quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Sobre a gênese de um grande livro Dyonélio Machado Foi Vanini quem inventou neste mundo, segundo Pelletan, a prova pelo infinitamente pequeno. O parlamento de Toulouse o acusava de ateísmo. O sábio tomou dum fio de palha da enxerga que lhe servia de leito na prisão e declarou: “Nada mais do que com isso eu provarei a existência de Deus”. “E ele a provou tão bem”, diz o autor da Naissance d’une ville, “que foi precisamente com palha que o queimaram vivo, na praça pública, como ateu…”O episódio encerra ensinamentos, um dos quais é o de retirar do microscópio, para conferir ao filósofo, a glória de haver por primeiro “concentrado” a atenção para o campo óptico de proporções praticamente nulas e irrisórias em que se exerciam as faculdades de observação do homem contemporâneo. Um crítico conjectura mesmo que o futuro vá chamar à nossa época o século “dos micróbios”, - que não deixam, efetivamente, de constituir, uma que outra vez, sobretudo em mãos mais exaltadas e inocentes, uma prova também inventada para explicar, pelas manifestações mínimas da Vida, todos os fenômenos, enormes e inquietantes, da biologia… No estudo que se vai ler, propomo-nos partir, igualmente, de um fenômeno menor e por ele remontar à gênese dum grande acontecimento literário. “Os homens de ciência, votados à observação da alma humana - dizia, há meio século, Melchior de Vogüé, a propósito do Crime e castigo, de Dostoiévski -, lerão com interesse o mais profundo estudo de psicologia criminal que tenha sido escrito desde Macbeth [Le Roman russe (1886), p. 246]. Anos depois, na verdade, a profecia se realizava integralmente, ou bem a insinuação produzia os seus efeitos, à vista das confissões bastante expressivas desses homens de ciência Bérard des Glajeux e Athalin nas Passions criminelles [1893], e que vejo reeditadas em Ossip-Lourié, na sua Psychologie des romanciers russes. Não é esse, porém, devemos confessá-lo, o tema que presentemente nos ocupa. A aproximação banal que faz o visconde de Vogüé entre Crime e castigo e Macbeth, ou seja, entre a obra-prima da literatura analítica moderna e o manual psicológico mais acabado que haja talvez concebido William Shakespeare, essa aproximação, dizia, não se limita apenas, no nosso entender, à maestria com que ambas as tragédias foram executadas, e que é só o que preocupa a sua tese. Vai além, vai à própria filiação. Ao abalançarmo-nos a uma pesquisa desse gênero, devíamos contar, como já o acentuamos em tempos, com certa disposição para a psicologia, a dizer talvez certo grau de penetração psicológica, por parte do leitor. E isso porque nunca essas filiações são claras. Não tratamos de propósito dos casos, indiscutivelmente muitíssimo mais numerosos, onde as ligações de mestre a discípulos são palpáveis e confessas. Consideramos tão somente essas filiações bastardas, mantidas em segredo pelos autores, até mesmo por eles próprios ignoradas, resultado que são, o mais das vezes, de uma sedimentação silenciosa no subconsciente de emoções antigas, nele depostas lentamente. Não nos detenhamos sobre o alcance prático que por ventura possa oferecer, no presente momento nacional, a investigação literária que apresentamos ao público, visando a esclarecer o leitor, naturalmente inclinado a considerar o admirável romance de Dostoiévski como um desses casos de originalidade patente e incontestada. Procuremos, pelo momento, demonstrar exatamente o contrário disso - e só isso. É certo que o trabalho de comparação que empreendemos, como, da mesma forma, um escrito anterior, já aparecido na imprensa, sobre algumas das fontes de inspiração de Eça de Queirós, tem como principal objetivo corroborar uma noção simples de estética, mas que parece o seu tanto esquecida: a de que a literatura não poderá jamais prescindir da literatura. Tomando como primeiro objeto de estudo o fundador do realismo em língua portuguesa e demonstrando, como o fizemos noutra ocasião, que esse furioso observador da “sua rua”, como ele próprio denominava o seu campo visual, vivia antes inteira e devotamente perdido no mundo artificial do livro, traduzindo em parte a sua grandeza e a de outros seus