Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
quarta-feira, 20 de agosto de 2025
Na Subida do Morro: violência, humor e malandragem no samba
-
Geraldo Pereira: na subida do morro
Bolinha de Papel
João Gilberto
Composição: Geraldo Pereira
Existem sambistas conhecidos por seu lirismo e delicadeza das palavras, como Cartola. Outros pela inovação, como Baden Powell e seus afrosambas. Há ainda os contestadores, sendo Zé Kéti um dos principais representantes. Mas, na categoria “malandro” – daqueles que daria medo se topasse na rua – ninguém bate Geraldo Pereira. Dono de uma malandragem até dizer chega, de origem suburbana, tipo mal-encarado, Geraldo fez os sambas mais sensacionais da primeira metade do século 20 e que, até hoje, são regravados por muita gente boa.
Na obra do Geraldo não há espaço pro amor romântico, pras belezas da cidade maravilhosa ou pro brilho da lua. Ele é objetivo, preciso e mordaz. Uma das suas músicas mais significativas é “Sem Compromisso” (gravada magistralmente por João Gilberto), em que ele descreve um ataque de ciúme que qualquer cidadão de bem já teve ao ver sua amada dançando – e dançando feliz – com outro cara:
“Você só dança com ele, diz que é sem compromisso. É bom acabar com isso, não sou nenhum pai João. Quem trouxe você fui eu, não faça papel de louca, pra não haver bate-boca dentro do salão”.
Acredito que ele queria ser romântico, só não nasceu com essa habilidade. Em “Bolinha de papel” até que ele começa direitinho:
“Só tenho medo da falseta, mas adoro a Julieta como adoro a Papai do Céu. Quero seu amor, minha santinha, mas só não quero que me faça de bolinha de papel”.
Mas aí, caso a Julieta não ceda aos seus apelos, ele esquece o romantismo e apela pruma coisa que as mulheres – e os homens também, claro – adoram:
“Tiro você do emprego, dou-lhe amor e sossego. Vou ao banco e tiro tudo pra você gastar. Posso, ó Julieta, lhe mostrar a caderneta se você duvidar”.
E ele arriscou ser romântico novamente em “Escurinha”. Mais uma vez, Geraldo dá “bons motivos” pra ser aceito:
“Escurinha, tu tens que ser minha de qualquer maneira. Te dou meu boteco, te dou meu barraco que eu tenho no morro de Mangueira”.
Sensacional!
Ele podia tirar tudo da caderneta pela mulher que ama, dar o boteco, o barraco, mas, se a mulher pisar na bola, o romantismo se evaporava. E “pisar na bola” significava simplesmente ir ao baile sem avisa-lo!, como na letra de “Acabou a sopa”:
“Essa não é a primeira vez que você me aborrece e depois, com cara de santa, me aparece pedindo perdão. Sem me pedir foi ao baile, isso não se faz. Eu vou lhe mandar embora para nunca mais”.
De todas as suas músicas, a mais representativa do “Geraldo Pereira’s way of life” é “Na Subida do Morro”. Por ter sido vendida ao Moreira da Silva, por ser um samba de breque malandríssimo, mas principalmente pela letra, que vale a pena ser colocada na íntegra:
Na subida do morro me contaram
Que você bateu na minha nega
Isso não é direito
Bater numa mulher
Que não é sua
Deixou a nega quase crua
No meio da rua
A nega quase que virou presunto
Eu não gostei daquele assunto
Hoje venho resolvido
Vou lhe mandar para a cidade
De pé junto
Vou lhe tornar em um defunto
Você mesmo sabe
Que eu já fui um malandro malvado
Somente estou regenerado
Cheio de malícia
Dei trabalho à polícia
Pra cachorro
Dei até no dono do morro
Mas nunca abusei
De uma mulher
Que fosse de um amigo
Agora me zanguei consigo
Hoje venho animado
A lhe deixar todo cortado
Vou dar-lhe um castigo
Meto-lhe o aço no abdômen
E tiro fora o seu umbigo
Vocês não se afobem
Que o homem dessa vez
Não vai morrer
Se ele voltar dou pra valer
Vocês botem terra nesse sangue
Não é guerra, é brincadeira
Vou desguiando na carreira
A justa já vem
E vocês digam
Que estou me aprontando
Enquanto eu vou me desguiando
Vocês vão ao distrito
Ao delerusca se desculpando
Foi um malandro apaixonado
Que acabou se suicidando.
Um cara desse não podia ter um fim mais coerente. Segundo dizem, ele teria morrido após uma briga, em frente aos arcos da Lapa, com o lendário Madame Satã. Teria tomado um soco e, ao cair, batido a cabeça no meio-fio. No hospital, pouco antes de morrer, ele disse ao grande sambista Cyro Monteiro, que gravou suas principais músicas, que estava preparando uma outra letra pra “Escurinho”, na qual o personagem da música se regeneraria (a letra original é: “Escurinho era um escuro direitinho, que agora está com uma mania de brigão. Parece praga de madrinha ou macumba de alguma escurinha que lhe fez ingratidão”). Mas um escurinho morreu antes de regenerar o outro.
