Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
domingo, 24 de agosto de 2025
Entre Morros e Profecias: Gratidão, Memória e Esperança do Castelo ao Morro da Glória
"A gratidão de quem recebe um benefício é sempre menor que o prazer daquele que o faz."
(Machado de Assis, Histórias Românticas)
domingo, 24 de agosto de 2025
Sísifo entre nós, por Luiz Sérgio Henriques*
O Estado de S. Paulo
A ascensão chinesa – e da Ásia, mais generalizadamente – é um destes fenômenos que dão forma a toda uma época ‘histórico-universal’
Grande e terrível, e complicado, parecia o mundo aos olhos dos nossos avós há cem anos ou pouco mais. Era uma época de democracias liberais em retirada, de fascismos aparentemente irresistíveis e de um comunismo primitivo com características rigidamente estatistas. Apesar de tudo, os que mantiveram a lucidez em meio ao caos puderam achar gradualmente um fio condutor. Em última análise, e não sem conflitos ásperos, havia um fundo comum – iluminista – entre as democracias liberais e o comunismo soviético, com todas as suas falhas e mesmo os seus crimes fartamente conhecidos.
De fato, a destruição da razão, total e inapelável, era a marca dos fascismos: contra estes deveriam unir-se todos os demais para travar o que então se chamaria a mais justa das guerras. Os otimistas julgavam que se atravessava uma fase de “interregno”, passada a qual a razão iluminista acabaria por se impor, fosse qual fosse o futuro modelo de sociedade ou a forma de Estado. E, de fato, uma parte desse otimismo se materializaria no imediato pós-guerra, com a construção do sistema das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma espécie de atestado, obtido em meio a sacrifícios gigantescos, de que o progresso moral é afinal coisa deste mundo.
A ordem internacional então nascida teve a óbvia direção norte-americana. A URSS e o campo socialista, presos ao modelo original, nunca abandonaram a posição defensiva e a mentalidade de cerco – com a nefasta e permanente compressão interna das liberdades. No clima da guerra fria, a “guerra civil das ideologias” – capitalismo ou comunismo – constituiria o dado negativo a enrijecer corações, vontades e mentes. Mas o “interregno” parecia desembocar em boas novidades, como comprovado pelas quase quatro décadas gloriosas da social-democracia e pela continuidade do experimento rooseveltiano no outro lado do Atlântico.
Em rápidas palavras, o que acima descrevemos foi o nosso “mundo de ontem”, para retomar uma expressão irreparavelmente nostálgica de Stefan Zweig a propósito de um outro tempo, o que terminara em agosto de 1914. Dele nos separa, para sempre, o colapso de uma das duas superpotências, a afirmação e a crise subsequente da supremacia norteamericana, bem como, e muito especialmente, a ascensão da China nominalmente comunista no quadro de uma globalização que parecia caminhar por si só.
Menos felizes do que nossos avós, sequer temos a certeza de algum futuro luminoso, passado o atual “interregno” ou superadas as dores do parto. Do próprio coração do Ocidente político vem a mensagem inesperada – a mais antiga democracia dos modernos declina de sua prévia função hegemônica e, para enfrentar o enigma chinês, afirma cruamente o próprio interesse bruto. Seu horizonte agora é “corporativo”, suas atitudes oscilam entre o espírito dito transacional e o puramente predatório. E as ideias para uma ordem mais universalista simplesmente definharam.
Para cada uma das nações “ocidentais”, entre elas a nossa, a recomendação é igualmente seca – e inaceitável. Encharcado de ideologia reacionária, o vice-presidente americano, J.D. Vance, ainda recentemente advertiu os ex-aliados europeus de que o “inimigo principal” era interno e morava dentro de cada um deles mesmos, a saber, a democracia constitucionalmente organizada e a sociedade civil aberta e plural. O remédio para os males contemporâneos consistiria em abandonar tais concepções e deixar livre a fúria destruidora das correntes nacional-populistas, inclusive as que, como na Alemanha, reatualizam ritos e símbolos de um passado mais que imperfeito.
