quinta-feira, 9 de outubro de 2025

“O Ferro, o Trono e o Espelho: A Plebe e o Poder em Shakespeare, no Brasil e no Maquinário da História”

Boa noite!  Trenzinho do Caipira (Heitor Villa-Lobos / Ferreira Gullar) EMCANTAR Cia Cultural
O Dia do Compositor Brasileiro é celebrado a cada 7 de outubro, desde 1948. A data foi criada por iniciativa do cantor e compositor Herivelto Martins, que esteve à frente da União Brasileira de Compositores (UBC). Para comemorar a ocasião, a #RádioMEC recupera do Acervo EBC/TVE, uma trinca de ases da composição nacional, que ilustra bem a riqueza da música brasileira. Villa-Lobos é, para muitos, o nosso maior compositor de música de concerto, cuja obra sempre bebeu da cultura popular do nosso povo, haja vista a peça “O trenzinho do caipira”. Composição na qual o grande poeta maranhense Ferreira Gullar se inspirou para escrever parte de um dos seus poemas mais famosos, o “Poema Sujo”, em que, a certa altura do texto, indica que deve ser lido “cantado com a música da Bachiana nº 2, da Tocata, de Villa-Lobos”. O poeta não imaginava transformar aquilo, de fato, em uma canção. Era apenas um recurso da sua poética. Quando, inesperadamente, um dos grandes compositores populares do país, Edu Lobo, decide gravar a música com a letra de Gullar. E aí, deu no que deu. Um grande encontro da composição brasileira! 🎼🎵🇧🇷 🎶 Trenzinho do Caipira | Heitor Villa-Lobos e Ferreira Gullar 📹 Acervo EBC/TVE | Programas “Um Nome na História” (1981) e “Contra-Luz” (1985) Ver menos https://www.facebook.com/reel/1578699610178789
Ô Abre Alas Chiquinha Gonzaga
Dia do Compositor Brasileiro é celebrado em 7 de outubro Data comemorativa é uma homenagem aos artistas brasileiros da composição musical Chiquinha Gonzaga (1847-1935) Compositora, instrumentista e maestrina brasileira, Francisca Edwiges Neves Gonzaga, mais conhecida como Chiquinha Gonzaga, é reconhecida por ser a autora da primeira marcha carnavalesca com letra: “Ô Abre Alas!”, composta para o desfile do cordão Rosa de Ouro, em 1899. Além disso, foi a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil.
Kssssse! Pédro ... Ksssse! Ksssse! Miguel! ["Ces deux capons là ne feront jamais grand mal] EPÍGRAFE “A autoridade é o mais teatral dos vícios: vive de cenário, de aplauso e de eco.” — inspirado em Gilberto Braga, Shakespeare e o chão de fábrica.
Siré. Lisbonne est prise. - aaaah!! .... aussi j'ai revè que je me battais crânement RESUMO Este ensaio propõe uma leitura integrada das manifestações contemporâneas e literárias da relação entre poder e subalternidade — do conto “O Ar do Azar” (C. Hedley Barker, 1894) à telenovela “Vale Tudo” (1988), passando pela recriação dramática “Versão shakespeariana” do tenente-rei e pelas crônicas políticas recentes do Brasil democrático. Busca-se compreender como, em todos esses contextos — o fabril, o monárquico, o midiático e o institucional — o poder se representa e se esvazia, sobrevivendo apenas como performance.
A B. Ici Repose Dernier des Forts Detaches INTRODUÇÃO: o palco e a máquina Há uma linha contínua que liga o ferro da oficina ao ouro do trono: ambos reluzem apenas quando há quem os olhe. O poder, tal como o maquinário, é um mecanismo de engrenagens simbólicas — exige manutenção, lubrificação e espectadores. O tenente-rei da versão shakespeariana fala pelos séculos: é o mesmo tipo que encontramos em Barker (1894), no empresário corrupto de Vale Tudo (1988), e no político contemporâneo que confunde liderança com domínio. Todos partilham a mesma tragédia: confundem obediência com respeito, autoridade com verdade, mando com grandeza. Assim, este ensaio percorre as figuras do poder performático — o chefe, o rei, o coronel, o apresentador, o político, o tenente — e as formas de resistência silenciosa — o riso, o trabalho, o gesto, o coro, o povo, a plebe. I. “O Ar do Azar”: o destino e o disfarce O conto de C. Hedley Barker (1894), “O Ar do Azar”, apresenta um protagonista submetido a um golpe do acaso, uma ironia cruel que revela a precariedade do controle humano sobre o próprio destino. O personagem — um homem de aparência respeitável, mas movido pela ambição — termina vencido por aquilo que julgava dominar. Nesse conto vitoriano, o poder é uma ilusão atmosférica: uma bolha de prestígio que se desfaz no primeiro sopro do infortúnio. A moral de Barker antecipa, em chave trágica, a lógica que se repete nos palcos da política e nas narrativas televisivas: o azar é o corretivo simbólico do excesso de mando.
