. Há outro ângulo ainda mais significativo e ele tem a ver com a demografia. Qual o impacto da demografia nos mercados? À medida que você envelhece, seu patrimônio líquido aumenta. Para a maioria de nós, entre 55 e 65 anos é quando seremos mais ricos. Nossos filhos já saíram de casa, nossas despesas estão sob controle. A poupança detida pela faixa etária entre 55 e 65 anos representa 70% do capital privado global. Do início da década de 2000 ao final da década de 2010, a geração baby boomer mundial tinha entre 55 e 65 anos. Estávamos no máximo capital disponível. Para países como o Brasil, que entraram na história do desenvolvimento um pouco mais tarde, havia capital com o menor custo de toda a história. Mas essa situação foi um breve momento na história – e está chegando ao fim. As próximas gerações são menores e possuem menos recursos. Portanto, a disponibilidade global de capital irá diminuir num futuro próximo. E quando digo futuro previsível, estou falando de meio século. Uma das perguntas incômodas que as pessoas no setor financeiro terão que se fazer é se, num cenário de queda do capital, haverá a necessidade de tanta gente trabalhando na gestão de recursos. Em ‘The End of the World is Just the Beggining,’ você diz que a “globalização vai se despedaçar.” O que explica o colapso da globalização? Vamos começar com o estratégico e depois passar para o demográfico e o econômico. Estrategicamente, os EUA nunca foram globalizados. Criamos o sistema globalizado para construir uma aliança para enfrentar a Guerra Fria. As importações como percentual do PIB são de apenas 14%. Cerca de metade disso está dentro do Nafta (área de livre comércio da América do Norte). Existem pontos de exposição ao comércio global e, obviamente, vários deles são com a China. Estamos trabalhando pouco a pouco e cada vez mais para trazer indústrias de volta para territórios amigos. Os EUA estão no processo de renacionalizar para a América do Norte o que haviam espalhado pelo mundo. Volto à demografia. Todo o mundo rico está envelhecendo. Para haver comércio internacional, é preciso ter um número suficiente de jovens consumidores em diversos países. Só assim é possível justificar essas idas e vindas do comércio mundial. Já não temos isso. Há relações comerciais resultantes da ascensão chinesa, mas agora os chineses descobriram que simplesmente não têm filhos suficientes para manter um sistema orientado para o consumo. A China depende hoje de fazer algo que os sul-coreanos costumavam fazer, que é o despejo de produtos baratos pelo globo. A diferença é que a Coreia do Sul tem apenas 40 milhões de pessoas. A China tem mais de 1 bilhão. Portanto, o desequilíbrio entre oferta e demanda que o mundo precisa absorver é imensa. Não é algo politicamente sustentável – mesmo que a China fosse considerada uma nação aliada, algo que ela não é. Esse sistema não funciona mais. Se olharmos para a política nos EUA, até mesmo de presidentes que todos consideram radicalmente diferentes, como Trump e Biden, perceberemos que nos assuntos econômicos internacionais eles têm uma política muito semelhante. O diferencial de Biden é apenas um sorriso no rosto e uma gramática melhor. Na sua análise, todos os países deverão sentir os impactos negativos da ‘desglobalização,’ mas os EUA nem tanto. Por quê? Vamos começar com o básico. Os EUA têm a melhor geografia econômica do mundo. Isso independe do capital humano ou da política. Temos muitas terras aráveis planas que não exigem muito trabalho para serem aproveitadas e temos a melhor rede hidroviária do mundo. Também temos uma proteção natural entre os nossos dois vizinhos mais próximos. Não enfrentamos um ataque militar desde a Guerra Mexicano-Americana (1846-1848). Isso nos permite investir na economia, em pesquisa e desenvolvimento tecnológico, e subir na escala de valor adicionado e em todas essas coisas pelas quais os EUA são famosos e infames. Temos também uma vantagem demográfica. Quando um país se industrializa, as pessoas mudam da fazenda para a cidade. Mas se a sua transição for muito rápida, você basicamente se esquece de como administrar a fazenda