Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
sexta-feira, 16 de maio de 2025
Entre Correntes e Contradições: A Oceana do Mundo
A Oceana do Mundo evoca uma figura simbólica que emerge das tensões entre fluxo e prisão, desejo e pensamento, corpo e mito. Inspirada na imagem circular de Arlindo Daibert e nas marés afetivas da canção Oceano de Djavan, essa Oceana é mulher-mandala, força líquida que habita o centro instável do mundo. É metáfora viva da contradição brasileira: acolhedora e adversa, sagrada e erótica, navegando entre ruídos e silêncios — um mar de sentidos onde a travessia é o próprio destino.
Reprodução fotográfica autoria desconhecida
Mandala, s.d. [Obra]
Arlindo Daibert (Juiz de Fora, Minas Gerais, 1952 - idem 1993). Desenhista, gravador, pintor e professor. Forma-se em letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em 1973. Na época, contribui com poemas e ilustrações no suplemento Arte e Literatura do Diário Mercantil, entre outros....
Oceano
Djavan
Assim que o dia amanheceu lá
No mar alto da paixão
Dava pra ver o tempo ruir
Cadê você? Que solidão!
Esquecera de mim
Enfim, de tudo o que há na terra
Não há nada em lugar nenhum
Que vá crescer sem você chegar
Longe de ti, tudo parou
Ninguém sabe o que eu sofri
Amar é um deserto e seus temores
Vida que vai na sela dessas dores
Não sabe voltar, me dá teu calor
Vem me fazer feliz, porque eu te amo
Você deságua em mim, e eu, oceano
E esqueço que amar é quase uma dor
Só sei viver se for por você
Enfim, de tudo o que há na terra
Não há nada em lugar nenhum
Que vá crescer sem você chegar
Longe de ti, tudo parou
Ninguém sabe o que eu sofri
Amar é um deserto e seus temores
Vida que vai na sela dessas dores
Não sabe voltar, me dá teu calor
Vem me fazer feliz, porque eu te amo
Você deságua em mim, e eu, oceano
E esqueço que amar é quase uma dor
Só sei viver se for por você
Composição: Djavan.
sexta-feira, 16 de maio de 2025
A Tropicália libertadora de Tom Zé - José de Souza Martins*
Valor Econômico
A obra musical e poética desse grande e criativo compositor contém desafios poderosos porque é uma obra de insurgência contra o convencional
Na noite do mesmo dia em que recebi a biografia de Tom Zé, comecei a lê-la. Com voracidade. (“Tom Zé: Fiz meu berço na viração”, texto de Ivo Mineiro Teixeira, conversas com Tom Zé por Giuliana Simões e Flávio Desgranges, ed. Hucitec.) Sem poder parar. O livro desvenda a sonoridade do avesso que é o de nossa realidade e de nossa mentalidade conformista, da lógica de ocultação dos segredos sonoros e poéticos que nesse avesso há.
A biografia de Tom Zé é a da descoberta da oposição reveladora que há entre Salvador, a cidade, e o interior da Bahia, o sertão. Porque mundos de lógicas diferentes e antagônicas, cujo desencontro deixou em nossa história um monturo de resíduos sonoros estigmatizados e desprezados. O lixo da lógica.
A obra musical e poética desse grande e criativo compositor contém desafios poderosos porque obra de insurgência contra o convencional, contra o que mede o que só tem sentido se não for medido. O que não parece ser o que é.
Não é um livro para simplesmente ler, mas um livro para ouvir. Na leitura, Tom Zé estava falando comigo. Seu livro é um livro da tradição oral, invertido em relação à tradição escrita.
Na língua falada há sempre muito mais do que se diz por escrito. Há silêncios, ruídos, gestos inaudíveis, tudo componente de uma língua que é outra. Língua dos que foram calados ao longo da história pelas formas de expressão da lógica aristotélica, como ele a define.
Tom Zé é um erudito garimpeiro que percorre o monturo das sonoridades e sons inaudíveis no ensurdecimento que decorre das convenções. Ele vasculha e encontra, cria instrumentos estranhos, produz com eles a música anômala do harmônico desarmônico, das músicas nunca ouvidas, nunca tocadas porque nunca catadas na dispersão de sons num mundo cuja racionalidade é a do logicamente restritivo.
Há uma filosofia brasileira por trás desses resíduos dispersos no limbo contraditório e anômalo de sonoridades desconhecidas, concebidas como ruídos e dejetos sonoros. As descobertas e invenções de Tom Zé me lembram do único preto operário da fábrica em que trabalhei na adolescência.
