O mundo não
seria o mundo,
se fosse possível a qualquer humano evitar o que
tem de ser.. .
...
Foi um pensador melancólico que escreveu:
"não é só no céu e na terra, é principalmente
em nós mesmos que há mais coisas do que podem conter todas as filosofias."
Não
sei explicar o mistério daquelas correntes de sentimentos que chocavam. Tinha a
certeza, porém. E era horrível, era angustioso!
JOÃO DO RIO (1881 – 1921 | Brasil)
Ao contrário de muitos escritores famosos em vida e que caem no esquecimento
assim que morrem, o prestígio de João do Rio (Paulo Barreto) vem aumentando
lentamente nos últimos 30,40 anos, reavaliação que pode ser medida pela
reedição, embora esporádica, de seus títulos, mas também por sua constante
presença em diversas antologias e por várias coletâneas de suas crônicas e contos.
Um desses contos "antológicos" é sem dúvida este que se vai ler aqui.
Jornalista, dândi e homossexual, que tinha em Oscar Wilde uma espécie de modelo
(e de quem traduziu a peça Salomé), o carioca Paulo Barreto entrou para a
Academia Brasileira de Letras em 1910. Mas só muitos anos depois entraria para
a nossa literatura.
Na rua era um fragor. As casas pareciam abaladas
pelo barulho dos tambores, das cornetas, dos bombos, da vozearia infernal.
Rosendo Moura, muito maldisposto, estava a vestir-se. No seu encantador
gabinete de laca branca com estofo cor-de-rosa e uma infinidade de objetos de
cristal e marfim por sobre os móveis, nós insistíamos.
- Não me deixarão vocês?
- Rosendo! Uma terça-feira de carnaval!
- Mas chove...
- Tanto melhor. A Berta Worms espera-nos!
- Essa mulher desagrada-me...
- Não há mulheres desagradáveis. As mulheres
contentam-se com ser, como dizia o dramaturgo - a razão e o impedimento de
todas as nossas obras...
- Pois eu julgo-as portadoras de fatalidade e nós,
mesmo contra a vontade, as placas sensíveis dessas correntes de Mistério.
- A Berta dá então azar?
- A mim, pelo menos. Explico o meu caso. Pode dar
sorte a outros. Comigo, há mulheres que, aproximadas, são motivo de
prosperidade. Outras baralham-me a vida, por mais que me amem. Tenho de brigar
a murros com desconhecidos, negócios quase realizados periclitam, a saúde
fenece... Assim deve ser com vocês, com todos os homens. Infelizmente não sou
excepcional. Há de resto uma espécie de mulheres pior - a que age sobre os
homens como alucinação, fazendo-os participar da própria desgraça.
Dessas, quem escapa uma vez, não toma...
- Fetiche!
- É que vocês nunca se lembram da mulher que os
acompanha...
- A mulher fatal?
- Todas são fatais.
Houve uma pausa breve, enquanto Rosendo Moura dava
o laço da gravata, diante do espelho.
- Ó Rosendo, já escapaste de alguma? indagou
Jacques Ciro, um prodígio de cepticismo, porque tinha apenas vinte anos.
- Já. Olha. O carnaval faz-me lembrar a mais
horrenda semana da minha vida, a semana em que eu participei integralmente da
horrível fatalidade...
Nesse momento, o rumor vindo da rua tornou-se tão
grande, que tivemos de ir à janela. Chovia a cântaros. Mas, embaixo, a multidão
delirava. Eram gritos, uivos, gargalhadas, assobios, guinchos de cornetins,
rufos de tambores, sacolejos de adufes, estalos de pratos. E os sons agoniantes
dos bombos bombardeando as fachadas... Rosendo recolheu com desgosto, atirou-se
no divan.
- Não, positivamente não vou!...
- Recordaste a semana horrível? tornou Jacques
Ciro.
- Sim. E tanto mais atroz, quanto até hoje não
compreendo como e por que agi nesses oito dias. Foi há cinco anos e por mais
que pense, não explico. Macabro. Misterioso. Assustador. Recorda-se você da
Corina Gomes, uma rapariguita brasileira, que freqüentava os clubes?
- Há cinco anos, Rosendo? Não há memória que
alcance uma rapariguita brasileira a cinco anos de distância. Depois eu estava
na Europa...
- Felizardo!
- Infeliz, porque voltei...
- Pois a Corina era magra, lívida, tomava cocaína.
Eu achava-a antipática. Nunca trocáramos senão monossílabos, o instinto
dizia-me que essa mulher seria a desagradável aventura da minha vida. Como? Não
sabia!
Ora, numa terça antes do carnaval, com a agitação
da cidade, habitual em tais dias, sentia-me inquieto, indeciso, nervoso.
Desejava voltar à casa e queria aborrecidamente beber champagne e ouvir gritos
no club - onde se anunciava uma ululante redoute. À porta do club ainda
hesitei. Ia acontecer-me qualquer coisa de desagradável. Com certeza. Sem ter
inimigos, apalpei o revólver no bolso da calça. Há desses instantes de
polarização nervosa em que vagamente sentimos o que está no ar e vem... Veio.
Veio como os ciclones. Ainda no vestiário senti uma voz de agonia:
- Leve-me daqui já ou estou perdida! Pela sua
honra... Voltei-me. Era um dominó.
- Que brincadeira é essa?
- Por piedade! Não posso falar aqui. Escute, venha
cá...
Frágil, a sua força nervosa era tão intensa, que
quase me arrastava para a rua.
- Você está doida, mulher?
- Pelo amor de Deus! Só a sua companhia até mais
abaixo, Rosendo...
- Conhece-me?
- Sim, sim. Salve-me de morrer!
- Mas quer comprometer-me?
- Não. Quero a sua presença contra um covarde! Na
rua um táxi rodava vazio. Ela precipitou-se.
- Mande tocar já, já - para onde quiser. ..
Olhei em redor. Não havia ninguém suspeito.
Tratava-se por conseqüência de uma aventura sem conseqüências. Ela
entregava-se, indo onde eu quisesse... Curvei-me para o motorista e, quase em
segredo, dei-lhe uma direção vaga. Por quê? Até hoje não sei. Quando me voltei,
o automóvel em marcha, o dominó levantou a máscara. Era Corina Gomes, os beiços
trêmulos, lívida...
- Você? bradei colérico.
- A desgraça da minha vida! Não gosta de mim, bem sei. Mas não se trata de
amor, Rosendo! Só o sr. poderá salvar-me.
- Eu?
- Há três anos suporto as torturas de um monstro. Tudo quanto ganho é dele.
Quando vou ao club toma-me o dinheiro. Depois fecha o quarto todo, abre vários
frascos d'éter, põe-me inteiramente nua, prende-me os cabelos à gaveta da
cômoda, e goza naquela atmosfera desvairante, gotejando sobre mim éter. Oh! não
imagina! não imagina! Cada gota que cai dá-me um arrepio. Ao cabo de certo
tempo é uma sensação de queimadura, queimadura de gelo até a insensibilidade...
Ontem, não foi possível tolerá-lo mais. Protestei, gritei, contei tudo à gente
da pensão. Dois homens que lá estavam puseram-no na rua a pontapés. Ele voltou.
Não o recebi. Deu então para perseguir-me. Jurou que me matava. Ando a fugir.
Vejo-o por todos os lados. É certo que me matará...
- E você incomodar-me por uma tolice dessas! Faça
as pazes.
- É tarde. Não tenho coragem. Antes de ouvir-me,
mata-me. Tenho a certeza. Os meus dias estão contados. Conheço-o.
Disse aquelas palavras com tal segurança que não
hesitei um segundo. Também eu tinha a certeza da fatalidade que vence todos os
obstáculos, também eu via aquela criatura morta...
- Mas que fazer?
- Se pudesse esconder-me uns dias, dar-me depois
uma passagem? É inútil, porque ele acabará por encontrar-me. Mas eu tenho medo,
muito medo. Falta-me a coragem de morrer, Rosendo!
Devia ter levado Corina à polícia, denunciado o
monstro. E, livre de responsabilidade, ir dormir em seguida. Assim faria um
homem de bem no uso das suas faculdades.
- Sabe onde está ele?
- Por aí. Procura-me...
De repente senti que tinha ódio a Corina, com
vontade de defendê-Ia. Perdera a noção do real, sabendo que a perdera. Era
desejo de aniquilar o desconhecido e o medo vago desse enorme e vago
desconhecido. Não disse que a defenderia. Levei-a para um quarto d'hotel em rua
escura com a resolução de embarcá-la no dia seguinte, ainda não sabia como. No
hotel, Corina tremia tanto, quando tentei deixá-Ia, que fiquei. Dormimos um ao lado do outro, sem uma carícia - ela a delirar com medo; eu
olhando a treva e maldizendo a aventura. E no dia seguinte verifiquei apenas o
seguinte: perdera insensivel-mente metade da energia. Como essas criaturas na
iminência do desastre. Como os criminosos com medo à polícia. Andei dois dias
assim, desconfiado, fraco, aterrado, sem agir. Corina não deixava o quarto, sem
dizer palavra. Eu sentia que era preciso salvá-la, para salvar-me. Inexplicável
estado d'alma! Na sexta resolvi terminar, vendo os anúncios dos vapores.
