Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
sexta-feira, 15 de janeiro de 2021
O Segredo do Bonzo
a mais engenhosa de todas as nossas experiências
Viajante português Fernão Mendes Pinto do século XVI encarnado por Machado de Assis
Nenhuma outra prova quero da eficácia da
doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo
Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado
para glória do bonzo e benefício do mundo.
"(...) Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de Diogo
Meireles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os
narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham
horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os físicos da terra
propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria dos enfermos, nenhum
destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à lacuna, e tendo por mais
aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele órgão. Neste apertado lance, mais
de um recorria à morte voluntária, como um remédio, e a tristeza era muita em toda a
cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que desde algum tempo praticava a medicina, segundo
ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os
doentes, antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um
nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao
sacrifício. Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos
físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para
eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um
nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e
contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em
várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da assembléia foi imenso,
e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia
que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das
palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu
remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do saber de
Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos
para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da
idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança,
um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo.
A assembléia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo, em tanta
cópia, que ele não tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte;
depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos,
colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos, olhavam uns
para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que
ali estava o órgão substituto, e que este era inacessível aos sentidos humanos, não se davam
por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da
doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo
Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado
para glória do bonzo e benefício do mundo.
FIM
(...)"
***
FONTE
O Segredo do Bonzo, de Machado de Assis
Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário