quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Construindo o Estado de Direito entre narrativas, símbolos e anistias

OSPA 2024 - 15/9 - Beethoven IX A democracia não se sustenta apenas em leis, votos ou tribunais; ela depende de como a sociedade interpreta a realidade, das narrativas que abraça e dos símbolos que internaliza. Como observa Wilson Gomes, certas construções políticas — como a crença na “ditadura de toga” — funcionam como arma psicológica: um mecanismo de simplificação moral que transforma frustrações eleitorais e derrotas institucionais em inimigos claros, permitindo que ataques antidemocráticos sejam percebidos como legítimos. Alexandre de Moraes, nesse enredo, deixa de ser apenas um magistrado para encarnar o poder judiciário que ameaça um grupo, conferindo à narrativa uma força mobilizadora quase mágica, capaz de reorganizar percepções e comportamentos. 05/05/2007 - 10h41 Leia o poema "If", de Rudyard Kipling; tradução de Guilherme de Almeida da Folha de S.Paulo Leia abaixo o poema "If", de Rudyard Kipling, em tradução de Guilherme de Almeida. Eram os versos preferidos do publisher do Grupo Folha, Octavio Frias de Oliveira, que morreu na tarde do último dia 29 de abril, em São Paulo, aos 94 anos: "IF" (SE...) YouTube · Silvio Matos · 19 de mar. de 2019 Se Se és capaz de manter a tua calma quando Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa; De crer em ti quando estão todos duvidando, E para esses no entanto achar uma desculpa; Se és capaz de esperar sem te desesperares, Ou, enganado, não mentir ao mentiroso, Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares, E não parecer bom demais, nem pretensioso; Se és capaz de pensar --sem que a isso só te atires, De sonhar --sem fazer dos sonhos teus senhores. Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires Tratar da mesma forma a esses dois impostores; Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas Em armadilhas as verdades que disseste, E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas, E refazê-las com o bem pouco que te reste; Se és capaz de arriscar numa única parada Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida, E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, Resignado, tornar ao ponto de partida; De forçar coração, nervos, músculos, tudo A dar seja o que for que neles ainda existe, E a persistir assim quando, exaustos, contudo Resta a vontade em ti que ainda ordena: "Persiste!"; Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes E, entre reis, não perder a naturalidade, E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes, Se a todos podes ser de alguma utilidade, E se és capaz de dar, segundo por segundo, Ao minuto fatal todo o valor e brilho, Tua é a terra com tudo o que existe no mundo E o que mais --tu serás um homem, ó meu filho! If by Rudyard Kipling - Read by Sir Michael Caine If If you can keep your head when all about you Are losing theirs and blaming it on you, If you can trust yourself when all men doubt you But make allowance for their doubting too, If you can wait and not be tired by waiting, Or being lied about, don't deal in lies, Or being hated, don't give way to hating, And yet don't look too good, nor talk too wise; If you can dream--and not make dreams your master, If you can think--and not make thoughts your aim; If you can meet with Triumph and Disaster And treat those two impostors just the same; If you can bear to hear the truth you've spoken Twisted by knaves to make a trap for fools, Or watch the things you gave your life to, broken, And stoop and build 'em up with worn-out tools; If you can make one heap of all your winnings And risk it all on one turn of pitch-and-toss, And lose, and start again at your beginnings And never breath a word about your loss; If you can force your heart and nerve and sinew To serve your turn long after they are gone, And so hold on when there is nothing in you Except the Will which says to them: "Hold on!" If you can talk with crowds and keep your virtue, Or walk with kings --nor lose the common touch, If neither foes nor loving friends can hurt you; If all men count with you, but none too much, If you can fill the unforgiving minute With sixty seconds' worth of distance run, Yours is the Earth and everything that's in it, And --which is more-- you'll be a Man, my son!
