sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A AVENTURA DE ROSENDO MOURA

 


 

O mundo não seria o mundo,

 

se fosse possível a qualquer humano evitar o que tem de ser.. .

 

... Foi um pensador melancólico que escreveu:

 

 "não é só no céu e na terra, é principalmente em nós mesmos que há mais coisas do que podem conter todas as filosofias."

 

Não sei explicar o mistério daquelas correntes de sentimentos que chocavam. Tinha a certeza, porém. E era horrível, era angustioso! 

 

 

 

 

A AVENTURA DE ROSENDO MOURA


JOÃO DO RIO (1881 – 1921 | Brasil)

Ao contrário de muitos escritores famosos em vida e que caem no esquecimento assim que morrem, o prestígio de João do Rio (Paulo Barreto) vem aumentando lentamente nos últimos 30,40 anos, reavaliação que pode ser medida pela reedição, embora esporádica, de seus títulos, mas também por sua constante presença em diversas antologias e por várias coletâneas de suas crônicas e contos. Um desses contos "antológicos" é sem dúvida este que se vai ler aqui. Jornalista, dândi e homossexual, que tinha em Oscar Wilde uma espécie de modelo (e de quem traduziu a peça Salomé), o carioca Paulo Barreto entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1910. Mas só muitos anos depois entraria para a nossa literatura.

Na rua era um fragor. As casas pareciam abaladas pelo barulho dos tambores, das cornetas, dos bombos, da vozearia infernal. Rosendo Moura, muito maldisposto, estava a vestir-se. No seu encantador gabinete de laca branca com estofo cor-de-rosa e uma infinidade de objetos de cristal e marfim por sobre os móveis, nós insistíamos.

- Não me deixarão vocês?

- Rosendo! Uma terça-feira de carnaval!

- Mas chove...

- Tanto melhor. A Berta Worms espera-nos!

- Essa mulher desagrada-me...

- Não há mulheres desagradáveis. As mulheres contentam-se com ser, como dizia o dramaturgo - a razão e o impedimento de todas as nossas obras...

- Pois eu julgo-as portadoras de fatalidade e nós, mesmo contra a vontade, as placas sensíveis dessas correntes de Mistério.

- A Berta dá então azar?

- A mim, pelo menos. Explico o meu caso. Pode dar sorte a outros. Comigo, há mulheres que, aproximadas, são motivo de prosperidade. Outras baralham-me a vida, por mais que me amem. Tenho de brigar a murros com desconhecidos, negócios quase realizados periclitam, a saúde fenece... Assim deve ser com vocês, com todos os homens. Infelizmente não sou excepcional. Há de resto uma espécie de mulheres pior - a que age sobre os homens como alucinação, fazendo-os participar da própria desgraça. Dessas, quem escapa uma vez, não toma...

- Fetiche!

- É que vocês nunca se lembram da mulher que os acompanha...

- A mulher fatal?

- Todas são fatais.

Houve uma pausa breve, enquanto Rosendo Moura dava o laço da gravata, diante do espelho.

- Ó Rosendo, já escapaste de alguma? indagou Jacques Ciro, um prodígio de cepticismo, porque tinha apenas vinte anos.

- Já. Olha. O carnaval faz-me lembrar a mais horrenda semana da minha vida, a semana em que eu participei integralmente da horrível fatalidade...

Nesse momento, o rumor vindo da rua tornou-se tão grande, que tivemos de ir à janela. Chovia a cântaros. Mas, embaixo, a multidão delirava. Eram gritos, uivos, gargalhadas, assobios, guinchos de cornetins, rufos de tambores, sacolejos de adufes, estalos de pratos. E os sons agoniantes dos bombos bombardeando as fachadas... Rosendo recolheu com desgosto, atirou-se no divan.

- Não, positivamente não vou!...

- Recordaste a semana horrível? tornou Jacques Ciro.

- Sim. E tanto mais atroz, quanto até hoje não compreendo como e por que agi nesses oito dias. Foi há cinco anos e por mais que pense, não explico. Macabro. Misterioso. Assustador. Recorda-se você da Corina Gomes, uma rapariguita brasileira, que freqüentava os clubes?

- Há cinco anos, Rosendo? Não há memória que alcance uma rapariguita brasileira a cinco anos de distância. Depois eu estava na Europa...

- Felizardo!

- Infeliz, porque voltei...

- Pois a Corina era magra, lívida, tomava cocaína. Eu achava-a antipática. Nunca trocáramos senão monossílabos, o instinto dizia-me que essa mulher seria a desagradável aventura da minha vida. Como? Não sabia!

Ora, numa terça antes do carnaval, com a agitação da cidade, habitual em tais dias, sentia-me inquieto, indeciso, nervoso. Desejava voltar à casa e queria aborrecidamente beber champagne e ouvir gritos no club - onde se anunciava uma ululante redoute. À porta do club ainda hesitei. Ia acontecer-me qualquer coisa de desagradável. Com certeza. Sem ter inimigos, apalpei o revólver no bolso da calça. Há desses instantes de polarização nervosa em que vagamente sentimos o que está no ar e vem... Veio. Veio como os ciclones. Ainda no vestiário senti uma voz de agonia:

- Leve-me daqui já ou estou perdida! Pela sua honra... Voltei-me. Era um dominó.

- Que brincadeira é essa?

- Por piedade! Não posso falar aqui. Escute, venha cá...

Frágil, a sua força nervosa era tão intensa, que quase me arrastava para a rua.

- Você está doida, mulher?

- Pelo amor de Deus! Só a sua companhia até mais abaixo, Rosendo...

- Conhece-me?

- Sim, sim. Salve-me de morrer!

- Mas quer comprometer-me?

- Não. Quero a sua presença contra um covarde! Na rua um táxi rodava vazio. Ela precipitou-se.

- Mande tocar já, já - para onde quiser. ..

Olhei em redor. Não havia ninguém suspeito. Tratava-se por conseqüência de uma aventura sem conseqüências. Ela entregava-se, indo onde eu quisesse... Curvei-me para o motorista e, quase em segredo, dei-lhe uma direção vaga. Por quê? Até hoje não sei. Quando me voltei, o automóvel em marcha, o dominó levantou a máscara. Era Corina Gomes, os beiços trêmulos, lívida...

- Você? bradei colérico.

- A desgraça da minha vida! Não gosta de mim, bem sei. Mas não se trata de amor, Rosendo! Só o sr. poderá salvar-me.

- Eu?


- Há três anos suporto as torturas de um monstro. Tudo quanto ganho é dele. Quando vou ao club toma-me o dinheiro. Depois fecha o quarto todo, abre vários frascos d'éter, põe-me inteiramente nua, prende-me os cabelos à gaveta da cômoda, e goza naquela atmosfera desvairante, gotejando sobre mim éter. Oh! não imagina! não imagina! Cada gota que cai dá-me um arrepio. Ao cabo de certo tempo é uma sensação de queimadura, queimadura de gelo até a insensibilidade... Ontem, não foi possível tolerá-lo mais. Protestei, gritei, contei tudo à gente da pensão. Dois homens que lá estavam puseram-no na rua a pontapés. Ele voltou. Não o recebi. Deu então para perseguir-me. Jurou que me matava. Ando a fugir. Vejo-o por todos os lados. É certo que me matará...

- E você incomodar-me por uma tolice dessas! Faça as pazes.

- É tarde. Não tenho coragem. Antes de ouvir-me, mata-me. Tenho a certeza. Os meus dias estão contados. Conheço-o.

Disse aquelas palavras com tal segurança que não hesitei um segundo. Também eu tinha a certeza da fatalidade que vence todos os obstáculos, também eu via aquela criatura morta...

- Mas que fazer?

- Se pudesse esconder-me uns dias, dar-me depois uma passagem? É inútil, porque ele acabará por encontrar-me. Mas eu tenho medo, muito medo. Falta-me a coragem de morrer, Rosendo!

Devia ter levado Corina à polícia, denunciado o monstro. E, livre de responsabilidade, ir dormir em seguida. Assim faria um homem de bem no uso das suas faculdades.

- Sabe onde está ele?

- Por aí. Procura-me...

De repente senti que tinha ódio a Corina, com vontade de defendê-Ia. Perdera a noção do real, sabendo que a perdera. Era desejo de aniquilar o desconhecido e o medo vago desse enorme e vago desconhecido. Não disse que a defenderia. Levei-a para um quarto d'hotel em rua escura com a resolução de embarcá-la no dia seguinte, ainda não sabia como. No hotel, Corina tremia tanto, quando tentei deixá-Ia, que fiquei. Dormimos um ao lado do outro, sem uma carícia - ela a delirar com medo; eu olhando a treva e maldizendo a aventura. E no dia seguinte verifiquei apenas o seguinte: perdera insensivel-mente metade da energia. Como essas criaturas na iminência do desastre. Como os criminosos com medo à polícia. Andei dois dias assim, desconfiado, fraco, aterrado, sem agir. Corina não deixava o quarto, sem dizer palavra. Eu sentia que era preciso salvá-la, para salvar-me. Inexplicável estado d'alma! Na sexta resolvi terminar, vendo os anúncios dos vapores.

