Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
DIREITO E CIDADANIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
"HOJE, O BRASIL É UMA VERGONHA." Roberto Freire
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"É deste ângulo privilegiado que gostaria de analisar o problema. E para não nos perdermos demasiadamente em abstrações, vamos enfocar a questão no âmbito constitucional brasileiro." Tercio Sampaio Ferraz Junior
Brasil, país sulamericano
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24/07/2019 17:44:00
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Sul-americano X North American - têm hífen?
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Roberto Freire: "Hoje, o Brasil é uma vergonha."
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Marco Antonio Villa
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O governo Bolsonaro é um desastre.
Parlamentarismo e Presidencialismo no Brasil contemporâneo.
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https://www.youtube.com/watch?v=hVnlTg-AApQ&t=24s
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1 - DIREITO E CIDADANIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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Tercio Sampaio Ferraz Junior
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Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
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As relações entre direito e cidadania podem ser enfocadas de diversos ângulos. Nesse sentido, elas constituem um problema filosófico quando se leva em conta as questões de legitimidade presentes nas relações entre Estado e Sociedade; ou um problema histórico, se enfocarmos a questão da factualidade destas relações no tempo; cultural, quando discute a configuração da cidadania na herança ocidental etc. Como um ponto de confluência destas diversas possibilidades, a questão ganha o seu correto relevo quando enfocada à luz da Constituição. É deste ângulo privilegiado que gostaria de analisar o problema. E para não nos perdermos demasiadamente em abstrações, vamos enfocar a questão no âmbito constitucional brasileiro.
Partamos, pois, do pressuposto de que a Constituição de 67/69 se caracterizasse por uma impotência política genérica da sociedade civil perante a tecnocracia estatal (relação esta pouco a pouco levada a uma crise), com menosprezo do voto como moeda política básica e com o reconhecimento da superioridade dos "guardiões" da racionalidade econômica sobre qualquer forma de representação popular — a desproporção de forças entre Executivo e Legislativo foi um indício forte do que estamos mostrando — associados à violência da repressão militar. Não obstante essa asfixia da capacidade conjunta e transparente de agir, todo o traçado constitucional autoritário de 1967/69 estava voltado, na sua prática, a propiciar um desprendimento de forças econômicas capazes de assegurar um desenvolvimentismo legitimante. Se, no começo, havia uma predisposição para deixar a sociedade civil suficientemente "livre" no seu isolamento, para que a economia florescesse, na continuidade do regime esta "liberdade" foi adquirindo, no entanto, sua face real de concessão do Estado (lembre-se a insistência do presidente Geisel, no início da distensão política, em falar de "liberdade com responsabilidade"). Era a cidadania encarada como fim, como objeto a realizar-se no futuro, não como base e pressuposto (lembre-se também da concepção do desenvolvimento econômico como condição de posterior desenvolvimento político).
Diante dessa configuração perversa da cidadania, a Constituição de 1988 começa, no seu Preâmbulo, por acentuar o caráter político do Estado instituído em termos de "Estado Democrático", em face de uma sociedade caracterizada como "fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias". Como valores supremos da sociedade são destacados "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça", cabendo ao Estado assegurá-los, bem como assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais.
A análise do Preâmbulo (cuja função dogmática usual é relevar a mens legis, configurar uma abreviatura para localizar os princípios diretores e definir a autoridade constituinte) mostra um elenco de valores, que nos fornece uma excelente pista para o exame da questão.
Tomemos o elenco de valores. Pelo seu enunciado, aparece, pela ordem, a liberdade como o primeiro deles. O valor liberdade integra a personalidade como seu contorno essencial, de início no sentido positivo da criatividade, de expansão do próprio ser da pessoa, de capacidade de inovar e, em seguida, num sentido de não ser impedido; no sentido positivo, a liberdade tem relação com a realizabilidade do homem, com sua participação na construção política, social, econômica e cultural da sociedade; no sentido negativo, refere-se à autodeterminação do homem, à possibilidade de ser diverso, de não submeter-se à vontade dos outros. Pela ordem, a liberdade é seguida da segurança, que, como valor, tem a ver com os destinatários da ordem jurídica. Significa exigência de tratamento uniforme dos endereçados. Exige, pois, que todos, nas mesmas condições, tenham o mesmo tratamento. Segurança exclui, portanto, tratamentos arbitrários, ou seja, não só os que não são uniformes, mas também os que ocorrem à margem do direito. Num primeiro momento, enquanto valor tipicamente liberal, a segurança exige a submissão do Estado à lei da qual é também o guardião. O sentido legitimamente da segurança exige a organização legal do Estado como ordem normativa, limites claros de sua atuação como instituição. Mas, numa extensão mais ampla, configura não apenas a repulsa ao tratamento arbitrário do Estado contra o cidadão, mas a de cidadão contra cidadão, sugerindo uma forte dimensão social. Como valor amplo alcança, pois, também as arbitrariedades decorrentes de situações legalmente conformes, mas socialmente injustas que são, então, juridicamente repelidas pela sua inclusão, no artigo 6º, como um direito social.