O samba de malandro e seu contexto
O MEU LUGAR
por Bruno Hoffmann
Escurinho
Cyro Monteiro
Composição: Geraldo Pereira
Entre as décadas de 1930 e 1950, o samba de malandro tornou-se um dos grandes símbolos da vida popular carioca. Mais do que música, era a representação de um arquétipo: o homem da boemia, das ruas, do jogo e da esperteza, que transitava entre a marginalidade e a sedução. Essa figura, ora temida, ora folclorizada, ganhou voz em compositores como Geraldo Pereira, Wilson Batista, Noel Rosa e Moreira da Silva.
O samba Na Subida do Morro (Geraldo Pereira, Moreira da Silva e Ribeiro Cunha), lançado nos anos 1940 e imortalizado na voz de Marlene, é um exemplo emblemático. Nele, o narrador descobre que outro malandro agrediu sua companheira — algo inaceitável dentro do “código de honra” da malandragem. A reação é imediata: a promessa de vingança violenta.
A poética da malandragem
A letra é construída como uma narrativa teatralizada:
A agressão contra a mulher dispara o conflito.
As imagens de violência são fortes (“meter o aço no abdômen”, “tirar fora o teu umbigo”), mas soam quase caricaturais.
O humor alivia a tensão (“não é guerra, é brincadeira”), reforçando o tom farsesco típico desse subgênero.
O final é engenhoso: para escapar da polícia, o narrador pede que espalhem que “foi um malandro apaixonado que acabou se suicidando” — um golpe de esperteza discursiva.
O resultado é um samba que mistura crônica do morro, ameaça e comicidade, reafirmando a teatralidade da malandragem carioca.
Atualidade e anacronismo
Hoje, a letra soa paradoxal:
Anacrônica, porque naturaliza a violência, reduz a mulher a um objeto de honra masculina e a utiliza como gatilho narrativo, sem voz própria.
Atual, porque expõe códigos de masculinidade e estruturas de violência que, de outra forma, continuam a ecoar na sociedade. O samba, portanto, funciona como testemunho cultural de uma época e como alerta sobre permanências incômodas.
A força de Marlene
Mas há um detalhe crucial: Na Subida do Morro foi eternizado na voz de Marlene, cantora e atriz que dominou o rádio brasileiro. Quando uma mulher interpreta a persona do malandro, algo se transforma:
O discurso violento, vindo de uma voz feminina, ganha contornos de paródia e ironia.
A teatralidade se intensifica, sublinhando que se trata de uma performance e não de uma confissão literal.
A ambiguidade de gênero quebra expectativas da época, deslocando o samba de um universo exclusivamente masculino para a interpretação de uma artista que também era símbolo de modernidade e ousadia.
Assim, o que poderia ser apenas mais um relato da malandragem violenta se converte, na boca de Marlene, em espetáculo: a agressividade se mistura à sátira, e a canção se ressignifica.
Para ouvir e ler
👉 Confira a letra completa:
("Na Subida do Morro Marlene Na subida do morro me contaram Que você bateu na minha nega Isso não é direito Bater numa mulher que não é sua Deixou a nega quase nua No meio da rua A nega quase que virou presunto Eu não gostei daquele assunto Hoje venho resolvido Vou lhe mandar para a cidade de pé junto Vou lhe tornar em um defunto Você mesmo sabe Que eu já fui um malandro malvado Somente estou regenerado Cheio de malícia Dei trabalho à polícia pra cachorro Dei até no dono do morro Mas nunca abusei De uma mulher que fosse de um amigo Agora me zanguei consigo Hoje venho animado A lhe deixar todo cortado Vou dar-lhe um castigo Meto-lhe o aço no abdômen E tiro fora o teu umbigo Vocês não se afobem Que o homem desta vez não vai morrer Se ele voltar dou pra valer Vocês botem terra neste sangue Não é guerra, é brincadeira Vou desguiando na carreira A justa já vem E vocês digam que eu estou me aprontando Enquanto eu vou me desguiando Vocês vão ao distrito Ao delerusca se desculpando Foi um malandro apaixonado Que acabou se suicidando Composição: Geraldo Pereira / Moreira da Silva / Ribeiro Cunha")
👉 E ouça na interpretação de Marlene:
Conclusão
Na Subida do Morro é ao mesmo tempo documento e espetáculo. Documento, porque registra com crueza o imaginário da malandragem dos anos 1940. Espetáculo, porque sua encenação — especialmente na voz feminina de Marlene — transforma violência em teatralidade, e honra em humor. Um samba que continua a provocar leituras, sejam críticas, históricas ou estéticas.
Assinar:
Postar comentários (Atom)

Nenhum comentário:
Postar um comentário