- Embarcas amanhã para a Europa!

Corina despregou-se das persianas, onde passava o dia a espreitar a rua.

- Não é possível! Ele já descobriu.

- Como?


- Vi-o ainda há pouco ali em frente.

- Mas estás louca!

- Não me deixe só, Rosendo! Ele mata-me.

Chamei o criado, com uma súbita intenção do perigo. Interroguei-o. Havia algum hóspede novo? Havia. Um homem louro, pálido, que alugara o quarto do outro corredor, e estivera a ler a lista dos hóspedes... Corina caíra sobre o leito. Os seus dentes batiam como se estivesse desabrigada, entre neves. Fiz um esforço:

- Esse homem já recolheu?

- Há pouco.

Era uma luta, devia ser uma luta, secreta e atroz, na sombra. Mandei buscar um automóvel. Consegui dominar o terror de Corina para que ela ao menos caminhasse. Saímos naturalmente, como quem vai a passeio. No meio do caminho trocamos de automóvel. Eu tremia de raiva.

- A culpa é tua! Tu é que o fazes vir, sempre a pensar nele!

- É sim, Rosendo. Sinto que ele vem e não posso, não posso, não posso...

- Acabo com isso eu! Vamos dormir em qualquer hospedaria e amanhã dou queixa à polícia...

Assim fiz. O delegado prometeu tomar providências, mandando dois agentes para o hotel onde estávamos. Mas, ao sair da polícia, compreendi claramente que "ele" sabia da minha resolução. "Ele" sim, o homem que eu desconhecia, com o qual a fatalidade me punha em conflito, o homem de que a Corina devia ser vítima. Essa criatura já decerto sabia, e ria com desprezo. Eu não precisava tê-lo visto para ter a certeza do seu conhecimento... Foi um pensador melancólico que escreveu: "não é só no céu e na terra, é principalmente em nós mesmos que há mais coisas do que podem conter todas as filosofias." Não sei explicar o mistério daquelas correntes de sentimentos que chocavam. Tinha a certeza, porém. E era horrível, era angustioso! Tomei a mudar de hotel e não tive mais coragem de deixar só Corina. Fazia-me reflexo sensível daquela fatalidade feita mulher. Ela aos poucos desdobrava-se em mim. E como só pensava no seu algoz - naquele a quem o Destino lhe entregara a vida - eu também só pensava nele. Passávamos horas a ouvir o rumor dos corredores. Onde estaria ele? Onde? Decerto perto. Talvez, à nossa porta, espreitando...

O meu delírio tinha entretanto intervalos de relativa lucidez. Domingo de carnaval perdi de súbito o medo.

- Corina, achei uma solução para o nosso caso.

- Qual? fez ela.

- Vamos aproveitar o carnaval! Não se pode contar com a polícia. "Ele" ainda não apanhou a nossa pista. O essencial é pôr-te a andar, antes que de novo a descubra! E encontrei-me a planejar alto: visto-me de qualquer coisa e saio. Vou até a casa, enfio o dominó e venho buscar-te. Sairemos pela porta dos fundos. Faço melhor. O meu criado tem uma rapariga mais ou menos com o teu corpo. Mando-os esperar em qualquer casa de máscaras. Lá eles enfiarão as nossas fantasias e virão para este quarto, enquanto nós estaremos livres para tomar o noturno de S. Paulo. Há quarta-feira em Santos um transatlântico para Buenos Aires e Valparaíso. Se o homem não estiver no vapor, estarás livre...

- Achas?


- É certo.

Saí a executar o plano. Executei-o exatamente. Na casa de máscaras, Corina pôs uma travesseirinha nas costas, armou uns seios muito grandes, amarrou com o lenço o rosto e colocou por cima uma espessa máscara de arame. Eu fiz um grande ventre sob o dominó e saí claudicando. Tudo isso, notem vocês, fazíamos sem ver nada anormal, sem a certeza senão vaga de que ele nos estivesse acompanhando...

Após, conseguimos um taxímetro. Estávamos prestes a dizer:

- Enfim, logrado!

Mas, curioso. Durante as duas horas em que rolamos por avenidas desertas nesse automóvel fechado a fazer horas para apanhar o comboio, não trocamos uma palavra. Era o grande momento decisivo. Corina apertava a minha mão, de vez em quando, tremendo. Apenas. Eu sentia que o seu medo voltava aos poucos a desequilibrar-me. Passávamos pela cidade em delírio, sem dar por isso. O nosso delírio era maior.

Quando chegamos à Central a confusão urbana tocava o auge. O grande hall da estação cheio de luz elétrica, a turba, os "cordões" com archotes a zabumbar, as danças, os gritos, as lutas de lança-perfumes e dos confetti, o risco colorido das serpentinas... Metemo-nos por ali dentro para tomar o vagon E de repente, os dois, no mesmo instante, vimos que estávamos perdidos.

Como explicar essa impressão extralúcida?

Fora caía um temporal desabrido. A estação estava atulhada. Homens suados, bandos alagados, máscaras passavam numa alucinação como galvanizados pela luz elétrica. Ninguém reparava em nós, ninguém decerto, ninguém, ninguém. E entretanto sentíamos que o perigo se aproximava seguro, com o passo firme. Onde estava ele? Era o homem do éter, o homem cuja fisionomia eu nem mesmo conhecia, ele com a sua cara, ou com uma máscara. E olhava-nos, e estava ali, e reconhecera-nos. Sim.

Devia estar, devia ter reconhecido. Que fazer? Que fazer? A vertigem apoderava-se de nós. Aquela mulher era decerto o pólo negativo a chamar misteriosamente, a atrair o horrendo ser. Ele adivinhava por uma revelação telepática. Sei lá! Sei lá! O fato é que Corina apoiou o corpo no meu braço:

- É o fim!

- Anda para frente, estafermo! rouquejei furioso.

- Não partimos mais, Rosendo.

- Partimos sim!

- Ele está no apeadeiro, sinto-o!

- Prendemo-lo.

- Ele vai tomar o trem conosco. Ele mata-me em viagem!

- Miserável, caminha ou largo-te!

- Voltemos, Rosendo. Ainda é possível escapar, se apanhamos ali um automóvel...

- Agora?

- Sim! Sim!

- Agora? repetia eu correndo, como diante do inexorável Destino. E não havia máscara ou cara suspeita!

Na praça deserta - faltavam as conduções. Só, ao longe, rebrilhavam as lanternas de um carro. Ela deitou a correr. Segui-a, olhando para trás. Ao chegarmos à beira do carro, um landau fechado, estávamos completamente alagados. A chuva redobrava.

- Para onde?

- Ande!


- É vinte mil-réis a corrida.

- Seja cem! Depressa!

- Para onde?

- Para onde quiser!

O trem tomou o caminho do lado da Casa da Moeda.

- Vamos à delegacia, Rosendo?

- Queres?

- Se ainda for tempo!

Convencido de que não seria possível lutar só contra o horror invisível, gritei ao cocheiro:

- Polícia Central! A toda... O carro, porém, parara.

- Que há?

- Raios o partam ! Rebentaram as correias das bestas.

- Hein?

- Dos dois lados. Caiporismo!



- E agora?

- É esperar aqui, até que passe outro carro. Não posso guiar assim.

- Meu Deus!

Era no pedaço mais deserto da rua. Saltei para ver. As correias gastas tinham arrebentado naturalmente. Estávamos nas mãos do Destino. Só havia um alvitre: correr até a esquina, onde passavam bondes, onde havia movimento... Era o meio de escapar, e eu escaparia para sempre, porque no dia seguinte não me meteria mais à guarda daquela criatura.

- Vamos?

- Rosendo. ..

- Anda...

- Se tem de ser? fez ela. Tens razão.

Desceu, corremos os dois sob o temporal pelo meio da rua escura uns cinco metros, uns dez metros. Sei que ouvi um psiu e voltei-me, enquanto ela estacava. Sei que vi um

sujeito que vinha para nós, talvez o cocheiro. Sei que o sujeito avançou para Corina com uma pequena máscara de chorão, ergueu o braço, e passou a mão pelos seios falsos da rapariga. Ia gritar. Deu-me um pescoção. Rolei na lama. Ele segurava-a, riscando-lhe o dominó com uma navalha.

De súbito ela deu um grito agudo. O único. Pareceu-me que desmaiara. Nas mãos do máscara lembrava um manequim. O homem em fúria continuava a brandir a navalha contra os enchimentos dos seios. Afinal atirou-se à máscara. Era de arame. O fio da arma rompeu-se no tecido espesso. Ouvi os triços gaspeados da lâmina no tecido d'arame. Ergui-me de um pulo, saquei do revólver, detonei aos berros:

- Assassino! Assassino!