II. “Vale Tudo”: o poder como novela moral Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, em Vale Tudo (1988), transformaram o Brasil dos anos 1980 em um espelho do mesmo tema: o poder como performance moral. Maria de Fátima e Odete Roitman são versões tropicais da mesma figura do “tenente-rei”: dominam pelo cinismo, acreditam em sua própria encenação e confundem status com superioridade. A pergunta que ecoa — “Vale tudo?” — é a forma brasileira de interrogar o mesmo dilema shakespeariano: até onde vai a ambição humana quando o palco é o mundo? Assim como Barker ironizava o azar e Shakespeare desmontava a pompa dos reis, a novela mostrou que, no Brasil, o poder é uma novela de aparências, e o povo, seu público crítico. III. O Tenente-Rei: Shakespeare no chão de fábrica A peça contemporânea “Versão shakespeariana” realiza a síntese estética desse percurso. No palco, o poder veste farda; a hierarquia militar serve de alegoria para a estrutura social do trabalho. O SOLDADO e o COMPANHEIRO são herdeiros diretos dos bobos e camponeses de Shakespeare: observadores lúcidos, ironistas da tragédia. O TENENTE é o novo rei Lear: um homem pequeno que acredita em sua própria majestade. Sua solidão final — gesticulando para o nada — é a imagem perfeita do poder contemporâneo: chefe sem comando, rei sem reino, influência sem substância. O CORO, no epílogo, formula a tese política e estética do texto: “O verdadeiro poder não reside no posto, na patente ou no brasão, Mas na força da mão calada.” ILUSTRAÇÃO PICTÓRICA SUGERIDA Uma pintura ou charge imaginária intitulada “O Trono de Ferro e Graxa”: um tenente sentado num trono feito de peças de maquinário enferrujado, com uma coroa de ferramentas, enquanto dois operários ao fundo apertam parafusos e trocam olhares irônicos. (inspirada na iconografia de Goya e nas gravuras sociais de Honoré Daumier). CHARGE POSSÍVEL Um operário, segurando uma chave inglesa, observa um oficial inflado de medalhas que comanda… uma máquina desligada. A legenda: “O poder só funciona quando alguém aperta o botão certo.CONSIDERAÇÕES FINAIS: o poder que enferruja Do conto ao palco, da novela à crônica política, o tema permanece: o poder é um espetáculo precário, sustentado pela crença coletiva. A diferença entre o rei e o súdito é apenas a direção do olhar. Quando o público se cala, o poder se dissolve. O “rei” moderno — o político inflado, o gestor autoritário, o influencer de ocasião — é o herdeiro do tenente: performa grandeza sobre o palco de um mundo que já conhece o roteiro da queda. SUGESTÕES DE FUTURAS PESQUISAS E VIAGENS TEMÁTICAS “Shakespeare no Brasil Contemporâneo” – estudar a presença estrutural do teatro elisabetano nas telenovelas e no discurso político. “A estética da subalternidade” – investigar o papel da ironia, do coro e do humor popular como resistência simbólica. “O poder como ficção” – cruzar literatura, televisão e política sob a teoria performática de Judith Butler e o conceito de simulacro de Baudrillard. “O trabalho como palco” – leitura sociológica e estética do ambiente laboral como espaço dramático e simbólico. FONTES E REFERÊNCIAS Barker, C. Hedley. O Ar do Azar. (1894, Inglaterra). Braga, Gilberto; Silva, Aguinaldo; Bassères, Leonor. Vale Tudo. Rede Globo, 1988. Shakespeare, William. Rei Lear; Hamlet; Coriolano; Sonho de uma Noite de Verão. La Boétie, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária. Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Eagleton, Terry. Shakespeare and Society. Butler, Judith. Performative Acts and Gender Constitution. Benjamin, Walter. O Autor como Produtor. Daumier, Honoré. Les Gens de Justice. EPITÁFIO Aqui jaz o Tenente-Rei, coroado pela própria vaidade, vencido pela graxa e pelo riso, lembrado apenas pelos que souberam obedecer com inteligência e silêncio. D
A revolta (LEmeute) | Honoré Daumier | Impressão de arte “O tempo, esse juiz severo e sem pressa, Mostrará que o que é de metal se enferruja, Mas a humildade e a astúcia sempre florescem.” ""Fazemos a segurança do maquinário, mas, pelo visto, o maior risco é ser plebeizado por essa majestade de tenente."
Rei Lear e o bobo da corte, por George Frederick Bensell. [VERSÃO SHAKESPEAREANA] ATO I, CENA II — UM RECINTO DE TRABALHO. Entra UM SOLDADO e UM COMPANHEIRO, em trajes singelos. O COMPANHEIRO empunha um objeto de metal. O SOLDADO fala, como que para si, mas com a plateia. SOLDADO: A paz, meu bom irmão! Que o labor nos guarde, Pois a máquina, de metal e aço forjada, Exige de nós a guarda, o cuidado, o zelo, E o sangue, suor, que o chão de todos molha. Mas que risco há maior que o homem, o insensato? Que perigo espreita mais cruel que o ego que infla No peito de quem de nada entende, mas tudo comanda? Entra O TENENTE, de peito estufado e olhar sobranceiro. Gesticula, arrogante, como se fosse rei. COMPANHEIRO: (À parte, ao SOLDADO) Vê só, meu caro, a fera que nos assombra, O nosso César de caserna, o Nosso majestático. Aquele que, com a arrogância em cada passo, Reduz-nos a pó, a plebe rasteira, E trata os súditos leais com o nojo da realeza. SOLDADO: (Em tom baixo, mas com o veneno da ironia) Queira o céu que o faça! Que sua coroa Não seja de ouro, mas de orelha de burro. E que a nós, mortais, nos reste o escárnio No coração e a mansa obediência na face, Pois o jogo é longo, e o rei, por vezes, cai. COMPANHEIRO: Assim seja! Que ele se delicie em seu reino de ilusões, Enquanto nós, meros peões, garantimos a marcha da máquina Que ele julga ter criado com a boca, e não com as mãos. SOLDADO: Pois a força, amigo, não reside no nome, Nem na voz que troveja, mas nas mãos que fazem. Deixemo-lo em seu palácio de bobagens, Enquanto nós, com astúcia e calma, Cuidamos do ferro que nos sustenta, E esperamos o momento em que a máscara De sua realeza cairá por terra. Saem os dois. O TENENTE continua a gesticular, solitário, no palco.