Bem-estar e desenvolvimento podem ser entendidos como valores mutuamente complementares. Pela ordem, porém, conquanto sem desenvolvimento não possa existir bem-estar, como valor este se sobrepõe àquele. Um desenvolvimento à custa do bem-estar relativo da comunidade não é legitimamente. O bem-estar não é encarado como um valor subjetivo, isto é, pertinente ao sujeito isolado, mas como valor objetivo. Sua configuração não é, por isso, positiva, mas negativa. Não há bem-estar enquanto não se erradica a pobreza, a marginalização, as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). Nesse sentido pode-se dizer que o bem-estar, como valor, releva-se em uma situação de não-miséria. Nestes termos deve-se então configurar o desenvolvimento como valor. É uma repulsa ao sentido utilitário de desenvolvimento. Tanto que o artigo 3º, III, atribui à República, constituída num Estado Democrático de Direito, o objetivo fundamental de garantir o desenvolvimento nacional e não de realizá-lo. Desenvolvimento não é meio nem fim, nem correlação de meios e fins, mas uma situação permanente de uma sociedade que muda e que se reconhece como voltada para seu próprio progresso e aperfeiçoamento. Não é, pois, meio para o bem-estar, mas sua realização contínua, em diferentes graus relativos às possibilidades reais.
A igualdade é enumerada, a seguir, no elenco de valores constitucionais básicos. Sabe-se que a igualdade, como valor, toma vários sentidos. Na tradição constitucionalista liberal ela é inicialmente igualdade jurídica, isto é, perante a lei, o que postula uma desigualdade de fato, decorrente das diferentes aptidões pessoais; sua força axiológica aponta, porém, na esteira das revoluções modernas, para uma neutralização de certas desigualdades culturais e normativas, como a fundada em discriminações religiosas e políticas; no correr do século XIX neutraliza-se a desigualdade quanto ao trabalho; já no século XX, os movimentos em favor da liberação da mulher exigem a neutralização de desigualdades decorrentes do sexo; a derrocada do nazismo levou a importância da neutralização das desigualdades raciais (Ferreira Filho, 1975, v. 3:80; 1984:73). O texto da Constituição de 1988, pelo conjunto de normas que prescrevem qualquer tipo de discriminação, pelo enunciado superlativo do caput do artigo 5º: "todos são iguais perante a lei", garantindo-se, entre outros, "o direito à igualdade" —, generaliza uma aspiração bem mais ampla que alcança também as desigualdades de fato, na medida em que desvaloriza a existência de condições empíricas discriminantes e exige equalização de possibilidades. Como tal, o valor igualdade, tomado não apenas como condição para o exercício das liberdades fundamentais — igualdade perante a lei — mas como conteúdo autônomo de um dos direitos básicos (as Constituições brasileiras anteriores não enunciam a igualdade como um dos direitos, afirmam somente a igualdade perante a lei), repercute imediatamente no entendimento dos direitos sociais fundamentais.
Numa aproximação negativa, o valor igualdade significa pois exigência de não-discriminação política, jurídica, religiosa, sexual, racial; trata-se, nesse sentido, de um valor individual que pressupõe que, de fato os homens são diferentes. Mas numa aproximação positiva, o valor aponta para a igualdade dos pontos de partida, enquanto equalização de possibilidade, de oportunidade e de participação econômica e social; nesse sentido significa um valor social, que pressupõe que, de fato, os homens podem e devem ser menos diferentes.