Não sendo o trumpismo um breve parêntese e estando longe de esgotar seu espírito de conquista, a solução mais fácil para muitos, até para a esquerda, é saudar sem espírito crítico o nascente desafio chinês, quando não acorrentar-se à distopia de Putin, esta última com os pés plantados na eslavofilia e a cabeça imersa no sonho imperial.
A ascensão chinesa – e da Ásia, mais generalizadamente – é um destes fenômenos que dão forma a toda uma época “histórico-universal”. A globalização seria essencialmente neoliberal, dizíamos antes com dose maior ou menor de veneno; talvez agora devamos dizer que, na verdade, era chinesa. Rótulos à parte, o certo é que a exitosa China sacrifica inflexivelmente uma das pontas do conhecido trilema formulado pelo economista Dani Rodrik: soberana e participante da globalização, ela esmaga a democracia política da qual os “ocidentais” não podemos abrir mão sem nos desfigurarmos existencialmente.
Tanto quanto nos anos 1930, os neoiluministas estão na defensiva, resistindo a duras penas ao poderio e ao canto da sereia das autocracias. Submetidos como fomos às “duras réplicas da História”, para o bem e para o mal perdemos para sempre a crença ingênua em amanhãs radiosos. A única coisa que podemos prever, sem possibilidade de erro, é que haverá luta – e muito provavelmente será conveniente assumir a ética do Sísifo camusiano, acostumando-nos à felicidade só possível numa luta que recomeça a cada dia.
*Tradutor e ensaísta, é coeditor das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
sábado, 23 de agosto de 2025
Organização das Nações Desunidas, por Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back
O longo percurso da decadência geopolítica no período entre a reunião de Ialta e a encenação em Anchorage
As coisas mudam superficialmente, mas continuam iguais. Não é questão de saudosismo, mas de averiguar os comportamentos dos participantes das reuniões ocorridas no Alasca, neste 2025, e em Ialta, nos idos de 1945, e avaliar seus propósitos e resultados. Nesses tempos sombrios, quado se questiona até o valor de se aprender História, as indagações de internautas e influencers são sintomáticas: Para que serve? Onde se compra? Dá para monetizar? Não dá, não tem valor, utilidade. Vence a narrativa, as mil caras, bocas e gestos, a superficialidade, o raso. Como diz a música Brain Damage, os lunáticos estão em Anchorage, no Alasca. Putin and Trump.
A menosprezada e maltratada história ensina, porém, que já foi diferente. Entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, a conferência de Ialta reuniu Josef Stalin, representando a União Soviética, Winston Churchill, representando o Império Britânico, e o artífice do encontro, Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, que sairia como grande vencedor da Segunda Guerra Mundial, juntamente com os soviéticos. Muitas fotos dos três sentados um ao lado do outro que ultrapassaram o marketing pessoal e trouxeram soluções, metas para alcançar a paz. O ponto principal foi definido: discutir o futuro da Europa e do mundo com a derrota iminente poucos meses depois da Alemanha nazista. Diferentemente da cúpula do Alasca, marcada por muitas selfies, muito show, poucos resultados ou nenhum. The show must go on. A guerra Rússia e Ucrânia não só continua, como Trump não conseguiu nada de Putin.
Em Ialta, sob a batuta de Roosevelt e concordância de Stalin e Churchill, iria avançar a criação da Organização das Nações Unidas com a missão de garantir a paz e a segurança internacionais. Em Anchorage, sob a batuta de Trump e discordância de Putin, sai a criação da Organização das Nações Desunidas, com a missão de dividir para reinar. No ocaso do império norte-americano, o Calígula Laranja, sentado no Salão Oval da Casa Branca, dispara ameaças na linha “eu mando, você obedece”. Mas, tudo indica, nosso estagiário do segundo escalão da KGB, a antiga e temida agência de espionagem soviética, não está nem aí, muito ao contrário, ameaça. Essa cúpula está mais para cópula, desculpem o trocadilho. Como diz o ditado popular: desse mato não sai cachorro.
A diferença entre as conferências não está apenas abrigada nas propostas debatidas, mas exige considerações sobre quem lidera e conduz. Em Ialta, Roosevelt. No Alasca, supostamente Trump.
Vamos entregar Trump a seus devaneios e seguir o historiador Michael Dobbs. No livro Seis Meses de 1945, Dobbs faz uma narrativa profunda e cuidadosa da preparação da reunião de Ialta e dos episódios mais expressivos do conclave.
Pedimos desculpas pela longa citação de Dobbs: “Os Três Grandes (Roosevelt, Stalin e Churchill) reuniram-se para sua derradeira sessão plenária no domingo, 11 de fevereiro, no salão de baile do Palácio Livadia. Uma pilha de documentos estava sobre a mesa, diante de cada um deles. Os líderes começaram a folheá-los, seção por seção, examinando atentamente o vocabulário empregado. Churchill, que se orgulhava de seu estilo literário, fez restrições à quantidade de americanismos no comunicado final. “Há um excesso de joints (conjuntos)”, reclamou, indicando uma sentença sobre “nossos planos militares conjuntos”. Ele preferia “nossos planos militares combinados”. Para um inglês, a palavra joint lembrava “a família reunida no domingo para comer carneiro assado”. Chegou-se a um acordo com “os planos militares das três potências aliadas”.
O historiador prossegue: “Roosevelt e Stalin não estavam dispostos a discutir escaramuças. Cada um dava um jeito de se adequar à linguagem do outro para aprovar as passagens mais substanciais do texto. OK, disse rindo bastante Stalin, num inglês macarrônico de sotaque carregado. Khorosho, concordou Frank Delano, num russo americanizado. Houve um debate bem-humorado sobre quem deveria assinar o comunicado primeiro. Churchill reivindicou para si o privilégio, com base na ordem alfabética e na idade. Para Stalin, isso não era problema algum, já que preferia ser o último a assinar. ‘Se a assinatura de Stalin for a primeira, as pessoas dirão que ele comandou a discussão.’ Roosevelt deixou que os dois outros fizessem como queriam, concordando em assinar em segundo lugar”.
Roosevelt enfrentou com coragem e sabedoria a Grande Depressão. Em seu discurso de 1936, proferido na campanha para a primeira reeleição, desferiu ataques aos poderes da oligarquia, poderes que precipitaram a crise de 1929. “Mais da metade da riqueza corporativa do país estava sob o controle de menos de 200 grandes corporações. Isso não é tudo. Essas grandes corporações, em alguns casos, nem tentaram competir entre si”, afirmou. “Eles próprios estavam ligados por diretores, banqueiros e advogados interligados. Essa concentração de riqueza e poder foi construída sobre o dinheiro de outras pessoas, os negócios de outras pessoas, o trabalho de outras pessoas. Sob essa concentração, os negócios independentes só podiam existir por sofrimento. Tem sido uma ameaça ao sistema social, bem como ao sistema econômico que chamamos de democracia americana.”
Roosevelt dizia que a moderna civilização, depois de demolir as velhas dinastias, erigiu outras. “Novos impérios foram construídos a partir do controle das forças materiais. Mediante o novo uso das corporações, dos bancos e da riqueza financeira, da nova maquinaria da indústria e da agricultura, do trabalho e do capital – nada disso sonhado pelos fundadores da pátria –, a estrutura da vida moderna foi totalmente convertida ao serviço da nova realeza. Não havia lugar nos seios da nova nobreza para abrigar os milhares de pequenos negócios e comerciantes que desejavam fazer um uso sadio do sistema americano de livre-iniciativa e busca do lucro… Sedentas de poder, elas se lançaram ao controle do governo. Criaram um novo despotismo envolvido nas roupagens da legalidade. Mercenários a seu serviço trataram de submeter o povo, seu trabalho e sua propriedade.”
A Conferência de Ialta promoveu o acordo para estabelecimento das Nações Unidas, por insistência de Roosevelt. Embora tivesse apenas alguns meses de vida, Roosevelt demonstrou determinação absoluta de criar as Nações Unidas como um baluarte para a paz futura. Na era Trump, a nova finança e as big techs assumiram o controle do Estado, sob o patrocínio da Organização das Nações Desunidas.
Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.
PEDRAS, VIDAS E DESTINOS: DO MORRO DA GRATIDÃO À ROMA LIBERTADA
Um ensaio sobre fé, memória e universalidade entre Brasil e mundo
1. Morro da Gratidão → Morro da Glória (Juiz de Fora, MG)
No fim do século XIX, em Juiz de Fora, um morro chamado Morro da Gratidão passou a ser conhecido como Morro da Glória. Foi ali que os redentoristas, liderados pelo Pe. Geraldo Schrauwen, ergueram seu primeiro convento no Brasil (1894).
Na parede, uma inscrição latina —
“ME POSUIT EXSULTANS AEDIFICII CAPUT. G. SCHRAUWEN.” —
trazia em letras vermelhas um cronograma oculto: MDCCCXCIV = 1894.
Ali, espiritualidade e arquitetura se uniram em pedra e palavra, fixando um marco da missão redentorista no país.
📸 Sugestão de imagem: Fotografia atual do Morro da Glória em Juiz de Fora, mostrando a igreja redentorista.
2. Morro do Castelo (Rio de Janeiro, RJ)
No romance Esaú e Jacó (1904), Machado de Assis descreve a visita de Natividade e sua irmã Perpétua a uma vidente no Morro do Castelo.
O Castelo, berço da cidade (fundado em 1567), já era então símbolo da mistura entre fé popular e história oficial. Mas no início do século XX, foi demolido, apagado da paisagem em nome da modernidade.
Mesmo derrubado, sobreviveu pela literatura machadiana e pelo imaginário carioca.
📸 Sugestão de imagem: Fotografia ou gravura do Morro do Castelo antes da demolição (c. 1900).
CENTRO DO RIO EM 1852 E MORRO DO CASTELO
Série “O Rio de Janeiro desaparecido” VIII – A demolição do Morro do Castelo
3. Roma, 1948 — Ladrões de Bicicleta
Na Itália do pós-guerra, o cineasta Vittorio De Sica eternizou a miséria e a esperança em Ladrões de Bicicleta.
Numa das cenas mais pungentes, o protagonista Antonio consulta uma vidente sobre a bicicleta roubada, única fonte de sustento da família.
Roma, cidade aberta e eterna, aparece devastada mas viva — palco do sofrimento humano universal.
Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, filme completo em 720p - ative as legendas
📸 Sugestão de imagem: Cena da cartomante em Ladrões de Bicicleta (De Sica, 1948).
4. Os pracinhas brasileiros: dos morros à libertação de Roma
Entre a vidente carioca e a vidente romana, há um elo histórico real: os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB).
Vindos de morros e colinas do Brasil, atravessaram o Atlântico e combateram nas montanhas da Itália. Foram decisivos na tomada de Monte Castelo e participaram da libertação de cidades que permitiram a reabertura da vida democrática e cultural na Europa.
Memorial da Democracia - FEB conquista o monte Castelo
📸 Sugestão de imagem: Fotografia dos pracinhas brasileiros em Monte Castelo, 1945.
5. Síntese: pedras e esperanças universais
No Morro da Gratidão/Glória, uma pedra fala em latim, ocultando a data da chegada redentorista.
No Morro do Castelo, Machado fez falar uma vidente, prenunciando destinos incertos da República.
Em Roma, uma vidente neorrealista dá voz ao desespero do povo anônimo após a guerra.
No front italiano, soldados brasileiros vindos de morros distantes ajudam a libertar Roma — tornando possível o renascimento da própria cultura que De Sica registrou.
✨ Conclusão editorial
Pedras e colinas, videntes e soldados: em Juiz de Fora, no Rio de Janeiro e em Roma, a humanidade busca sinais diante do desconhecido. Sejam inscrições em pedra, palavras de cartomantes ou gestos de libertação, todos revelam a mesma trama universal: a esperança que resiste entre fé, história e transformação urbana.