- Embarcas amanhã para a Europa!
Corina despregou-se das persianas, onde passava o
dia a espreitar a rua.
- Não é possível! Ele já descobriu.
- Como?
- Vi-o ainda há pouco ali em frente.
- Mas estás louca!
- Não me deixe só, Rosendo! Ele mata-me.
Chamei o criado, com uma súbita intenção do perigo.
Interroguei-o. Havia algum hóspede novo? Havia. Um homem louro, pálido, que
alugara o quarto do outro corredor, e estivera a ler a lista dos hóspedes...
Corina caíra sobre o leito. Os seus dentes batiam como se estivesse
desabrigada, entre neves. Fiz um esforço:
- Esse homem já recolheu?
- Há pouco.
Era uma luta, devia ser uma luta, secreta e atroz,
na sombra. Mandei buscar um automóvel. Consegui dominar o terror de Corina para
que ela ao menos caminhasse. Saímos naturalmente, como quem vai a passeio. No
meio do caminho trocamos de automóvel. Eu tremia de raiva.
- A culpa é tua! Tu é que o fazes vir, sempre
a pensar nele!
- É sim, Rosendo. Sinto que ele vem e não posso,
não posso, não posso...
- Acabo com isso eu! Vamos dormir em qualquer
hospedaria e amanhã dou queixa à polícia...
Assim fiz. O delegado prometeu tomar providências,
mandando dois agentes para o hotel onde estávamos. Mas, ao sair da polícia, compreendi
claramente que "ele" sabia da minha resolução. "Ele" sim, o
homem que eu desconhecia, com o qual a fatalidade me punha em conflito, o homem
de que a Corina devia ser vítima. Essa criatura já decerto sabia, e ria com
desprezo. Eu não precisava tê-lo visto para ter a certeza do seu
conhecimento... Foi um pensador melancólico que escreveu: "não é só no céu
e na terra, é principalmente em nós mesmos que há mais coisas do que podem
conter todas as filosofias." Não sei explicar o mistério daquelas correntes
de sentimentos que chocavam. Tinha a certeza, porém. E era horrível, era
angustioso! Tomei a mudar de hotel e não tive mais coragem de deixar só Corina.
Fazia-me reflexo sensível daquela fatalidade feita mulher. Ela aos poucos
desdobrava-se em mim. E como só pensava no seu algoz - naquele a quem o Destino
lhe entregara a vida - eu também só pensava nele. Passávamos horas a ouvir o
rumor dos corredores. Onde estaria ele? Onde? Decerto perto. Talvez, à nossa
porta, espreitando...
O meu delírio tinha entretanto intervalos de
relativa lucidez. Domingo de carnaval perdi de súbito o medo.
- Corina, achei uma solução para o nosso caso.
- Qual? fez ela.
- Vamos aproveitar o carnaval! Não se pode contar
com a polícia. "Ele" ainda não apanhou a nossa pista. O essencial é
pôr-te a andar, antes que de novo a descubra! E encontrei-me a planejar alto:
visto-me de qualquer coisa e saio. Vou até a casa, enfio o dominó e venho
buscar-te. Sairemos pela porta dos fundos. Faço melhor. O meu criado tem uma
rapariga mais ou menos com o teu corpo. Mando-os esperar em qualquer casa de
máscaras. Lá eles enfiarão as nossas fantasias e virão para este quarto,
enquanto nós estaremos livres para tomar o noturno de S. Paulo. Há quarta-feira
em Santos um transatlântico para Buenos Aires e Valparaíso. Se o homem não
estiver no vapor, estarás livre...
- Achas?
- É certo.
Saí a executar o plano. Executei-o exatamente. Na
casa de máscaras, Corina pôs uma travesseirinha nas costas, armou uns seios
muito grandes, amarrou com o lenço o rosto e colocou por cima uma espessa
máscara de arame. Eu fiz um grande ventre sob o dominó e saí claudicando. Tudo
isso, notem vocês, fazíamos sem ver nada anormal, sem a certeza senão vaga de
que ele nos estivesse acompanhando...
Após, conseguimos um taxímetro. Estávamos prestes a
dizer:
- Enfim, logrado!
Mas, curioso. Durante as duas horas em que rolamos
por avenidas desertas nesse automóvel fechado a fazer horas para apanhar o
comboio, não trocamos uma palavra. Era o grande momento decisivo. Corina
apertava a minha mão, de vez em quando, tremendo. Apenas. Eu sentia que o seu
medo voltava aos poucos a desequilibrar-me. Passávamos pela cidade em delírio,
sem dar por isso. O nosso delírio era maior.
Quando chegamos à Central a confusão urbana tocava
o auge. O grande hall da estação cheio de luz elétrica, a turba, os
"cordões" com archotes a zabumbar, as danças, os gritos, as
lutas de lança-perfumes e dos confetti, o risco colorido das serpentinas... Metemo-nos
por ali dentro para tomar o vagon E de repente, os dois, no mesmo instante,
vimos que estávamos perdidos.
Como explicar essa impressão extralúcida?
Fora caía um temporal desabrido. A estação estava
atulhada. Homens suados, bandos alagados, máscaras passavam numa alucinação
como galvanizados pela luz elétrica. Ninguém reparava em nós, ninguém decerto,
ninguém, ninguém. E entretanto sentíamos que o perigo se aproximava seguro, com
o passo firme. Onde estava ele? Era o homem do éter, o homem cuja fisionomia eu
nem mesmo conhecia, ele com a sua cara, ou com uma máscara. E olhava-nos, e
estava ali, e reconhecera-nos. Sim.
Devia estar, devia ter reconhecido. Que fazer? Que
fazer? A vertigem apoderava-se de nós. Aquela mulher era decerto o pólo
negativo a chamar misteriosamente, a atrair o horrendo ser. Ele adivinhava por
uma revelação telepática. Sei lá! Sei lá! O fato é que Corina apoiou o corpo no
meu braço:
- É o fim!
- Anda para frente, estafermo! rouquejei furioso.
- Não partimos mais, Rosendo.
- Partimos sim!
- Ele está no apeadeiro, sinto-o!
- Prendemo-lo.
- Ele vai tomar o trem conosco. Ele mata-me em
viagem!
- Miserável, caminha ou largo-te!
- Voltemos, Rosendo. Ainda é possível escapar, se
apanhamos ali um automóvel...
- Agora?
- Sim! Sim!
- Agora? repetia eu correndo, como diante do
inexorável Destino. E não havia máscara ou cara suspeita!
Na praça deserta - faltavam as conduções. Só, ao
longe, rebrilhavam as lanternas de um carro. Ela deitou a correr. Segui-a,
olhando para trás. Ao chegarmos à beira do carro, um landau fechado, estávamos
completamente alagados. A chuva redobrava.
- Para onde?
- Ande!
- É vinte mil-réis a corrida.
- Seja cem! Depressa!
- Para onde?
- Para onde quiser!
O trem tomou o caminho do lado da Casa da Moeda.
- Vamos à delegacia, Rosendo?
- Queres?
- Se ainda for tempo!
Convencido de que não seria possível lutar só
contra o horror invisível, gritei ao cocheiro:
- Polícia Central! A toda... O carro, porém,
parara.
- Que há?
- Raios o partam ! Rebentaram as correias das
bestas.
- Hein?
- Dos dois lados. Caiporismo!
- E agora?
- É esperar aqui, até que passe outro carro. Não
posso guiar assim.
- Meu Deus!
Era no pedaço mais deserto da rua. Saltei para ver.
As correias gastas tinham arrebentado naturalmente. Estávamos nas mãos do
Destino. Só havia um alvitre: correr até a esquina, onde passavam bondes, onde
havia movimento... Era o meio de escapar, e eu escaparia para sempre, porque no
dia seguinte não me meteria mais à guarda daquela criatura.
- Vamos?
- Rosendo. ..
- Anda...
- Se tem de ser? fez ela. Tens razão.
Desceu, corremos os dois sob o temporal pelo meio
da rua escura uns cinco metros, uns dez metros. Sei que ouvi um psiu e
voltei-me, enquanto ela estacava. Sei que vi um
sujeito que vinha para nós, talvez o cocheiro. Sei
que o sujeito avançou para Corina com uma pequena máscara de chorão, ergueu o
braço, e passou a mão pelos seios falsos da rapariga. Ia gritar. Deu-me um
pescoção. Rolei na lama. Ele segurava-a, riscando-lhe o dominó com uma navalha.
De súbito ela deu um grito agudo. O único.
Pareceu-me que desmaiara. Nas mãos do máscara lembrava um manequim. O homem em
fúria continuava a brandir a navalha contra os enchimentos dos seios. Afinal
atirou-se à máscara. Era de arame. O fio da arma rompeu-se no tecido espesso.
Ouvi os triços gaspeados da lâmina no tecido d'arame. Ergui-me de um pulo,
saquei do revólver, detonei aos berros:
- Assassino! Assassino!