Por fim, enumera-se o valor justiça. Na tradição ocidental, deve-se entender a justiça como um princípio formal que se preenche substantivamente das demais virtudes ou, como diríamos agora, dos demais valores. Justiça, neste sentido, é afirmação de um sentimento de inconformismo perante certas diferenças (valor igualdade), perante arbitrariedades (valor segurança), perante a miséria (valor bem-estar), perante a apatia (valor desenvolvimento), perante a negação da dignidade da pessoa como um ser capaz de autodeterminar-se e de participar na realização do bem-comum (valor liberdade). A justiça, como valor fundante, organiza os demais valores e se revela, num sentido substantivo próprio, como equilíbrio axiológico, ponderação e prudência, mas também como desafio e realização.
Por meio dos valores enumerados no preâmbulo, deve-se entender, em suma, que a Constituição de 1988 tem uma exponencial preocupação em traçar o espaço da cidadania em termos de supremacia do valor síntese da dignidade humana. A forte insistência, não só na fraternidade, mas na proibição de discriminações de qualquer natureza, mostra que a dignidade humana é conjugação de liberdade como um princípio de sociabilidade. Afirma-se a capacidade humana de reger o próprio destino, expressando sua singularidade individual. Ao mesmo tempo nega-se o isolamento, pois afirma-se também o enraizamento social do homem, posto que sua dignidade repousa na pluralidade e no seu agir conjunto (Arendt, 1981:191): o homem como um ser distinto e singular entre iguais, base de cidadania.
O sentido da dignidade humana alcança, assim, a própria distinção entre Estado e Sociedade Civil, ao configurar o espaço de cidadania, que não se vê absorvida nem por um nem por outro, mas deve ser reconhecida como um pressuposto de ambos. Em verdade, portanto, deve-se dizer que, embora no Direito Público, assim como no Direito Privado, disponha-se sobre a cidadania, sua configuração decorre da legitimidade de valores, que antecede esta tradicional distinção técnica da Dogmática Jurídica. Não é uma criação do Estado nem um conceito que dele decorre. Significa que, constitucionalmente, está reconhecido que o homem tem um lugar no mundo político em que age.
Os traços gerais da nacionalidade (art. 12), que se conjugam com a nacionalidade da língua (art. 13), apontam para esta efetivação da dignidade do viver em um lugar como ser distinto e singular entre iguais (esfera pública) e do respeito pela condição humana da sua vida privada. O âmbito da cidadania é, assim, o espaço da soberania, isto é, da imperatividade do pacto e do cumprimento do pactuado. Os chamados direitos políticos são, assim, condições de exercício de cidadania, mas com ela não se confundem. Em outras palavras, é a cidadania que constitui a distinção entre o público e o privado. Pois a cidadania é o princípio da liberdade participativa, base da vida política, enquanto lugar em que o homem exerce seu autogoverno, e que lhe traça, simultaneamente, o espaço do não político. Perante a cidadania, a República, este centro da comunidade, do que é comum a todos e a todos se revela, constitui a esfera pública, da qual o Estado é uma das articulações. O sentido legitimamente deste reconhecimento preserva, pois, a legitimidade da própria Constituição enquanto constituição da República.
Nestes termos deve ser entendido o artigo 1º: a República (Federativa do Brasil) constitui-se em Estado Democrático de Direito. Ela não é constituída pelo Estado (ainda que Democrático de Direito), mas se constitui em Estado. E o faz pela afirmação da cidadania, que é um dos seus fundamentos, junto com a dignidade da pessoa humana, a soberania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político (art. 1º, I até V). Este conjunto que se resume num conceito abrangente de cidadania, dá sentido político de esfera pública ao parágrafo único do artigo 1º: "Todo o poder emana do povo". Note-se que o texto diz: todo o poder e não todo poder. Trata-se de um só poder, o poder de cidadania enquanto agir conjunto, que a todos inclui e a ninguém absorve. Por isso, soberano e pluralista, respeitador dos limites da sociedade civil, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Estas são as bases principais, fundamentos da ordem republicana.
Este sentido da República exige a cidadania como uma espécie de fundamento primeiro, porque, sem este reconhecimento de que o ser humano deve ter o seu lugar no mundo político, perverte-se a soberania numa relação de submissão para a qual o pluralismo então não conta, absorve-se a esfera pública, e a dignidade humana torna-se princípio vazio sem condições de afirmação concreta. Nestes termos deve ser entendida a concepção da cidadania, salientada por Celso Lafer em seu trabalho sobre Hannah Arendt (Lafer, 1988:146), como um "direito a ter direitos".