O tipo arrancava as roupas, a máscara da desgraçada. Eu continuava a detonar e a gritar. Gente corria. Vi cair o capuz à Corina, o assassino agarrá-la pelos cabelos, afundar-lhe a navalha no pescoço e deixá-la tombar num jato de sangue. A cena talvez tivesse durado dois minutos. Para mim foi longa como um século, rápida como um raio. De revólver em punho, fantasiado, meio estrangulado pelos cordões da máscara, eu delirava, presa de uma febre cerebral... Estive entre a vida e a morte, dois meses... E quando os médicos me declararam fora de perigo, tive a sensação absoluta do desastre de que escapara. Ela agira como os ciclones, que, embora destinados a um certo sítio, desarvoram, matam, estragam o que se agita no limite da sua ação destruidora. Aquela criatura fora o ciclone. Longe dela ainda lhe sofrera a força fatal. Não morrera, mas estava desarvorado, como os barcos apanhados pela tromba terrível. E desde então, respeito muito essas coisas inexplicáveis que as mulheres representam. A semana de Corina fez-me compreender o horror do enigma dramático da vida...

Rosendo Moura reclinou-se inteiramente no divan. Tinha a fronte banhada em suor. Amigos desse excelente rapaz, nós ouvíamos a anedota e os comentários com paciência e sem prestar muita atenção. Jacques Ciro, o jovem céptico, estava ainda na idade em que se toma interesse pelas histórias alheias. Às divagações de Rosendo, insistiu:

- E a Corina, morreu?

- É verdade, a Fatalidade desapareceu? sorriu outro.

- Não, fez Rosendo. Não estaria no meu princípio de que as mulheres são agentes do Destino, contra ou a favor de certos indivíduos. Ela parecia a vítima do tal assassino. No fundo a vítima foi ele. Ele é que devia desaparecer para libertar-se...

- Rosendo!

- A própria opinião inconsciente dessa rapariga. Nem ele nem ela morreram. Ele foi condenado a vinte anos de prisão. O advogado tem apelado. Ela, com o pescoço costurado, a cara cheia de talhos, mais magra, mais lívida, vive numa hospedaria das proximidades da Detenção. Todo o dinheiro que arranja é para ele, para o seu antigo, para o seu assassino. Amam-se profundamente. Ela, porque sendo a expressão viva da fatalidade do pobre homem, não o deixará enquanto for possível fazer-lhe mal. Ele, porque ninguém foge à sua mulher, isto é, ao seu Destino... Outro dia encontrei Corina. Não a vira desde a noite trágica. Foi ela quem me falou. E, contando-me o seu amor, a sinceridade do "pobrezinho", exclamou: "Tudo por sua causa, Rosendo. Se não fosse o seu medo e a mania de meter-se na vida dos outros, o meu Roberto não estaria desgraçado."

Decididamente, meus amigos, as mulheres!...

- Não valem o tempo que aqui perdemos, sentenciou grave Jacques Ciro.

- Vão vocês pois ao divertimento. Eu fico com medo à chuva e às rajadas do Destino, que são as inexoráveis mulheres...

E Rosendo Moura ergueu-se, foi até o espelho desmanchar o laço da gravata. Estava só. Todos nós já descíamos as escadas. Corríamos às aventuras prováveis do baile de máscaras. O carnaval, sob a chuva, sacudia as urtigas dos desejos. Não era por conseqüência momento de refletir sobre as filosofias talvez verdadeiras de Rosendo. O mundo não seria o mundo, se fosse possível a qualquer humano evitar o que tem de ser.. .

https://aneste.org/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=36

 

 

 

 




 

 

 

 

Especial Capa: Existe uma literatura policial brasileira?

Autor de romances policiais e organizador da antologia Crime feito em casa — contos policiais brasileiros, 

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Flávio Moreira da Costa traça um panorama do gênero no país, desde os precursores até os autores contemporâneos

Flávio Moreira da Costa


Para falar da literatura policial brasileira de hoje, preciso falar antes da literatura policial brasileira de ontem. Afinal, acredito que o futuro da literatura policial, como aliás, de qualquer literatura, está no seu passado.

O policial brasileiro existiu ou existe? Vamos supor que sim. Incipiente ainda, e muito em forma de contos, gênero em que predominou durante décadas, se não até hoje, como registra minha antologia Crime feito em casa — contos policiais brasileiros (2005). À época consegui rastrear cerca de 35 contos, dentro de uma perspectiva histórica. Vamos alinhar aqui alguns deles, dentro desta perspectiva.

Na primeira parte — o início do início —, que chamei de “(Bons) antecedentes”, selecionei quatro contos, 

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respectivamente, “O enfermeiro”, de Machado de Assis, “A mágoa que rala”, de Lima Barreto, “A aventura de Rosendo Moura”, de João do Rio, e “O crime”, de Olavo Bilac. Nenhum deles é o que se poderia chamar hoje — e ontem mesmo nem assim se chamavam — de contos policiais: são precursores. Tem, cada um deles, um traço, uma tendência, uma “levada”, como diriam os músicos, do que viria a se desenvolver no gênero policial.

A presença mais contestada, por uma crítica, pelo menos, foi a de “O enfermeiro”. Que Machado de Assis tenha sido um leitor pioneiro de Edgar Allan Poe, é coisa sabida de todos. Escrevi na pequena introdução ao conto que ele “sempre surpreendente, nos revela aqui uma personagem — o enfermeiro —, uma situação e um clima que parecem saídos, ao mesmo tempo, de um relato de Poe misturado a um filme classe B, em direção conjunta de Roger Corman e [Alfred] Hitchcock. O conto tem um andamento e um clima bastante noir — aliás, bem avant la lettre.” Já o conto de Lima Barreto, “A mágoa que rala”, não permite contestação: escrito a partir de um crime comum 

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ocorrido numa idílica Lagoa Rodrigues de Freitas, Lima se antecede a uma tendência quase majoritária de literatura (e do cinema) policial até hoje: a de desenvolver o enredo em cima de um faits divers escondido entre as páginas dos jornais. Dificilmente, no começo do século XX, algum beletrista pensaria sequer em se utilizar de uma notícia policial para escrever suas histórias. Para não nos alongarmos, o conto de João do Rio situa-se na fronteira com o conto de horror, à moda dos escritores decandentistas da Belle Époque francesa, como um Jean Lorrain. Já a história de Olavo Bilac, é um conto criminal — narrativa que sempre antecedeu a literatura policial —, lidando com problemas de culpa e consciência, como acontece (e sem comparações, que seriam desproporcionais) em Crime e Castigo, de Dostoiévski.

E assim chegamos à década de 1920, do século passado.

E um nome se impõe aqui como pioneiro indiscutível: Medeiros e Albuquerque, um antigo membro da Academia Brasileira de Letras, hoje esquecido. Um modelo internacional já se impunha na mal iniciada literatura policial. Aliás, dois: Conan Doyle e Sherlock Holmes, criador e criatura, que levaram o gênero de detetive à categoria de literatura de massa, ou às listas de best-sellers — se existissem listas à época. Era uma febre a leitura deste detetive cocainômano e cerebral, ajudado pelo médico e amigo dr. Watson. Pois, acometido por essa febre, Medeiros e Albuquerque, que vivera na desvairada Paris da Belle Époque, quando se deixou contaminar pelos livros de Conan Doyle, escreveu a primeira coletânea de contos policiais da nossa literatura. Adivinhem o título... Se eu fosse Sherlock Holmes. A verdade, e ele já o diz no título, é que Medeiros 

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não era Conan Doyle, mas seus contos ainda subsistem, como fenômeno da época, e bem mereceriam uma reedição. Essa posição de livro único de contos policiais, manteve-se até o surgimento de Luiz Lopes Coelho, outro pioneiro, quase três décadas depois, autor de A morte no envelope, O homem que matava quadros e A ideia de matar Belina. A erudição de Otto Maria Carpeaux não o impediu de saudá-lo como bom contista do gênero. Lopes Coelho criou um detetive à brasileira, o Dr. Leite.

Mas Medeiros e Albuquerque, no seu entusiasmo, aliciou e arregimentou cúmplices à sua volta para juntos, numa espécie de “quadrilha de escribas”, publicarem um folhetim policial na imprensa carioca. Compunham essa “quadrilha do bem” seus colegas de Academia Brasileira de Letras Coelho Neto, Afrânio Peixoto e Viriato Correia que, juntamente com o mentor intelectual do delito, Medeiros e Albuquerque, perpetuaram o que seria o primeiro romance policial brasileiro: deram-lhe o título de Mystério, com o devido ipsilone da época. Não escolheram um dentre eles para dar o acabamento final ao texto. Curiosamente, cada um assinava o capítulo escrito, e assim a insustentável leveza do Mystério ficou insustentável demais na estrutura romanesca e não se sustentou no ar. Mesmo assim, Mystério teve três edições em forma de livro, com uma venda surpreendente para a época — e mesmo para hoje — de dez mil exemplares.