Rei Lear e o bobo na tempestade, por William Dyce (1806-1864). Deixando tudo pronto EPÍLOGO Entra o CORO, formado por SOLDADOS e SÚDITOS, misturados, e fala ao público. CORO (em uníssono): Assim finda o drama do poder de um só, Que, vestido de tenente, pensou-se rei. Em sua cena de tola majestade, Fizemos nós, de plebe e de tropa, O trabalho, o suor, e a guarda do ferro. SOLDADO 1: Ele bradou, inchou-se e deu ordens, Mas era a nós que a máquina obedecia, E não ao verbo que saía de sua boca. Pois o maquinário só respeita a mão Que com a graxa e o martelo o faz andar. SÚDITO 1: E nós, que somos o povo, o alicerce, Aprendemos a tratar o déspota com fina flor, Com a obediência cega que o afaga, Enquanto por dentro o riso o despedaça. Que espetáculo! Ter poder e não o saber ter! CORO (em uníssono): Eis a lição, senhores: o verdadeiro poder Não reside no posto, na patente ou no brasão. Mas na lealdade mansa, na força da mão calada, Que, obedecendo, expõe a vaidade do patrão. SOLDADO 2: E a ele, que se julga de nobreza rara, Restou o eco de seu próprio grito, Pois onde não há respeito, há apenas escárnio. SÚDITO 2: E o tempo, esse juiz severo e sem pressa, Mostrará que o que é de metal se enferruja, Mas a humildade e a astúcia sempre florescem. CORO (em uníssono): Obrigados, espectadores, por vossa paciência! E se a peça vos agradou, aplaudis com calor. Pois se o aplauso é sincero, a honra é de quem o merece, E não de quem a pede com ar de realeza. Todos se curvam. Fim."
Tecnologia recriou a voz de Ricardo III, rei britânico do século 15; ouça Tecnologia revive Ricardo III no York Theatre Royal, com um avatar que reproduz sua aparência e sotaque, baseado em estudos históricos e forenses Magnífico texto — uma recriação shakespeareana feita com rigor, ritmo e ironia social digna de uma sátira de poder à moda elisabetana. A seguir, apresento uma análise crítica e contextual, no formato de um artigo de revista cultural ou suplemento literário, que lê o texto como peça alegórica sobre hierarquia, poder e classe — uma transposição moderna dos temas de Shakespeare para o universo do trabalho e da autoridade militar.
Tragédias de Shakespeare no Clube de Leitura de setembro 28/08/2017 15h55 A cada semana de setembro, será lida e debatida uma tragédia do dramaturgo inglês William Shakespeare. A primeira peça em destaque será Hamlet. Tragédias de Shakespeare no Clube de Leitura de setembro O autor William Shakespeare, que, segundo Harold Bloom, foi o responsável pela “invenção do humano”, o maior autor de todos os tempos, segundo muitos críticos, o gênio indiscutível, será lido e comentado em cinco aulas:
A tragédia do rei Ricardo II: 25 Capa comum – 1 janeiro 2017 Edição Português por William Shakespeare (Autor), Carlos Alberto Nunes (Tradutor) A Tragédia do Tenente-Rei: Shakespeare nas engrenagens do maquinário moderno Por [Seu Nome] Em “Fazemos a segurança do maquinário, mas, pelo visto, o maior risco é ser plebeizado por essa majestade de tenente”, o autor propõe uma transfiguração literária rara: a do ambiente laboral — com seu maquinário, hierarquia e ressentimentos — em um palco shakespeariano, onde a tragédia se funde à comédia e o drama humano do poder ganha tintas atemporais. Sob a aparência de uma sátira breve, o texto constrói uma parábola sobre a vaidade do mando e a dignidade silenciosa do trabalho, retomando o gesto clássico do dramaturgo inglês de fazer o pequeno homem rir — e resistir — diante da tirania dos grandes. O “tenente” é aqui um rei de papel, um César de caserna, que encarna a velha farsa do poder sem substância: o homem que comanda sem compreender, e cuja autoridade depende da obediência cínica de seus subordinados. Entre o ferro e o verbo O cenário é minimalista, mas simbólico: um “recinto de trabalho”, onde soldados e companheiros vigiam o maquinário — metáfora transparente da produção e do mundo do trabalho contemporâneo. O “ferro que nos sustenta” substitui o cetro, e a graxa do operário toma o lugar do sangue azul. O diálogo entre SOLDADO e COMPANHEIRO ressoa o tom dos servos e bobos de Shakespeare: figuras de fala simples, mas de inteligência aguda, que desarmam o poder pela ironia. Quando o SOLDADO diz “Que sua coroa não seja de ouro, mas de orelha de burro”, ecoa o sarcasmo popular que, em Sonho de uma Noite de Verão, transformava o homem soberbo em besta coroada. Ao mesmo tempo, há uma nota política sutil: o texto denuncia o descompasso entre quem executa o trabalho real e quem se apropria do prestígio do comando. A hierarquia militar — evocada na figura do tenente — é reconfigurada como metáfora universal da burocracia e do autoritarismo cotidiano. O Epílogo e o riso dos vencidos O epílogo, recitado por um Coro de soldados e súditos, retoma a tradição grega e elisabetana de moralizar o enredo — mas aqui, a moral é cínica e libertadora. O coro anuncia a queda do falso rei, lembrando que “o verdadeiro poder não reside no posto, na patente ou no brasão, mas na força da mão calada”. Trata-se de uma inversão de papéis: a plebe, submetida, transforma a obediência em tática; a servidão, em resistência. O riso interno, que “despedaça o déspota”, é o último refúgio do dominado — uma ideia que remete à astúcia dos bufões shakespearianos e à “astúcia da servidão” de Étienne de La Boétie. No final, o espetáculo é duplamente teatral: o público é convidado a aplaudir, mas o aplauso é também uma armadilha, um espelho. “Pois se o aplauso é sincero, a honra é de quem o merece, e não de quem a pede com ar