Diminuição de auxílio vai gerar frustração e aversão a Bolsonaro, diz Sérgio Abranches
Para Sérgio Abranches, vive-se hoje no tempo dos
governos incidentais, que representam rupturas, mas com tendência de serem
efêmeros
Por Diego Viana —Valor Econômico / Eu &Fim de
Semana
SÃO PAULO - Em 2017, o cientista político Sérgio Abranches se
referiu à atualidade, no título de um livro, como a “Era do Imprevisto”, por
ser uma fase de transformações profundas. Em política, o imprevisto leva à
emergência de um personagem particular, que se traduz como “O Tempo dos
Governantes Incidentais” (Companhia das Letras, 304 págs., R$ 69,90). Com os
sistemas políticos desadaptados às mudanças velozes, esses líderes surgem das
franjas do sistema, com um discurso fomentado pela frustração e alicerçado na
aversão aos políticos estabelecidos. No entanto, como prometem transformações
que não são capazes de entregar, essa mesma base afetiva os torna efêmeros.
O “governante incidental” é marca de um período de
“interregno”, quando uma ordem global perdeu o vigor sem que sua substituta
esteja em pleno funcionamento. Em parte, esse estágio transitório explica
traços comuns a muitos incidentais, como o negacionismo climático. A formação
de novas lideranças, capazes de gerar propostas adequadas aos novos tempos, é o
caminho para superar o momento das lideranças incidentais, para Abranches.
No entanto, o cientista político aponta que o Brasil é um país
em que o surgimento de novos quadros é lento, em razão do caráter oligárquico e
enrijecido dos partidos e outros centros de formação. Essa é uma vantagem do
presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ao mesmo tempo, o apoio
recém-conquistado graças ao auxílio emergencial é uma faca de dois gumes:
reduzi-lo para garantir equilíbrio fiscal causaria novas frustrações;
expandi-lo pode levar à perda da simpatia dos mercados.
A pandemia de 2020 acelera alguns processos em curso. Um deles
é a percepção de que políticas sociais e de bem-estar não podem ser
inteiramente abandonadas, mesmo com a ênfase no equilíbrio fiscal. Outro é a
gradual adoção de algo como o projeto americano do Green New Deal, um conjunto
de investimentos para acelerar a transição rumo à economia verde e, ao mesmo
tempo, garantir empregos e justiça social.
Veja a seguir os principais tópicos tratados na
entrevista.
Governantes incidentais
“A ascensão desses políticos é mais do que uma manifestação da
era do imprevisto. É uma reação a ela. As eleições que produzem vitórias dos
incidentais representam rupturas com os padrões eleitorais. As sociedades estão
reagindo com medo, insegurança, incerteza e ressentimento às mudanças
estruturais que os países atravessam. Não é trivial que parte da classe média
americana branca tenha se empobrecido por conta da destruição de empregos
qualificados tradicionais. Quando buscam o bem-estar social, essas pessoas
encontram um sistema que não está sintonizado para o branco.
De repente, chega muita gente da classe média branca querendo
cheque de desemprego ou entrando nos outros serviços de proteção social, que
estão calibrados para os negros e latinos. Essas pessoas ficam ressentidas de
ter de entrar em uma fila com gente que consideram inferior. Gente que antes
trabalhava para eles. Produz-se, assim, um setor da classe média branca
americana raivoso, uma das bases eleitorais de Donald Trump.”
Ruptura eleitoral
“Um elemento central da ruptura eleitoral é a frustração
constante. Já há algum tempo, os ciclos econômicos são tais que as expectativas
nunca são cumpridas. Os eleitores ficam frustrados, porque o que imaginavam
estar comprando com o voto não é entregue. Além de produzir vitórias
incidentais, a frustração garante que esses líderes são efêmeros. Eles
geralmente vêm da margem ou de fora da política, mas também geram expectativas
que não se realizam. E produzem frustração. É quase uma lei da política: a
frustração das expectativas eleitorais se transforma em aversão e rejeição, ou
seja, em voto contra, na fase seguinte. Na Itália, o afastamento de [Matteo]
Salvini levou os populistas do Movimento 5 Estrelas a se alinharem à política
clássica. Mas eu me preocupo com o caso brasileiro, porque não estamos
produzindo novas lideranças. No próximo ciclo eleitoral, tudo indica que vamos
ter mais do mesmo e pode estar se criando o espaço para que surja um novo
populista.”