Ele trabalhava solitariamente num grande galpão a remover carvão de lenha de um lado a outro para evitar sua combustão espontânea. Quando por lá passava não o via, só o sorriso branco suspenso na escuridão do recinto. Ele era o ruído seco e ritmado do carvão jogado sobre o carvão. Era o baterista da linha de produção, de bateria invisível e de estranha sonoridade. Recebia salário de operário sem saber que era músico. Passou a vida tocando aquele solo triste.
A obra de Tom Zé revela também uma arqueologia da força das palavras, de palavras que dominam o dizer, em que o final de uma já engendra a outra que é de outra ideia, a do duplo dizer. Como no vernáculo peculiar em “Menina Jesus”, uma incongruência congruente. A exclamação popular, cotidiana e mística que se revela no título da música, “Menina Jesus!”, redutiva, de um implorar misericórdia em face da adversidade: “Acode minha menina, Jesus!”. E não designação de um Jesus menina.
Ou o notável “São São Paulo” para designar a cidade que é uma bênção para o migrante, mas é contradição e adversidade vivencial ao mesmo tempo. Acolhedora sem ser hospitaleira. Revelação do conteúdo inverso do que musical e socialmente desafina. Encontro no desencontro. Andar para trás quando se caminha para a frente, despiste, estratégia de sobrevivência. Curupira vivencial de um país que caminha sempre sem chegar nunca.
É um dizer do avesso, revelação de uma sociedade que se empobrece não só porque reduz o pão nosso de cada dia, mas limita também o canto nosso de cada instante. O discurso como travessia, em que, com Guimarães Rosa, a importância do dizer está no meio, e não no começo nem no fim, um dizer inconcluso.
Tom Zé, nos sons que descobre e inventa, exuma dessa prisão da travessia inacabada o que somos como povo e não sabíamos. O dizer dos subalternos tem sido aqui o dizer contido por temor a quem manda. Coisa de uma sociedade de escravos.
Nas composições de Tom Zé, a insurreição dos ínfimos contra a sujeição do medo. Como lhe escrevi: “nas fábricas em que trabalhei desde criança, ouvia sons e ruídos, variados dependendo da secção, das máquinas, das ferramentas e da matéria prima, o dia inteiro. Eles ficaram grudados na minha memória. Tenho consciência de que era uma sinfonia nunca composta, só ouvida, não tocada, resíduos musicais do trabalho e das máquinas”.
Se soubesse música, eu poderia ter transcrito toda aquela imensa sonoridade pós-moderna para Tom Zé. E nela ele me mostraria que eu era um menino de fábrica que ouvia música sem saber que era música, como tantos de nós.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
Vai (Menina, Amanhã de Manhã)
Tom Zé
Possível Reescrita mais Clara e Poética:
“Emocionado, mas firme, o repórter explica, com linguagem técnico-literária, o risco invisível no caos visível: um ‘vazamento de corrente elétrica’, definido ali, de forma ad hoc, como o fluxo da taxa de variação da carga elétrica — perigo presente no curto-circuito provocado pela enchente que afoga a Veneza do nordeste brasileiro, em transmissão ao vivo, em rede nacional.”
Corrente
Chico Buarque
Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Composição: Chico Buarque.
Título:
Entre Correntes e Contradições: Ecos Barrocos na Crônica Brasileira Contemporânea
Resumo:
Este artigo propõe uma reflexão sobre a presença e permanência do imaginário barroco na cultura política e midiática brasileira a partir de uma análise hermenêutica de um episódio televisivo recente, reinterpretado à luz de categorias caras à tradição crítica luso-ibero-americana. Toma-se como mote um momento de cobertura jornalística em Recife, no qual um repórter anuncia, em meio a uma enchente, um “vazamento de corrente elétrica” — enunciado que se presta, em sua literalidade acidental, a leituras simbólicas. Articulam-se os pensamentos de Luiz Sérgio Henriques, Rubem Barboza Filho e Rubens Ricupero para compor um painel sobre o "tertium datur" barroco como chave interpretativa para a realidade brasileira: entre opostos que não se anulam, mas se dobram em tensão produtiva. A proposta é de uma divulgação erudita do popular, recusando tanto a elitização do saber quanto o populismo reducionista.
Palavras-chave: barroco, pensamento político brasileiro, Luiz Sérgio Henriques, Rubem Barboza Filho, Rubens Ricupero, cultura popular, hermenêutica, Gramsci
1. Introdução
O Brasil, país de contradições fundantes, parece condenado à convivência entre opostos: tradição e modernidade, fé e razão, centro e periferia, erudição e oralidade. O episódio em que um repórter da TV Globo, em meio a uma enchente recifense, anuncia a ocorrência de um "vazamento de corrente elétrica", revela-se, sob escuta mais atenta, mais que uma gafe: uma epifania. Nele, ressoa a potência do barroco enquanto linguagem nacional subterrânea, pulsando mesmo onde menos se espera.