de realeza.” A peça termina, como toda boa comédia trágica, não com catarse, mas com desconforto — uma risada amarga diante do poder e da vaidade humana. A plebe shakespeariana do século XXI Há, portanto, neste breve exercício dramatúrgico, um diálogo direto entre o mundo fabril contemporâneo e a poética do poder shakespeariana. O autor substitui castelos por galpões, armaduras por macacões, e reis por chefes. Mas a estrutura simbólica é a mesma: o trono ainda existe, apenas se deslocou para o escritório, a caserna ou a fábrica. Mais do que uma paródia, a peça é uma reflexão mordaz sobre a plebeização do poder — o momento em que a autoridade se desnuda e revela seu caráter performático. O tenente reina apenas enquanto os outros acreditam que ele reina; sua grandeza é um eco sustentado pela encenação da subordinação. Quando o coro desmonta o teatro, resta apenas o homem ridículo, “gesticulando, solitário, no palco”. Conclusão A “versão shakespeariana” do episódio é, em suma, uma aula de dramaturgia política. Entre versos ritmados e apartes mordazes, o texto mostra que o poder é, antes de tudo, um teatro — e que o povo, mesmo quando submisso, é o verdadeiro dramaturgo desse espetáculo. Como nas peças de Shakespeare, a tragédia do soberbo é escrita pelas mãos daqueles que, em silêncio, movem as engrenagens do mundo. E, como lembram os soldados do epílogo: “O tempo, esse juiz severo e sem pressa, Mostrará que o que é de metal se enferruja, Mas a humildade e a astúcia sempre florescem.”
Bom dia!Não existe nenhuma correlação real ou fundamento entre o movimento estudantil de esquerda LiBeLu, da época da ditadura militar no Brasil, e a especulada "federação BraFuLu" envolvendo o ministro André Fufuca e o presidente Lula no Pará. Trata-se de uma associação incorreta baseada em trocadilhos com nomes, misturando contextos históricos e políticos completamente distintos. LiBeLu: movimento estudantil contra a ditadura Nome: O nome "LiBeLu" é uma abreviação de "Liberdade e Luta", uma organização estudantil de esquerda e de tendência trotskista que atuou na década de 1970. Contexto: O movimento surgiu no ambiente acadêmico da Universidade de São Paulo (USP) e se opunha ativamente à ditadura militar, defendendo a redemocratização do país. Características: Eram conhecidos por sua irreverência e participação na oposição estudantil, lutando pela abertura cultural e pela democracia em um período de forte repressão política. "BraFuLu": termo sem fundamento político Origem: A expressão "BraFuLu" não corresponde a nenhum movimento ou federação política oficial. Parece ser um trocadilho popular ou uma especulação, unindo pedaços de palavras para criar um nome fictício: Brasil + Fufuca + Lula. Contexto real: A expressão se refere à dinâmica recente na política brasileira, com foco no ministro André Fufuca (do Progressistas, com base no Maranhão) e o presidente Lula (PT). A conexão com o Pará pode ser uma referência à COP-30, que ocorrerá em Belém em 2025, e à presença política de ambos na região. O que está em jogo: Recentemente, Fufuca enfrentou pressão de seu partido (Progressistas) para deixar o governo Lula. Ao decidir permanecer como ministro do Esporte e manifestar apoio a Lula, ele foi punido pelo partido. Esse tipo de manobra política faz parte do jogo de alianças e negociações do Centrão, que busca cargos e influência no governo. A grande diferença: ditadura vs. jogo político A principal diferença entre os dois cenários é o contexto e a natureza da ação política: LiBeLu: representava a luta ideológica contra um regime autoritário, com jovens arriscando a liberdade para lutar por democracia. "BraFuLu": refere-se a uma negociação política dentro do sistema democrático, com base em acordos de poder e apoio a governos para garantir espaço e influência. Não há um movimento organizado com esse nome, mas sim a dinâmica de forças políticas. Portanto, qualquer "correlação" entre LiBeLu e "BraFuLu" é uma distorção dos fatos e uma falsa equivalência entre contextos e motivações políticas completamente distintas.” Documentário Libelú - Abaixo a Ditadura estreou nesta semana no festival É Tudo Verdade Jornalismo TV Cultura 1 de out. de 2020 #JornaldaCultura Pela primeira vez em 25 anos, o festival é realizado online. O filme narra a história de um grupo de jovens que ajudou a combater a ditadura militar. #JornaldaCultura Capítulos Ver tudo Transcrição LiBeLu e “BraFuLu”: entre o mito político e a falsa equivalência histórica Nos últimos meses, circulou em redes sociais uma suposta comparação entre o movimento estudantil LiBeLu, que atuou durante a ditadura militar no Brasil, e uma alegada “federação BraFuLu”, relacionada ao ministro André Fufuca e ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se, porém, de uma associação completamente incorreta, sem qualquer base histórica ou política. A semelhança entre os nomes é apenas um trocadilho sem fundamento, que mistura contextos separados por décadas e de natureza totalmente distinta. LiBeLu: liberdade, luta e resistência à ditadura O nome LiBeLu é a abreviação de Liberdade e Luta, movimento estudantil de tendência trotskista surgido na década de 1970, durante o regime militar. Formado sobretudo por universitários da USP (Universidade de São Paulo), o grupo fazia parte da resistência civil e intelectual contra a repressão política e pela redemocratização do país. A LiBeLu ganhou notoriedade por sua irreverência e engajamento político, defendendo a liberdade de expressão, o pluralismo