contemporâneos uma simples grandeza reflexa, derivada dos grandes escritores do século que eles copiaram: assim procedendo, dizia, desejei apenas intervir como um fator de bom senso, num instante em que se pretende rasgar tudo o que já foi escrito, rompendo todos os elos com o passado, a pretexto de tirar da “terra” o elemento de inspiração que só ela, absolutamente, nunca poderá dar. A originalidade em arte, como em todo o resto, nada mais é do que uma simples nuança. Um pequeno detalhe diferenciador com que a “espécie” que vem marca a sua evolução sobre a “espécie” que passou, talqualmente acontece na natureza. “Natura non facit saltum” - nem mesmo na esfera da fantasia e da imaginação. E, quando o faz, é só para despencar-se na extravagância das formas anômalas. Não nos alonguemos demasiado nestas considerações. Há muita matéria a debater sobre esse ponto delicado. O leitor, porém, verá, nas linhas que se vão seguir, como o escritor (Dostoiévski) que, por excelência, reflete o espírito “naturalista” da nossa época literária, “qui va révolutionner toutes nos habitudes intelectuelles”, foi buscar também muito longe da sua realidade ambiente a mais fecunda, a mais larga fonte de inspiração para o seu melhor trabalho. A Inglaterra exerceu necessariamente, para a época em que Fiódor Mikháilovitch engendrava o seu romance, uma influência mais do que provável sobre os novelistas russos. Gógol a conhecia decerto, pois que possuía toda a cultura literária do Ocidente, embora o seu crítico francês haja insistido na afirmação de que Dickens e o autor do Revisor haviam-se empenhado na mesma via e em um mesmo momento, sem se verem. A Inglaterra e o seu sistema político-social são igualmente familiares aos personagens do Crime e castigo, que a oferecem como exemplo mordaz do que pode (ou antes, não pode), perante as grandes misérias morais do homem, o amparo mecânico e frio do capitalismo: “… Piedade? Mas o sr. Lebeziátnikov, partidário das ideias novas, explicou outro dia que a piedade, na nossa época, é mesmo proibida pela ciência, e que tal é a doutrina reinante na Inglaterra, onde floresce a economia política” (Crime e castigo, p. 12). Um que outro herói mesmo de Shakespeare é, por vezes, relembrado através da grande obra do romancista eslavo (discurso do procurador geral nos Irmãos Karamázov). Finalmente, quando Dostoiévski necessita de um padrão de comparação, nos seus juízos literários, é ao colosso britânico que ele expressivamente se dirige: “Como devo-te chamar, quando achas que Fedra não é a expressão mais pura e a mais alta da natureza e da poesia! É quase uma obra de Shakespeare…” (Correspondência, cartas a seu irmão). Todavia, a prova mesma da consanguinidade que anunciamos, dão-nos certos acidentes mínimos do livro, uma que outra “palavra”, esses pequenos fios com que uma e outra obra se entrelaçam, como no fio de palha de Vanini se entreteciam, para o olhar místico desse ateu singular, todos os milagres da criação. Preliminarmente: o conflito moral é a maior tragédia dos dois livros. Intitulado Crime e castigo, quis o autor claramente pôr em contraste o horror (o “castigo”) desse criminoso, Raskólnikov, perante o tresloucado do seu “crime”. É esse, aliás, o fim social da obra. Mas nesse ponto, como de resto em muitíssimos outros, o crítico que vigiava em Dostoiévski (por isso que sempre existe um em todo romancista) deve ter sido ludibriado diante da concepção, mais simples, da sua arte. O maior horror desse livro demoníaco não me parece absolutamente esse drama, mais “social” do que humano, do indivíduo que suprime uma vida. O seu drama, nessa fase da ação, conta com um derivativo: a revolta, clara, aberta, que vai a ponto de exercer-se perante os seus próprios algozes. Raskólnikov só foi na verdade profundamente desgraçado e patético no fugitivo momento, nesse minuto shakespeariano (antes mesmo da “punição”) em que as feiticeiras de Macbeth põem-lhe ardilosamente no ouvido, como já o haviam feito com o senhor de Cawdor, a caminho da charneca, em meio a um estremecimento instantâneo que é comum a ambos os delinquentes, o meimendro da ambição, o gérmen do delito. Monologa, passos adiante, Macbeth: “Já duas verdades se disseram