(Esta experiência de autoria coletiva seria retomada anos depois, com Os mistérios de M.M., com outros “comparsas”, aliciados desta vez por João Condé: Lúcio Cardoso, Raquel de Queiróz, Jorge Amado, José Conde, Antonio Callado e... Guimarães Rosa, que aliás, começou publicando contos policiais na revista O Cruzeiro).

O que se sustenta no ar da literatura policial brasileira, ainda iniciante, é a obra do paulista Marcos Rey. Escritor profissional numa época em que viver de literatura no Brasil era coisa de dois a três autores, Rey nunca se envergonhou de escrever literatura popular, pelo contrário, fazia-o com gosto, habilidade e um bom domínio técnico. Mesmo embutindo as marcas da geração norte-americana dos anos 1930 — Hammett, Chandler, mas também Goodis e Horace McCoy —, o escritor paulista abrasileirou a narrativa de mistério — não parecia, como outros, ser um americano escrevendo em português. Vejam como ele apresenta seu detetive no conto “O último cuba-libre”: “Durante o dia Adão Flores era um gordo como qualquer outro. Sua atividade e seu charme começavam depois das 22 horas e às vezes até mais tarde. Então era visto levando seus 120 quilos às boates, a bistrôs e inferninhos da cidade (...) Com o tempo Adão Flores adquiriu outra profissão, paralela à de empresário da noite, a de detetive particular, mas sem placa na porta, atividade restrita apenas a cenários noturnos e pessoas conhecidas.” O detalhe de “sem placa na porta” parece anunciar Ed Mort, o personagem satírico de Luís Fernando Verissimo. Ocorre que Marcos Rey levou o gênero a milhares de jovens; ele foi um best-seller com suas duas dezenas de livros juvenis, de grande potencial de adoção escolar, com tiragens em escala de milhões.

Creio que já deu para perceber que não é unitária ou contínua — nem poderia sê-lo — a evolução da literatura 

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policial brasileira, razão pela qual precisamos pular de tendência a tendência, seguir esta ou aquela pista, a fim de desenhar um pouco do mosaico que a constitui.

Assim, nos anos 60/70 surgiu entre nós uma espécie de ciclo do romance-reportagem, que muitas vezes se confundem com o gênero policial. Por razões cronológicas que talvez justifiquem a autocitação, meu livro Cosa Nostra – Eu vi a Máfia de perto, depois reeditado como A perseguição, saiu em 1973, classificado como “reportagem de ficção”, foi o primeiro de uma longa lista. Só depois, com livros de José Louzeiro, Aguinaldo Silva e outros, nossa imprensa começou a falar em “romances-reportagens”.

Foi uma espécie de mini ciclo, que teve repercussão, inclusive de vendas. E pelo menos dois ou três pontos dignos de se destacar vamos encontrar em livros como Araceli, meu amor, Lúcio Flávio — passageiro da agonia Pixote, todos de José Louzeiro, para ficarmos no autor de maior destaque dessa contraparte do romance policial, além da passagem do conto para o romance como meio de expressão. Em primeiro lugar, a opção por assuntos brasileiros e da atualidade (o faits divers alimentando a ficção), em plena ditadura brasileira; depois, o exercício do profissionalismo, em contraste com o eterno amadorismo da nossa literatura, no que foi ajudado pelas versões cinematográficas desses livros. Títulos, por sua vez, que unem jornalismo à ideia de retratos da sociedade dos velhos romances realistas ou naturalistas, com vigor narrativo e ficção policial. Havia, como houve, leitores para eles.

Na mesma época, os anos 1960, surgia um contista que “mostrou-se interiormente livre para erguer um modo de ver e ser, de criar um estilo inconfundível”, nas palavras do crítico gaúcho — e meu professor de literatura na adolescência — Carlos Jorge Appel. O crítico falava de Rubem Fonseca, que escreveu uma série de livros magistrais, como Os prisioneiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia McCartney (1967), Feliz ano novo (1975), O cobrador (1979) e os romances A grande arte (1983) e Bufo & Spallanzani (1986).


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Rubem Fonseca chegou para confundir. Confundir as insustentáveis fronteiras de literaturas menores e literaturas maiores, de gêneros e subgêneros, confundir o comodismo teórico e classificatório das nossas universidades ou academias, confundir a separação entre literatura de massa e literatura de elite, o bom-mocismo estético da realidade cruel que nos envolve cotidianamente. Confundindo, ele nos renova: não se pode dizer que Rubem Fonseca seja um autor policial ou um grande escritor: ele é as duas coisas. A sombra do noir e do hard-boiled está presente em vários contos do autor, mas é a conhecida narrativa chamada “Mandrake” que se impõe quase que como um paradigma do gênero, ou dos rumos que o gênero tomou depois de Hammett e Chandler. “Mandrake”, aliás, é paradigma e propositalmente pastiche de Raymond Chandler/Philip Marlowe, criador e criatura. O próprio narrador deixa isso claro ao se referir, no final, a dois títulos de Chandler: O longo adeus e O grande sono.

Mas é nos romances, em particular em A grande arte e Bufo & Spallanzani, que Rubem Fonseca traça sua marca divisória na literatura policial brasileira, unindo e misturando a grande literatura com a “pequena literatura”, com a literatura popular, derrubando o muro de Berlim que separa, ou separava, boas intenções de boas realizações, “literatura” de “subliteratura” — e coloco aqui aspas nas duas palavras. É certo que esse muro já havia caído lá fora, desde Simenon (louvado por André Gide), passando pelos americanos do ramo, e até de William Faulkner, com seu romance Intruder in the dust, no qual mistura o assassinato de um branco por num camponês negro, heranças da Guerra de Secessão, com técnicas sofisticadas de stream of consciensness. Além de Allan Robbe-Grillet, que recria em seu romance de estreia A gun for fire, de Graham Greene. Mas o que importa aqui é o nosso contexto, e se Fonseca nos confunde, é porque ele nos sacode, balança nossas idées reçus, nossas certezas e preconceitos. Difícil dizer, depois dele, que não existe uma literatura policial brasileira, muito menos que ela se restrinja ao conceito difuso e velado de “subliteratura”.

É boa literatura policial que vem fazendo uma ou mais gerações depois de Rubem Fonseca. Alguns nomes para prestarmos atenção: Alfredo Garcia-Roza, com seu detetive Epinosa, morador do Bairro Peixoto — como Maigret, de Simenon, na Avenue Richard-Lenoir e arredores da Bastilha —, já fazendo carreira internacional; Marçal Aquino, que promove o abrasileiramento do gênero, retomando nesse sentido Marcos Rey; Tony Bellotto, mostrando o lado noir do rock, ou o lado rock and roll do romance noir; e ainda discípulos de Rubem Fonseca, como Patrícia Melo. Além dos novos autores surgindo: Tabajara Ruas, Joaquim Nogueira, Braz Chediak — o cineasta, estreando em 2011 como Cortina de sangue. E mais virão, pois o futuro da literatura policial brasileira está no passado, e no presente da literatura como um todo. Sobretudo, na tendência mundial/editorial de valorização do gênero.

A literatura de mistério, que começou quase como sinônimo de literatura anglo-saxã, já vem fazendo sua globalização há pelos menos 50 anos. Não se trata de nenhuma teoria literária especulativa: é também uma questão de mercado. Sem um mercado nacional e internacional, portanto sem uma profissionalização editorial e autoral, não haveria, nem haverá, a literatura de mistério ou policial. E ela não seria tão rica, nem estaria espalhada pelo mundo como está hoje. Seria o caso de lembrar que a maioria dos países têm bons, excelentes — e mesmo ruins, por que não?— autores policiais. Dos países escandinavos, passando pela Espanha, Itália, Grécia, Japão, Cuba, Rússia e África do Sul, há muitos autores policiais espalhados pelo globo. Vale lembrar também da nossa vizinha Argentina, que chegou antes de nós ao gênero, graças a leitores, diretores de coleções e tradutores como Jorge Luis Borges, Bioy Casares e Rodolfo Walsh, ainda nas décadas de 40/50.

Não seria justo dizer que nós estamos no mesmo patamar desta globalização do imaginário policial. Mas 

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depois de um longo e lento começo, como tentei mostrar aqui, e que de certa forma resultou nos livros de Rubem Fonseca, já podemos dizer que “yes, nós podemos”. Talvez o sentido secreto do título de Fonseca, O cobrador, seja este: precisamos nos cobrar, nós, escritores, editores e leitores. As duas coleções do gênero que existem entre nós, da Record e da Companhia das Letras (duas, em contraste com quase cinquenta na França, por exemplo), publicam majoritariamente romances traduzidos. Em 2000, meu livro Modelo para morrer foi uma espécie de corpo estranho na Coleção Negra, da Record, entre dezenas de títulos estrangeiros.
Já é um bom começo. Falta o meio e o fim. Falta o enredo. Mais ação. Mais talentos?

Faltam mais cadáveres iniciais — em contraponto à nossa realidade, onde eles abundam —, mais investigações, mais detetives e leitores, mais, enfim, literatura, fora de divisões e de preconceitos. O filósofo Hegel escreveu que o problema da História é a história do problema. Problema ou mistério, tanto faz: o mistério desta história é a história desses mistérios.