Partimos deste fragmento de cultura popular midiática para construir uma leitura transversal da vida brasileira, convocando o pensamento político e filosófico de Luiz Sérgio Henriques, Rubens Ricupero (ou seria Rubinho?) e Rubem Barboza Filho — três intérpretes, cada um à sua maneira, do país que oscila entre o delírio e o rigor, entre a forma exuberante e a falência institucional.
2. O “Vazamento” como Alegoria: Um Relâmpago Barroco
A fórmula aparentemente absurda — "vazamento de corrente elétrica" — opera como condensação simbólica. A imagem é duplamente eficaz: primeiro, como índice de um país onde a infraestrutura física entra em colapso; segundo, como alegoria de um país cuja energia política, cultural e social escapa por fissuras discursivas. Não se trata apenas de erro semântico, mas de signo emergente: um ato falho coletivo, por onde escoa o mal-estar civilizatório.
O que vaza é também o sentido. E o que emerge, na forma do insólito, é uma chave de leitura hermenêutica: a fusão barroca dos inconciliáveis.
3. Tertium Datur: Entre a Dialética e a Dobra
A tradição racional ocidental funda-se em binarismos — verdadeiro e falso, céu e terra, tese e antítese. O barroco, porém, escapa: propõe o tertium datur, o terceiro incluído. No contexto latino-americano, a crítica de Rubens Ricupero, frequentemente invocada por Luiz Sérgio Henriques (sob o nome algo zombeteiro de “Rubinho”), contribui para pensar o Brasil como lugar do paradoxo estabilizado.
Mas talvez o “Rubinho” em questão seja outro: Rubem Barboza Filho, professor e pensador do barroco como estrutura constitutiva da cultura política ibero-americana. Sua obra, Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana, aponta que o barroco não é estilo importado, mas matriz formadora — uma resposta à modernidade ainda em fratura, uma forma de viver com o contraditório sem tentar suprimi-lo.
4. Gramsci em Jangada: A Modernidade Impossível
Luiz Sérgio Henriques, intérprete de Gramsci no Brasil, recorda-nos que entre o que morreu e o que ainda não nasceu, instala-se o interregno. Ali germinam os “sintomas mórbidos” da crise. No Brasil, este interregno parece eterno. E nele, em vez de uma superação dialética, há dobras barrocas, camadas que se sobrepõem sem jamais se resolverem.
Daí a importância de reabilitar o barroco como categoria crítica, não apenas estética, mas política e epistêmica. Ele permite compreender a convivência do arcaico com o ultramoderno, da gíria com o latim, do fio desencapado com o tratado acadêmico.
5. Conclusão: A Faísca e o Clarão
A cena recifense é, portanto, epifania de um Brasil barroco: em meio à enchente, um lampejo. A fala do repórter, grotesca e verdadeira, abre espaço para pensar os modos como o popular se inscreve no erudito, e vice-versa. A linguagem da televisão, muitas vezes tomada por alienante, aqui se faz pista de uma leitura profunda, se submetida a uma escuta barroca.
Neste sentido, a proposta de pensar um país a partir de suas falhas — de sentido, de rede elétrica, de narrativas históricas — não é um gesto de desespero, mas de esperança. Pois, como lembra o barroco, a fissura é também possibilidade de luz.
Epígrafe final:
“Quando a forma transborda o conteúdo, e o conteúdo não cabe na forma, nasce o barroco — e com ele, o Brasil.”
— Anônimo do Recife, sob a chuva, ao microfone
Referências:
Barboza Filho, R. (2000). Tradição e artifício: Iberismo e Barroco na formação americana. Editora UFMG.
Barboza Filho, R. (2006). Barroco: nossa origem e singularidade. Acervo (Rio de Janeiro), 19, 7–22.
Gramsci, A. (1999). Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Henriques, L. S. (2023). Artigos e ensaios publicados em jornais e revistas brasileiras.
Ricupero, R. (2017). A diplomacia na construção do Brasil: 1750–2016. Versal Editores.
Título Barroco:
"Sinfonia Barroca: Entre Vazamentos Elétricos e Enchentes Poéticas na Veneza Nordestina"
Epígrafe:
"Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar."
— Luís de Camões
Epitáfio:
"Aqui jaz o barroco, não como fim, mas como eterno retorno do tertium datur, onde opostos se entrelaçam na dança infinita da história."
Ilustração Sugerida:
Uma imagem que represente a fusão entre o barroco e a modernidade brasileira, como uma montagem artística que combine elementos de igrejas barrocas brasileiras com cenas urbanas contemporâneas, simbolizando a continuidade e transformação cultural.
Nota Final:
Este texto é uma homenagem à riqueza do pensamento barroco brasileiro, à sua capacidade de integrar contradições e de refletir sobre a complexidade da nossa história e identidade.