cultural e a reconstrução da vida democrática. Seus militantes enfrentavam riscos concretos — vigilância, perseguição e prisão — ao se oporem abertamente à ditadura. O movimento integrava uma constelação mais ampla de entidades estudantis e organizações de esquerda que atuaram em defesa dos direitos civis e da abertura política. “BraFuLu”: um trocadilho sem existência real Já o termo “BraFuLu” não corresponde a nenhum grupo, movimento ou federação política existente. A expressão parece ter surgido como uma brincadeira de internet, unindo partes de palavras — Brasil, Fufuca e Lula — para sugerir uma “aliança informal” entre o ministro André Fufuca (Progressistas-MA) e o presidente Lula (PT). O contexto atual é outro: a disputa dentro do Centrão e a pressão exercida por partidos aliados sobre o governo federal. Fufuca, ministro do Esporte, enfrentou recentemente pressões do Progressistas para se afastar do governo, após demonstrar apoio ao presidente. Sua decisão de permanecer no cargo resultou em punição partidária, reflexo das tensões típicas das coalizões brasileiras. A referência ao Pará surge apenas por associação com a COP-30, que será realizada em Belém, e pela movimentação política de lideranças federais na região — mas não há qualquer organização chamada “BraFuLu”. Ditadura e democracia: contextos incomparáveis Comparar LiBeLu e “BraFuLu” é, portanto, um equívoco conceitual. O primeiro foi um movimento de resistência ideológica, nascido da urgência em enfrentar um regime autoritário que censurava, perseguia e torturava opositores. A militância estudantil daquela época arriscava a liberdade — e, muitas vezes, a vida — em nome da democracia. O segundo é apenas um episódio do jogo político democrático contemporâneo, no qual partidos e líderes negociam cargos, apoios e espaços de poder. A lógica é pragmática, não ideológica; busca-se influência e governabilidade, não resistência ou enfrentamento do Estado. Entre a luta e o cálculo político A diferença essencial entre os dois casos é a própria natureza da ação política. Enquanto a LiBeLu representava a luta por liberdade em um ambiente repressivo, a suposta “BraFuLu” é apenas uma metáfora informal de alianças circunstanciais dentro da democracia. Um nasceu do enfrentamento à ditadura; o outro, da prática rotineira da política de coalizão. Assim, a tentativa de correlacionar LiBeLu e “BraFuLu” é mais do que uma confusão semântica — é uma falsa equivalência histórica que ignora as diferenças entre lutar pela democracia e negociar dentro dela. Em um tempo de ruído digital e desinformação, preservar a precisão histórica é também um ato de liberdade e de luta. WW - GOVERNO PERDE E RADICALIZA CONTRA A CÂMARA - 08/10/2025 CNN Brasil A política e a arte de perder: o comportamento dos derrotados e a saúde da democracia Na crônica política de todos os dias, há vencedores e derrotados. Mas o que realmente diferencia uns dos outros não é o resultado em si, e sim o comportamento diante da derrota. A forma como um político lida com o fracasso — seja nas urnas, seja em votações no Congresso — revela não apenas o caráter individual, mas também o grau de maturidade institucional de um país. O modo como se perde é, muitas vezes, mais revelador do que o modo como se vence. Entre os “bons derrotados”, há um padrão de comportamento que sustenta a própria ideia de democracia. O primeiro passo é o reconhecimento da derrota. Quando um líder aceita o resultado das urnas ou de uma votação legislativa, mesmo discordando dele, demonstra respeito pelas regras do jogo e pelas instituições que as garantem. Essa aceitação é o alicerce da transição pacífica de poder — e sem ela, todo o edifício democrático começa a ruir. A seguir vem a autocrítica, qualidade rara, mas decisiva. Políticos que sobrevivem a derrotas costumam examinar suas falhas, reconhecer excessos e repensar estratégias. A derrota, nesse sentido, torna-se uma etapa do aprendizado e não o fim de uma trajetória. É esse exercício de reflexão que muitas vezes permite a “volta por cima” — algo que a história política brasileira conhece bem, com líderes que souberam transformar reveses em recomeços. Outro traço dos bons perdedores é a busca pela união. Após um resultado adverso, alguns líderes escolhem não aprofundar divisões, mas recompor alianças, inclusive com adversários, em nome de objetivos comuns. Essa postura não é sinal de fraqueza, mas de compromisso com a estabilidade do país. Quando a disputa eleitoral termina, é a capacidade de dialogar que distingue o estadista do mero competidor. Por fim, o posicionamento construtivo é talvez a face mais nobre da derrota. Em vez de se tornarem opositores destrutivos, certos políticos preferem agir como fiscalizadores responsáveis, oferecendo alternativas e contribuindo com o debate público. Essa atitude reforça a legitimidade da oposição e a vitalidade do sistema democrático. No polo oposto, estão os maus derrotados — aqueles que, incapazes de aceitar o resultado, optam pela negação e pelo ressentimento. Alguns recorrem à irresponsabilidade e à incitação à desordem, alimentando narrativas falsas e estimulando seus seguidores a desacreditar nas instituições. Outros mergulham em guerras de narrativas, distorcendo fatos e transferindo culpas, em vez de refletir sobre os próprios erros. Essa tática pode render dividendos de curto prazo, mas enfraquece o tecido democrático ao corroer a confiança pública. Há ainda o caminho do isolamento político. Líderes que insistem em negar derrotas e