Ainda no século XIX, o poeta Rimbaud anunciava a nossa época: “Voici le temps des assassins!” Só faltou falar em Fernandinho Beira-Mar, nas quadrilhas do Rio e de Brasília, nos tiranos como Kadhafi. Sim, crime e poder, como mostrou Hans Magnus Ensenberger.

Crime e castigo? Nem sempre.

É esta, me parece, a insustentável leveza do mistério. Ou será que não tem mistério? Nem leveza?

Flávio Moreira da Costa é escritor, autor de As armas e os barões e O equilibrista do arame farpado (1997). Várias vezes premiado, organizou três dezenas de antologias de sucesso, como Os cem melhores contos de humor, Melhores contos fantásticos e Contos de amor e desamor. O texto aqui publicado foi escrito originalmente para uma conferência realizada na Academia Brasileira de Letras, em abril de 2011. Flávio Moreira da Costa vive no Rio de Janeiro (RJ).

http://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Especial-Capa-Existe-uma-literatura-policial-brasileira

 

 

 

 

JOÃO DO RIO

Por Gilda Vilela Brandão

João do Rio

 Gilda Vilela Brandão*

Filho único de Alfredo Coelho Barreto, professor de matemática, e de Florência dos Santos Barreto, João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Barreto [Paulo Barreto] nasceu no Rio de Janeiro no dia 05 de agosto de 1881, em um sobrado situado na Rua do Hospício (atual Buenos Aires) e faleceu em 23 de junho de 1921, fulminado por ataque cardíaco, dentro de um táxi, logo após deixar a redação do jornal “A Pátria”.

Inicia sua carreira de jornalista meses antes de completar dezoito anos (1899), no jornal “A Tribuna”, com uma crítica da peça Casa de boneca, de Ibsen – indício de sua paixão pelo teatro –, encenada por Lucília Simões no teatro Santana (atual teatro Carlos Gomes).  Meses depois é admitido em “A Cidade do Rio”. A partir de 1901, colabora intensamente nos jornais “O País”, “O Dia”, “O Correio Mercantil. Ingressa, em 1903, por indicação do então deputado fluminense Nilo Peçanha, em um dos jornais mais influentes do Rio de Janeiro: “Gazeta de Notícias”. Passa, então, a usar o pseudônimo que o tornaria famoso: João do Rio. Vale lembrar que o uso de um nom de plume, como costumam chamar os franceses, era uma prática comum nos círculos literários europeus e brasileiros, funcionando ora como ocultação de identidade, ora como um simples jogo de esconde-esconde com o leitor. Tal como Machado de Assis e Olavo Bilac, Paulo Barreto passa a assinar textos jornalísticos – crítica teatral, crônicas, entrevistas, reportagens – sob diferentes pseudônimos: José Antonio José, Joe, Claude, Máscara negra. Porém, é com o pseudônimo patronímico que ganha notoriedade no meio jornalístico e nas rodas mundanas e sociais. Aliás, para alguns, o pseudônimo João do Rio seria um tributo ao irrequieto jornalista e romancista francês Jean Lorrain [Paul-Alexandre Duval, 1855-1906], autor de Monsieur de Phocas e de Le vice errant (ambos publicados em 1901)de quem era um ardente admirador. Para outros, a escolha seria uma homenagem à cidade que ele tanto amava – razão de ser de sua obra. Ambas as justificativas têm algo a seu favor, mas não devem ser vistas separadamente.

Em 1904, escreve uma série de crônicas que mais tarde comporiam o volume As religiões do Rio, título inspirado em Les religions de Paris (1894), de Jules Bois (1868-1943). Para escrevê-las, João do Rio abandona a chamada “crônica de gabinete” e, à maneira de Eugène Sue (1804-1857), que largara as vestes aristocratas para escrever o romance-folhetim Les mystères de Paris, publicado no Journal des Débats, entre junho de 1842 e outubro de 1843, envereda pelas ruas e pelos becos fétidos cariocas em busca do que chamaria “a alma encantadora das ruas”. Exemplário das crenças praticadas no Rio de Janeiro, o livro recebeu, da Comissão de História do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – composta por Sílvio Romero, Afonso Celso de Assis Figueiredo e B. T. de M. Leite Velho –, um parecer elogioso, no qual, a par do irrecusável cunho histórico, destacam-se “a graça e a cintilação de estilo” do jornalista escritor. Dedicado a Manuel Jorge de Oliveira Rocha, fundador do jornal “A Notícia” (1894), o Rochinha, o livro abre-se com uma epígrafe extraída do pensador e filósofo renascentista francês Michel de Montaigne (1533-1592): “Cecy est un livre de bonne foy” (“Este é um livro de boa fé”).  Guiado por esse princípio de fé, escreve, sem titubear, na Introdução: “O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa”. Tal diversidade pode ser encontrada, sem dificuldades, nas vinte e três crônicas-reportagens, dentre as quais a antológica “Missa negra”. Em “Os satanistas”, inventa um interlocutor e co-enunciador, o Dr. Justino de Moura, personagem que, tal como o Barão de Belfort e Godofredo de Alencar – apresentado em A profissão de Jacques Pedreira, como um “homem de letras que se dá com políticos de importância” – irá freqüentar assiduamente sua ficção, ora, simplesmente, como Justino, nos contos “Dentro da noite”, Honestidade de Etelvina amante”, “Puro amor”, e muitos outros, ora como Justino Gouveia (“Cleópatra”).

Seguindo o modelo de Jules Huret (1863-1915), que havia inaugurado, no periódico “L’écho de Paris”, a moda dos “inquéritos” literários (“Enquête sur l’évolution littéraire”, 1891), Paulo Barreto, ainda em 1904, atendendo à sugestão do poeta Medeiros e Albuquerque, começa escrever uma série de entrevistas (28 publicadas em jornal e nove acrescentadas ao livro) intitulada O momento literário. Dentre os entrevistados acham-se Coelho Neto, Elysio de Carvalho, Sílvio Romero, Clóvis Bevilacqua, Nestor Vítor, Afonso Celso, Fábio Luz, João Ribeiro, Afrânio Peixoto, Olavo Bilac, Rodrigo Otávio (autor de Aristo, uma novela, conforme ele próprio afirma, que “ninguém leu nem conhece”) e Guimarães Passos (“Guima” para os íntimos), a quem sucederia na Academia Brasileira de Letras. Outros caíram no ostracismo. O livro tem como propósito indagar “parnasianos, líricos, decadentes, clássicos, naturistas, sociólogos, ocultistas, anarquistas, impassíveis, humoristas, simbolistas, nefelibatas” sobre a arte que praticavam. Tratava-se, sobretudo, de obter, por meio das cinco seguintes perguntas, uma cartografia do pensamento literário brasileiro: “1) Para sua formação literária, quais os autores que mais contribuíram? 2) Das suas obras, qual a que prefere? Especificando mais ainda: quais, dentre os seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere? 3) Lembrando, separadamente, a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que, no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação etc.) ou há luta entre antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores que as representam? Qual a que julga predestinada a predominar? 4) O desenvolvimento dos Centros Literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte? 5) O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a literatura?”. A última pergunta demonstra claramente uma preocupação com o futuro da literatura, ameaçada por uma nova tecnologia de impressão (Machado de Assis, em “O jornal e o livro”, também demonstraria a mesma inquietação).  Como que prevendo a chegada de novas imagens com um poder comunicativo maior, João do Rio tinha, conforme se vê, as lentes de seu monóculo voltadas para o futuro.

Olhando o conjunto das questões, chama-nos a atenção a perspicácia do entrevistador, que, no final, não mascara sua decepção com os rumos da literatura brasileira: “A verdade é que cada um cuida de si. A época é de um individualismo hiperestésico. Há a estagnação dos corrilhos literários, mas a fúria de aparecer só – é prodigiosa”. 