O tipo arrancava as roupas, a máscara da
desgraçada. Eu continuava a detonar e a gritar. Gente corria. Vi cair o
capuz à Corina, o assassino agarrá-la pelos cabelos, afundar-lhe a navalha no
pescoço e deixá-la tombar num jato de sangue. A cena talvez tivesse durado dois
minutos. Para mim foi longa como um século, rápida como um raio. De revólver em
punho, fantasiado, meio estrangulado pelos cordões da máscara, eu delirava,
presa de uma febre cerebral... Estive entre a vida e a morte, dois meses... E
quando os médicos me declararam fora de perigo, tive a sensação absoluta do
desastre de que escapara. Ela agira como os ciclones, que, embora destinados a
um certo sítio, desarvoram, matam, estragam o que se agita no limite da sua
ação destruidora. Aquela criatura fora o ciclone. Longe dela ainda lhe sofrera
a força fatal. Não morrera, mas estava desarvorado, como os barcos apanhados
pela tromba terrível. E desde então, respeito muito essas coisas inexplicáveis
que as mulheres representam. A semana de Corina fez-me compreender o horror do
enigma dramático da vida...
Rosendo Moura reclinou-se inteiramente no divan.
Tinha a fronte banhada em suor. Amigos desse excelente rapaz, nós ouvíamos a
anedota e os comentários com paciência e sem prestar muita atenção. Jacques
Ciro, o jovem céptico, estava ainda na idade em que se toma interesse pelas
histórias alheias. Às divagações de Rosendo, insistiu:
- E a Corina, morreu?
- É verdade, a Fatalidade desapareceu? sorriu
outro.
- Não, fez Rosendo. Não estaria no meu princípio de
que as mulheres são agentes do Destino, contra ou a favor de certos indivíduos.
Ela parecia a vítima do tal assassino. No fundo a vítima foi ele. Ele é que
devia desaparecer para libertar-se...
- Rosendo!
- A própria opinião inconsciente dessa rapariga.
Nem ele nem ela morreram. Ele foi condenado a vinte anos de prisão. O advogado
tem apelado. Ela, com o pescoço costurado, a cara cheia de talhos, mais
magra, mais lívida, vive numa hospedaria das proximidades da Detenção. Todo o
dinheiro que arranja é para ele, para o seu antigo, para o seu assassino.
Amam-se profundamente. Ela, porque sendo a expressão viva da fatalidade do
pobre homem, não o deixará enquanto for possível fazer-lhe mal. Ele, porque
ninguém foge à sua mulher, isto é, ao seu Destino... Outro dia encontrei
Corina. Não a vira desde a noite trágica. Foi ela quem me falou. E, contando-me
o seu amor, a sinceridade do "pobrezinho", exclamou: "Tudo por
sua causa, Rosendo. Se não fosse o seu medo e a mania de meter-se na vida dos
outros, o meu Roberto não estaria desgraçado."
Decididamente, meus amigos, as mulheres!...
- Não valem o tempo que aqui perdemos, sentenciou
grave Jacques Ciro.
- Vão vocês pois ao divertimento. Eu fico com medo
à chuva e às rajadas do Destino, que são as inexoráveis mulheres...
E Rosendo Moura ergueu-se, foi até o espelho
desmanchar o laço da gravata. Estava só. Todos nós já descíamos as escadas.
Corríamos às aventuras prováveis do baile de máscaras. O carnaval, sob a chuva,
sacudia as urtigas dos desejos. Não era por conseqüência momento de refletir
sobre as filosofias talvez verdadeiras de Rosendo. O mundo não seria o mundo,
se fosse possível a qualquer humano evitar o que tem de ser.. .
https://aneste.org/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=36
Especial Capa: Existe uma literatura policial
brasileira?
Autor de
romances policiais e organizador da antologia Crime feito em casa — contos
policiais brasileiros,
Flávio Moreira
da Costa traça um panorama do gênero no país, desde os precursores até os
autores contemporâneos
Flávio Moreira da Costa
Para falar da literatura policial brasileira de hoje, preciso falar antes da
literatura policial brasileira de ontem. Afinal, acredito que o futuro da
literatura policial, como aliás, de qualquer literatura, está no seu passado.
O policial brasileiro existiu ou existe? Vamos supor que sim. Incipiente ainda,
e muito em forma de contos, gênero em que predominou durante décadas, se não
até hoje, como registra minha antologia Crime feito em casa — contos
policiais brasileiros (2005). À época consegui rastrear cerca de 35
contos, dentro de uma perspectiva histórica. Vamos alinhar aqui alguns deles,
dentro desta perspectiva.
Na primeira parte — o início do início —, que chamei de “(Bons) antecedentes”,
selecionei quatro contos,
respectivamente,
“O enfermeiro”, de Machado de Assis, “A mágoa que rala”, de Lima Barreto, “A
aventura de Rosendo Moura”, de João do Rio, e “O crime”, de Olavo Bilac. Nenhum
deles é o que se poderia chamar hoje — e ontem mesmo nem assim se chamavam — de
contos policiais: são precursores. Tem, cada um deles, um traço, uma tendência,
uma “levada”, como diriam os músicos, do que viria a se desenvolver no gênero
policial.
A presença mais contestada, por uma crítica, pelo menos, foi a de “O
enfermeiro”. Que Machado de Assis tenha sido um leitor pioneiro de Edgar Allan
Poe, é coisa sabida de todos. Escrevi na pequena introdução ao conto que ele
“sempre surpreendente, nos revela aqui uma personagem — o enfermeiro —, uma
situação e um clima que parecem saídos, ao mesmo tempo, de um relato de Poe
misturado a um filme classe B, em direção conjunta de Roger Corman e [Alfred]
Hitchcock. O conto tem um andamento e um clima bastante noir — aliás, bem avant
la lettre.” Já o conto de Lima Barreto, “A mágoa que rala”, não permite
contestação: escrito a partir de um crime comum
ocorrido numa
idílica Lagoa Rodrigues de Freitas, Lima se antecede a uma tendência quase
majoritária de literatura (e do cinema) policial até hoje: a de desenvolver o
enredo em cima de um faits divers escondido entre as páginas dos jornais.
Dificilmente, no começo do século XX, algum beletrista pensaria sequer em se
utilizar de uma notícia policial para escrever suas histórias. Para não nos
alongarmos, o conto de João do Rio situa-se na fronteira com o conto de horror,
à moda dos escritores decandentistas da Belle Époque francesa, como um Jean
Lorrain. Já a história de Olavo Bilac, é um conto criminal — narrativa que
sempre antecedeu a literatura policial —, lidando com problemas de culpa e
consciência, como acontece (e sem comparações, que seriam desproporcionais)
em Crime e Castigo, de Dostoiévski.
E assim chegamos à década de 1920, do século passado.
E um nome se impõe aqui como pioneiro indiscutível: Medeiros e Albuquerque, um
antigo membro da Academia Brasileira de Letras, hoje esquecido. Um modelo
internacional já se impunha na mal iniciada literatura policial. Aliás, dois:
Conan Doyle e Sherlock Holmes, criador e criatura, que levaram o gênero de
detetive à categoria de literatura de massa, ou às listas de best-sellers —
se existissem listas à época. Era uma febre a leitura deste detetive
cocainômano e cerebral, ajudado pelo médico e amigo dr. Watson. Pois, acometido
por essa febre, Medeiros e Albuquerque, que vivera na desvairada Paris da Belle
Époque, quando se deixou contaminar pelos livros de Conan Doyle, escreveu a
primeira coletânea de contos policiais da nossa literatura. Adivinhem o
título... Se eu fosse Sherlock Holmes. A verdade, e ele já o diz no título, é
que Medeiros
não era Conan
Doyle, mas seus contos ainda subsistem, como fenômeno da época, e bem
mereceriam uma reedição. Essa posição de livro único de contos policiais,
manteve-se até o surgimento de Luiz Lopes Coelho, outro pioneiro, quase três
décadas depois, autor de A morte no envelope, O homem que matava quadros e A
ideia de matar Belina. A erudição de Otto Maria Carpeaux não o impediu de
saudá-lo como bom contista do gênero. Lopes Coelho criou um detetive à
brasileira, o Dr. Leite.
Mas Medeiros e Albuquerque, no seu entusiasmo, aliciou e arregimentou cúmplices
à sua volta para juntos, numa espécie de “quadrilha de escribas”, publicarem um
folhetim policial na imprensa carioca. Compunham essa “quadrilha do bem” seus
colegas de Academia Brasileira de Letras Coelho Neto, Afrânio Peixoto e Viriato
Correia que, juntamente com o mentor intelectual do delito, Medeiros e
Albuquerque, perpetuaram o que seria o primeiro romance policial brasileiro:
deram-lhe o título de Mystério, com o devido ipsilone da época. Não
escolheram um dentre eles para dar o acabamento final ao texto. Curiosamente,
cada um assinava o capítulo escrito, e assim a insustentável leveza do Mystério ficou
insustentável demais na estrutura romanesca e não se sustentou no ar. Mesmo
assim, Mystério teve três edições em forma de livro, com uma
venda surpreendente para a época — e mesmo para hoje — de dez mil exemplares.
(Esta experiência de autoria coletiva seria retomada anos depois, com Os
mistérios de M.M., com outros “comparsas”, aliciados desta vez por
João Condé: Lúcio Cardoso, Raquel de Queiróz, Jorge Amado, José Conde, Antonio
Callado e... Guimarães Rosa, que aliás, começou publicando contos policiais na
revista O Cruzeiro).