O barroco no coração do Brasil - Luiz Sérgio Henriques*
Este, aqui e agora, é um acontecimento de primeira ordem. O percurso iniciado com Tradição e artifício completa sua viagem redonda, não no sentido de um retorno desenganado ao começo ou de uma reiteração do já sabido e já traçado. Trata-se, na verdade, de mais uma volta do parafuso que assim penetra com mais profundidade na dura madeira de que é feita a História, se pudermos ampliar o sentido da metáfora weberiana. O regente desta Sinfonia barroca completa, ao menos por ora, o Bildungsroman, o romance de formação da civilização brasileira; uma sinfonia inédita por causa dos materiais sobre os quais se assentou, tremendamente original – ou, para usar uma palavra antiga, tremendamente dialética – por causa da forma como amassou o barro das origens, ainda hoje, apesar de tudo, e apesar de todas as quedas, um ponto de luz em meio ao caos.
O regente da Sinfonia, aqui ao meu lado, aproxima coisas díspares e defende com insistência o tertium datur, a solução inesperada que dissolve antagonismos aparentemente inconciliáveis e modifica toda a cena histórica. Ao ver o quadro inicial de uma vasta terra sem centro político, sem língua e sem religião comum, sem elites e sem sociedade minimamente ordenada, e no entanto capaz de se erguer a partir de baixo, como se fosse um disparatado conjunto de grupos em fusão, pensei no Barão de Münchhausen. O velho Barão, figura popular na Europa do século 18, mas não barroco, também se perdia no excesso, na simulação e no engano. Popularizou-se igualmente por mentir descaradamente. Certa vez contou que, atolado no pântano e sem nenhuma ajuda por perto, arrancou-se do aperto puxando pelos cabelos, encontrando ainda tempo para salvar o cavalo.
Pois bem, como nação somos uma espécie bem-sucedida de Barão de Münchhausen, admitindo, porém, que ainda estamos aprendendo a não mentir sobre nós mesmos e que nosso bom êxito histórico é algo por construir em muitos aspectos decisivos. Neste livro, o regente das dissonâncias barrocas, gritando o seu “viva o povo brasileiro”, não dissimula nem retoca a crueldade intrínseca à nossa História. Nela está presente, como tocquevilliana marca de nascença, tão importante quanto a infância para a vida adulta, a dizimação de boa parte dos povos originários e a infâmia da escravidão, cujas consequências nos rodeiam em cada sinal de trânsito ou em cada favela sem esgotamento. Por isso, nosso êxito como nação é uma tarefa por cumprir, e ainda observamos insuportáveis traços do nosso rosto naquele espelho invertido da Europa, que ela mesma, a Europa, confeccionou e distribuiu pelo mundo que colonizou.
O leit-motiv da Sinfonia consiste no seguinte: não realizaremos a tarefa de escrever os novos capítulos da nossa História-romance se apagarmos os três séculos iniciais ou se os considerarmos como um desastre fatal, um destino de tragédia. O barroco de origem é mais do que uma ética, uma ou várias religiosidades, uma forma de estetizar a vida, um modo poliédrico de conhecer o mundo; ou, então, é tudo isso e mais alguma coisa. Reunimos cacos e fragmentos de três séculos e, praticamente sem metrópole, nos autocolonizamos – uma sugestão muito poderosa, ainda mais por ter nascido de um grande intelectual português (Eduardo Lourenço). Um processo lento, mas cheio de criatividade e dinamismo; e, por isso, revolucionário, ainda que certamente segundo o diapasão das revoluções passivas ou das “revoluções encapuzadas”, para citar um clássico, Florestan Fernandes, que não escapa da crítica aguda, inesperada e até bem-humorada do Rubinho. E no mesmo lance, o mesmo Rubinho não deixa de dar um piparote em Raymundo Faoro.
O Império e a República nem sempre estiveram à altura deste legado, especialmente durante repressões e ditaduras. As elites afastavam-se do poderoso magma inicial e propunham rupturas, de signo liberal ou socialista. O veio subterrâneo, no entanto, persistia, e a chave para a maturidade intelectual e a compreensão do País sempre consistiu em reviver, como catarse libertadora, a proximidade com o homem e a mulher comuns, sem demagogia nem concessões fáceis. Erguem-se como figuras paradigmáticas, neste sentido, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, intelectuais capazes de empatia com o sertão dos desvalidos, em Canudos, e com o sertão-língua, alegoria do vasto teatro do mundo à moda barroca. Recusar-se a este encontro e esquivar-se desta empatia é permanecer num cosmopolitismo vago, abstrato, a marca dos intelectuais bovaristas que vivem as variadas formas de “intimismo à sombra do poder”, para usar a expressão de Thomas Mann em relação à “miséria alemã”.