e de como ter filhos e de uma geração depois, você fica paralisado. É onde os chineses estão agora. Eles comprimiram 250 anos de industrialização em 40. Conseguiram um crescimento espantoso, mas só se pode urbanizar uma vez. Eles estão descobrindo que envelheceram tão rapidamente que já não há pessoas suficientes com menos de 40 anos para sequer teoricamente ter a próxima geração. Nos EUA, a urbanização foi mais lenta e não intensa, a natalidade não caiu tão vertiginosamente como a de todos os outros. Nossos boomers fizeram filhos, algo que seus equivalentes no resto do mundo não fizeram. Todos os problemas que descrevi para os outros países se aplicam aos EUA, mas numa escala menor, porque nossas novas gerações são proporcionalmente maiores do que em outras economias maduras. Há gestores e economistas menos otimistas com o futuro americano, tendo em vista a questão fiscal. As projeções mostram um avanço expressivo dos gastos com aposentadorias e outros benefícios. A dívida pública já supera 110% do PIB. Isso não o preocupa? Sim, claro que é um problema agora. Algumas despesas são de fato pouco produtivas e, quando fazemos isso, estamos basicamente queimando dinheiro. Se tivéssemos seguido o plano de Bill Clinton nos anos 90, não só teríamos um orçamento equilibrado como já já teríamos assegurado a aposentadoria dos boomers. Estaríamos livres das dívidas. Mas quase todos os outros países estão em uma situação pior – e os EUA imprimem a moeda de reserva internacional. Você acha que os chineses serão capazes de fazer a transição para uma economia mais orientada para o consumo? Um sistema orientado para o consumo está completamente além da sua capacidade. Eles têm mais pessoas na faixa dos 60 na adolescência. Quase não têm filhos. É um país que está morrendo. A questão é apenas de ritmo. Estamos perante um colapso da base industrial chinesa devido à falta de trabalhadores dentro de uma década. Além do mais, é um país que tem um culto à personalidade. Então a capacidade de evoluir depende do processo de pensamento de um sujeito que decidiu se manter isolado. Tudo que gostaria de fazer, como gestor em qualquer setor, seria limitar minha exposição a um país assim. O Brasil tem números bastante favoráveis na balança comercial, graças em boa parte às vendas para a China. A economia brasileira precisa se preparar para uma desaceleração chinesa? Ou nossas commodities serão menos afetadas? A produção no Brasil, seja ela de material agrícola, ferro ou qualquer outra coisa, é feita no interior do País e vocês precisam despachar essas mercadorias por rotas bastante caras. Isso só funciona quando o crédito é barato e o consumidor é bastante insensível aos preços. Esse foi o ambiente em que vivemos nos últimos 25 anos. Os chineses basicamente expandiram a sua oferta monetária, imprimindo moeda a um ritmo que o Brasil dos anos 70 consideraria embaraçoso. Eles têm essa aura de invencibilidade, mas a sua carga de dívida aumentou 35 vezes nos últimos 20 anos. Sabemos como isso vai acabar. Enfrentarão um colapso financeiro que fará com que a crise da América Latina na década de 80 pareça apenas um piquenique. Os brasileiros deveriam se preparar. Se os chineses não continuarem sendo uma fonte infinita de dinheiro, muitos produtores do Brasil deixarão de ser viáveis. Quanto mais vocês puderem subir na escala de valor agregado, mais protegidos vocês estarão em relação ao que vem a seguir. Poderão se aproveitar de possíveis novos compradores em regiões que estão se industrializando na Ásia. Não há razão para o Brasil ser apenas um país com uma pá que manda tudo para o exterior. Como fazer isso? Um desafio é que, se o Brasil continuar envelhecendo no ritmo atual, estará em uma situação parecida com a chinesa ou alemã até 2060, talvez 2070. O problema é que Lula decidiu fazer parceria com os chineses, constituir joint ventures, e depois os chineses competiram com você em todos os mercados industriais que vocês tinham. Ao mesmo tempo em que vocês estavam se urbanizando, você estavam desindustrializando. Vocês precisam reconstruir a sua base industrial. Em segundo lugar, será