A Constituição delineia assim, com base na cidadania, o próprio exercício da atividade política como poder legítimo em termos de princípio da representação partidária, conjugado em parcelas de exercício direto, nos quadros de uma estrutura de divisão dos poderes. Por este último princípio ressalta-se a legitimidade da atividade política no âmbito legislativo, posto que este é, por excelência, o lugar de expansão da cidadania e o centro de convergência da soberania popular: num Estado Democrático de Direito só a lei deve obrigar. E lei é a norma submetida ao processo legislativo bem como as demais normas que nela se fundam. Em termos de legitimidade isto repercute globalmente nas atividades do Executivo, cuja competência presidencial de iniciativa e do direito de veto devem estar a serviço da soberania popular e jamais se fundarem em critérios tecnocráticos, ainda que "bem-intencionados", exteriores à cidadania. Isto deve valer também para as famigeradas "medidas provisórias com força de lei" (art. 62), as quais, como instrumento normativo, contêm um mecanismo perverso capaz de destruir-lhe a legitimidade: a edição de novas medidas com idênticos conteúdos toda vez que alguma delas for rejeitada pelo Legislativo. Embora tecnicamente discutível, deve-se reconhecer a legitimidade de tal procedimento. Do mesmo modo, seus requisitos — relevância e urgência —, embora tecnicamente submetidos ao juízo de oportunidade do Presidente, devem ter seus limites traçados pelo Poder Judiciário que, se provocado, não pode omitir-se ao dever de configurar-lhes o conceito com base na legitimidade constitucional.
Com isso delineia-se também para a cidadania, o sentido legitimamente do Poder Judiciário. Numa ordem denominada pela representação partidária e pelo exercício direto do poder, reconhece-se que a política é atividade própria da cidadania, à qual se submete a competência administrativa do Executivo. Neste quadro, o Judiciário, armado de suas garantias e excluído da atividade político-partidária, é o único dos poderes cujo exercício, sendo público, exige, não obstante, um certo alheiamento próprio da reflexão e do julgamento. Daí o sentido da sua legitimidade repousar na dignidade da prudência (saber jurídico e reputação ilibada), que lhe confere o prestígio do equilíbrio e a suprema função de guarda da constitucionalidade.
Não é preciso muito esforço para perceber que vivemos hoje, no Brasil, uma situação em que grandes massas são condenadas à miséria e à fome, num universo político que vê o poder crescer pela multiplicação dos meios de violência e pela extensão dos meios de controle sobre a sociedade.
A cidadania, na Constituição brasileira, tem um sentido amplo, equivalente a todos os direitos e obrigações decorrentes da nacionalidade, bem como um sentido estrito referente à participação no governo. No sentido amplo é preciso, pois, examinar sua expansão no campo econômico e social. Qual o papel da cidadania na economia?
O contexto da economia é o âmbito das atividades humanas voltadas para a necessidade de sobrevivência. O contexto da economia política é o âmbito da economia, tornando-se, historicamente, uma preocupação comum do Estado (Foucault, 1982:281). É nesse contexto que se coloca, a nosso ver, o problema da cidadania no espaço da economia. Como configurá-lo na Constituição?
A questão nos faz olhar, inicialmente, para o artigo 170 da Constituição. O enunciado desta norma instaura os princípios da legitimidade da vida econômica. Sua textura não é de simples exegese, posto que o próprio enunciado distingue entre fundamento, fim e princípios da ordem econômica, os quais são entremeados de valores governados por perspectivas ideológicas.
O fundamento da ordem merece um destaque. A ordem econômica está fundada "na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa".
Obviamente isto é uma norma e não um enunciado descritivo ("deve-se reconhecer que a ordem econômica está fundada" etc.). Este reconhecimento, prescrito pelo Constituinte, tem uma carga de legitimidade: aceita-se, parte-se daí, não se discute. Poderia ser de outro modo, por exemplo, "a ordem econômica tem por fundamento o trabalho, ou a propriedade". Não é isso que se prescreve, porém. O fundamento está "na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa".
Os dois fundamentos são, porém distintos. A "livre iniciativa" é um modo qualificado de agir, presente em todos os momentos, já perfeita e acabada naquilo em que consiste: a iniciativa não se torna mais ou menos livre; como fundamento, ou há ou não há livre iniciativa; já no caso da "valorização do trabalho humano", o acento está na "valorização", portanto num ato de apreciar e fazer realizar o que se considera bom: o trabalho humano.