Bolsonaro e Guedes
“Trump não recuperou a popularidade, mas Bolsonaro, sim, por
efeito do auxílio emergencial. No meio de uma grande recessão, com uma taxa
avassaladora de desemprego, de repente o governo despeja dinheiro nas mãos das
pessoas, e ele faz a diferença, de fato. Mas quanto isso dura? O governo não
tem fôlego fiscal para manter esse nível de auxílio. Pode prorrogá-lo por mais
dois meses, a um custo alto, mas não pode continuar no ano que vem. Pode tentar
mudar o nome do Bolsa Família, para marcar como concessão pessoal de Bolsonaro,
mas vai ser um valor menor. Quando o governo dá algo e depois reduz a dádiva,
gera frustração e aversão.
Quando cair de R$ 600 para R$ 300, ainda mais com um processo
de recuperação duvidoso, isso vai produzir frustração, voltando ao ciclo de
gerar expectativa e entregar frustração. Já o apoio do mercado financeiro é
essencial para Bolsonaro. Significa a garantia de ter fluxo de investimento. A
pergunta é até que ponto o mercado vai crer religiosamente no liberalismo do
governo, que já deu seguidas demonstrações de que não é liberal, nem tem
compromisso com o rigor fiscal.”
Governo e mercado
“As âncoras de Bolsonaro com o mercado ainda são Paulo Guedes
e Roberto Campos Neto. Mas o conflito permanente entre o gastador e o austero
sempre acaba produzindo a saída de alguém. Não tem como sustentar por quatro
anos um atrito permanente. Por outro lado, Guedes tem uma atitude ambivalente.
Em geral, defende a austeridade para certas plateias. Mas quando fala para
plateias mais políticas, tem um discurso populista. ‘Vamos gastar para eleger o
presidente’... Qual é o Guedes que vai prevalecer? Ele também cria mais expectativa
do que pode entregar. Na fábrica de reformas do ministro, tem muito menos do
que é prometido. O discurso é de reforma tributária e descentralização; na
prática, o projeto é mudar dois impostos e recriar a CPMF.”
Presidencialismo de coalizão
“O modelo do presidencialismo de coalizão não acabou. Ele gera
efeitos para Bolsonaro. O fato de não ter uma coalizão tem consequências
políticas para ele. Falhou o projeto de usar a relação direta com a população
para forçar o Congresso a fazer o que ele quer. A aproximação com o Centrão é
um ponto de inflexão pessoal, não político. Bolsonaro se aproxima do Centrão
quando as investigações sobre a rachadinha ameaçam sua família. Ele vai em
busca de uma aliança com o Congresso pela imunidade, contra um pedido de impeachment.
Enquanto Rodrigo Maia (DEM) não vir os evidentes crimes de responsabilidade que
o presidente comete em série, não tem impeachment.
Bolsonaro tem que manter alguma relação amistosa com ele para
manter sua imunidade. Com isso, teve que desarmar, dentro da estrutura do
governo, o aparato da Lava-Jato. Houve uma janela aberta para um impeachment,
mas ela não foi aproveitada. Agora, certamente a probabilidade diminuiu. Mas
pode ressurgir. Como as investigações continuam pressionando a família Bolsonaro,
ele precisa de uma base no Congresso que seja capaz de vetar um pedido de
autorização para ser processado.”
Pauta de costumes
“Bolsonaro tem perdido todas as disputas nas suas pautas mais
caras, dos chamados ‘costumes’, por exemplo. Armas, religião, moralismo. Nas
políticas públicas, o que ele tem feito é se aproveitar do que o Congresso faz.
Ele não fez nenhuma grande proposta. As reformas da previdência e a do
saneamento básico estavam prontas. O saneamento só foi salvo porque Tasso
Jereissati (PSDB) resolveu assumir a liderança do processo. O auxílio
emergencial também. O Congresso se tornou o gerador de políticas públicas, que
depois Bolsonaro assume como se fossem dele.”
Relação com os EUA
“A presença de Trump na Casa Branca é indispensável para
Bolsonaro por várias razões, a primeira sendo que ele o copia o tempo todo. Com
Joe Biden, Bolsonaro perderia seu modelo. Outro ponto é que, se Biden for
eleito, os EUA retornam imediatamente ao Acordo de Paris. O Brasil não chegou a
sair do acordo, mas sua atitude se tornou hostil. A volta dos EUA nos deixaria
na posição de pária, com Arábia Saudita, Bolívia, Venezuela. Está em jogo a
projeção internacional do Brasil, que já vinha em declínio acelerado por conta
do desmantelamento do Itamaraty, da saída de cena dos diplomatas profissionais,
que sempre foram um recurso fundamental de influência internacional do Brasil.
O Brasil tinha uma reputação internacional muito boa por causa
do ‘soft power’. A ciência brasileira se destaca com ilhas de excelência importantes,
participando dos principais projetos científicos globais. A diplomacia
brasileira era uma das mais profissionais, conferindo uma capacidade de
intermediação e negociação internacionais e uma presença global muito fortes.
Com esse declínio, se os EUA mudam de posição e deixam de dar cobertura, o
Brasil perde muito. O mesmo vale na questão comercial. Trump, pelo menos, tem
um discurso de boa vontade com o Brasil, embora seja duvidoso na prática. Com
um governo Biden, vai ser como é com a Europa. O acordo com a União Europeia já
subiu no telhado. Se o governo americano também decretar que só tem tratado
comercial com proteção da Amazônia, acabou.”
Pós-pandemia
“Alguns eventos ainda em curso vão ser determinantes. O que
podemos ver agora é como as sociedades estão reagindo. Nos EUA, a popularidade
de Trump caiu fortemente. Parece que a onda populista que o elegeu (e que já
começava a declinar) vai ser interrompida. Outra coisa que estava em declínio e
parece a caminho de ser superado é o processo de austeridade. Não a ponto de
romper com a ideia de que deve haver equilíbrio fiscal. Mas a austeridade que
vinha sendo imposta era ultraliberal, cortando direitos sociais básicos. Vimos
que os países que se deram melhor na pandemia foram os que deixaram a saúde
pública funcional, como Portugal e Alemanha.
No Reino Unido, o primeiro-ministro conservador declarou que
sua vida foi salva pelo serviço nacional de saúde. E os conservadores vêm
enfraquecendo esse sistema desde o tempo de Margaret Thatcher [primeira-ministra
de 1979 a 1990]. A Espanha, que enfraqueceu muito seu serviço de saúde, se saiu
mal. Nos EUA, ficou claro que o sistema estritamente privado não funciona em
casos assim. Em Nova York, ele não resistiu a 15 dias de pandemia. Ficou claro
que é preciso preservar serviços sociais e redes de proteção, neste mundo cheio
de imprevistos. Não é só uma questão de justiça social: tem custos econômicos e
políticos.”
Green New Deal
“O Green New Deal é uma combinação de duas coisas. O lado ‘new
deal’ é a necessidade de uma rede de proteção social que alcance os novos
desprotegidos, que não estão contemplados pelas redes tradicionais. Tem um
processo de mudança nos empregos e negócios em que a destruição é mais rápida
do que a criação. Só se diz isso no campo do emprego, mas é verdade também para
empresas: os novos negócios, como os novos empregos, exigem qualidades
distintas das tradicionais. A sociedade está enfrentando o desafio de se
reeducar, seja para ser empresário, seja para ser trabalhador. É um processo
demorado, com muitas perdas no caminho. Algum tipo de proteção para esse
contingente, que fica inesperadamente fora do jogo, vai ser necessário para
evitar uma convulsão social.
A parte do ‘verde’ se impõe pelo fato de que a mudança
climática está aí. Nos EUA, a indústria de seguros se deu conta de que estava
no meio do caminho da mudança climática, não quando um furacão atingiu New
Orleans, porque atingiu a parte pobre, que não era segurada, mas quando uma
tempestade atingiu Chicago e Nova York. As seguradoras passaram a exigir dos
clientes mais responsabilidade climática e transparência com o risco
climático.”
A economia e o clima
“Era inevitável que os fundos de investimentos dissessem: sem
cuidado com a mudança climática, não invisto. A poupança da indústria de
seguros e previdenciária é a grande fonte de recursos financeiros. É
indissociável a questão econômica da climática. Ao mesmo tempo, a mudança
estrutural torna indissociável a questão social das carências que essas
transformações produzem. Assim se associam o ‘green’ e o ‘new deal’.
Tecnicamente, temos condições de atingir carbono zero no curto prazo. Se os
países quisessem fazer uma transição rápida, poderiam. Temos a tecnologia para
isso.
O problema é a resistência de parte do grande capital,
associado à indústria fóssil. Nos EUA, as Indústrias Koch são grandes
financiadoras do trumpismo porque sabem que seu negócio está com os dias
contados. Temos substitutos funcionais para o petróleo na energia: carros
elétricos, vento, sol, biomassa. Podemos ter uma matriz energética
diversificada, deixando o petróleo só como matéria-prima, onde tem muitas
aplicações ainda em que ele não é substituível.