O que se sustenta no ar da literatura policial brasileira, ainda iniciante, é a
obra do paulista Marcos Rey. Escritor profissional numa época em que viver de
literatura no Brasil era coisa de dois a três autores, Rey nunca se envergonhou
de escrever literatura popular, pelo contrário, fazia-o com gosto, habilidade e
um bom domínio técnico. Mesmo embutindo as marcas da geração norte-americana
dos anos 1930 — Hammett, Chandler, mas também Goodis e Horace McCoy —, o
escritor paulista abrasileirou a narrativa de mistério — não parecia, como
outros, ser um americano escrevendo em português. Vejam como ele apresenta seu
detetive no conto “O último cuba-libre”: “Durante o dia Adão Flores era um
gordo como qualquer outro. Sua atividade e seu charme começavam depois das 22
horas e às vezes até mais tarde. Então era visto levando seus 120 quilos às
boates, a bistrôs e inferninhos da cidade (...) Com o tempo Adão Flores
adquiriu outra profissão, paralela à de empresário da noite, a de detetive
particular, mas sem placa na porta, atividade restrita apenas a cenários
noturnos e pessoas conhecidas.” O detalhe de “sem placa na porta” parece
anunciar Ed Mort, o personagem satírico de Luís Fernando Verissimo. Ocorre que
Marcos Rey levou o gênero a milhares de jovens; ele foi um best-seller com
suas duas dezenas de livros juvenis, de grande potencial de adoção escolar, com
tiragens em escala de milhões.
Creio que já deu para perceber que não é unitária ou contínua — nem poderia
sê-lo — a evolução da literatura
policial
brasileira, razão pela qual precisamos pular de tendência a tendência, seguir
esta ou aquela pista, a fim de desenhar um pouco do mosaico que a constitui.
Assim, nos anos 60/70 surgiu entre nós uma espécie de ciclo do
romance-reportagem, que muitas vezes se confundem com o gênero policial. Por
razões cronológicas que talvez justifiquem a autocitação, meu livro Cosa
Nostra – Eu vi a Máfia de perto, depois reeditado como A
perseguição, saiu em 1973, classificado como “reportagem de ficção”, foi o
primeiro de uma longa lista. Só depois, com livros de José Louzeiro, Aguinaldo
Silva e outros, nossa imprensa começou a falar em “romances-reportagens”.
Foi uma espécie de mini ciclo, que teve repercussão, inclusive de vendas. E
pelo menos dois ou três pontos dignos de se destacar vamos encontrar em livros
como Araceli, meu amor, Lúcio Flávio — passageiro da agonia e Pixote,
todos de José Louzeiro, para ficarmos no autor de maior destaque dessa
contraparte do romance policial, além da passagem do conto para o romance como
meio de expressão. Em primeiro lugar, a opção por assuntos brasileiros e da
atualidade (o faits divers alimentando a ficção), em plena ditadura brasileira;
depois, o exercício do profissionalismo, em contraste com o eterno amadorismo
da nossa literatura, no que foi ajudado pelas versões cinematográficas desses
livros. Títulos, por sua vez, que unem jornalismo à ideia de retratos da
sociedade dos velhos romances realistas ou naturalistas, com vigor narrativo e
ficção policial. Havia, como houve, leitores para eles.
Na mesma época, os anos 1960, surgia um contista que “mostrou-se interiormente
livre para erguer um modo de ver e ser, de criar um estilo inconfundível”, nas
palavras do crítico gaúcho — e meu professor de literatura na adolescência —
Carlos Jorge Appel. O crítico falava de Rubem Fonseca, que escreveu uma série
de livros magistrais, como Os prisioneiros (1963), A
coleira do cão (1965), Lúcia McCartney (1967), Feliz
ano novo (1975), O cobrador (1979) e os romances A
grande arte (1983) e Bufo & Spallanzani (1986).
Rubem Fonseca
chegou para confundir. Confundir as insustentáveis fronteiras de literaturas
menores e literaturas maiores, de gêneros e subgêneros, confundir o comodismo
teórico e classificatório das nossas universidades ou academias, confundir a
separação entre literatura de massa e literatura de elite, o bom-mocismo
estético da realidade cruel que nos envolve cotidianamente. Confundindo, ele
nos renova: não se pode dizer que Rubem Fonseca seja um autor policial ou um grande
escritor: ele é as duas coisas. A sombra do noir e do hard-boiled está presente
em vários contos do autor, mas é a conhecida narrativa chamada “Mandrake” que
se impõe quase que como um paradigma do gênero, ou dos rumos que o gênero tomou
depois de Hammett e Chandler. “Mandrake”, aliás, é paradigma e propositalmente
pastiche de Raymond Chandler/Philip Marlowe, criador e criatura. O próprio
narrador deixa isso claro ao se referir, no final, a dois títulos de Chandler: O
longo adeus e O grande sono.
Mas é nos romances, em particular em A grande arte e Bufo &
Spallanzani, que Rubem Fonseca traça sua marca divisória na literatura
policial brasileira, unindo e misturando a grande literatura com a “pequena
literatura”, com a literatura popular, derrubando o muro de Berlim que separa,
ou separava, boas intenções de boas realizações, “literatura” de
“subliteratura” — e coloco aqui aspas nas duas palavras. É certo que esse muro
já havia caído lá fora, desde Simenon (louvado por André Gide), passando pelos
americanos do ramo, e até de William Faulkner, com seu romance Intruder
in the dust, no qual mistura o assassinato de um branco por num camponês
negro, heranças da Guerra de Secessão, com técnicas sofisticadas de stream of
consciensness. Além de Allan Robbe-Grillet, que recria em seu romance de
estreia A gun for fire, de Graham Greene. Mas o que importa aqui é
o nosso contexto, e se Fonseca nos confunde, é porque ele nos sacode, balança
nossas idées reçus, nossas certezas e preconceitos. Difícil dizer, depois dele,
que não existe uma literatura policial brasileira, muito menos que ela se
restrinja ao conceito difuso e velado de “subliteratura”.
É boa literatura policial que vem fazendo uma ou mais gerações depois de Rubem
Fonseca. Alguns nomes para prestarmos atenção: Alfredo Garcia-Roza, com seu
detetive Epinosa, morador do Bairro Peixoto — como Maigret, de Simenon, na
Avenue Richard-Lenoir e arredores da Bastilha —, já fazendo carreira
internacional; Marçal Aquino, que promove o abrasileiramento do gênero, retomando
nesse sentido Marcos Rey; Tony Bellotto, mostrando o lado noir do rock, ou o
lado rock and roll do romance noir; e ainda discípulos de Rubem Fonseca, como
Patrícia Melo. Além dos novos autores surgindo: Tabajara Ruas, Joaquim
Nogueira, Braz Chediak — o cineasta, estreando em 2011 como Cortina de
sangue. E mais virão, pois o futuro da literatura policial brasileira está
no passado, e no presente da literatura como um todo. Sobretudo, na tendência
mundial/editorial de valorização do gênero.
A literatura de mistério, que começou quase como sinônimo de literatura
anglo-saxã, já vem fazendo sua globalização há pelos menos 50 anos. Não se
trata de nenhuma teoria literária especulativa: é também uma questão de
mercado. Sem um mercado nacional e internacional, portanto sem uma
profissionalização editorial e autoral, não haveria, nem haverá, a literatura
de mistério ou policial. E ela não seria tão rica, nem estaria espalhada pelo
mundo como está hoje. Seria o caso de lembrar que a maioria dos países têm
bons, excelentes — e mesmo ruins, por que não?— autores policiais. Dos países
escandinavos, passando pela Espanha, Itália, Grécia, Japão, Cuba, Rússia e
África do Sul, há muitos autores policiais espalhados pelo globo. Vale lembrar
também da nossa vizinha Argentina, que chegou antes de nós ao gênero, graças a
leitores, diretores de coleções e tradutores como Jorge Luis Borges, Bioy
Casares e Rodolfo Walsh, ainda nas décadas de 40/50.
Não seria justo dizer que nós estamos no mesmo patamar desta globalização do
imaginário policial. Mas
depois de um
longo e lento começo, como tentei mostrar aqui, e que de certa forma resultou
nos livros de Rubem Fonseca, já podemos dizer que “yes, nós podemos”. Talvez o
sentido secreto do título de Fonseca, O cobrador, seja este: precisamos nos
cobrar, nós, escritores, editores e leitores. As duas coleções do gênero que
existem entre nós, da Record e da Companhia das Letras (duas, em contraste com
quase cinquenta na França, por exemplo), publicam majoritariamente romances
traduzidos. Em 2000, meu livro Modelo para morrer foi uma
espécie de corpo estranho na Coleção Negra, da Record, entre dezenas de títulos
estrangeiros.
Já é um bom começo. Falta o meio e o fim. Falta o enredo. Mais ação. Mais
talentos?
Faltam mais cadáveres iniciais — em contraponto à nossa realidade, onde eles
abundam —, mais investigações, mais detetives e leitores, mais, enfim,
literatura, fora de divisões e de preconceitos. O filósofo Hegel escreveu que o
problema da História é a história do problema. Problema ou mistério, tanto faz:
o mistério desta história é a história desses mistérios.