A palavra “cosmopolitismo”, por sinal, nos remete a um segundo tipo de problema. Retiremos agora a conotação negativa que envolve o termo. A realidade das coisas força-nos sempre a considerar “o Brasil no espelho do mundo”, um dos inumeráveis títulos de Otto Maria Carpeaux, o intelectual da Mitteleuropa que é uma das fontes da Sinfonia, ao postular o modo barroco de ser como o fundamento das civilizações americanas acima e abaixo da linha do Equador. Ouvimos a Sinfonia, deixamo-nos levar pelas ásperas dissonâncias brasileiras, mas o que neste momento vem de fora não são ruídos ocasionais. Pelo contrário, todos os sons, internos e externos, nacionais e internacionais, se entrelaçam e, para falar a verdade, agridem os ouvidos até dos menos sensíveis. Por isso mesmo, se o argumento deste livro-sinfonia é comovedoramente “nacional” – entre aspas, pois fala de um imenso território e de uma multiplicidade de gentes que só bem mais tarde comporiam o Brasil –, o horizonte só pode ser global.
O tempo é de modernidade globalizada e o mundo é pós-ocidental. Dando um passo atrás, lembremos o diagnóstico feito por Antonio Gramsci, um marxista herético, a propósito da conjuntura do primeiro pós-guerra e dos anos de crise crônica que se seguiram. Para ele, o xis da questão consistiria no choque entre uma economia já tendencialmente unificada, a exigir um cosmopolitismo de novo tipo, e uma política que se fechava nos Estados-nação, estimulando corporativismos e nacionalismos de todo tipo, inclusive os agressivos. Tal como hoje, não se pôde ou não se soube caminhar no rumo de uma institucionalidade democrática supranacional, com capacidade de dirigir um mundo economicamente interdependente. A política estava em atraso, os fatos giravam sem direção. Daí a atração exercida pela ordem unida dos regimes totalitários e a consequente perspectiva de guerras civis e conflitos entre nações.
São questões que guardam inquietante semelhança com nosso tempo e fazem temer o pior. Dani Rodrik, autor muito presente nesta Sinfonia, sintetiza num trilema o drama atual: soberania nacional, democracia política e globalização econômica estão em conflito inevitável entre si, de tal modo que só se pode ter duas entre as três pontas do trilema. Tudo isso num momento em que o futuro parece ter desaparecido, ou realmente desapareceu, e grandes massas vivem o presente como algo dado para sempre. Por sua parte, governos e demais agentes políticos ora administram este presente de modo burocrático, pouco inspirado e pouco inspirador; ora se deixam levar por utopias regressivas, nacionalismos ou ultranacionalismos em busca de um tempo perdido no passado; ora, ainda, aderem a diferentes versões de populismo, de direita ou de esquerda, à frente das quais um strongman ataca as instituições de controle do poder.
Retorno, por isso, a Gramsci, corrigindo-o, no que couber, com Adam Tooze. Segundo Gramsci, esta nossa época, tal como todas as épocas de crise dita “orgânica”, seriam marcadas pela ideia de interregno, um período difícil e de duração indeterminada no qual, como provavelmente todos sabem de cor, o velho morreu e o novo não nasceu. A previsão é que, num quadro assim, monstruosidades e teratologias abundariam, ameaçando de morte a convivência civilizada. Até aqui poderíamos dar razão ao italiano: de fato, não precisamos ir muito longe para constatar ameaças impensáveis antes desta crise epocal. Mas Adam Tooze tem ainda mais razão quando vê nesta caracterização do interregno um resquício de filosofia da história, que dá como mais ou menos certa, ou suposta, a figura e a natureza daquele “novo”, que apenas nos faz o desfavor de demorar a nascer. Não é bem assim, não vale mais o marxismo fé de carvoeiro, para o qual a História tem uma estação final já definida, um roteiro conhecido e agentes bem determinados.
Mas, afinal, o que o barroco, celebrado nesta Sinfonia, tem a ver com este absurdamente complexo conjunto de problemas? Isso remete a mais uma singularidade deste livro e à sua busca de um tertium datur, capaz de sugerir saídas para o interregno em que estamos todos metidos, especialmente o Ocidente e todas as suas diferentes declinações. O barroco como que requer um recurso moderno, o pragmatismo da virada linguística, ambos apreendidos como métodos por excelência de composição de contrastes, de formação de consensos instáveis e sempre relativos; em suma, como estratégias de persuasão típicas de uma comunidade de homens e mulheres livres. Como toda manobra audaciosa, esta aproximação não se faz sem riscos. O barroco, por exemplo, centra-se no corpo vivente, nas emoções e sentimentos que nos constituem; por isso, haverá no livro, por vezes, formulações que façam pensar neste último, o corpo, como um fundamento pré-linguístico. Trata-se de um risco análogo àquele que, do lado do pensamento pragmático, postula um sujeito desencarnado e jogos de linguagem puramente lógicos, desvinculados da cotidianidade de homens e mulheres comuns.