"Valorização do trabalho humano" significa, assim, a legitimidade da ordem, desde que construída sobre um empenho, constante, e permanente, de promover a dignidade humana do trabalho na atividade econômica. Estranha, no caso, a expressão "trabalho humano". Por que "humano"? Que outra forma de trabalho poderia haver? Trabalho animal? Realizado por máquinas? A expressão está aberta às interpretações. Em termos de cidadania há de se resguardar, a nosso ver, o termo "trabalho", qualificado pelo adjetivo "humano", de todas as formas desumanizadoras da atividade laborial. Trabalho é atividade do homem denominada pela relação meio/fim, uma atividade instrumentalizada que tem um produto: aquilo que o trabalhador fabrica e coloca no mundo, como algo que vem da sua arte e esforço e ganha vida própria no comércio com os outros. Pelo trabalho, o homem acresce a natureza, ao mudá-la conforme os seus propósitos. O trabalho, assim, humaniza a natureza, criando o mundo humano, o mundo das coisas permanentes que o homem criou como realidade objetiva. A valorização do trabalho liga-se, deste modo, à valorização dessa auto-realização do artifício humano que guarda, no seu íntimo, o sentido da liberdade. Trabalho, assim, é início, livremente disposto, e fim, produto acabado ao cabo de um processo, que todos podem perceber e sentir como algo que não havia e passou a existir. Nesse sentido, apanágio da cidadania!
Mas há no mundo contemporâneo uma forma pervertida de considerar o trabalho que, ao invés de valorizá-lo, o degrada. Trata-se do trabalho dominado pela necessidade pura e simples de sobreviver, de satisfazer a busca insana de multiplicação do mercado, e não de criar o mundo intermediário humano. Este trabalho se desumaniza porque deixa de ser produtivo no sentido de ter resultados ao final da atividade. Pois a atividade que o caracteriza passa a ser um processo sem fim, que só se acaba quando se chega à exaustão da "força de trabalho". Este é o "trabalho" realizado por máquinas e animais, por bens, em geral, que o direito tributário permite sejam depreciados e abatidos na renda empresarial. Uma máquina ou um animal não vêem cessado o seu "trabalho" quando o produto está pronto, ao contrário do homem que é capaz, como o Deus bíblico, de olhar, ver que está bom e, ao concluir sua obra, descansar.
A valorização do trabalho humano, portanto, é um repúdio à automação ou à animalização do sistema de produção, a um processo que se rejeita por motivos alheios a si mesmo, uma espécie de repetição compulsória de atividades que cessam apenas para o homem comer, dormir e recuperar as forças. Não é um repúdio à máquina ou ao animal, mas à maquinalização e animalização da atividade laborial do homem. Assim, como ordem econômica que se funda na valorização do trabalho humano, o que se repudia não é a capacidade operacional das máquinas mas do homem como máquina, ou seja, uma ordem que inverte fins e meios, que almeja apenas a "liberação de mão-de-obra" (vide art. 7º, XXVII), que produz apenas para produzir mais ou melhorar seus próprios instrumentos de produção, que trata o homem como um objeto de racionalização, uniformizando-o e dele exigindo apenas uma coordenação rítmica conforme regras de eficiência, que faz com que desapareça a distinção entre o trabalho e seus utensílios, em que o processo de produção, como uma grande máquina, é que determina o movimento dos homens e não o contrário. Aceitar isto seria, certamente, destruir a cidadania. O que se diz da valorização do trabalho humano como fundamento da Ordem Econômica vale também para a livre iniciativa. Afirmar a livre iniciativa é acreditar na liberdade como fundamento da Ordem Econômica. É acreditar na autonomia empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, é aceitar sua intrínseca contingência e fragilidade, é preferir uma ordem aberta ao fracasso a uma estabilidade certa e "infalivelmente" eficiente.