Comunicador nato, João do Rio trabalha intensamente nas duas “fornalhas”, a mundana e a profissional: “Há – dizia a Júlia de Almeida em O momento literário – na fornalha [do Rio de Janeiro], outra fornalha que me espera – o jornal”. De fato, centro político e difusor cultural do país, o Rio de Janeiro passava por uma série de turbulências, desde as habituais divergências político-partidárias até mutações culturais mais profundas. No plano histórico-cultural, duas ações, perfeitamente concatenadas, foram, decerto, as mais significativas. A primeira, proposta pelo renomado sanitarista Oswaldo Cruz, consistia em promover a vacina obrigatória (Revolta da vacina, 1904) e em erradicar a epidemia de febre amarela, na qual, aliás, João do Rio se inspirou para escrever, com tintas expressionistas, o conto “A peste” (Dentro da noite): “Os olhos [de Francisco] desapareciam meio afundados em lama amarela, já sem pestanas e com as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes”.  A segunda, promovida pelo prefeito Francisco Franco Pereira Passos, também durante o governo Rodrigues Alves, foi, como é sabido, a urbanização do Rio de Janeiro (1903-1904).  Denominado, por Manuel de Souza Pinto, de “O Bota-abaixo” e fotografada pelo alagoano Augusto Malta, o projeto civilizatório muda a fisionomia da velha cidade colonial. Tendo como modelo as reformas urbanas promovidas, em Paris (1857), pelo prefeito George-Eugène Hausmann, Pereira Passos põe abaixo o velho casario colonial, igrejas, becos e cortiços; abre a Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), projetada pelo engenheiro André Gustavo Paulo de Frontin, transformando a cidade, com o perdão do clichê, em um “microcosmo de Paris”. Importante salientar que João do Rio percebe a urbanização como um processo dual: se, por um lado, aplaude a implantação de um moderno espaço urbano, por outro, rejeita a homogeneização cultural como algo profundamente negativo. Na crônica, “O velho mercado” (Cinematógrafo, crônicas cariocas, 1909), lamenta a derrubada do “estômago da cidade”. Conhecedor das tradições do Rio antigo, tinha consciência de que habitava, na acepção de Marc Augé, um lugar antropológico, que a civilização punha abaixo. Vale a pena citar esta passagem, prenhe de nostalgia: “Acabou de mudar-se ontem a Praça do Mercado. [...]. Que nos resta mais do velho Rio antigo, tão curioso e tão característico? Uma cidade moderna é como todas as cidades modernas [...]. De súbito, da noite para o dia, [o Rio] compreendeu que era ser preciso tal qual Buenos Aires, que é o esforço despedaçante de ser Paris, e ruíram casas e estalaram igrejas [...].

Ao mesmo tempo em que escreve uma série de crônicas sob o título “Dias de burla”, que mais tarde irão compor o volume Os dias passam – composto de quinze crônicas escritas na “Gazeta” e em “A Notícia”, entre 1904 e 1910 – colabora, juntamente com Olavo Bilac, na revista Kosmos, refinado mensário ilustrado em papel couché. Por essa época (1903-1904), a caricatura alcança um prestígio no vigor do traço de Calixto Cordeiro (Kalixto) e de Gil, que, na série “Os prontos”, capta o repórter-cronista e seu indefectível monóculo.

Aos vinte e cinco anos de idade (1905), candidata-se à Academia Brasileira de Letras (ABL), sob a presidência de Machado de Assis – autoridade moral na Academia – na vaga de Pedro Rabelo. Foi eleito Heráclito Graça, tio de Graça Aranha. Adoentado, João do Rio segue para Poços de Caldas (anos depois, voltaria à estação de águas), onde certamente já começa a angariar matéria convincente para escrever Correspondência de uma estação de cura (1918), romance epistolar, sem dúvida um dos melhores que escreveu.

Atraído cada vez mais pelo teatro, escreve, em 1906, sua primeira peça, a revista-burleta “A Folia”, cujo título seria mudado para “Chic Chic” .  A segunda peça, “Clotilde”, drama em um ato, traz um dos assuntos prediletos do jornalista carioca: a infidelidade feminina. À estréia, em 8 de março de 1907, esteve presente o recém-empossado Presidente da República, Afonso Pena, recebido, à porta do teatro Recreio Dramático, pelo autor e pelo consagrado teatrólogo Arthur Azevedo, que também encenava, na mesma ocasião, sua peça, “O Dote”, baseada no conto “Reflexões de um marido”, de Júlia Lopes de Almeida, publicado em “O Paiz”. Tendo alcançado certo sucesso, escreve “Dinheiro haja!” (1908), “A bela Madame Vargas” (1912), baseada em um crime ocorrido em 1906, envolvendo uma senhora da alta sociedade. “Eva (a propósito de uma menina original)” e “Que pena ser só ladrão!” são encenadas em 1915. A peça “O Encontro”, publicada posteriormente sob o título “Um chá das cinco”, tem como núcleo mais um tema caro ao autor: a prostituição. Este texto dramatúrgico terá sua versão narrativa no conto homônimo, “Encontro” (A mulher e os espelhos, 1919) que narra o reencontro, após quinze anos, numa rua qualquer, de Teodureto Gomes com uma antiga amante, Argemira/Adélia.  Não raro, sua inclinação pela arte teatral alcança um complemento na obra ficcional.  Assim, o conto “A fada das pérolas” (A mulher e os espelhos) tem, como cenário, um dos teatros do Recreio, e, como protagonistas, um casal de portugueses, Serafim e Joana. Carpinteiro, Serafim vivia “da oficina para a casa e da casa para a oficina”. Convidado a trabalhar nas oficinas do teatro, Serafim é seduzido pela atriz Maria do Carmo, cognominada “a fada das pérolas”. Com seu “chapéu de plumas”, descendo de sua “vitória forrada de cetim verde”, Maria do Carmo encarna a perdição.  Para Joana, é “uma entidade celeste”. Acidentado, mas no fundo “morto por uma paixão violenta”, Serafim é trazido de volta para casa, em uma maca, “estendido, hirto, a camisa sangrando, a boca aberta, o olho vítreo”.  Essa maneira de transitar de um gênero para outro é muito mais do que um indício de sua indiscutível versatilidade comunicacional.  Constitui, sem sombra de dúvidas, a personalidade de um escritor atento aos paradoxos da sociedade carioca, e que serviriam de nascedouro para sua produção ficcional (teatro, conto e romance) e para sua produção midiática, jornalística (crônica).

Opiniático, irreverente, famoso (fala-se da expectativa de transeuntes aguardando sua chegada espalhafatosa na “Gazeta de Notícias”), João do Rio começa a ser alvo de um cortejo de provocações: acusam-no de bajular figuras proeminentes da política e de estar ligado à “política dos governadores”, sistema instaurado no governo Campos Sales (1898-1902) pelo qual os Estados passavam a ter influência na escolha dos candidatos à sucessão presidencial da República; criticam-lhe a indumentária sofisticada, a aparência snob, a adiposidade, provocada, provavelmente, por problemas de hipotireoidismo. Em clima de pleno nacionalismo pátrio, acusam-no de lusitanismo, devido à amizade que mantinha com a comunidade portuguesa. Finalmente, por conta de sua homossexualidade, torna-se objeto de pilhérias maldizentes, que o magoam profundamente. Entrementes, com o mesmo ardor, continua produzindo. Em 1907, aparece sua tradução da peça Salomé, de Oscar Wilde, publicada originalmente (em partes) na revista Kosmos e considerada, até hoje, por especialistas, uma das mais confiáveis. Em Wilde, de quem traduziria também Intenções O retrato de Dorian Gray (trabalho não assinado), descobre a estranha combinação entre arte e vida, mote de que precisava para, escudado em Jean Lorrain e em Friderich Nietzsche, introduzir, na sua ficção, tópicos escabrosos, como prostituição, lesbianismo e sadomasoquismo.

Candidata-se pela segunda vez, na vaga do historiador e poeta José Alexandre Teixeira de Melo, perdendo o pleito para Artur Silveira da Mota (Barão de Jaceguai), considerado heroi naval da batalha de Humaitá (Guerra contra o Paraguai, 1869), que, aliás, ao não saudar seu antecessor, sob o falso pretexto de não ter conhecido nem o homem nem a obra, infringiu os cânones protocolares acadêmicos.

Inaugurada em 11 de agosto de 1908 (a data estava prevista para14 de julho), em comemoração ao centenário da Abertura dos Portos do Brasil, a Exposição Nacional torna-se matéria de muitas crônicas, dentre as quais “Quando o brasileiro descobrirá o Brasil?”, em que fustiga a classe endinheirada por desprezar a cultura e a história de seu próprio país: “No fundo, porém, temos a ideia de que somos fenomenalmente inferiores, porque não somos tal qual os outros, e ignoramo-nos por completo. Naquela roda, as senhoras conheciam a Escandinávia, e perguntavam se Minas era porto de mar. [...]. Não há francês que ignore seu país, a sua divisão política, a sua produção e a sua história. No Brasil, dá-se absolutamente o contrário.[...]. E isto porque (sic)? Porque, brasileiros, esses cavalheiros acham inteiramente inútil conhecer o Brasil. Um livro sobre a geologia da França é para cada um deles muito mais interessante que a descrição do esplendor no qual vivemos [...]”.

 No final do mesmo ano (1908) viaja para a Europa no paquete “Araguaya”.  Em Lisboa, percorre, extasiado, a Alfama e a Mouraria; segue para o Porto onde assina contrato com os livreiros Lello Irmãos, que o apresentam ao poeta Guerra Junqueiro (descreve esse encontro em uma coluna da “Gazeta de Notícias”, mais tarde publicada no volume Portugal d’agora, dedicado a Manuel de Sousa Pinto e a João de Barros); admira Florença, detesta Nápoles. Em fevereiro de 1909 chega a Paris, cidade onipresente no imaginário dos intelectuais brasileiros e, particularmente, no do nosso escritor; freqüenta teatros, cabarés, conhece Isadora Duncan, que lhe reservaria um lugar em seu livro de memórias, Minha vida, e a quem serviria de cicerone durante o período em que a bailarina esteve no Brasil. Em Nice, já a caminho do Brasil, recebe a notícia da morte repentina de seu pai, chegando a tempo de comparecer à missa de sétimo dia e de consolar sua adorada mãe, D. Florência, que, diga-se de passagem, intrometia-se amiúde na vida do filho escritor.