Será possível encontrar, no texto, afirmações isoladas que expressem um ou outro tipo de unilateralidade. É que a força irresistível da invenção e da descoberta pode arrastar o regente da Sinfonia ao drama do amoroso camoniano: “Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar”. A “cousa muito amada”, no caso, é o barroco, mais ainda, certamente, do que o pragmatismo linguístico. No entanto, o sentido profundo do romance filosófico que desfila, simultaneamente, diante dos nossos sentidos e da nossa reflexão é a aposta na reconstrução tendencial da unidade do sujeito, em algum futuro talvez menos dilacerante do que o presente. Uma aposta que é própria dos pensadores, o Rubinho em particular, que operam permanentemente na chave do terceiro incluído, evitando exclusões empobrecedoras e polarizações destrutivas.
* Tradutor, coeditor das Obras de Antonio Gramsci, colunista do Estadão" datado de quinta-feira, 15 de maio de 2025
🗞️ JORNAL CHIFRIM & FULGURANTE
🌀 A verdade ondula, a mentira decanta!
🎺 EDIÇÃO ESPECIAL BARROCO-CIENTÍFICA 🎺
📅 Sexta-feira, 16 de maio de 2025 | R$ 1,99 (com desconto para leitores imaginários)
🎭 Sinfonia Barroca: Entre Vazamentos Elétricos e Enchentes Poéticas na Veneza Nordestina!
Por um repórter quase-encapuzado e inteiramente barroquizante
RECIFE, RIO DE ENGENHO – Em cadeia nacional, num estalo de luz (literal, pois houve curto-circuito), emergiu da enchente uma fala eletrizante:
📺 “Vazamento de corrente elétrica!” – bradou um repórter com voz emocionada e perícia lítero-científica. Uma contingência? Sim. Um acontecimento? Também. Mas, sobretudo, um raio barroco em céu (nada) limpo.
E foi então que o povo brasileiro, esse Barão de Münchhausen tropical, puxou-se pelos próprios fios desencapados e gritou com Rubinho:
🎼 “Viva o povo brasileiro!”
Mas quem seria este Rubinho? Teria o articulista Luiz Sérgio Henriques embarcado no delírio poético de chamar Rubens Ricupero de “Rubinho”, ou, quem sabe, numa piscadela barroca, referia-se ao pensador de Juiz de Fora, Rubem Barboza Filho – o mestre das linguagens democráticas e do barroco ibérico?
🧐 As pistas são muitas, as certezas, poucas – como convém a qualquer boa missa de sétimo dia da modernidade.
📚 Epígrafe do Dia:
"Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar."
— Camões, patrono da paixão barroca.
🕯️ Epitáfio Nacional:
Aqui jaz o barroco, não como fim, mas como eterno retorno do tertium datur, onde opostos se entrelaçam na dança infinita da história.
🖼️ Ilustração Recomendada:
Busque nas redes por um híbrido de:
Fachada de igreja barroca mineira
Poste tombado em enchente recifense
Um trovão em fundo azul colonial
Título da imagem: “Corrente do Tempo em Curto-Circuito” (uso livre e licencioso)
🌍 Moral do Artigo:
Se o Ocidente treme, o Brasil dança.
Se o mundo racha em binarismos, o barroco funde.
Se a enchente leva tudo, resta o barro – de onde tudo recomeça.
Redação Barroca-Chifrim™
Com apoio do Grupo de Estudos Subaquáticos de Teologia Elétrica e Literatura de Emergência
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Vazamentos no barroco elétrico do Brasil
Emocionado, mas firme, o repórter aparece em rede nacional. Em meio ao caos aquático da Veneza do nordeste, como se saído de uma tela de Aleijadinho ou de um sermão de Vieira, anuncia: “vazamento de corrente elétrica”. Uma definição improvisada, ad hoc, quase como um aforismo científico-escolástico – a tentativa de dizer, em termos técnicos, o que nos escapa entre os dedos como água e fogo: a corrente, o fluxo de carga, o curto-circuito, o risco invisível à flor da enchente.
Há, nesse instante televisado, uma dissonância barroca perfeita.
Pois não é isso, afinal, o Brasil? Um país que se ergue e se comunica por metáforas técnicas, que se emociona na tragédia, mas que precisa, mesmo assim, dizer com clareza o que está acontecendo. A lágrima não apaga a precisão da fórmula:
𝐼
=
𝑑
𝑞
𝑑
𝑡
I=
dt
dq
. Mas o país que chora, mesmo ao explicar-se, também se afoga — nas águas e nos símbolos.