Dizer que a livre iniciativa é fundamento da Ordem Econômica é também afirmar que a estrutura desta está centrada na atividade das pessoas e dos grupos e não na atividade do Estado. Não significa a exclusão deste, mas ressalta que o exercício da atividade econômica, na produção, na gestão, na direção, na empresa, está regulado originariamente pelo chamado princípio da exclusão: o que não está proibido, está permitido. Obviamente, isto não é um reconhecimento do laissez fair. Há de se ter em conta que livre iniciativa e valorização do trabalho humano devem estar conjugados. Trata-se de uma Ordem com dois fundamentos. Liberdade, como base, está em ambos. Na iniciativa, em termos de liberdade negativa, de ausência de impedimentos para a expansão da própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em termos de liberdade positiva, de participação sem alienação na construção da riqueza econômica. Portanto não há nenhum sentido de ilimitado absoluto na livre iniciativa. A ilimitação, note-se, está no início, no principiar da atividade, mas não nos desempenhos e nas conseqüências. Livre iniciativa, assim, não exclui a atividade fiscalizadora, estimuladora, arbitral e até suplementar empresarial do Estado. Este, porém, não deve limitar a espontaneidade humana de produzir algo novo, de começar e empreender desde o princípio algo que não estava ali. É desta liberdade que se fala como livre iniciativa. Conjugada com a valorização do trabalho humano, porém, ela se define como participação, como construção positiva da dignidade humana na produção de riqueza, isto é, como tarefa social que os homens realizam em conjunto. É no respeito a esse duplo fundamento que a Ordem Econômica revela sua própria legitimidade. Sob este fundamento ergue-se uma ordem, cujo fim, diz o caput do artigo 170, é "assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social".
A Ordem Econômica tem por fim assegurar a existência digna conforme os ditames da justiça social. O fim é assegurar a todos. Um dos fins ou objetivos fundamentais da República (art. 3º) é promover o bem de todos (art. 3º, III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir desigualdades. A República é uma instituição de todos, que, por representantes ou diretamente, realizam valores básicos. A Ordem tem por fim assegurar uma realização. Por si, ela não realiza. Apenas deve assegurar uma realização da existência digna. Quem realiza não é o Estado, é a República, como tarefa institucional de todos.
Existência digna, conforme os ditames da justiça social, não é um bem subjetivo e individual, mas de todos, que não admite miséria nem marginalização em parte alguma e distribui o bem-estar e o desenvolvimento com eqüidade. Protege, não privilegia. É fraternidade e ausência de discriminação. Não se mede por um absoluto, mas é, conforme certos limites de possibilidade estabelecidos, um sentido de orientação para não excluir ninguém. Assegurar, como fim da Ordem, é velar para que não ocorram impedimentos na realização de valores.
Por fim, a cidadania se faz presente na Ordem Social. O artigo 193 da Constituição proclama que "a ordem social tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem estar e a justiça sociais". Em que sentido este enunciado manifesta a cidadania?
Aqui, como na Ordem Econômica, se fala de trabalho. O contexto, porém, muda-lhe a significação. Como fundamento, na Ordem Econômica, o trabalho deve ser valorizado como fator de produção.
Na Ordem Social, o trabalho não tem sentido de elemento de produção, não se conjuga com a livre iniciativa, mas é base única que diz respeito à própria sobrevivência humana. Ou seja, a Ordem Econômica, ao salientar o valor do trabalho humano, repudia a sua degradação, no processo econômico, a mero objeto: força de trabalho. Pois a Ordem Social, como que ciente, não obstante, da possibilidade de ocorrência desta degradação, encara de frente a "produtividade" do trabalho que reside na "força" humana, "cuja intensidade não se esgota depois que ela produz os meios de sua subsistência e sobrevivência" (Arendt, 1981:99). Do ponto de vista social, o que conta não é a produção das coisas, bens que podem ser acumulados, mas o próprio processo vital do ser humano. Portanto, o que conta não é o trabalho, mas a força do trabalho.
A Ordem Social, nestes termos, deve ser encarada como um sistema de proteção da força de trabalho que é, assim, a sua base.
Estruturada com base no primado do trabalho sobre os próprios interesses da produção, que pertinem à Ordem Econômica, a Ordem Social é também movimento, projeção de fins que a legitimaram. Fala-se no bem-estar e na justiça sociais. Note-se, porém, a diferença entre as duas ordens. A economia deve visar assegurar a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social. O objetivo da Ordem Social é o próprio bem-estar social e a justiça social. A primeira deve garantir que o processo econômico, enquanto produtor, não impeça, mas, ao contrário, se oriente para o bem-estar e a justiça sociais. A segunda não os assegura, instrumentalmente, mas os visa, diretamente. Os valores econômicos são valores-meio. Os sociais, valores-fim.