Candidata-se, pela terceira vez, à Academia (Machado de Assis falecera em setembro de 1908), na vaga do poeta alagoano Guimarães Passos, falecido em Paris em 1909. Finalmente é eleito, derrotando o general Dantas Barreto. Ocupante 2, da cadeira 26 (cujo patrono era o poeta Laurindo Rebelo), é o primeiro a tomar posse com o “fardão dos imortais”, em cerimônia a que compareceram figuras da alta sociedade. Conhecido por sua irreverência, o poeta Emílio de Menezes, compõe a seguinte quadra: “Na previsão de próximos calores/ A Academia que idolatra o frio/ Não podendo comprar ventiladores/ Abriu as portas para João do Rio”. No entanto, o ingresso, na ABL, de um mulato homossexual constitui um marco na história da instituição, conhecida por seu conservadorismo.

A crônica continua sendo para o autor de As religiões no Rio uma tentativa de conjugar etnografia, literatura e comunicação. Ao reunir, em 1909, quarenta e quatro crônicas, sob o título Cinematographo (crônicas cariocas), João do Rio deixa claro seu propósito: revelar, no sentido cinematográfico do termo, uma sucessão vertiginosa de cenas urbanas. Aliás, o indicador textual colocado entre parênteses (crônicas cariocas) estabelece de imediato uma relação espacial do cronista com a cidade maravilhosa, aposto, como é sabido, dado à capital federal pela escritora francesa Jane Catulle Mendès, por ocasião de sua visita ao Rio de Janeiro em 1911, quando proferiu conferências, dentre as quais “Les femmes de lettres françaises” (“As mulheres letradas francesas”), no Teatro Municipal.  Em cuidadosa edição de Lello Irmãos, em tons de marrom e douradoo livro, que temos, neste exato momento, em mãos (1909), desgastado pelo tempo, foi um sucesso de livraria, para o que contribuíram o nome do autor e o assunto escolhido.

As duas primeiras décadas do século vinte foram, seguramente, um período social e historicamente conturbado, no âmbito mundial e nacional. Cabe-nos apenas lembrar que em 1906, é realizado no Rio de Janeiro o terceiro Congresso Operário (considera-se o primeiro, o congresso realizado no Rio, em 1892; o segundo, o Congresso Socialista de 1902, realizado em São Paulo). A entrada do Brasil na guerra (1914-1918) provocou protestos da imprensa anarquista, dos jornais revolucionários cariocas, paulistas e portoalegrenses (“A Lanterna”, “O Cosmopolita”, “O Parafuso”, “A Patuléia”, “A Luta”); em 1914, “O Imparcial”, em Belém, e a “Semana Social”, em Maceió, são fechados pela polícia. O jornal quinzenal “A voz dos trabalhadores”, no qual, aliás, Lima Barreto colaborava, ressurge das cinzas, com uma tiragem de 4.000 exemplares. As organizações operárias (Sindicato dos Operários das Pedreiras, União dos Alfaiates, Sociedade União dos Estivadores, para citar apenas algumas) convocam greves. João do Rio mostrou-se sensível à exploração da classe proletária. Em A alma encantadora das ruas (1910) mostra, mais uma vez, que não há zona, cultural ou geográfica, intransponível para ele. Dividida em quatro partes (“O que se vê nas ruas”, “Três aspectos da miséria” “Onde às vezes termina a rua”, “A musa das ruas”), esta obra pode ser estudada tanto sob o aspecto literário quanto sob os aspectos etnológico, histórico e comunicacional. O primeiro, pelos recursos narrativos e a organização discursivao segundo, por levar ao público a cotidianidade urbana, as profissões e as tradições em via de desaparecimento, e um mundo até então camuflado por grande parte dos historiadores: o mundo da miséria urbana. A pobreza é um problema da sociedade, da má distribuição de riquezas, é o que ele nos diz na crônica “A fome negra”: “[Os pobres seres] vivem quase nus. No máximo, uma calça em frangalhos e uma camisa de meia. Os seus conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro, o dinheiro que a pá levanta para o bem-estar dos poderosos”. Essa fase agitada da chamada “belle époque tropical” é fixada em crônicas que davam amostras suficientes do interesse, do escritor carioca, em narrar a cidade a partir de seus mais diferentes espaços de sociabilidade, desde os mais reluzentes e requintados (hotéis, restaurantes, teatros, salões mundanos), freqüentados por uma burguesia europeizada e por políticos interessados em ocupar cargos representativos no governo, até os mais obscuros, heterotópicos, diríamos (favelas, asilos, prostíbulos, casas de detenção), onde vivia uma população periférica, anônima, esfomeada, analfabeta, sem direito à dignidade do trabalho e à educação, jogada à margem da urbanização. Sem romper totalmente com os princípios que regiam a crônica-folhetim, inaugurada brilhantemente, em 1874, por José de Alencar (“Ao correr da pena”), João do Rio surpreende o público pelo pioneirismo de suas inovações.

Sendo um dos poucos escritores (talvez o único) a viver exclusivamente do jornal, e sempre às voltas com dificuldades financeiras, assina, em 1910, um contrato com a Casa Garnier, com vistas à publicação de quatro livros: Portugal d’agora, Vida vertiginosa, A profissão de Jacques Pedreira (1911-1913), publicado após uma série de percalços editoriais, romance de crítica social e política, cuja personagem-título é um bon vivant, o protótipo do parasita social. Já o quarto livro, Psicologia urbana (1911) reúne seu discurso de posse e quatro conferências: “O flirt”, “O amor carioca”, “O figurino”, “A delícia de mentir”, esta última proferida durante sua viagem, em 1910, a São Paulo, no teatro Santana, em benefício do Centro Acadêmico 11 de agosto, da faculdade de Direito. No tempo da chamada “febre das conferências”, ressalte-se a escolha do comunicador-conferencista por temas modernos, up to date, próprios de uma cidade com ares cosmopolitas. Em “O figurino”, surpreende-nos sua concepção sobre a moda, não mais vista como um simples acessório de futilidade, mas como um elemento em constante mudança e em interação com a vida social dos novos tempos.

Em 1910 é publicada a coletânea de contos Dentro da noite. A ideia nuclear, já a exprime o título: à noite, os vícios, a luxúria e a licenciosidade passeiam mais à vontade (apenas os contos “O fim de Arsênio Godard”, ambientado durante a Revolta da Esquadra, em 1893, e “Coração”, de teor semiautobiográfico não se enquadram nesses valores). O mesmo temário é também perseguido em A mulher e os espelhos (1919).

Em muitos contos, utiliza, com freqüência, a mesma técnica: a descrição é dada, conforme mencionamos anteriormente, por meio de traços histriônicos. No conto “Histórias de gente alegre”, que relata um caso de lesbianismo, Elsa e Elisa, em uma cena concebida como um espetáculo, observada pelo público da pensão, debatem-se até a morte.  “A aventura de Rosendo Moura” é o relato, nos limites do cômico, da fuga, de Rosendo, fantasiado de dominó, e de Corina Gomes – uma mulher do povo, magra, lívida, viciada em cocaína – pelas ruas da cidade, ambos tentando escapar, numa terça-feira anterior ao carnaval, da perseguição do amante que explora a indefesa mulher.  No antológico “O bebê de tarlatana rosa”, que teve em Graciliano Ramos um leitor atento, João do Rio, tomando como metáfora a máscara, adota uma iconoclastia literária, mantendo-se distante das convenções ainda em voga.