Ainda no século XIX, o poeta Rimbaud anunciava a nossa época: “Voici le temps
des assassins!” Só faltou falar em Fernandinho Beira-Mar, nas quadrilhas do Rio
e de Brasília, nos tiranos como Kadhafi. Sim, crime e poder, como mostrou Hans
Magnus Ensenberger.
Crime e castigo? Nem sempre.
É esta, me parece, a insustentável leveza do mistério. Ou será que não tem
mistério? Nem leveza?
Flávio Moreira da Costa é escritor, autor de As armas e os
barões e O equilibrista do arame farpado (1997). Várias vezes
premiado, organizou três dezenas de antologias de sucesso, como Os cem
melhores contos de humor, Melhores contos fantásticos e Contos
de amor e desamor. O texto aqui publicado foi escrito originalmente
para uma conferência realizada na Academia Brasileira de Letras, em abril de
2011. Flávio Moreira da Costa vive no Rio de Janeiro (RJ).
http://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Especial-Capa-Existe-uma-literatura-policial-brasileira
JOÃO DO RIO
Por Gilda Vilela Brandão
João do Rio
Gilda
Vilela Brandão*
Filho único de Alfredo Coelho Barreto, professor de
matemática, e de Florência dos Santos Barreto, João Paulo Emílio Cristovão dos
Santos Barreto [Paulo Barreto] nasceu no Rio de Janeiro no dia 05 de agosto de
1881, em um sobrado situado na Rua do Hospício (atual Buenos Aires) e faleceu
em 23 de junho de 1921, fulminado por ataque cardíaco, dentro de um táxi, logo
após deixar a redação do jornal “A Pátria”.
Inicia sua carreira de jornalista meses antes de
completar dezoito anos (1899), no jornal “A Tribuna”, com uma crítica da
peça Casa de boneca, de Ibsen – indício de sua paixão pelo teatro
–, encenada por Lucília Simões no teatro Santana (atual teatro Carlos Gomes).
Meses depois é admitido em “A Cidade do Rio”. A partir de 1901, colabora
intensamente nos jornais “O País”, “O Dia”, “O Correio Mercantil. Ingressa, em
1903, por indicação do então deputado fluminense Nilo Peçanha, em um dos
jornais mais influentes do Rio de Janeiro: “Gazeta de Notícias”. Passa, então,
a usar o pseudônimo que o tornaria famoso: João do Rio. Vale lembrar que o uso
de um nom de plume, como costumam chamar os franceses, era uma
prática comum nos círculos literários europeus e brasileiros, funcionando ora
como ocultação de identidade, ora como um simples jogo de esconde-esconde com o
leitor. Tal como Machado de Assis e Olavo Bilac, Paulo Barreto passa a assinar
textos jornalísticos – crítica teatral, crônicas, entrevistas, reportagens –
sob diferentes pseudônimos: José Antonio José, Joe, Claude, Máscara negra.
Porém, é com o pseudônimo patronímico que ganha notoriedade no meio
jornalístico e nas rodas mundanas e sociais. Aliás, para alguns, o
pseudônimo João do Rio seria um tributo ao irrequieto
jornalista e romancista francês Jean Lorrain [Paul-Alexandre Duval, 1855-1906],
autor de Monsieur de Phocas e de Le vice errant (ambos
publicados em 1901), de quem era um ardente admirador. Para
outros, a escolha seria uma homenagem à cidade que ele tanto amava – razão de
ser de sua obra. Ambas as justificativas têm algo a seu favor, mas não devem
ser vistas separadamente.
Em 1904, escreve uma série de crônicas que mais
tarde comporiam o volume As religiões do Rio, título inspirado
em Les religions de Paris (1894), de Jules Bois (1868-1943).
Para escrevê-las, João do Rio abandona a chamada “crônica de gabinete” e, à
maneira de Eugène Sue (1804-1857), que largara as vestes aristocratas para escrever
o romance-folhetim Les mystères de Paris, publicado no Journal
des Débats, entre junho de 1842 e outubro de 1843, envereda pelas ruas e
pelos becos fétidos cariocas em busca do que chamaria “a alma encantadora das
ruas”. Exemplário das crenças praticadas no Rio de Janeiro, o livro recebeu, da
Comissão de História do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) –
composta por Sílvio Romero, Afonso Celso de Assis Figueiredo e B. T. de M.
Leite Velho –, um parecer elogioso, no qual, a par do irrecusável cunho
histórico, destacam-se “a graça e a cintilação de estilo” do jornalista
escritor. Dedicado a Manuel Jorge de Oliveira Rocha, fundador do jornal “A
Notícia” (1894), o Rochinha, o livro abre-se com uma epígrafe extraída do
pensador e filósofo renascentista francês Michel de Montaigne (1533-1592):
“Cecy est un livre de bonne foy” (“Este é um livro de boa fé”). Guiado
por esse princípio de fé, escreve, sem titubear, na Introdução: “O Rio, como
todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em
cada homem uma crença diversa”. Tal diversidade pode ser encontrada, sem
dificuldades, nas vinte e três crônicas-reportagens, dentre as quais a
antológica “Missa negra”. Em “Os satanistas”, inventa um interlocutor e
co-enunciador, o Dr. Justino de Moura, personagem que, tal como o Barão de
Belfort e Godofredo de Alencar – apresentado em A profissão de Jacques
Pedreira, como um “homem de letras que se dá com políticos
de importância” – irá freqüentar assiduamente sua ficção, ora, simplesmente,
como Justino, nos contos “Dentro da noite”, Honestidade de Etelvina amante”,
“Puro amor”, e muitos outros, ora como Justino Gouveia (“Cleópatra”).
Seguindo o modelo de Jules Huret (1863-1915), que
havia inaugurado, no periódico “L’écho de Paris”, a moda dos “inquéritos” literários
(“Enquête sur l’évolution littéraire”, 1891), Paulo Barreto, ainda em 1904,
atendendo à sugestão do poeta Medeiros e Albuquerque, começa escrever uma série
de entrevistas (28 publicadas em jornal e nove acrescentadas ao livro)
intitulada O momento literário. Dentre os entrevistados acham-se
Coelho Neto, Elysio de Carvalho, Sílvio Romero, Clóvis Bevilacqua, Nestor
Vítor, Afonso Celso, Fábio Luz, João Ribeiro, Afrânio Peixoto, Olavo Bilac,
Rodrigo Otávio (autor de Aristo, uma novela, conforme ele
próprio afirma, que “ninguém leu nem conhece”) e Guimarães Passos (“Guima” para
os íntimos), a quem sucederia na Academia Brasileira de Letras. Outros caíram
no ostracismo. O livro tem como propósito indagar “parnasianos, líricos, decadentes,
clássicos, naturistas, sociólogos, ocultistas, anarquistas, impassíveis,
humoristas, simbolistas, nefelibatas” sobre a arte que praticavam. Tratava-se,
sobretudo, de obter, por meio das cinco seguintes perguntas, uma cartografia do
pensamento literário brasileiro: “1) Para sua formação literária, quais os
autores que mais contribuíram? 2) Das suas obras, qual a que prefere?
Especificando mais ainda: quais, dentre os seus trabalhos, as cenas ou
capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere? 3) Lembrando,
separadamente, a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que, no momento
atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas
(romance social, poesia de ação etc.) ou há luta entre antigas e modernas?
Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores que as representam? Qual
a que julga predestinada a predominar? 4) O desenvolvimento dos Centros
Literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte? 5) O jornalismo,
especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a literatura?”. A última
pergunta demonstra claramente uma preocupação com o futuro da literatura,
ameaçada por uma nova tecnologia de impressão (Machado de Assis, em “O jornal e
o livro”, também demonstraria a mesma inquietação). Como que prevendo a
chegada de novas imagens com um poder comunicativo maior, João do Rio tinha,
conforme se vê, as lentes de seu monóculo voltadas para o futuro.
Olhando o conjunto das questões, chama-nos a
atenção a perspicácia do entrevistador, que, no final, não mascara sua decepção
com os rumos da literatura brasileira: “A verdade é que cada um cuida de si. A
época é de um individualismo hiperestésico. Há a estagnação dos corrilhos
literários, mas a fúria de aparecer só – é prodigiosa”.
Comunicador nato, João do Rio trabalha intensamente
nas duas “fornalhas”, a mundana e a profissional: “Há – dizia a Júlia de
Almeida em O momento literário – na fornalha [do Rio de
Janeiro], outra fornalha que me espera – o jornal”. De fato, centro político e
difusor cultural do país, o Rio de Janeiro passava por uma série de
turbulências, desde as habituais divergências político-partidárias até mutações
culturais mais profundas. No plano histórico-cultural, duas ações,
perfeitamente concatenadas, foram, decerto, as mais significativas. A primeira,
proposta pelo renomado sanitarista Oswaldo Cruz, consistia em promover a vacina
obrigatória (Revolta da vacina, 1904) e em erradicar a epidemia de febre
amarela, na qual, aliás, João do Rio se inspirou para escrever, com tintas
expressionistas, o conto “A peste” (Dentro da noite): “Os olhos [de
Francisco] desapareciam meio afundados em lama amarela, já sem pestanas e com
as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes”. A segunda, promovida pelo
prefeito Francisco Franco Pereira Passos, também durante o governo Rodrigues
Alves, foi, como é sabido, a urbanização do Rio de Janeiro (1903-1904).