O fato é que poderíamos estar fazendo a transição muito mais
rápido. Não estamos por causa das condições políticas. Há um descompasso entre
o poder e a influência política que as novas forças têm, ligadas por exemplo, à
energia eólica ou solar, e as velhas, ligadas à siderurgia ou ao petróleo. São
décadas de lobby. Esse descompasso trava a mudança.”
Novas lideranças
“Mobilizações como a de Greta Thunberg têm um poder
importante, porque geram novas lideranças. Uma coisa é certa: quando ocorrer a
transição de geração no poder, o mundo vai ser sustentável. Os valores já
mudaram na base da sociedade, só que eles ainda não têm poder político. As
novas gerações ainda não estão no poder. Esses movimentos estão ampliando o
espaço de criação de lideranças. No mundo inteiro, e no Brasil desde a época da
ditadura, os centros tradicionais de formação de lideranças se tornaram centros
de perpetuação de oligarquias. Quem está produzindo novas lideranças são os
movimentos sociais, sobretudo os ambientais, assim como o movimento negro e
outros. O problema é que produzem lideranças com muita identidade própria, mas
pouca capacidade de aglutinar forças. Esse processo ainda está em curso.
No Brasil, desde o princípio, nossa democracia não se
preocupou com a formação de lideranças. Mesmo hoje, os movimentos fora da
estrutura partidária de criação de lideranças, dos quais saíram nomes importantes,
são vistos com preconceito nos partidos, seja porque têm influência econômica
ou outra razão. As oligarquias resistem. O surgimento de novas lideranças
significa a circulação das elites: uma parte sai do poder para que ele seja
ocupado por uma nova liderança. No Brasil, os canais foram obstruídos, e os
partidos estão oligarquizados.
Mas esse também é um problema nos outros países. Pelo menos
têm surgido lideranças novas fora da estrutura partidária dominante, como os
Verdes na Europa. Na Espanha, o vice-primeiro-ministro veio dos movimentos de
rua. Esse processo é universal. A democracia tem ciclos de realinhamento
partidário. A partir de determinado momento, a estrutura partidária fica tão
ossificada que novas forças buscam rompê-las. Esse processo está em curso no
mundo inteiro.”
sexta-feira, 4 de setembro de 2020
https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/09/era-da-frustacao-constante-diminuicao.html
Revista de Antropologia
Print version ISSN 0034-7701
Rev. Antropol. vol.45 no.1 São
Paulo 2002
https://doi.org/10.1590/S0034-77012002000100007
A era da frustração: melancolia, contra-utopia e
violência em Clube da luta
Paulo Jorge Ribeiro
Professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC – Rio e Doutorando do
PPCIS – UERJ
RESUMO: Este ensaio procura traçar um panorama das polêmicas travadas em
torno do filme Clube da luta, abordando algumas temáticas que se
interpenetram com a questão da violência na sociedade contemporânea. A partir
daí procura estabelecer relações não somente com a estética fílmica
produzida pelo diretor David Fincher, mas também com as possíveis perspectivas
que este filme pode constituir na problematização mais acurada do que Zizek
denominou de "desertificaçao do real".
PALAVRAS-CHAVE: Clube da luta, violência, contra-utopia, melancolia.
Apresentação1
Muita coisa foi dita sobre
a perplexidade e a solidão do homem depois que o Céu desapareceu da crença
ativa. Sabemos que o vazio neutro dos céus e sabemos dos terrores que este
desaparecimento acarretou. Mas pode ser que a perda do Inferno tenha sido o deslocamento
mais severo. Pode ser que a transformação do Inferno em metáfora tenha deixado
uma lacuna formidável nas coordenadas de que a mente ocidental dispõe para a
localização, para o reconhecimento psicológico. Não ter nem Céu nem Inferno é
ficar intolerantemente carente e solitário em um mundo que se tornou plano. Dos
dois, o Inferno demonstrou ser o mais fácil de recriar.
(George Steiner, No castelo do Barba Azul 1991)
Clube da luta é mais do que um filme
violento: pode ser compreendido como uma contra-utopia contemporânea, quiçá
como a projeção dos maiores temores – de estado e de efeito no
público e mesmo na constituição de suas técnicas formais – dos frankfurtianos
mais sombrios em relação ao poder disruptivo da cultura de massas, como em
Adorno, ou também como a visão da permanência da melancolia e da barbárie no
mundo contemporâneo, como em Benjamin. O espírito dos personagens, oscilantes
entre atitudes anárquicas e militaristas, levou até mesmo a que um crítico da
prestigiada revista inglesa Time Out afirmasse tratar-se de um
filme eminentemente marxista (Coli, 1999).
No Brasil, entretanto, Clube da luta, que causou maior furor
na crítica do que sucesso de público, tornou-se objeto de incessantes polêmicas
a partir dos homicídios praticados pelo estudante Mateus da Rocha Meire, em
novembro de 1999, quando este, munido de uma metralhadora semi-automática,
entrou em uma das salas de projeção do Morumbi Shopping, em São Paulo, enquanto
todos assistiam a uma sessão do filme do diretor David Fincher. Ao disparar
aleatoriamente contra o público, o estudante matou três pessoas, iniciando mais
uma incessante controvérsia a respeito das relações entre violência e imagens
nos meios de comunicação2.
A relação entre obra de arte e violência novamente entra em cena. Parece
que a crítica sempre retorna ao medo de que uma onda de violência
atávica, representada em um barbarismo pré-moderno – quem sabe representado
exemplarmente pela onda de suicídios que se sucederam à leitura do Werther na
Alemanha –, regresse das cinzas. Parece que a batalha entre as estéticas do
gosto é também dimensionada, por parte desta mesma crítica, pela necessidade
imperativa de uma justaposição entre uma pedagogia artística e o medo da
decadência – em todas as suas acepções – ocidental. A inevitabilidade de uma
censura artístico-pedagógica, desta forma, se eleva sisificamente a uma
categoria transhistórica e assim a uma necessidade social, mesmo que
problemática à consciência liberal a que nós pertencemos
e que é representada por uma igual crítica liberal3. Dessa forma,
as problemáticas que envolvem esta (muitas vezes desejável) censura
artístico-pedagógica envolvem as próprias nuances pertencentes à conjugação das
responsabilidades do artista na sociedade que, como nos lembrou Thomas Mann,
sempre serão dilemas que abrangem (envergonhadamente) a política e, por que
não, a moral (Mann, 1988).
Tratando-se assim das tensas relações que envolvem a política e a arte –
e transversalmente os códigos de moralidade presentes nas sociedades
contemporâneas e suas conexões ambíguas com a indústria cultural4 –,
obviamente que não foi Clube da luta que anunciou pela
primeira vez os dilemas elencados acima. Como também não foi somente a partir das
polêmicas travadas ao redor do filme de David Fincher que se pensa em mudar o
sistema censório norte-americano. Como demonstrou Gregory Black em seu Hollywood
censored, desde pelo menos a década de 1930 que a censura é um dilema que
envolve várias instituições, códigos morais e relações de poder, para a
indústria e para a sociedade americana.
Indo de encontro a este terreno envolto em aporias de várias ordens e
consistências, desde seu lançamento que o filme de Fincher, um produtor de
videoclipes que já realizara Alien 3 e o também polêmico Seven,
demonstrou que seria motivo de controvérsias tanto estéticas quanto morais –
fundamentalmente na justaposição crítica entre estas duas
esferas. Na Inglaterra, por exemplo, houve censura de algumas cenas por parte
do British Board of Film Classification (BBFC), órgão independente a quem
compete a classificação das faixas etárias para assistir aos filmes exibidos no
país e que possui poder de censura às cenas que considere inapropriadas. Nos
Estados Unidos, alguns grupos protestaram categoricamente contra o "culto
à violência" deflagrado pelo filme. Consta que a própria estréia do filme
foi adiada nos Estados Unidos devido ao massacre de Littleton.
De todo modo, não foram somente os acontecimentos posteriores à exibição
de Clube da luta que constituem o interesse neste filme. A
relação entre estética fílmica e violência é assunto de destaque na crítica há
longa data. Não é por menos que filmes como Laranja mecânica, Taxi
Driver, Cães de Aluguel, Assassinos por Natureza,
os filmes de Sam Pechimpah e de John Woo, entre uma vasta filmografia, serem
uma constante pauta para discussões a respeito do papel da imagem na produção
da violência na sociedade contemporânea, fundamentalmente a partir da dimensão
ética da questão (Mongin, 1997; Baptista, 1994-1995; Bernardet, 1994).
Porém, quais as temáticas que absorvem e/ou interpenetram a questão da
violência na filmografia hollywoodiana contemporânea? Realmente estes filmes
realizam somente uma "apologia da violência"? Serão eles – ou sua
maior parte – ousados na forma, mas pobres no conteúdo? Serão os filmes
contemporâneos realmente mais violentos do que os anteriores?
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012002000100007
Clube da Luta - Trailer legendado
https://www.youtube.com/watch?v=acxGxPlxfZY
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