Porém, quando se trata da ficção, um dos equívocos mais comuns tem sido o de fazer dele um escritor subserviente aos modelos europeus, sob suspeita de ter sido um imitador (além de Wilde) de Joris Karl Huysmans, o autor de A rebours (Às avessas), criador do protótipo do dândi decadentista, Jean Floressas des Esseintes. A fabulação do romance huysmanniano é de uma imobilidade quase absoluta: decidido a não ver qualquer silhueta humana, o duque Des Esseintes (a partícula “des” sinaliza sua origem aristocrática) tranca-se nos cômodos de sua casa, distante de Paris. Neste reduto, absorve-se na leitura de Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Petrônio (Satyricon)bem como na contemplação de obras pictóricas, dentre as quais avultam as dos pré-rafaelitas e a Salomé, de Gustave Moreau, imagem pictórica carregada de sentidos para Wilde.  Ver, nos dândis-narradores de João do Rio, uma cópia do dândi huysmaniano pode vir a ser, no nosso entendimento, um julgamento precipitado.  Com os olhos e a caneta voltados para seu contexto histórico, João do Rio segue, estruturalmente, outra linha de argumentação, abrasileirando, conscientemente, o seu dândi André de Belfort (o equívoco, provavelmente, deve-se ao fato de o próprio João do Rio caracterizá-lo como dândi). Ao retiro monacal de Des Esseintes, à sua ascendência aristocrática, ao seu desdém pela pobreza, ao seu culto pela arte, João do Rio opõe um dândi desmemoriado, sem genealogia; posudo, sim, insensível, às vezes, mas profundamente comovido com o destino agônico dos miseráveis urbanos, representados em figuras pobres e decrépitas como Corina (“A aventura de Rosendo Moura”), D. Joaquina (“D. Joaquina”), Carlota (“A noiva do som”), Armando (“Última noite”), Rosa (“Uma criatura a quem nunca faltou nada!”) e a menina amarela do conto homônimo (“A menina amarela”).  Não é possível também esquecer que o fenômeno do dandismo tem, no contexto europeu, um fundamento histórico, indissociavelmente ligado à derrocada da nobreza. Fechando a questão, o dândi europeu é uma categoria social, sobre a qual Huysmans fundou uma rica tradição estilística.  Se, por um lado, é impossível negar a presença de Wilde, Lorrain e Huysmans no conjunto da obra do escritor carioca, por outro, não é possível ignorar as combinações estético-sociais que o motivaram e que não cabem discutir aqui.

Mas há, ainda, em João do Rio uma tendência precisando ser explorada pela crítica: trata-se de sua fixação por histórias policiais, detetivescas, que tanto podem estar, disfarçadas, na crônica e na ficção quanto, mais abertamente, nestas incríveis Memórias de um rato de hotel (1911), livro publicado originalmente sem autoria. Eis a fala de abertura do Dr. Antônio, o ladrão de casaca: “Nunca pensei em escrever memórias. Nunca fui dado à literatura e à fantasia, sendo muito limitado o número de livros que tenho lido. [...]. Passo as noites sem poder dormir, com dispnéias, estou magro, macilento, com olheiras, as mãos trêmulas [...]. Estava assim, há dias, desolado, na enfermaria, quando vieram chamar-me”. O administrador da prisão apresenta-o a um jornalista anônimo: “Mas, que quer o senhor de mim”? [pergunta Dr. Antônio]. – “Quero que conte a sua vida para meu jornal” [responde o entrevistador].

Em 1916, publica o volume Crônicas e frases de Godofredo de Alencar, reunião de textos que já haviam passado pela imprensa periódica, na “Gazeta”, com o pseudônimo de Joe, cujo narrador-protagonista, Godofredo de Alencar (antes conhecido como Godofredo Câmara), vale lembrar agora, é uma homenagem do cronista a Mário de Alencar, filho do grande romancista, teatrólogo e cronista cearense. 

A linguagem aforismática, de fortes lembranças wildeanas, bastante cultivada pelo autor tanto nas obras ficcionais (“este mundo é uma esquina por onde passam todos os homens”) quanto nos textos cronísticos, é, aqui, preponderante. Comparemos Wilde, em O retrato de Dorian Gray, quando conjetura sobre o traje do século XIX :”É tão sombrio, tão deprimente! O pecado é realmente o único elemento colorido da vida moderna”, com Godofredo de Alencar: “Tudo na terra é mistério, tudo na vida é repetição”; Os homens sucedem-se repetindo velhos gestos”; “Não há maior luxúria que a de pensar. Só uma a sobrepuja: a de pensar bem”; “Nada mais complicado que uma alma simples”; “A velhice é o peso da desilusão”.

Desde 1915, João do Rio vinha escrevendo crônicas mundanas e comentários políticos na “Gazeta”, sob o pseudônimo de José Antônio José, na seção por ele denominada “Pall-Mall Rio”, que saem a lume em 1917. Neste mesmo ano, juntamente com Francisca (Chiquinha) Gonzaga, Bastos Tigre, Carlos Cavaco, Oduvaldo Vianna, Raul Pederneiras, Oscar Guanabarino, Viriato Corrêa e muitos outros, funda a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), sendo eleito o primeiro presidente. Após um período pontuado de decepções, aceita, em 1919, a função de correspondente na Conferência de Paz, em Versalhes.

Em 1920, deixa O país e funda seu próprio jornal, A Pátria, chamado ironicamente de A Mátria por seus detratores (Alberto Torres e Humberto de Campos foram os mais impiedosos).   No mesmo ano, publica Adiante! e a terceira e última coletânea de contos, Rosário da ilusão. Encerrava uma carreira vertiginosa. 

Sua morte súbita surpreendeu a população carioca. Seu corpo não foi velado na Academia Brasileira de Letras, com a qual andava desgostoso, mas, por determinação materna, na redação de A Pátria. O enterro foi acompanhado por uma multidão.

Segundo seus biógrafos, João do Rio escreveu um total de duas mil trezentas e duas crônicas. A última crônica, escrita em 23 de junho de 1921, poucas horas antes de morrer, guarda um título sugestivo: “A crise brasileira e a decadência do Brasil”.

O que faz, deste jornalista carioca, um elemento distintivo no quadro da imprensa do período, é sua intensa dedicação à vida jornalística e sua capacidade de comunicador. Brasileiríssimo, João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Barreto, é, sem dúvida, um dos grandes protagonistas literários do século vinte.

 

Referências Bibliográficas               

 

BROCA, Brito.  A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.

 

CARVALHO, Elysio de. João do RioIn: ______.  Correntes estéticas na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1909.

 

 MAGALHÃES JÚNIOR, R. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (em convênio com o Instituto Nacional do Livro), 1978.

 

RODRIGUES, João Carlos. Catálogo bibliográfico (1899-1921). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultural, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1994. 

 

______. João do Rio – uma biografia.  Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 293 p.

 

SODRÉ, Nelson Werneck.  História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

 

 

*Doutora em Estudos Literários, Gilda Vilela Brandão defendeu a tese intitulada “Sem feitio de acabado: crônica e ficção em João do Rio”.

É autora, dentre outros, dos seguintes artigos, publicados em revistas acadêmicas: “Crônica e cotidianidade” (Navegações, v. 7, n. 2, 2014); “Arte, criação e crítica em A obra-prima ignorada, de Honoré de Balzac” (Polifonia, v. 20, n. 28, 2013); “Graciliano Ramos e o sentimento de absurdo” (Diadorim, v. 13, 2013); “Notas sobre a recepção do simbolismo na França e no Brasil” (ABRALIC, v. 2, n. 17, 2010);  “Imagens fin-de-siècle (Letras, v. 19, n. 2); “José de Alencar e a crítica literária” ( Leitura,v. 45, 2010); “Imagens fin-de-siècle” (Letras, n. 39, 2009); “João do Rio, o homus cinematographicus” (Revista do Rio de Janeiro, n. 20-21, 2007); “Resenhando o Momento Literário, de João do Rio (ABRALIC, n. 6, 2002). Em parceria com Ari Denisson da Silva é autora de “Triste fim de Policarpo Quaresma: caminhos e descaminhos de um projeto utópico”. In: CAVALCANTE, Ildney; CORDIVIOLA, Alfredo (orgs). Os retornos da utopia: histórias, imagens, experiências. Maceió: Edufal, 2015. Organizou, juntamente com a profa. Dra. Ana Cláudia Aimoré Martins e o prof. Dr. Zygmunt Vojski o volume Corpo, literatura e cultura: espaços-latino-americanos da escravidão. (Maceió: Edufal, 2011). É organizadora do volume Jorge & Murilo, contendo doze artigos sobre a poética de Jorge de Lima e Murilo Mendes (Maceió: Edufal, 2015).

http://portal.metodista.br/mutirao-do-brasileirismo/cartografia/verbetes/america-do-sul/joao-do-rio#:~:text=%E2%80%9CA%20aventura%20de%20Rosendo%20Moura,amante%20que%20explora%20a%20indefesa

 

 

 

 

Crônica cantada: Áfrico. Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro

 



 

 

Quem foi que fez brasileiro bater
Tambor de jongo?
De onde é que sai quem batuca com o pé
Terno-de-Congo?
Quem é, me ensina quem foi
Que fez o povo dançar
Tambor-de-Mina, Bumba-meu-boi,
Boi-bumbá,
O bambaquerê,
O samba, o ijexá,
Quando o Brasil resolveu cantar?
Quem foi que pôs o lamento na voz
Da lavadeira?
Quem fez aqui baticum, candomblé
E a capoeira?
Quem trouxe o maracatu?
Quem fez o maculelê,
Mineiro-pau, côco, caxambu,
Bangulê,
A xiba, o lundu,
O cateretê,
Quando o Brasil resolveu cantar?
Me diz quem foi que fez
A dor se transformar
Em som de carnaval,
Em batucada,
Em melodia?
Que força fez mudar
Toda tristeza
Em alegria,
Quando o Brasil resolveu cantar?

http://livroerrante.blogspot.com/2012/03/cronica-cantada-africo-sergio-santos-e.html

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