Denominado, por Manuel de Souza Pinto, de “O Bota-abaixo” e fotografada pelo
alagoano Augusto Malta, o projeto civilizatório muda a fisionomia da velha
cidade colonial. Tendo como modelo as reformas urbanas promovidas, em Paris
(1857), pelo prefeito George-Eugène Hausmann, Pereira Passos põe abaixo o velho
casario colonial, igrejas, becos e cortiços; abre a Avenida Central (atual
Avenida Rio Branco), projetada pelo engenheiro André Gustavo Paulo de Frontin,
transformando a cidade, com o perdão do clichê, em um “microcosmo de Paris”.
Importante salientar que João do Rio percebe a urbanização como um processo
dual: se, por um lado, aplaude a implantação de um moderno espaço urbano, por
outro, rejeita a homogeneização cultural como algo profundamente negativo. Na
crônica, “O velho mercado” (Cinematógrafo, crônicas
cariocas, 1909), lamenta a derrubada do “estômago da cidade”.
Conhecedor das tradições do Rio antigo, tinha consciência de que habitava, na
acepção de Marc Augé, um lugar antropológico, que a civilização
punha abaixo. Vale a pena citar esta passagem, prenhe de nostalgia: “Acabou de
mudar-se ontem a Praça do Mercado. [...]. Que nos resta mais do
velho Rio antigo, tão curioso e tão característico? Uma cidade moderna é como
todas as cidades modernas [...]. De súbito, da noite para o dia, [o Rio]
compreendeu que era ser preciso tal qual Buenos Aires, que é o esforço
despedaçante de ser Paris, e ruíram casas e estalaram igrejas [...].
Ao mesmo tempo em que escreve uma série de crônicas
sob o título “Dias de burla”, que mais tarde irão compor o volume Os
dias passam – composto de quinze crônicas escritas na “Gazeta” e em “A
Notícia”, entre 1904 e 1910 – colabora, juntamente com Olavo
Bilac, na revista Kosmos, refinado mensário ilustrado em
papel couché. Por essa época (1903-1904), a caricatura alcança
um prestígio no vigor do traço de Calixto Cordeiro (Kalixto) e de Gil, que, na
série “Os prontos”, capta o repórter-cronista e seu indefectível monóculo.
Aos vinte e cinco anos de idade (1905),
candidata-se à Academia Brasileira de Letras (ABL), sob a presidência de
Machado de Assis – autoridade moral na Academia – na vaga de Pedro Rabelo. Foi
eleito Heráclito Graça, tio de Graça Aranha. Adoentado, João do Rio segue para
Poços de Caldas (anos depois, voltaria à estação de águas), onde certamente já
começa a angariar matéria convincente para escrever Correspondência de
uma estação de cura (1918), romance epistolar, sem dúvida um dos
melhores que escreveu.
Atraído cada vez mais pelo teatro, escreve, em
1906, sua primeira peça, a revista-burleta “A Folia”, cujo título seria mudado
para “Chic Chic” . A segunda peça, “Clotilde”, drama em um ato, traz um
dos assuntos prediletos do jornalista carioca: a infidelidade feminina. À
estréia, em 8 de março de 1907, esteve presente o recém-empossado Presidente da
República, Afonso Pena, recebido, à porta do teatro Recreio Dramático, pelo
autor e pelo consagrado teatrólogo Arthur Azevedo, que também encenava, na
mesma ocasião, sua peça, “O Dote”, baseada no conto “Reflexões de um marido”,
de Júlia Lopes de Almeida, publicado em “O Paiz”. Tendo alcançado certo
sucesso, escreve “Dinheiro haja!” (1908), “A bela Madame Vargas” (1912),
baseada em um crime ocorrido em 1906, envolvendo uma senhora da alta sociedade. “Eva
(a propósito de uma menina original)” e “Que pena ser só ladrão!” são encenadas
em 1915. A peça “O Encontro”, publicada posteriormente sob o título “Um chá das
cinco”, tem como núcleo mais um tema caro ao autor: a prostituição. Este texto
dramatúrgico terá sua versão narrativa no conto homônimo, “Encontro” (A
mulher e os espelhos, 1919) que narra o reencontro,
após quinze anos, numa rua qualquer, de Teodureto Gomes com uma
antiga amante, Argemira/Adélia. Não raro, sua
inclinação pela arte teatral alcança um complemento na obra ficcional. Assim,
o conto “A fada das pérolas” (A mulher e os espelhos) tem, como cenário,
um dos teatros do Recreio, e, como protagonistas, um casal de portugueses,
Serafim e Joana. Carpinteiro, Serafim vivia “da oficina para a casa e da casa
para a oficina”. Convidado a trabalhar nas oficinas do teatro, Serafim é
seduzido pela atriz Maria do Carmo, cognominada “a fada das pérolas”. Com seu
“chapéu de plumas”, descendo de sua “vitória forrada de cetim verde”, Maria do
Carmo encarna a perdição. Para Joana, é “uma entidade celeste”.
Acidentado, mas no fundo “morto por uma paixão violenta”, Serafim é trazido de
volta para casa, em uma maca, “estendido, hirto, a camisa sangrando, a boca
aberta, o olho vítreo”. Essa maneira de transitar de um gênero para outro
é muito mais do que um indício de sua indiscutível versatilidade
comunicacional. Constitui, sem sombra de dúvidas, a personalidade de um
escritor atento aos paradoxos da sociedade carioca, e que serviriam de
nascedouro para sua produção ficcional (teatro, conto e romance) e para sua
produção midiática, jornalística (crônica).
Opiniático, irreverente, famoso (fala-se da
expectativa de transeuntes aguardando sua chegada espalhafatosa na “Gazeta de
Notícias”), João do Rio começa a ser alvo de um cortejo de provocações:
acusam-no de bajular figuras proeminentes da política e de estar ligado à
“política dos governadores”, sistema instaurado no governo Campos Sales
(1898-1902) pelo qual os Estados passavam a ter influência na escolha dos
candidatos à sucessão presidencial da República; criticam-lhe a indumentária
sofisticada, a aparência snob, a adiposidade, provocada,
provavelmente, por problemas de hipotireoidismo. Em clima de pleno nacionalismo
pátrio, acusam-no de lusitanismo, devido à amizade que mantinha com a
comunidade portuguesa. Finalmente, por conta de sua homossexualidade, torna-se
objeto de pilhérias maldizentes, que o magoam profundamente. Entrementes, com o
mesmo ardor, continua produzindo. Em 1907, aparece sua tradução da peça Salomé, de
Oscar Wilde, publicada originalmente (em partes) na revista Kosmos e
considerada, até hoje, por especialistas, uma das mais confiáveis. Em
Wilde, de quem traduziria também Intenções e O retrato
de Dorian Gray (trabalho não assinado), descobre a estranha combinação
entre arte e vida, mote de que precisava para, escudado em Jean Lorrain e em
Friderich Nietzsche, introduzir, na sua ficção, tópicos escabrosos, como
prostituição, lesbianismo e sadomasoquismo.
Candidata-se pela segunda vez, na vaga do
historiador e poeta José Alexandre Teixeira de Melo, perdendo o pleito para
Artur Silveira da Mota (Barão de Jaceguai), considerado heroi naval da batalha
de Humaitá (Guerra contra o Paraguai, 1869), que, aliás, ao não saudar seu
antecessor, sob o falso pretexto de não ter conhecido nem o homem nem a obra,
infringiu os cânones protocolares acadêmicos.
Inaugurada em 11 de agosto de 1908 (a data estava
prevista para14 de julho), em comemoração ao centenário da Abertura dos Portos
do Brasil, a Exposição Nacional torna-se
matéria de muitas crônicas, dentre as quais “Quando o brasileiro descobrirá o
Brasil?”, em que fustiga a classe endinheirada por desprezar a
cultura e a história de seu próprio país: “No fundo, porém, temos a
ideia de que somos fenomenalmente inferiores, porque não somos tal qual os
outros, e ignoramo-nos por completo. Naquela roda, as senhoras conheciam a
Escandinávia, e perguntavam se Minas era porto de mar. [...]. Não há francês
que ignore seu país, a sua divisão política, a sua produção e a sua história.
No Brasil, dá-se absolutamente o contrário.[...]. E isto porque (sic)? Porque,
brasileiros, esses cavalheiros acham inteiramente inútil conhecer o Brasil. Um
livro sobre a geologia da França é para cada um deles muito mais interessante
que a descrição do esplendor no qual vivemos [...]”.
No
final do mesmo ano (1908) viaja para a Europa no paquete “Araguaya”. Em
Lisboa, percorre, extasiado, a Alfama e a Mouraria; segue para o Porto onde
assina contrato com os livreiros Lello Irmãos, que o apresentam ao poeta Guerra
Junqueiro (descreve esse encontro em uma coluna da “Gazeta de Notícias”, mais
tarde publicada no volume Portugal d’agora, dedicado a Manuel de
Sousa Pinto e a João de Barros); admira Florença, detesta Nápoles. Em fevereiro
de 1909 chega a Paris, cidade onipresente no imaginário dos intelectuais
brasileiros e, particularmente, no do nosso escritor; freqüenta teatros,
cabarés, conhece Isadora Duncan, que lhe reservaria um lugar em seu livro de
memórias, Minha vida, e a quem serviria de cicerone durante o
período em que a bailarina esteve no Brasil. Em Nice, já a caminho
do Brasil, recebe a notícia da morte repentina de seu pai, chegando a tempo de
comparecer à missa de sétimo dia e de consolar sua adorada mãe, D. Florência,
que, diga-se de passagem, intrometia-se amiúde na vida do filho escritor.