Luiz Sérgio Henriques, lendo Rubens Ricupero, fala do barroco como essa chave interpretativa radical: o tertium datur, o terceiro incluído, a fusão de opostos inconciliáveis. E o que seria mais barroco do que um repórter, envolto em emoção, explicando fisicamente a tragédia, misturando física com pathos, ciência com catástrofe?
Como nos lembra Henriques, somos um povo meio Barão de Münchhausen, que tenta se puxar pelos cabelos para sair do pântano. E ao fazê-lo, ainda temos que salvar o cavalo — talvez o cavalo de Troia das nossas próprias ilusões. Mas não mentimos, ao menos não tanto quanto antes, e queremos agora compreender a nós mesmos, mesmo em meio ao curto-circuito histórico que vivemos.
A enchente em Recife, como o barroco nacional, não é apenas um fenômeno natural. É uma imagem de nós mesmos. O Brasil, tal como descrito na sinfonia dialética de Henriques, não é um projeto finalizado, mas um romance em andamento — e como tal, carrega em si os traços das contradições primeiras: a autocolonização, o trauma fundador da escravidão, a miséria que escorre pelos becos e córregos como o fio elétrico desencapado.
O repórter, ao anunciar com comovente exatidão o “vazamento de corrente elétrica”, está, sem saber, narrando o drama barroco da nação: um país atravessado por dissonâncias que precisam ser compreendidas e não suprimidas. A enchente é literal e alegórica; o curto-circuito é físico e civilizacional.
Não se trata de recusar o moderno, mas de reinventá-lo sob nossos próprios termos — por isso, a voz que se ergue entre a água e o fio também é a do barroco que retorna como promessa: a de que podemos, apesar de tudo, formar um novo sujeito, uma nova forma de Brasil, se formos capazes de operar no campo do meio, entre técnica e sentimento, entre a lógica e a tragédia, entre o dado e o possível.
Como bem diz Henriques, não há redenção fácil — mas há música, há sinfonia, ainda que dissonante. E nesse ruído molhado da televisão, com a câmera tremendo sobre as águas barrentas, ouvimos o eco longínquo de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, que, se ainda estivessem por aqui, talvez também dissessem: “É preciso narrar para sobreviver.”
Rubem Barboza
Docente Permanente do PPGCSO. Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1973), mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (1980) e doutorado em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pela Sociedade Brasileira de Instrução – SBI/IUPERJ (1999). Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Pensamento Político Ibero Americano, atuando principalmente nos seguintes temas: democracia, teoria política, pensamento político ibero-americano, cultura política e iberismo. Foi Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora de 2005 a 2011.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3403225207291790 (abre em nova janela)
E-mail: rubem.barboza@ufjf.edu.br
Linha de Pesquisa PPGCSO):Cultura, democracia e instituições
Projetos de Pesquisa: Linguagens democráticas e cultura política
Grupos de Pesquisa: Estudos Ibéricos
Principais publicações:
BARBOZA FILHO, R. The languages of democracy. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. 2008, vol. 4 (Selected edition). .
BARBOZA FILHO, R. As linguagens da democracia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, p. 15-37, 2008. < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n67/03.pdf>.
BARBOZA FILHO, R. Barroco: Nossa Origem e Singularidade. Acervo (Rio de Janeiro), v. 19, p. 07-22, 2006.
BARBOZA FILHO, R. Sentimento de Democracia. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, São Paulo/SP, v. 59, p. 5-49, 2003.
BARBOZA FILHO, R. Tradição e artifício: Iberismo e Barroco na formação americana. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
Orientandos:
Doutorado
Paula Aparecida Viol Liguor
Gabriel Volpi Muzzi Martins"
Dói
Tom Zé
Maltratei
Sim, maltratei demais (doí)
Machuquei, quei, quei, quei, quei
Meu coração que bate
Que bate calado
Que bate calado
Que bate, bate
Dói, dói, dói
Oi, oi, oi, oooh
Oi, oi, oi, oi, oi, oh
Que bate e dói, dói
Que bate e dói, dói
Que bate e dói, dói
Que bate e dói, dói
Que bate e dói
Ê ê teu olhar
Ê ê luz do dia
Ê ê me dengou
Ê ê derretia corrente
Ê ê ê ventania
Ê ê teu olhar
Ê ê luz do dia
Ê ê me dengou
Ê ê derretia corrente
Ê ê
Dói, dói, dói
Dói
Maltratei
Sim, maltratei demais (doí)
Machuquei, quei, quei, quei, quei
Meu coração que bate
Que bate calado
Que bate calado
Que bate, bate
Dói, dói, dói
Oi, oi, oi, oooh
Oi, oi, oi, oi, oi, oh
Que bate e dói, dói
Que bate e dói, dói
Que bate e dói, dói
Que bate e dói, dói
Que bate e dói, dói
Dói amor
Dói com dê
Dói, dói e dói amor
Dói, dói e dói
(Dói dói dói dói dói dói dói)
Composição: Tom Zé.