rejeitam a autocrítica acabam marginalizados, tornando-se figuras cada vez mais irrelevantes no debate nacional. A incapacidade de aprender com o revés conduz, inevitavelmente, ao declínio — e a história da política é fértil em exemplos de personagens que desapareceram pela própria intransigência. O Brasil recente oferece casos ilustrativos. Em outubro de 2025, por exemplo, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sofreu uma derrota significativa na Câmara dos Deputados, com a derrubada de uma medida provisória. Em vez de recorrer a acusações ou teorias conspiratórias, o presidente buscou uma nova solução negociada. O gesto, aparentemente simples, representou uma lição política: aceitar o resultado e seguir em frente é mais eficaz do que insistir em culpas difusas. Pouco tempo depois, uma pesquisa da Quaest mostrou que a popularidade de Lula se recuperara no segundo semestre de 2025, após uma sequência de reveses políticos. Esse movimento indica que a sociedade valoriza a serenidade diante da derrota — tanto do governo quanto da oposição. A forma como os atores políticos reagiram àquele episódio, com responsabilidade ou com histrionismo, influenciou diretamente a percepção pública. Em tempos de polarização e discursos inflamados, ser um “bom derrotado” é quase um ato de resistência democrática. Vencer é sempre mais fácil; perder com dignidade, ao contrário, exige caráter, visão de longo prazo e respeito pelas regras do jogo. A democracia, afinal, não sobrevive apenas dos seus vencedores — mas, sobretudo, da grandeza de seus derrotados. Vale Tudo (1989): Relembre a abertura da novela TV Globo
The Ace of Trouble by C.Hedley Barker O jogo, o azar e o valor: moralidade e ambiguidade em O Ás do Azar, de C. Hedley Barker, e Vale Tudo, de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères O conto “O Ás do Azar” (1922), de C. Hedley Barker, e a telenovela “Vale Tudo” (1988), de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, embora separados por mais de meio século e por contextos socioculturais profundamente distintos, partilham um mesmo eixo temático: a tensão entre moralidade e desejo, azar e ambição, culpa e impunidade. Em ambos os casos, a narrativa funciona como um espelho da sociedade de sua época — um retrato moral, ainda que filtrado por diferentes tradições narrativas: o conto policial inglês e o melodrama televisivo brasileiro. Em Barker, a história é contida, precisa e moralmente cerrada. Herbert Dawlish, homem comum e respeitável, vê-se tragado por um momento de fraqueza: o vício do jogo e a perda financeira o conduzem, por impulso e desespero, ao assassinato. O “ás de espadas”, carta-símbolo do azar e do destino, torna-se ironicamente a prova de sua culpa. A narrativa, ao estilo dos contos de mistério ingleses do início do século XX, culmina na restauração da ordem moral: o crime é descoberto, o criminoso punido, e a sorte — travestida de ironia — cumpre seu papel de juíza. Já em Vale Tudo, a moral clássica é posta em xeque. O Brasil de fins dos anos 1980, atravessado pela crise ética e econômica, serve de palco para uma inversão: se em Barker o crime não compensa, em Braga e seus coautores ele pode compensar. A telenovela constrói uma verdadeira anatomia do país desigual, no qual honestidade e integridade parecem anacrônicas. Raquel, mulher trabalhadora e símbolo da ética, contrasta com sua filha Maria de Fátima, movida pela ambição e pelo oportunismo. O empresário Marco Aurélio encarna o cinismo triunfante: foge impune no final, zombando da justiça e do público, num gesto de desesperança moral. As duas obras, cada uma em sua gramática, giram em torno de uma mesma pergunta: o que o indivíduo faz quando o acaso — ou o sistema — lhe retira o controle do próprio destino? Herbert Dawlish aposta para escapar da miséria, e termina destruído por seu impulso. Os personagens de Vale Tudo apostam na esperteza, na manipulação e na aparência — e o sistema social, corrupto e desigual, parece recompensá-los. Em Barker, o castigo é imediato e individual; em Braga, ele é coletivo e difuso. O inglês ainda acredita na correção moral do mundo; o brasileiro, desiludido, apenas a observa ruir. Ambas as narrativas tratam, no fundo, de jogos — um literal, outro simbólico. Dawlish joga cartas, perde dinheiro, perde o controle e, por fim, perde a liberdade. Em Vale Tudo, joga-se com o poder, o status e a verdade: a sociedade inteira torna-se um cassino moral. O jogo, em ambos, é metáfora do risco e da transgressão. Mas enquanto Barker encerra seu conto com a vitória da lei, Braga e seus parceiros abrem sua telenovela com a derrota da ética. Há também um diálogo profundo na construção dos símbolos. O “ás de espadas” de Barker, carta do azar e da morte, tem em Vale Tudo o seu equivalente no dinheiro, o novo ás que comanda todas as cartas do jogo social. Ambos são signos de poder e perdição, instrumentos de desejo que revelam a corrupção moral dos indivíduos. Se Dawlish é punido porque trapaceou o destino, os personagens de Vale Tudo triunfam porque trapaceiam a sociedade — e ela os aplaude. Do ponto de vista da forma, Barker opera na lógica do conto de punição, típico da moral vitoriana tardia: há um erro, uma falta e uma consequência. Vale Tudo, ao contrário, representa o melodrama pós-moderno, em que a moralidade se dissolve nas tramas do capital e da imagem. O desfecho de Barker restabelece a ordem — o da telenovela, ao contrário, lança o espectador no desconforto: o vilão foge, e a pergunta que ecoa é a que se tornou célebre na cultura brasileira — “Vale a pena ser honesto?”