Candidata-se, pela terceira vez, à Academia
(Machado de Assis falecera em setembro de 1908), na vaga do poeta alagoano
Guimarães Passos, falecido em Paris em 1909. Finalmente é eleito, derrotando o
general Dantas Barreto. Ocupante 2, da cadeira 26 (cujo patrono era o poeta
Laurindo Rebelo), é o primeiro a tomar posse com o “fardão dos imortais”, em
cerimônia a que compareceram figuras da alta sociedade. Conhecido por sua
irreverência, o poeta Emílio de Menezes, compõe a seguinte quadra: “Na previsão
de próximos calores/ A Academia que idolatra o frio/ Não podendo comprar
ventiladores/ Abriu as portas para João do Rio”. No entanto, o ingresso, na
ABL, de um mulato homossexual constitui um marco na história da instituição,
conhecida por seu conservadorismo.
A crônica continua sendo para o autor de As
religiões no Rio uma tentativa de conjugar etnografia, literatura e
comunicação. Ao reunir, em 1909, quarenta e quatro crônicas, sob o título Cinematographo
(crônicas cariocas), João do Rio deixa claro seu propósito: revelar, no
sentido cinematográfico do termo, uma sucessão vertiginosa de
cenas urbanas. Aliás, o indicador textual colocado entre parênteses (crônicas
cariocas) estabelece de imediato uma relação espacial do cronista com
a cidade maravilhosa, aposto, como é sabido, dado à capital federal
pela escritora francesa Jane Catulle Mendès, por ocasião de sua visita ao Rio
de Janeiro em 1911, quando proferiu conferências, dentre as quais “Les femmes
de lettres françaises” (“As mulheres letradas francesas”), no Teatro
Municipal. Em cuidadosa edição de Lello Irmãos, em tons de marrom e
dourado, o livro, que temos, neste exato momento, em mãos (1909),
desgastado pelo tempo, foi um sucesso de livraria, para o que contribuíram o
nome do autor e o assunto escolhido.
As duas primeiras décadas do século vinte foram,
seguramente, um período social e historicamente conturbado, no âmbito mundial e
nacional. Cabe-nos apenas lembrar que em 1906, é realizado no Rio de Janeiro o
terceiro Congresso Operário (considera-se o primeiro, o congresso realizado no
Rio, em 1892; o segundo, o Congresso Socialista de 1902, realizado em São
Paulo). A entrada do Brasil na guerra (1914-1918) provocou protestos da
imprensa anarquista, dos jornais revolucionários cariocas, paulistas e
portoalegrenses (“A Lanterna”, “O Cosmopolita”, “O Parafuso”, “A Patuléia”, “A
Luta”); em 1914, “O Imparcial”, em Belém, e a “Semana Social”, em Maceió, são
fechados pela polícia. O jornal quinzenal “A voz dos trabalhadores”, no qual,
aliás, Lima Barreto colaborava, ressurge das cinzas, com uma tiragem de 4.000
exemplares. As organizações operárias (Sindicato dos Operários das Pedreiras,
União dos Alfaiates, Sociedade União dos Estivadores, para citar apenas
algumas) convocam greves. João do Rio mostrou-se sensível à exploração da
classe proletária. Em A alma encantadora das ruas (1910)
mostra, mais uma vez, que não há zona, cultural ou geográfica, intransponível
para ele. Dividida em quatro partes (“O que se vê nas ruas”, “Três
aspectos da miséria” “Onde às vezes termina a rua”, “A musa das ruas”), esta
obra pode ser estudada tanto sob o aspecto literário quanto sob os aspectos
etnológico, histórico e comunicacional. O primeiro, pelos recursos narrativos e
a organização discursiva; o segundo, por levar ao
público a cotidianidade urbana, as profissões e as tradições em via de
desaparecimento, e um mundo até então camuflado por grande parte dos
historiadores: o mundo da miséria urbana. A pobreza é um problema da sociedade,
da má distribuição de riquezas, é o que ele nos diz na crônica “A fome negra”:
“[Os pobres seres] vivem quase nus. No máximo, uma calça em frangalhos e uma
camisa de meia. Os seus conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro,
o dinheiro que a pá levanta para o bem-estar dos poderosos”. Essa fase agitada
da chamada “belle époque tropical” é fixada em crônicas que davam
amostras suficientes do interesse, do escritor carioca, em narrar a cidade a
partir de seus mais diferentes espaços de sociabilidade, desde os mais
reluzentes e requintados (hotéis, restaurantes, teatros, salões mundanos),
freqüentados por uma burguesia europeizada e por políticos interessados em
ocupar cargos representativos no governo, até os mais obscuros, heterotópicos,
diríamos (favelas, asilos, prostíbulos, casas de detenção), onde vivia uma
população periférica, anônima, esfomeada, analfabeta, sem direito à dignidade
do trabalho e à educação, jogada à margem da urbanização. Sem
romper totalmente com os princípios que regiam a crônica-folhetim, inaugurada
brilhantemente, em 1874, por José de Alencar (“Ao correr da pena”), João do Rio
surpreende o público pelo pioneirismo de suas inovações.
Sendo um dos poucos escritores (talvez o único) a
viver exclusivamente do jornal, e sempre às voltas com dificuldades
financeiras, assina, em 1910, um contrato com a Casa Garnier, com vistas à
publicação de quatro livros: Portugal d’agora, Vida vertiginosa, A
profissão de Jacques Pedreira (1911-1913), publicado após uma série de
percalços editoriais, romance de crítica social e política, cuja
personagem-título é um bon vivant, o protótipo do parasita
social. Já o quarto livro, Psicologia urbana (1911) reúne seu
discurso de posse e quatro conferências: “O flirt”, “O amor carioca”, “O figurino”,
“A delícia de mentir”, esta última proferida durante sua viagem, em 1910, a São
Paulo, no teatro Santana, em benefício do Centro Acadêmico 11 de agosto, da
faculdade de Direito. No tempo da chamada “febre das conferências”, ressalte-se
a escolha do comunicador-conferencista por temas modernos, up to
date, próprios de uma cidade com ares cosmopolitas. Em “O figurino”,
surpreende-nos sua concepção sobre a moda, não mais vista como um simples
acessório de futilidade, mas como um elemento em constante mudança e em
interação com a vida social dos novos tempos.
Em 1910 é publicada a coletânea de contos Dentro
da noite. A ideia nuclear, já a exprime o título: à noite, os vícios,
a luxúria e a licenciosidade passeiam mais à vontade (apenas os contos “O fim de
Arsênio Godard”, ambientado durante a Revolta da Esquadra, em 1893, e
“Coração”, de teor semiautobiográfico não se enquadram nesses valores). O mesmo
temário é também perseguido em A mulher e os espelhos (1919).
Em muitos contos, utiliza, com freqüência, a mesma
técnica: a descrição é dada, conforme mencionamos anteriormente, por meio de
traços histriônicos. No conto “Histórias de gente alegre”, que relata um caso
de lesbianismo, Elsa e Elisa, em uma cena concebida como um espetáculo,
observada pelo público da pensão, debatem-se até a morte. “A aventura de
Rosendo Moura” é o relato, nos limites do cômico, da fuga, de Rosendo,
fantasiado de dominó, e de Corina Gomes – uma mulher do povo, magra, lívida,
viciada em cocaína – pelas ruas da cidade, ambos tentando escapar, numa
terça-feira anterior ao carnaval, da perseguição do amante que explora a
indefesa mulher. No antológico “O bebê de tarlatana rosa”, que teve em
Graciliano Ramos um leitor atento, João do Rio, tomando como metáfora a
máscara, adota uma iconoclastia literária, mantendo-se distante das convenções
ainda em voga.
Porém, quando se trata da ficção, um dos equívocos
mais comuns tem sido o de fazer dele um escritor subserviente aos modelos
europeus, sob suspeita de ter sido um imitador (além de Wilde) de Joris Karl
Huysmans, o autor de A rebours (Às avessas), criador do protótipo
do dândi decadentista, Jean Floressas des Esseintes. A fabulação do romance
huysmanniano é de uma imobilidade quase absoluta: decidido a não ver qualquer
silhueta humana, o duque Des Esseintes (a partícula “des” sinaliza sua origem
aristocrática) tranca-se nos cômodos de sua casa, distante de Paris. Neste
reduto, absorve-se na leitura de Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Petrônio (Satyricon), bem
como na contemplação de obras pictóricas, dentre as quais avultam as dos
pré-rafaelitas e a Salomé, de Gustave Moreau, imagem pictórica
carregada de sentidos para Wilde. Ver, nos dândis-narradores de João do
Rio, uma cópia do dândi huysmaniano pode vir a ser, no nosso entendimento, um
julgamento precipitado. Com os olhos e a caneta voltados para seu
contexto histórico, João do Rio segue, estruturalmente, outra linha de
argumentação, abrasileirando, conscientemente, o seu dândi André de Belfort (o
equívoco, provavelmente, deve-se ao fato de o próprio João do Rio
caracterizá-lo como dândi). Ao retiro monacal de Des Esseintes, à sua
ascendência aristocrática, ao seu desdém pela pobreza, ao seu culto pela arte,
João do Rio opõe um dândi desmemoriado, sem genealogia; posudo, sim, insensível,
às vezes, mas profundamente comovido com o destino agônico dos miseráveis
urbanos, representados em figuras pobres e decrépitas como Corina (“A aventura
de Rosendo Moura”), D. Joaquina (“D. Joaquina”), Carlota (“A noiva do som”),
Armando (“Última noite”), Rosa (“Uma criatura a quem nunca faltou nada!”) e a
menina amarela do conto homônimo (“A menina amarela”). Não é possível
também esquecer que o fenômeno do dandismo tem, no contexto europeu, um
fundamento histórico, indissociavelmente ligado à derrocada da nobreza.