Consagrando valores-fim, a Ordem Social visa à justiça social. Esta expressão nos permite delinear o público e o privado no espaço da sociabilidade. Entendemos por espaço da sociabilidade aquela esfera híbrida, na qual os interesses privados assumem importância pública (Arendt, 1985:45). Trata-se de uma instituição da era moderna, cuja raiz primordial é a unicidade da humanidade, o lugar em que o processo vital comum se organiza publicamente. Isto ocorre, historicamente, no momento em que o trabalho enquanto força de trabalho se emancipa da esfera privada e conquista um caráter público, o que certamente coincide em parte com a ascensão política das classes trabalhadoras. Nesta nova esfera, a vida é o supremo bem. Por isso, em termos de cidadania, o risco é que aí impere um único interesse, cujo sujeito é uma abstração: a espécie humana ou a coletividade uniforme e conformemente submissa. É aí que entra o sentido legitimante da justiça social.
O termo, em nossa tradição constitucional, deita raízes da Doutrina Social da Igreja. Trata-se de uma expressão de complicada configuração exegética. Seu conteúdo está nas relações humanas enquanto relação entre seres que sobrevivem pela sua própria força de trabalho e seu problema é constituí-los em igualdade como pessoas e não como abstrações. Constituí-los como pessoas significa ao mesmo tempo reconhecê-los como distintos e, ao mesmo tempo, igualados pela condição da sobrevivência.
Igualá-los pela condição da sobrevivência quer dizer reconhecer que, na esfera da sociabilidade, os homens têm um destino comum: a própria vida. Reconhecê-los como distintos é atribuir-lhes, naquela mesma esfera, um princípio de independência em relação aos instrumentos da sobrevivência, é não colocá-los, os homens, coletivamente, a serviço da vida. Nestes termos, justiça social é disciplina valorativa da sociedade, de modo que, na esfera da sociabilidade, o público e o privado tenham garantidos os seus traços próprios e não se reduzam um ao outro.
Por tudo o que dissemos pode-se entender que sem o reconhecimento da cidadania, qualquer constituição e, em particular, a Constituição brasileira, torna-se letra no papel. Em conseqüência, sem ela, o direito perde, seguramente, sua substância.
Afinal, no uso da expressão "Estado Democrático de Direito", estão presentes componentes que tendem a fazer da liberdade ao mesmo tempo liberdade-autonomia e liberdade-participação. De um lado, isto vem marcado pelo modo como se estendem os direitos políticos à sua máxima universalidade, aliados à plena extensão dos direitos sociais, econômicos
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, (47/48):11-27, jan./dez. 1997
e culturais. De outro, pelo empenho em se evitar que, no modo como se adquirem, numa sociedade pluralista, tais direitos, venha o seu exercício cingir-se e esgotar-se no mero jogo de classes dominantes. Seus efeitos, assim, não devem se produzir apenas frente ao Estado, mas em relação aos particulares; na relevância da sociedade civil deve-se ver o reconhecimento de que o controle da legitimidade constitucional não é a expressão de uma fiscalização formalmente orgânica, mas também uma tarefa comum, que deve fazer da Constituição uma prática e não somente um texto ao cuidado dos juristas; a participação, não apenas do Legislativo, do Executivo, do Judiciário, mas também do cidadão em geral, na concretização e na efetivação dos direitos, é uma peça primordial do seu contexto democrático-social legítimo.
A Constituição brasileira de 1988, nesse sentido, nasceu de uma esperança. Ela está voltada para uma expectativa de concretização, concretização de suas aspirações sociais que embasam firmemente os movimentos políticos que sucederam a tecnocracia desenvolvimentista da Revolução de 64. O mal-estar geral de uma nação que teme em acreditar, que assiste impotente às manobras políticas de classes permanentemente dirigentes, que sofre as mazelas de uma profunda e radical injustiça social, trouxe à luz um texto conturbado, tecnicamente difícil de sistematizar-se e por isso mesmo fácil de ser manipulado, distorcido, arranhado, posto de lado, esquecido. Não obstante, este texto está carregado de interrogações, demandas simples de gente muito simples, que certamente mal sabe que temos uma Constituição, mas que, em tudo que vê e que ouve, no convívio diário, no trabalho, na casa, na fábrica e no campo, sente a ineludível mensagem de uma proposta de democracia. Por isso, apesar de tudo, esta Constituição é, como disse Ulisses Guimarães, a Constituição cidadã.
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http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista3/rev1.htm
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