necessário incentivar as famílias a terem mais filhos. Caso contrário, o Brasil desaparecerá da face da Terra no início do próximo século. Uma forma de mitigar isso é estabelecer parcerias com países com população mais jovem. Vejo duas opções naturais, a Argentina e os EUA. A Argentina, como sabemos, tem uma política econômica consistentemente criativa. Então as alternativas são se amarrar com um país empenhado em ser um caso perdido ou encontrar uma maneira de melhorar as relações com os americanos. Mas o Brasil está cada vez mais próximo da China, e as áreas mais dinâmicas da economia brasileira são justamente as exportadoras de commodities… A China tomou medidas para garantir que esse seja precisamente o caso. É uma espécie de armadilha? Os chineses armaram uma armadilha e vocês caíram nela. Não há nada de errado em produzir produtos agrícolas para exportação. Não estou tentando dizer para não fazer isso. Estou dizendo que vocês precisam ter uma situação parecida com a dos australianos. Vocês não agregam nenhum valor. Deveriam. Giuliano Guandalini Leia mais em https://braziljournal.com/brasil-precisa-se-preparar-para-o-colapso-da-china-e-da-globalizacao/ . _________________________________________________________________________________________________________
------------ Mineirinho: Clarice Lispector | ZÉducando ----------- ----------
---------- Carlos Andreazza - Na porrada O Globo O jovem criminoso, ladrão e agressor, para quem já não bastará roubar, não sem espancar-esculachar, é tudo isso e também um desesperançado. Indivíduo para quem não há futuro, senão a morte prematura — ou o degredo social, igualmente morte. Não lhe há saída; não uma visível. E ele tem raiva. Ódio. Que expressa. Em bando. Na mão. Na porrada. Desesperançado também é o justiceiro, não raro — e não à toa — também um jovem. Igualmente criminoso. Que se lança às ruas, com palavras de ordem de playboy pela proteção territorialista, para caçar os invasores cruéis do pedaço. Indivíduo inconformado com a condição remediada hereditária, para quem não há futuro, senão o nem-nem presente, o que não estuda nem trabalha, encostado — modalidade de exílio social, uma forma de morrer. Pela inexistência. Perdidas todas as saídas. E ele tem raiva. Ódio. Que expressa. Em bando. Na mão. Na porrada. Os justiceiros, os inexistentes com teto, a casa em que cresceram e onde escorados vão, sob a desculpa de defender o bairro em que seus provedores vivem, saem às ruas — para pegar os do 474 e liberar a frustração em linchamentos — à caça de uma existência. Os defensores do lugar sendo os que se apegam à localidade — à guarda do espaço — como ato para pertencer; contra os de fora, os bandidos, que vêm para assaltar e bater. São condenados, cada um à sua maneira. Carcomidos pelo fado inapelável: o limbo de empobrecimentos. Produtos da educação falida entre nós. Da falta de perspectivas. Dissolvida — para agravar o esgarçamento do tecido social — a classe média, também um valor. E, pois, o abismo. A classe média: força equilibrante, senso de estabilidade, corpo amortecedor, objetivo factível à ascensão social, rede protetora aos decadentes. Ruiu. No lugar, o fosso. Que se alarga e aprofunda, encorpado pela desigualdade acelerada que a peste impôs — ou fez ver. Tudo decadência. Do outro lado, longe, a riqueza. Percebida finalmente a interdição à mobilidade social. Compreensão que se expressa. Em explosão-convulsão. O desesperançado é, antes de tudo, um descrente. Que não tardará a agir com as próprias mãos, se rompido o contrato que delegara à elite política a representação para governar. Rompido está. Traído está. Traídos, os desesperançados. A elite governante entendida como agindo em causa própria. Justiçados e justiceiros materializando os piores sentimentos — cientes de que destinados à paralisia — sob a descrença nos mecanismos formais de mediação. Desacreditada a ideia de autoridade. De oportunidade. De Estado. E, portanto, a barbárie. O valor da representação migrando da desconfiança — sentido fiscalizador necessário — à descrença, donde o canto influente da anomia, sedutor o discurso contra as castas de brasília, aqui ou na Argentina. Ou nos Estados Unidos. Desacreditado o pacto de delegação do poder, se constituem os delegados um planalto exclusivo e excludente de prosperidades. São maus os exemplos dos pançudos eleitos — os que investem na cizânia como estratégia eleitoral. Os que apostam na primazia da perversão autoritária que transformou diálogo em fraqueza, triunfante também a propaganda — encoberto o Lirão — segundo a qual centro político equivaleria a antro para oportunismos. Maus os exemplos, se a Corte constitucional — sempre em defesa da ordem democrática — promove igualmente os seus justiçamentos. Ou não terá o Supremo — até para censurar — criado inquérito, depois onipresente e infinito, em defesa de seu território e da honra dos togados e de outros amigos do amigo de papai? Ora: em defesa da ordem territorial, contra os ladrões agressores do bairro-nação, avançam os milicianos de Copacabana. (Fala-se de Brasil; sem desconsiderar que a degradação político-social do Rio de Janeiro seja única. Talvez incurável. Sociedade nenhuma mantém mínima saúde se submetida aos sanguessugas de um estado de sergiocabralismo permanente, daí não tardarem cláudio e outros coveiros.) A descrença na elite como referência sustentadora-difusora de valores humanistas é fenômeno mundial alimentado também pela incapacidade de liderar respondendo a questões norteadoras simples. — Apelar ao genocídio de judeus constitui intimidação e assédio? Sim ou não? As reitoras de três das maiores universidades americanas não conseguiram responder. Não objetivamente. Não sem variações sobre “depende do contexto”. Uma das quais tendo dito: — Se o discurso se transformar em conduta, pode ser assédio. O que seria — sendo o discurso “apelar ao genocídio” — transformá-lo em conduta, logo materializá-lo? É. A elite, alienada e covarde, que se recusa ao papel de mediar se torna supérflua, não sem autorizar — cada um por si — o vale-tudo. _________________________________________________________________________________________________________ --------- ----------- Mineirinho – por Clarice Lispector EM PAUTA COMPARTILHADOFacebookTwitterWhatsAppLinkedin É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre­dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim. Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu. Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, espe­rando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender. Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade. Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato. O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno. clispector assinatura Fonte: http://www.ip.usp.br/portal/ , do livro: Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1979 – e também em A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964 Analise do conto por Yudith Rosenbaum: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142010000200011 Leitura do conto mineirinho2 foto: http://www.fotolog.com.br/marginalia_sp/7687763/ aef48-mineirinhofilmejpj [ Cartaz do filme de Aurélio Teixeira, em 1967 Mineirinho, que inspirou o conto de Clarice Lispector, foi mais um desses chamados “bandidos”, transformados pela imprensa marrom no inimigo público número um. Para os moradores do morro, Mineirinho era uma versão carioca de Robin Hood. Sua morte com 13 tiros foi noticiada com estardalhaço. Leiam trecho no Correio da Manhã, em 1º de maio de 1962: “José Rosa de Miranda, o Mineirinho, foi encontrado morto, ontem na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio, com 13 tiros de metralhadora em várias partes do corpo – três deles nas costas e quatro no pescoço – uma medalha de ouro de S. Jorge no peito e Cr$ 3.112 nos bolsos, e sem os seus sapatos marca Sete Vidas, atirados a um canto.” ] retirado de http://jornalrecomeco.blogspot.com.br/2008/04/mineirinho.html Fonte: Revista Pittacos https://www.geledes.org.br/mineirinho-por-clarice-lispector/ _______________________________________________________________________________________________________________ ---------

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