Paulo Baía complementa essa análise ao lembrar que a política não se joga apenas nos fatos ou nas decisões judiciais; ela é também disputa simbólica e afetiva. Cada bandeira, música, gesto ou imagem carrega uma carga emocional capaz de moldar crenças, desejos e identidades. A extrema-direita, ao dominar esse terreno, cria uma percepção de inevitabilidade e pertencimento que repele argumentos racionais e refuta a contestação factual. A resistência que ignora essa dimensão simbólica corre o risco de permanecer irrelevante, pois a disputa pelo imaginário coletivo é, de fato, uma batalha decisiva para o futuro da democracia. Elio Gaspari, por sua vez, nos adverte sobre as consequências práticas dessas disputas narrativas e simbólicas quando entram no campo legislativo. O debate sobre a anistia aos golpistas de 2022/23 revela a tensão entre pacificação e impunidade. A história brasileira mostra que conceder perdão sem critérios claros pode ressuscitar rebeldes e consolidar comportamentos antidemocráticos, enquanto a ausência de diálogo legislativo prolonga crises e frustrações. A decisão sobre a anistia, portanto, não é apenas legal, mas também simbólica: demonstra se o Estado de Direito é capaz de se afirmar sobre os impulsos coletivos e as narrativas inflamadas, ou se cede à tentação do mito do inimigo absoluto. Unindo essas perspectivas, torna-se evidente que a defesa da democracia exige simultaneamente atenção a três dimensões: a factual, representada pelos limites institucionais e pelo cumprimento da lei; a simbólica, que organiza o imaginário coletivo e molda emoções e lealdades; e a histórica, que pondera precedentes e as consequências de decisões como a anistia. Ignorar qualquer dessas dimensões é abrir espaço para que narrativas simplificadoras, gestos simbólicos e atalhos jurídicos corroam a confiança nas instituições. A síntese desses três olhares revela uma verdade clara: proteger o Estado de Direito exige mais do que reagir às crises imediatas. Requer a construção consciente de narrativas que eduquem, incluam e inspirem, símbolos que aproximem cidadãos da cidadania e decisões políticas que conciliem justiça com pacificação social. Só assim a democracia se mantém não como abstração, mas como experiência viva, capaz de resistir às distorções da memória, ao assédio das emoções e às seduções do autoritarismo. A quarta visão que emerge dessa análise integrada não se limita a explicar o presente: propõe uma estratégia de resistência e de reconstrução da confiança cívica. Um edifício democrático sólido precisa ser erguido sobre três andares: o respeito às instituições, o cuidado com os afetos e símbolos coletivos e a prudência histórica. Cada pedreiro — Gomes, Baía e Gaspari — contribuiu com a sua técnica; a síntese oferece o projeto completo, capaz de orientar uma ação política que preserve a verdade, fortaleça a democracia e assegure o Estado de Direito.
quarta-feira, 13 de agosto de 2025 A crença na 'ditadura de toga', arma política do Bolsonarismo - Wilson Gomes Folha de S. Paulo Narrativa contra STF organiza frustrações, reforça laços e justifica ações antidemocráticas Conheço ao menos uma pessoa que considera um "ato de justiça" ver Alexandre de Moraes enforcado em praça pública. Quem estava ao redor, quando ela fez a declaração em alto e bom som, descontou o exagero retórico, mas concordou com a essência. Não se trata apenas de Moraes, mas, no limite, de todo o Poder Judiciário e até do Ministério Público. Alexandre funciona, nesse enredo, como síntese e personificação —útil para fins narrativos e para organizar o ódio coletivo— da convicção de que certas pessoas e instituições existem para destruir "o nosso lado", a direita bolsonarista. Também conheço muitos que defendem o impeachment do magistrado. Alguns apenas afirmam que, cedo ou tarde, isso ocorrerá; outros sustentam que a medida deveria ser tomada já, no auge da convulsão política. Estes últimos estão convencidos de que a entrega da cabeça de Moraes seria o único sacrifício capaz de aplacar a suposta "justa fúria" de Trump contra o Brasil. Por trás disso está a convicção, amplamente partilhada por uma parcela expressiva dos brasileiros, de que vivemos sob uma "ditadura de toga". No universo bolsonarista, não é tese nem hipótese, mas fato evidente —só não vê quem está dominado pelo outro lado. Não deveria ser necessário dizer, mas, por mais severas que sejam as críticas a decisões polêmicas do STF, os elementos essenciais de uma ditadura não se verificam. Conheço ditaduras, vivi numa delas as duas primeiras décadas da minha vida. Hoje, mesmo as decisões mais contestadas foram tomadas dentro de um marco institucional reconhecido pela Constituição, aprovadas por colegiado e passíveis de revisão. Não houve suspensão de garantias constitucionais, supressão sistemática do Legislativo ou do Executivo nem ausência de freios e contrapesos. Ora, se a percepção não corresponde aos fatos, por que a crença resiste? Vamos às hipóteses. A ideia de "ditadura de toga" cumpre função psicológica e identitária: oferece um enquadramento simples, moralmente carregado e útil para mobilização política. O núcleo factual —decisões polêmicas e ativismo judicial— é apenas o ponto de partida; a narrativa se sustenta pela predisposição a ver o mundo em termos maniqueístas, a desconfiar de elites institucionais e a buscar alvos claros para frustrações difusas. A crença é funcional: insucessos eleitorais, investigações contra lideranças e derrotas legislativas encontram no "STF ditatorial" um inimigo externo e personalizado. Atribuir-lhe todo o peso da frustração preserva a autoestima do grupo e a imagem positiva da liderança. É também um mecanismo de projeção, já que defeitos e fracassos atribuídos ao próprio campo são percebidos como agressões externas. Não há necessidade de assumir responsabilidade por eles. Além disso, encaixa-se perfeitamente na simplificação moral da política, reduzida à luta entre um povo inocente e virtuoso (os "patriotas") e seu líder abnegado, de um lado, e um vilão centralizado e onipotente (o STF), de outro. Essa divisão atende à necessidade de organizar o mundo em categorias rígidas de certo/errado, amigo/inimigo —algo típico de estruturas de personalidade menos tolerantes à ambiguidade. Tais narrativas convertem predisposições latentes —hostilidade a limites institucionais, desconfiança de instituições pluralistas, necessidade de autoridade forte, rejeição de controle judicial sobre líderes carismáticos— em ação política: manifestações, discursos violentos e ataques à legitimidade judicial. Grupos que partilham essas predisposições tendem a interpretar decisões judiciais contrárias ao seu campo político como prova da existência de uma "ditadura". A adesão à tese também opera como marcador de pertencimento: quem a repete e defende se identifica como parte do grupo e demonstra lealdade; discordar dela implica risco de exclusão simbólica, reforçando a uniformidade interna. À medida que a tese ganha adesão, desaparecem as posições moderadas e as concessões; quanto mais radical for a posição manifestada ("enforquem-no!"), maiores as cotas de estima oferecidas pelo grupo. Por fim, se o Judiciário é visto como ditatorial, medidas fora da normalidade democrática —da desobediência civil aos ataques à credibilidade judicial, dos apelos por intervenção estrangeira até propostas abertas de golpe de Estado— passam a ser tratadas como atos legítimos. Esse é o perigo maior: a crença não apenas reorganiza a realidade para caber no enredo que o grupo já abraçou como fabrica a licença moral para romper com a democracia sob o pretexto de salvá-la.
quarta-feira, 13 de agosto de 2025 E é aí que se decide o futuro - Paulo Baía A história das sociedades humanas é também a história das batalhas invisíveis por símbolos e significados; por séculos, reis, impérios e religiões compreenderam que a força mais duradoura não se exerce apenas pela espada ou pelo decreto, mas pela capacidade de impregnar o imaginário coletivo com imagens, narrativas e crenças que parecem naturais, inevitáveis e eternas. Hoje, a extrema-direita compreendeu com uma nitidez impressionante que o verdadeiro poder se consolida quando se controla não apenas o que as pessoas pensam, mas como elas sentem diante das palavras, das bandeiras, das cores e dos gestos; que um símbolo carregado de emoção pode mover mais do que uma biblioteca inteira de argumentos. Se, como ensinou Walter Benjamin, todo ato de transmissão cultural é também um ato político, então é preciso reconhecer que a guerra do nosso tempo não se trava apenas no parlamento ou nas urnas, mas nas ruas e nas redes, nos slogans e nas canções, nas metáforas que traduzem e distorcem a realidade. A extrema-direita compreendeu que cada hashtag é uma trincheira, que cada meme é uma flecha, que cada mito fabricado pode se infiltrar como verdade indiscutível nos recantos mais íntimos da consciência coletiva; e nós, tantas vezes, ficamos aprisionados na ingenuidade de repetir, corrigir, refutar, sem perceber que, ao fazê-lo, reforçamos os mesmos marcos simbólicos que nos aprisionam. Pierre Bourdieu nos alertou sobre o poder invisível que se exerce através da linguagem, dos hábitos e dos rituais; esse poder que se disfarça de neutralidade e se apresenta como senso comum, mas que é, na verdade, um campo de disputa feroz. Quando a extrema-direita escolhe vestir-se de guardiã da tradição, da pátria e da família, ela não está apenas oferecendo um programa político, mas erguendo um altar simbólico ao redor do qual convoca devoção; e cada imagem, cada palavra e cada gesto são armas cuidadosamente calibradas para moldar um mundo que parece dado, mas que é profundamente fabricado. Aqueles que se opõem a esse avanço muitas vezes se dedicam a apontar erros factuais, desmontar estatísticas distorcidas ou denunciar contradições; esquecem que o terreno decisivo dessa batalha é afetivo e imaginário. Hannah Arendt nos lembraria que a verdade política não se sustenta apenas na comprovação, mas na capacidade de se enraizar no mundo como algo que as pessoas sintam como real; e isso só se conquista quando se aprende a criar símbolos que não apenas informem, mas toquem e transformem. Max Weber descreveu a política como a lenta perfuração de tábuas duras; mas, antes de perfurá-las, é preciso identificar de que madeira elas são feitas, quais fissuras já existem, quais imagens colam na sua superfície e quais não têm aderência. Disputar sentidos é aprender a trabalhar na gramática das emoções coletivas, compreender que um símbolo não é apenas um adorno do discurso, mas o próprio campo onde a disputa se decide; e que uma palavra, se dita com a imagem e o gesto certos, pode tornar-se um estandarte que arrasta multidões. A resistência que se recusa a entrar nessa arena condena-se à irrelevância; quem se limita a reagir a símbolos alheios aceita as regras do jogo impostas pelo adversário. É preciso criar narrativas próprias, resgatar imagens ancestrais e reinventar outras; como ensinou Ernst Cassirer, o ser humano é, acima de tudo, um animal simbólico; portanto, abandonar essa dimensão equivale a abandonar a própria essência da política. Erich Fromm, ao refletir sobre a liberdade, nos mostrou que as pessoas não apenas buscam emancipar-se, mas também anseiam por referências, por sinais que as orientem no caos do mundo moderno; e a extrema-direita soube oferecer esses sinais com uma força emocional capaz de suplantar qualquer racionalidade. A esquerda e os democratas, ao negligenciarem esse território, deixam órfãos aqueles que buscam pertencimento; e sem símbolos que sustentem o afeto e a identidade, qualquer projeto político se torna frágil diante da retórica sedutora do autoritarismo. É nesse ponto que a música, as telenovelas, a literatura, as paixões populares e o entretenimento cotidiano revelam-se não como meros adornos culturais, mas como chaves poderosas de compreensão e abertura para o mundo dos sentidos; nelas, vivem e respiram símbolos arraigados ao coração da maioria da população no Brasil inteiro. Uma canção pode condensar décadas de dor e esperança; uma novela pode traduzir dramas sociais em tramas íntimas que falam à alma; um romance pode tornar palpável a dignidade ou a humilhação de um povo; um time de futebol pode ser o estandarte emocional de comunidades inteiras. No Brasil, artistas como Arlindo Cruz, compositor, sambista e cronista das emoções populares da cidade do Rio de Janeiro, mostram que é possível produzir sentido, compreensão, simpatia e emoção de forma tão profunda que sua obra se torna um território de pertencimento para milhões. Ele é exemplo de como a cultura popular, quando atravessa a vida cotidiana, molda a forma como as pessoas percebem o mundo e a si mesmas. Quem ignora essa dimensão simbólica abdica de dialogar com o campo mais fértil da imaginação coletiva; quem despreza a cultura popular despreza o próprio chão onde se formam as identidades e os afetos que movem a política. Não basta achar, é preciso compreender; e compreender é mais do que decifrar intenções ou calcular interesses; é aprender a ver que cada bandeira hasteada, cada música entoada, cada cor escolhida, cada trama televisiva assistida por milhões, está inscrita em um mapa de significados onde se definem lealdades e inimizades. Aquele que conhece essa cartografia sabe que as palavras não são inocentes e que a disputa por elas é, ao mesmo tempo, a disputa por mundos possíveis; e que, sem ocupar esse território, qualquer vitória será apenas provisória e frágil. A disputa simbólica exige persistência, imaginação e coragem; exige a capacidade de falar para além das convicções já consolidadas, de penetrar no imaginário daqueles que ainda não se decidiram e de oferecer-lhes algo mais profundo do que um argumento correto: oferecer uma narrativa que faça sentido para sua vida, que conecte sua experiência cotidiana a um horizonte coletivo. Nessa disputa, o que está em jogo não é apenas a política, mas a própria noção de verdade, de justiça e de humanidade. Por isso, a pergunta que se coloca é urgente: vamos continuar repetindo discursos prontos, sempre respondendo aos símbolos dos outros, ou vamos aprender a criar os nossos; símbolos que inspirem, que encantem, que convoquem; símbolos que façam do ato político não apenas um cálculo, mas uma experiência de pertencimento, de esperança e de transformação? Quem domina os símbolos não apenas vence eleições; molda o horizonte do que é possível imaginar e, portanto, do que é possível viver. E é aí que se decide o futuro. *Paulo Baía, sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.
quarta-feira, 13 de agosto de 2025 Votar a anistia é o melhor remédio – Elio Gaspari O Globo Depois da muvuca bolsonarista da semana passada, parlamentares ligados ao presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, bem como alguns petistas, passaram a defender a votação de um projeto de anistia para os golpistas de 2022/23. Ele já recebeu o número suficiente de assinaturas para tramitar com rapidez. Engavetá-lo equivale a igualá-lo à tática (carnavalesca) da obstrução dos demais trabalhos da Câmara. Seriam formas distintas de interdição dos debates. Uma é legal e a outra, além de ridícula, é ilegal. Desde a Independência, quase todas as gerações de brasileiros viveram revoltas e 48 anistias. Algumas, como a de 1979, foram pacificadoras. Outras, como a que Juscelino Kubitschek mandou ao Congresso em 1959, perdoando os militares revoltosos de Aragarças, foram simples gambiarras. Cinco anos depois, os anistiados entraram no bloco da deposição de João Goulart, humilharam, cassaram e exilaram JK. Ele morreu em 1976 sem recuperar a plenitude de seus direitos políticos. O major Haroldo Veloso, líder da revolta, voltou à Força Aérea, chegou à patente de brigadeiro e, em 1966, elegeu-se deputado federal pelo partido do governo. Muito antes, em 1843, o mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos havia combatido o perdão aos revoltosos com um argumento fulminante: — A anistia ressuscitou os rebeldes. Fica a pergunta: a anistia aos golpistas de 2022/23 pacifica, como a de 1979, ou ressuscita rebeldes, como a de 1959? Como a História ainda está quente, cada um tem sua opinião, mas conceder ou negar anistia é atribuição do Congresso. Votá-la é o melhor remédio. Negociações partidárias deverão definir o alcance dessa anistia. Numa ponta, estão os 762 condenados por ter participado da mazorca do 8 de Janeiro. Alguns depredaram bens públicos, outros não. Na outra ponta, estão servidores que articularam um golpe com o objetivo expresso de anular o resultado de uma eleição vencida por Lula. Esses dois grupos confundem-se na reivindicação da anistia, mas têm pouco em comum. O cidadão que esteve na Praça dos Três Poderes no 8 de Janeiro, sentou-se na cadeira do ministro Alexandre de Moraes e gravou-se dizendo bobagens tomou uma pena de 17 anos de prisão. Ainda não saiu a sentença do general Mário Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência que imprimiu o Plano Punhal Verde e Amarelo para facilitar a leitura, “sem forçar a vista”. Fica combinado assim. Levar o projeto a voto não significa aprová-lo. A mobilização dos defensores da anistia de hoje nada tem a ver com a campanha de 1979. Aquela foi um movimento popular e ordeiro. Esta inclui saltimbancos renitentes, que buscam a ressurreição da rebeldia condenada por Bernardo. A postura de alguns defensores da anistia dos golpistas é desafiadora. Perderam a eleição, viram o fracasso do golpe e jogaram-se na desordem do 8 de Janeiro. Perderam em todos os níveis e comportam-se como se tivessem prevalecido. Defendem a anistia com a desenvoltura dos vitoriosos. Essa postura poderá resultar na aprovação de uma anistia que atenda à infantaria do 8 de Janeiro e exclua, ou estabeleça condições para beneficiar, a turma daquilo que se pode classificar como “estado-maior” do golpismo.
O Dia em que a “Relação Sul-Sul Mocozada” Nasceu Foi numa terça-feira, 12 de agosto de 2025, nos estúdios da CNN Brasil, que as placas tectônicas da geopolítica mudaram de lugar. No comando, William Waack; no campo, Caio Junqueira — repórter de fala pausada, sotaque interiorano, e dono de um arsenal lexical que a diplomacia brasileira ainda não sabia que precisava. A pauta? Um relatório norte-americano que, sob a capa dos direitos humanos, pavimentava — no sentido literal e asfaltado da palavra — mais ações contra o Brasil. Mas, antes que a audiência tivesse tempo de se indignar, Caio, com a tranquilidade de quem está explicando como se prepara um bom café coado, disparou: “Para fazer um contato mais direto. Para fazer do contato Sul-Sul uma relação Sul-Sul um pouco mais… numa expressão do meu interior, uma mocozada.” O estúdio parou. Waack, percebendo o ouro lexicológico que lhe caíra no colo, sentenciou: “Deixa eu usar essa nova categoria geopolítica: Relação Sul-Sul Mocozada.” E pronto. Batizado feito. O efeito dominó O que poderia ser apenas uma troca espirituosa virou um prisma para interpretar o Brasil no tabuleiro mundial. A “mocozada” sul-sul virou sinônimo de aproximação cuidadosa, de quem chega de mansinho, evita holofotes, mas mantém a mão no jogo. Uma estratégia de não provocar a onça enquanto se atravessa o rio. Mas o Brasil, como sempre, não estava sozinho nessa novela. Entra o núcleo secundário da trama Por coincidência (ou não), no mesmo período dois personagens de sobrenomes carregados de herança presidencial andavam flanando por Washington. Um, filho de ex-presidente. Outro, neto de outro ex-presidente. Ambos, segundo se sussurra, mais à caça de sanções contra o próprio país e de punições ao Judiciário pátrio do que à procura de acordos amistosos. A cena, na imaginação coletiva, ganhou ares de novela política à la Dias Gomes. Um Dirceu Borboleta contemporâneo, mas no corredor da Casa Branca, e não no gabinete da prefeitura de Sucupira. No pano de fundo, lembranças incômodas dos tempos em que o avô de um deles governava com farda e baioneta, e ecos das histórias de ouro contrabandeado, bombas malogradas e atentados frustrados. A moral da história Daqui em diante, qualquer análise séria sobre as relações Sul-Sul precisará considerar essa inovação semântica e política: a Relação Mocozada. Um termo nascido ao vivo, sob luz de estúdio, entre um repórter que fala como quem conta causos no boteco da esquina e um âncora que sabe reconhecer, em tempo real, quando um neologismo merece lugar no glossário geopolítico. E talvez — apenas talvez — seja esse o verdadeiro soft power brasileiro: transformar, no calor do noticiário, um caipirismo bem colocado numa categoria analítica para entender as voltas e reviravoltas de Brasília, Washington e do resto do mundo.
A Relação Sul-Sul Mocozada: Emergência de um Novo Paradigma na Diplomacia Itamaratyana Por Fulano de Tal, PhD¹ Resumo O presente artigo analisa o surgimento e a consolidação do conceito de Relação Sul-Sul Mocozada, expressão cunhada no programa televisivo WW, transmitido pela CNN Brasil em 12 de agosto de 2025. A partir de um diálogo entre o repórter Caio Junqueira e o âncora William Waack, desenvolve-se a hipótese de que a “mocozada” representa um novo padrão comportamental nas relações diplomáticas entre países do hemisfério sul, caracterizado pela discreta manutenção de vínculos, gestão paciente de conflitos e uso estratégico da cordialidade. O estudo combina análise de discurso, hermenêutica sertaneja e referências a práticas geopolíticas comparadas. 1. Introdução A teoria das Relações Internacionais sempre buscou categorizar comportamentos estatais: da “balança de poder” clássica de Morgenthau à “interdependência complexa” de Keohane & Nye. Contudo, até recentemente, nenhum arcabouço teórico contemplava plenamente a especificidade brasileira de “ficar na moita” enquanto se joga o jogo — fenômeno que, em agosto de 2025, ganhou nome próprio: Relação Sul-Sul Mocozada. O momento inaugural foi capturado ao vivo, quando Junqueira, evocando expressões do interior paulista, propôs que a aproximação Sul-Sul se desse de forma “mocozada”. Waack, percebendo o potencial epistemológico do termo, declarou tratar-se de “uma nova categoria geopolítica”². 2. Fundamentos Conceituais 2.1. Etimologia diplomático-caipira “Mocozada” deriva do verbo “mocozar”, de uso rural, significando abrigar-se, esconder-se ou esperar o momento certo para agir. No campo geopolítico, implica manter relações discretas, evitando exposição excessiva e reduzindo riscos de retaliação externa. “Catimba”, incorporada como subcomponente do conceito, remete à malícia calculada e à gestão psicológica do adversário, prática comum tanto no futebol quanto nas negociações multilaterais. “Itamaratyana” refere-se ao estilo protocolar e tecnicamente sofisticado do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, reconhecido por sua habilidade em equilibrar simpatia e firmeza. 3. Aplicabilidade Estratégica O caso contemporâneo mais emblemático envolve atores políticos brasileiros de herança presidencial circulando em Washington na busca — segundo fontes³ — por sanções tarifárias contra o Brasil e punições ao Judiciário nacional. Esse movimento externo, ainda que em dissonância com os interesses estratégicos do Estado, interage paradoxalmente com a lógica mocozada, ao criar ruído que pode ser usado como pretexto para negociação paciente e calibrada. 4. Comparações Internacionais Embora alguns paralelos possam ser feitos com a “política de não-alinhamento” de Nehru e Tito, ou com o “socialismo em um só país” de Stálin, a Relação Sul-Sul Mocozada é distinta pela sua raiz cultural. É tanto uma postura de soft power como uma forma de resistência passiva, cuja base é mais próxima de Riobaldo que de Metternich. 5. Considerações Finais A institucionalização da “Relação Sul-Sul Mocozada” exige não apenas sua descrição, mas seu reconhecimento enquanto estratégia legítima. Ao unir a prudência sertaneja com a catimba diplomática, o Brasil pode criar um estilo exportável de política externa. Cabe aos estudiosos das relações internacionais decidir se este será mais um “conceito passageiro de talk show” ou um novo capítulo no manual do Itamaraty. Notas ¹ Fulano de Tal, Doutor em Estudos Internacionais pela Universidade de Morrinhos, Professor Visitante na Universidade Popular de Bebedouro. ² Trecho do programa WW, CNN Brasil, 12/08/2025. ³ BORBOLETA, Dirceu. A Diplomacia de Sucupira: memórias de um assessor municipal em Nova York. Editora Plenária, 1981. WW- RELATÓRIO PAVIMENTA MAIS AÇÕES DOS EUA CONTRA O BRASIL -12/08/2025 CNN Brasil Transmissão ao vivo realizada há 17 horas #CNNBrasil Assista ao WW desta terça-feira, 12 de agosto de 2025. #CNNBrasil 👆https://www.youtube.com/watch?v=kit_X4dvNh8
Aqui está a transcrição do texto da imagem: Primeiro quadro (canto superior esquerdo): Pessoa 1: "Diga-me, camarada Xiao Tao, gostaria de fazer a revolução? Eu posso levá-la, se você quiser." Segundo quadro (canto superior direito): Pessoa 2 (homem com braços abertos): "Você… poderá dar à sociedade comunista o melhor de si! Ah! O ideal revolucionário é o que importa para jovens como nós!" Terceiro quadro (meio, à esquerda): Pessoa 1: "Pffi acho que ele é muito velho para ela! Fale com meu marido, ele é que decide." Quarto quadro (meio, à direita): Pessoa 2 (homem com chapéu): "... Ele até combateu ao lado do Presidente Mao!... E alguns acham que logo pode se tornar chefe de repartição no departamento de agricultura do comitê popular provincial de Kunming*. De verdade! Percebe que sorte a sua, senhora Tao?" Quinto quadro (inferior, à direita): Pessoa 3: "Secretário Li, lá está o pai dela!" Rodapé: "昆明: capital da província de Yunnan" P. ÔTIÉ LI KUNWU Uma vida chinesa I. O tempo do pai Tradução Andréa Stahel M. da Silva

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