. Ambos os textos, assim, convergem numa mesma reflexão sobre o desequilíbrio entre ética e sobrevivência. No universo britânico de Barker, ainda há fé na lei como mediadora da moral. No Brasil de Braga, essa fé se perdeu; a lei é apenas mais uma carta marcada. Dawlish, indivíduo moralmente derrotado, é a miniatura de um fracasso pessoal. Os personagens de Vale Tudo, coletivamente corrompidos, são o retrato de um fracasso civilizacional. Em última instância, O Ás do Azar e Vale Tudo narram a mesma tragédia: o instante em que o jogo, literal ou simbólico, substitui o valor — e a consciência, reduzida a uma carta ou a uma nota de dinheiro, revela o preço da alma humana. The Ace of Trouble by C.Hedley Barker 72 — O ÁS DO AZAR C. Hedley Barker (1894–? | Inglaterra) Sabe-se muito pouco sobre este aventureiro, que deixou sua York natal aos 12 anos para correr o mundo pelos mares. Acabou servindo na Marinha Britânica, na 1ª Guerra Mundial. Teve seu primeiro e único romance editado em 1922. Foi autor de cerca de quinhentos contos publicados em revistas do gênero. The Ace of Trouble tem um início que se nega ao suspense e um final simples e surpreendente. Devia ser insuportável para Herbert Dawlish o fato de que, se a garçonete não tivesse sido tão lenta em servi-lo, certamente ele não teria cometido aquele assassinato. Dawlish dispunha apenas de dez minutos e estava realmente com fome. Por isso, entrou apressado numa lanchonete e pediu uma xícara de chá e um pastel. E lá se foi a garçonete despreocupada e sem o mínimo de pressa transmitir o pedido enquanto Herbert Dawlish remexia-se no banco, nervoso e impaciente. Deve ter consultado o relógio pelo menos dez vezes no período de cinco minutos. Quando finalmente foi servido, tinha só dois minutos para engolir o lanche e apanhar o trem para Herne Bay. O trem logo ganhava velocidade. Dawlish segurou a maleta com força e saiu em desabalada carreira, já achando que se deveria dar por feliz, agora, se conseguisse entrar no trem, em qualquer vagão que fosse. Com um salto espetacular, alcançou o estribo do último vagão, em meio aos gritos dos funcionários da estrada de ferro. Ficou então uns segundos se equilibrando, ofegante, os pés juntos, para logo em seguida abrir a porta do carro e deixar-se cair no banco com um profundo suspiro de alívio. No banco em frente ao seu, viajava um homem de aparência vulgar, rebuscado no vestir, com um pequeno ferradura de ouro pregada na corrente do relógio de bolso. Trocou-se entre ambos as palavras de praxe que geralmente se usam nessas ocasiões: “...por um triz...”, “...tarde ou rápido na sua idade não é nada fácil...” e assim por diante. Começou ainda a lembrar uma outra situação semelhante, quando o protagonista, um tal Sam Briggs, não teve a mesma felicidade do que ele, Dawlish, e caiu entre o trem e a plataforma. E, para completar, acrescentou um macabro pós-escrito: — Foi uma coisa horrível! Nunca mais quero ver coisa igual! Herbert Dawlish, naquele momento tão distante quanto Júpiter da ideia de vir a cometer um crime, encarou o homem que, no entanto, ele iria matar. Não podia suportar por muito tempo pessoas falastronas e tolas, e aquele sujeito parecia ser um jogo de cartas acabado desses de gente. No entanto, ele consentiu em jogar uma partida. Dawlish esqueceu-se de tudo e deixou-se dominar pelo prazer do jogo. Tinha verdadeira paixão pelo jogo. — Um jogo, então? — disse, enfiando a mão no bolso. Seus dedos portavam algo frio e áspero, que ele tirou para fora com um sorriso embaraçado. Colocando ao lado uma pistola automática, disse em tom de brincadeira: — Sou mesmo um pistoleiro. Comprei a pistola hoje na cidade. O senhor entende, pertenço ao clube de tiro de Herne Bay e eles acabaram de criar um departamento de revólver. É o primeiro que possuo. O outro concordou com a cabeça. — Dá licença? — pegou a arma, examinando-a com olhos de especialista. — Muito bonitinha — foi o comentário. — Arma pesada, puxa vida! — Ah! Sim... Comprei também algumas balas. Se quiser essa arma... Está travada, veja... — Vamos jogar? Conhece o Soixante-dix? É o jogo ideal para duas pessoas. — Sua...? — Setenta, em outras palavras. É uma espécie de... — Ótimo, chefe! Vamos a ele. Setenta! Sim, é um jogo muito comum na França. Eu me lembro durante a guerra... — Quer cortar? Dawlish deu as cartas. — Quanto, a rodada? — falou baixo, envolvendo o outro num rápido olhar de análise. — Bem, cinco xelins... Que tal? Dawlish se surpreendeu. Era bem mais do que costumava apostar, mas calculou que bem poderia ganhar e, então, não seria nada mau... Deu as cartas de três em três e duas em duas. E o jogo começou. Não demorou muito para Herbert Dawlish perceber que aquele sujeito com ferradura na gravata não era um iniciante em matéria de baralho. Tinha o mesmo método elegante de embaralhar e das cartas dos jogadores profissionais. Lambia rapidamente os polegares, e as cartas escorregavam entre os dedos ágeis como se estivessem levemente lubrificadas. Dawlish começou a perder, mas não desanimou: queria ganhar. Cinco... dez... quinze... trinta e cinco... cinquenta... Acabou perdendo seis libras. Um rubor de tristeza surgiu nas maçãs do rosto. Procurou se refazer com um grande gole de uísque, da garrafa de bolso que sempre trazia consigo. Estalou a língua e concentrou-se novamente, com uma expressão sombria. Quando o trem chegou a Chatham, as seis libras tinham se transformado em quarenta e