Da pedra fundamental da Glória ao cinema neorrealista da Itália, passando pelos morros cariocas e pelos montes da Toscana, o Brasil inscreveu sua presença no mundo não apenas com armas ou igrejas, mas com a memória viva de que a fé e a cultura caminham juntas na construção da liberdade.
domingo, 24 de agosto de 2025
Obras sobre ditadores ganham destaque em momento de instabilidade na América Latina, por Sylvia Colombo
Folha de S. Paulo
Livros ensinam que autoritarismo na região é engrenagem cultural que se reinventa em diferentes épocas
Houve uma época em que se consolidou na América Latina uma tradição literária peculiar: a dos chamados "romances de ditador". Não foram poucos os escritores que se deixaram fascinar (e assombrar, às vezes, ao mesmo tempo) pelo vínculo cultural e político que se estabelecia entre povos inteiros e líderes carismáticos, temidos e venerados.
Entre as obras mais destacadas desse ciclo está "O Senhor Presidente" (1946, ed. Mundareu), do Nobel guatemalteco Miguel Ángel Asturias. Nela, a brutalidade de um regime repressivo é narrada a partir da história de uma pessoa em situação de rua que, sem querer, causa a morte de um coronel.
O nome do país e do ditador não são ditas de modo explícito, mas tudo leva a crer que se trata do regime de Manuel Estrada Cabrera, que governou a Guatemala com mão de ferro de 1898 a 1920, com uma série de eleições fraudulentas.
Outras obras fundamentais dessa tradição são: "Eu o Supremo" (1974, ed. Pinard), do paraguaio Augusto Roa Bastos, e "A Festa do Bode" (2000, ed.Mandarin), do peruano Mario Vargas Llosa, outro Nobel.
No primeiro, Roa Bastos mergulha na figura de José Gaspar Rodríguez de Francia, que governou o Paraguai de 1814 a 1840 de modo isolacionista para se defender de vizinhos poderosos. Transformou-se em alegoria do poder absoluto na região.
Já Vargas Llosa decidiu reconstruir a era de Rafael Trujillo, ditador da República Dominicana de 1930 a 1938 e de 1942 a 1952, tendo ainda governado de modo indireto nos períodos de 1938 a 1942 e de 1952 a 1961, usando líderes que ele mesmo colocava no poder e manipulava.
Seu regime é responsabilizado por dezenas de milhares de mortes. Inimigos políticos eram atirados no mar.
Cinco décadas atrás, a esse cânone se juntaria sua obra mais importante: "O Outono do Patriarca (1975, Record), do mais célebre entre os Nobel da região, Gabriel García Márquez.
A obra é a mais ousada dessas novelas. Ao contrário das que se apoiavam em figuras históricas reais, Gabo, como Gabriel García Márquez também é conhecido, construiu um ditador arquetípico, sem nome e feito de pedaços de muitos outros. Um general eterno, que morre e ressuscita, que governa um país fictício, imóvel num tempo circular. É a ficção levada ao limite para mostrar que o autoritarismo não é só um regime, mas uma atmosfera que envenena a linguagem, a memória e o futuro.
Esses livros mostram como a literatura foi capaz de decifrar as patologias políticas do continente. Asturias revelou a sombra paranoica de Estrada Cabrera; Roa Bastos mostrou como Francia esteve presente no defensivismo paraguaio desde então; Vargas Llosa desnudou o trauma de Trujillo; García Márquez inventou o ditador eterno.
Todos, à sua maneira, demonstraram que o autoritarismo latino-americano é mais do que uma sucessão de governos: é uma engrenagem cultural que se reinventa em diferentes épocas.
Em tempos em que líderes personalistas continuam a ameaçar a democracia —Bukele, Ortega, Bolsonaro, Evo Morales, Rafael Correa e Daniel Noboa, entre outros—, o cinquentenário de "O Outono do Patriarca" ganha relevância.
Ele nos lembra que líderes que podem encantar e seduzir são muitos e estão sempre prestes a aparecer. Só não podemos dizer que não fomos avisados.
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