Fechando a questão, o dândi europeu é uma categoria social, sobre a qual
Huysmans fundou uma rica tradição estilística. Se, por um lado, é
impossível negar a presença de Wilde, Lorrain e Huysmans no conjunto da obra do
escritor carioca, por outro, não é possível ignorar as combinações
estético-sociais que o motivaram e que não cabem discutir aqui.
Mas há, ainda, em João do Rio uma tendência
precisando ser explorada pela crítica: trata-se de sua fixação por histórias
policiais, detetivescas, que tanto podem estar, disfarçadas, na crônica e na
ficção quanto, mais abertamente, nestas incríveis Memórias de um rato
de hotel (1911), livro publicado originalmente sem autoria. Eis a fala
de abertura do Dr. Antônio, o ladrão de casaca: “Nunca pensei em escrever
memórias. Nunca fui dado à literatura e à fantasia, sendo muito limitado o
número de livros que tenho lido. [...]. Passo as noites sem poder dormir, com
dispnéias, estou magro, macilento, com olheiras, as mãos trêmulas [...]. Estava
assim, há dias, desolado, na enfermaria, quando vieram chamar-me”. O
administrador da prisão apresenta-o a um jornalista anônimo: “Mas, que quer o
senhor de mim”? [pergunta Dr. Antônio]. – “Quero que conte a sua vida para meu
jornal” [responde o entrevistador].
Em 1916, publica o volume Crônicas e frases
de Godofredo de Alencar, reunião de textos que já haviam passado pela
imprensa periódica, na “Gazeta”, com o pseudônimo de Joe, cujo
narrador-protagonista, Godofredo de Alencar (antes conhecido como Godofredo
Câmara), vale lembrar agora, é uma homenagem do cronista a Mário de Alencar,
filho do grande romancista, teatrólogo e cronista cearense.
A linguagem aforismática, de fortes lembranças
wildeanas, bastante cultivada pelo autor tanto nas obras ficcionais (“este mundo
é uma esquina por onde passam todos os homens”) quanto nos textos cronísticos,
é, aqui, preponderante. Comparemos Wilde, em O retrato de Dorian
Gray, quando conjetura sobre o traje do século XIX :”É tão sombrio,
tão deprimente! O pecado é realmente o único elemento colorido da vida
moderna”, com Godofredo de Alencar: “Tudo na terra é mistério, tudo na vida é
repetição”; Os homens sucedem-se repetindo velhos gestos”; “Não há maior
luxúria que a de pensar. Só uma a sobrepuja: a de pensar bem”; “Nada mais complicado
que uma alma simples”; “A velhice é o peso da desilusão”.
Desde 1915, João do Rio vinha escrevendo crônicas
mundanas e comentários políticos na “Gazeta”, sob o pseudônimo de José Antônio
José, na seção por ele denominada “Pall-Mall Rio”, que saem a lume em 1917.
Neste mesmo ano, juntamente com Francisca (Chiquinha) Gonzaga, Bastos Tigre,
Carlos Cavaco, Oduvaldo Vianna, Raul Pederneiras, Oscar Guanabarino, Viriato
Corrêa e muitos outros, funda a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais
(SBAT), sendo eleito o primeiro presidente. Após um período pontuado de
decepções, aceita, em 1919, a função de correspondente na Conferência de Paz,
em Versalhes.
Em 1920, deixa O país e funda seu
próprio jornal, A Pátria, chamado ironicamente de A
Mátria por seus detratores (Alberto Torres e Humberto de Campos foram
os mais impiedosos). No mesmo ano, publica Adiante! e
a terceira e última coletânea de contos, Rosário da ilusão. Encerrava
uma carreira vertiginosa.
Sua morte súbita surpreendeu a população carioca. Seu
corpo não foi velado na Academia Brasileira de Letras, com a qual andava
desgostoso, mas, por determinação materna, na redação de A
Pátria. O enterro foi acompanhado por uma multidão.
Segundo seus biógrafos, João do Rio escreveu um
total de duas mil trezentas e duas crônicas. A última crônica, escrita em 23 de
junho de 1921, poucas horas antes de morrer, guarda um título sugestivo: “A
crise brasileira e a decadência do Brasil”.
O que faz, deste jornalista carioca, um elemento
distintivo no quadro da imprensa do período, é sua intensa dedicação à vida
jornalística e sua capacidade de comunicador. Brasileiríssimo, João Paulo
Emílio Cristovão dos Santos Barreto, é, sem dúvida, um dos grandes
protagonistas literários do século vinte.
Referências Bibliográficas
BROCA, Brito. A vida literária no
Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.
CARVALHO, Elysio de. João do Rio. In:
______. Correntes estéticas na literatura brasileira. Rio
de Janeiro: Garnier, 1909.
MAGALHÃES
JÚNIOR, R. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira (em convênio com o Instituto Nacional do Livro), 1978.
RODRIGUES, João Carlos. Catálogo
bibliográfico (1899-1921). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultural, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1994.
______. João do Rio – uma
biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 293 p.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da
Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
*Doutora em Estudos Literários, Gilda Vilela
Brandão defendeu a tese intitulada “Sem feitio de acabado: crônica e ficção em
João do Rio”.
É autora, dentre outros, dos seguintes artigos,
publicados em revistas acadêmicas: “Crônica e cotidianidade” (Navegações, v. 7,
n. 2, 2014); “Arte, criação e crítica em A obra-prima ignorada, de
Honoré de Balzac” (Polifonia, v. 20, n. 28, 2013); “Graciliano Ramos e o
sentimento de absurdo” (Diadorim, v. 13, 2013); “Notas sobre a recepção do
simbolismo na França e no Brasil” (ABRALIC, v. 2, n. 17, 2010);
“Imagens fin-de-siècle (Letras, v. 19, n. 2); “José de Alencar
e a crítica literária” ( Leitura,v. 45, 2010); “Imagens fin-de-siècle” (Letras,
n. 39, 2009); “João do Rio, o homus cinematographicus” (Revista do Rio de
Janeiro, n. 20-21, 2007); “Resenhando o Momento Literário, de
João do Rio (ABRALIC, n. 6, 2002). Em parceria com Ari Denisson da Silva é
autora de “Triste fim de Policarpo Quaresma: caminhos e descaminhos de
um projeto utópico”. In: CAVALCANTE, Ildney; CORDIVIOLA, Alfredo (orgs). Os
retornos da utopia: histórias, imagens, experiências. Maceió: Edufal, 2015.
Organizou, juntamente com a profa. Dra. Ana Cláudia Aimoré Martins e o prof.
Dr. Zygmunt Vojski o volume Corpo, literatura e cultura:
espaços-latino-americanos da escravidão. (Maceió: Edufal, 2011). É organizadora
do volume Jorge & Murilo, contendo doze artigos sobre a poética
de Jorge de Lima e Murilo Mendes (Maceió: Edufal, 2015).
http://portal.metodista.br/mutirao-do-brasileirismo/cartografia/verbetes/america-do-sul/joao-do-rio#:~:text=%E2%80%9CA%20aventura%20de%20Rosendo%20Moura,amante%20que%20explora%20a%20indefesa
Crônica cantada: Áfrico. Sérgio Santos e Paulo
César Pinheiro
Quem foi
que fez brasileiro bater
Tambor de jongo?
De onde é que sai
quem batuca com o pé
Terno-de-Congo?
Quem é, me ensina
quem foi
Que fez o povo
dançar
Tambor-de-Mina,
Bumba-meu-boi,
Boi-bumbá,
O bambaquerê,
O samba, o ijexá,
Quando o Brasil
resolveu cantar?
Quem foi que pôs o
lamento na voz
Da lavadeira?
Quem fez aqui
baticum, candomblé
E a capoeira?
Quem trouxe o
maracatu?
Quem fez o maculelê,
Mineiro-pau, côco,
caxambu,
Bangulê,
A xiba, o lundu,
O cateretê,
Quando o Brasil
resolveu cantar?
Me diz quem foi que
fez
A dor se transformar
Em som de carnaval,
Em batucada,
Em melodia?
Que força fez mudar
Toda tristeza
Em alegria,
Quando o Brasil
resolveu cantar?
http://livroerrante.blogspot.com/2012/03/cronica-cantada-africo-sergio-santos-e.html
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