como prólogos felizes do ato culminante que tem por tema o real trono… Estas ‘insinuações’ sobrenaturais não podem ser más nem podem ser boas. Se são más, por que me ofereceram o senhorio de Cawdor como prêmio do meu triunfo, realizando-se a primeira verdade? Sou senhor de Cawdor. Se são boas, por que cedo eu a esta sugestão, cuja horrível imagem põe de pé os meus cabelos, e o meu coração, tão firme, bate com violência de encontro ao meu peito anormalmente? Os receios do presente são menores que os horrores imaginados: a ideia do homicídio persiste no meu pensamento no estado de ‘quimera’, mas isso abala a tal ponto a minha simples condição de homem, que todas as minhas faculdades são abafadas por esta preocupação, que nada para mim existe, exceto o que não existe” (Macbeth, ato i, cena iii). São as mesmas palavras, apenas mais democratizadas, as de Rodion Románovitch: “Será que eu sou capaz ‘disso’? ‘Isso’ será mesmo sério? Não, não é sério de todo. São frivolidades que divertem a minha imaginação, puras ‘quimeras’!” “Para essa época, ele próprio”, adverte logo o autor, “não acreditava que devesse passar da ideia à ação: ele se limitava a acariciar em imaginação uma ‘quimera’, ao mesmo tempo espantosa e sedutora.” (Crime e castigo, pp. 2-3). Uma simples palavra — quimera — proferida, porém, num sentido satânico, liga as duas situações. Poderá haver, na verdade, tortura mais horripilante do que essa quimera homicida? Quem primeiro a sofreu, quer dizer: quem primeiro afagou, monstruosamente, uma ideia criminal como um “sonho”, com inquietação e amor, medo e ternura, foi Macbeth. Eu insisto: para mim, desde a primeira leitura, há bem uma quinzena de anos, do livro extraordinário do romancista russo, o que me ficou como mais estranhamente grande e emocional foi esse modo shakespeariano de propor o “crime” sob a feição de um pensamento amável e “sedutor”. A posição social e política dos dois tipos também se confunde: são ambos expoentes (um, da força bruta; outro, da inteligência), malgrado a pobreza que faz de Raskólnikov quase um mendigo. Ele é um dos poucos “extraordinários”, segundo a sua classificação, o futuro super-homem de Nietzsche. O estudante sai com efeito da minoria niilista que vai dentro em pouco revolucionar o mundo, em particular a sua Rússia. Essa circunstância é procurada com volúpia pelo trágico inglês, que naquela carcaça de grande senhor dispõe de um arcabouço vigoroso para a violência da paixão que ele lhe ateia. Não duvidemos de que também Dostoiévski, escolhendo para protagonista um intelectual realizado, não buscasse igualmente um aparelho ultrassensível às vibrações titânicas que ele impiedosamente lhe ia comunicar. Macbeth sente-se impelido pelo diabo: “Começo a suspeitar dos equívocos do demônio que mente e parece falar a verdade: ‘Nada receies até que o bosque de Birnam venha sobre Duninsane’” (ato v, cena v). Também Raskólnikov: “Não foi a inteligência que me ajudou aqui, foi o diabo” (Crime e castigo, p. 66). Em qualquer país, frio e racionalista, do Ocidente, Rodion Románovitch iria até à insensibilidade sanguinária do bandido escocês. O que salva o estudante de São Petersburgo do caminho inapelável do inferno (onde Shakespeare o abismaria fatalmente), criando desse modo a única divergência profunda entre as duas obras, é a “maneira” de Dostoiévski, essa piedade cristã que se tornou para ele, com o tempo, uma obsessão. Mais tarde, finalmente, já quando consumado o delito, Raskólnikov procura justificá-lo, servindo-se das palavras de Shakespeare: “Blood hath been shed ere now, i’ the olden time…” (Macbeth, ato iii, cena iv). “Ele (o sangue) tem corrido sempre em ondas sobre a terra…” (Crime e castigo, p. 451). Em rigor não precisa aduzir, parece-nos, nenhuma outra prova mais para estabelecer a afinidade, de conjunto e por vezes mesmo de detalhe, que nos propusemos demonstrar. Rio, 1930. (O Jornal, Rio de Janeiro, 31 ago. 1930, Segunda Seção, pp. 1-2) Fonte: Teresa revista de Literatura Brasileira [16 ]; São Paulo, 2015 Disponível em: file:///C:/Users/User/Downloads/115429-Texto%20do%20artigo-210802-1-10-20160517.pdf Acesso em: 09/09/2020

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