seis. Dawlish se ferrara de vez, mas continuava tentando recuperar o que perdera. Um temor lia-lhe a expressão, mas ainda tentava manter o controle. Era dia quatro, o aluguel ainda estava por ser pago, e tinha ainda outros compromissos que precisavam ser saldados com o dinheiro que acabara de perder. Quando chegou às setenta libras, Herbert Dawlish jogou o corpo para trás e enxugou com a mão trêmula o suor que lhe escorria pelo rosto. Estava perdido mal pago, e já não controlava os reflexos do canto da boca. Sua aparência, na verdade, não era das mais agradáveis. — Acho que não posso mais continuar... — murmurou. — Perdi até o último centavo que tinha... O adversário, que assobiava baixinho uma canção da moda, parou bruscamente, encarando Dawlish com uma expressão facial dura. — Verdade? — perguntou. — Azar seu, companheiro. Mas foi um bom joguinho, não foi? Pois é... são os ossos do ofício! — Escute — disse Dawlish, completamente humilhado —, sei que isso não se faz, que é pedir demais, mas... será que você poderia me dar esse dinheiro de volta? Só por enquanto, quer dizer, mais tarde eu lhe restituirei... Agora, por enquanto... hoje... eu... eu... O homem de aspecto vulgar encarava Dawlish com um olhar de muita surpresa. De repente, deu uma sonora gargalhada. — Ora, muito bem, cá está o seu rico! — disse. — Vou falar para a patroa quando chegar em casa. Ela vai escancarar os olhos. Não, companheiro. Nada feito. Não sou do Exército da Salvação. — Mas... me deve explicar — suplicou Dawlish, aflito. — O senhor não está compreendendo... É como se... — Ora, ora! Vamos colocar um ponto final nesta história, meu velho. Você não devia ter fugido da saia da babá, isso sim! Hei! que... — Levante os braços! — disse Dawlish, encarando-o com uma expressão feroz, e apontando a arma para ele. — Mãos ao alto! Até aquele momento, Dawlish não tinha a intenção de cometer crime algum. Apenas queria assustar o sujeito e fazer com que ele concordasse em lhe devolver pelo menos parte do dinheiro... Estava sem controle. Decididamente ele não podia voltar para casa, encarar a esposa e contar a ela a história das setenta libras perdidas. Mas armas de fogo são coisas perigosas para se brincar com elas. O homem contraiu as sobrancelhas, semicerrando os olhos, e deu um rápido e inesperado pulo para o lado, ao mesmo tempo em que Dawlish, surpreso ou assustado, fechou os olhos e apertou o gatilho. A morte às vezes é chocantemente rápida e inesperada. Em poucos segundos, Dawlish tinha à sua lealdade um cadáver, que se despencou no chão como um saco vazio. Bem no meio da testa, um horrível buraco azulado... Fazendo um enorme esforço em relação a si mesmo, Dawlish obrigou-se a reagir imediatamente e pensar em como sair daquela situação. Resolveu então jogar o corpo para fora do trem, mas ao perceber o relógio de pulso da vítima teve uma ideia. Atrasou os ponteiros para as cinco e vinte e cinco. Achou que assim poderiam pensar que o relógio tivesse parado com o baque do corpo na estrada. E um relógio marcando cinco e vinte e cinco (a menos que encontrassem o cadáver imediatamente) poderia sugerir que tivesse caído de um trem anterior àquele. Assim sendo, abriu a porta do vagão, olhou com cuidado para ambos os lados e, com o trem numa velocidade de mais de quarenta milhas por hora, atirou para fora os restos do homem de aparência vulgar e rebuscado no vestir. No dia seguinte, Venner, o homem da Scotland Yard, estava no trem das oito e quarenta, em direção à cidade. Ele e mais dois outros receberam Dawlish, gritando os gracejos de sempre. Havia dez anos, os quatro jogavam cartas durante o trajeto, todos os dias menos nos fins de semana e feriados. — Venha logo pra cá, seu tratante... Onde está o baralho? — gritaram para Dawlish. — E onde é que você se meteu ontem à noite, na volta? — Acabei me atrasando — disse Dawlish. — Precisei correr para alcançar o trem. Vocês leram nos jornais? O assassinato no trem das cinco e dez? Smith, que já embaralhava as cartas de Dawlish, concordou com a cabeça. — O pobre coitado estava todo arrebentado — disse ele. — O rosto completamente desfigurado, dizem. Imagino que nem teve tempo de sentir nada. Você soube alguma coisa a mais sobre o caso, Venner, além do que saiu nos jornais? Venner esboçou um breve sorriso. — Ouvi o suficiente — disse ele —, mas não posso falar. E vi o corpo, cerca de duas ou três horas depois do crime. Eles o trouxeram de carro, de Herne Bay. — Escute aqui, velho Dawlish — falou Smith —, este baralho não está completo. Está faltando o ás do azar. Smith costumava chamar o ás de espadas de ás do azar porque espadas sempre significavam aborrecimento, na linguagem das cartomantes. — Acho que ficou no meu bolso — disse Dawlish. Mas sentiu seu corpo todo gelar quando viu o olhar repentinamente sério do policial que acompanhava sua inútil busca, mais ainda quando Venner tirou uma carta do próprio bolso e disse: — Não. Aqui está ele, a menos que eu esteja enganado. Pousou o ás de espadas em cima da mesinha... e era o ás que faltava no baralho de Dawlish. — É mesmo, por Júpiter! Aqui está ele — disse Smith. — Com os diabos, como conseguiu tirá-lo, seu velho trapaceiro? Venner olhou firmemente para Dawlish e levantou-se. Em seguida, segurou-o pelo braço. — Dawlish — disse ele —, isso me dói como ferro em brasa, mas preciso fazê-lo. Você está preso. Este ás de espadas foi encontrado na manga do paletó do sujeito assassinado. Tradução de Alves Moreira.

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