Título:
Entre Correntes e Contradições: Ecos Barrocos na Crônica Brasileira Contemporânea
Resumo:
Este artigo propõe uma reflexão sobre a presença e permanência do imaginário barroco na cultura política e midiática brasileira a partir de uma análise hermenêutica de um episódio televisivo recente, reinterpretado à luz de categorias caras à tradição crítica luso-ibero-americana. Toma-se como mote um momento de cobertura jornalística em Recife, no qual um repórter anuncia, em meio a uma enchente, um “vazamento de corrente elétrica” — enunciado que se presta, em sua literalidade acidental, a leituras simbólicas. Articulam-se os pensamentos de Luiz Sérgio Henriques, Rubem Barboza Filho e Rubens Ricupero para compor um painel sobre o "tertium datur" barroco como chave interpretativa para a realidade brasileira: entre opostos que não se anulam, mas se dobram em tensão produtiva. A proposta é de uma divulgação erudita do popular, recusando tanto a elitização do saber quanto o populismo reducionista.
Palavras-chave: barroco, pensamento político brasileiro, Luiz Sérgio Henriques, Rubem Barboza Filho, Rubens Ricupero, cultura popular, hermenêutica, Gramsci
1. Introdução
O Brasil, país de contradições fundantes, parece condenado à convivência entre opostos: tradição e modernidade, fé e razão, centro e periferia, erudição e oralidade. O episódio em que um repórter da TV Globo, em meio a uma enchente recifense, anuncia a ocorrência de um "vazamento de corrente elétrica", revela-se, sob escuta mais atenta, mais que uma gafe: uma epifania. Nele, ressoa a potência do barroco enquanto linguagem nacional subterrânea, pulsando mesmo onde menos se espera.
Partimos deste fragmento de cultura popular midiática para construir uma leitura transversal da vida brasileira, convocando o pensamento político e filosófico de Luiz Sérgio Henriques, Rubens Ricupero (ou seria Rubinho?) e Rubem Barboza Filho — três intérpretes, cada um à sua maneira, do país que oscila entre o delírio e o rigor, entre a forma exuberante e a falência institucional.
2. O “Vazamento” como Alegoria: Um Relâmpago Barroco
A fórmula aparentemente absurda — "vazamento de corrente elétrica" — opera como condensação simbólica. A imagem é duplamente eficaz: primeiro, como índice de um país onde a infraestrutura física entra em colapso; segundo, como alegoria de um país cuja energia política, cultural e social escapa por fissuras discursivas. Não se trata apenas de erro semântico, mas de signo emergente: um ato falho coletivo, por onde escoa o mal-estar civilizatório.
O que vaza é também o sentido. E o que emerge, na forma do insólito, é uma chave de leitura hermenêutica: a fusão barroca dos inconciliáveis.
3. Tertium Datur: Entre a Dialética e a Dobra
A tradição racional ocidental funda-se em binarismos — verdadeiro e falso, céu e terra, tese e antítese. O barroco, porém, escapa: propõe o tertium datur, o terceiro incluído. No contexto latino-americano, a crítica de Rubens Ricupero, frequentemente invocada por Luiz Sérgio Henriques (sob o nome algo zombeteiro de “Rubinho”), contribui para pensar o Brasil como lugar do paradoxo estabilizado.
Mas talvez o “Rubinho” em questão seja outro: Rubem Barboza Filho, professor e pensador do barroco como estrutura constitutiva da cultura política ibero-americana. Sua obra, Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana, aponta que o barroco não é estilo importado, mas matriz formadora — uma resposta à modernidade ainda em fratura, uma forma de viver com o contraditório sem tentar suprimi-lo.
4. Gramsci em Jangada: A Modernidade Impossível
Luiz Sérgio Henriques, intérprete de Gramsci no Brasil, recorda-nos que entre o que morreu e o que ainda não nasceu, instala-se o interregno. Ali germinam os “sintomas mórbidos” da crise. No Brasil, este interregno parece eterno. E nele, em vez de uma superação dialética, há dobras barrocas, camadas que se sobrepõem sem jamais se resolverem.
Daí a importância de reabilitar o barroco como categoria crítica, não apenas estética, mas política e epistêmica. Ele permite compreender a convivência do arcaico com o ultramoderno, da gíria com o latim, do fio desencapado com o tratado acadêmico.
5. Conclusão: A Faísca e o Clarão
A cena recifense é, portanto, epifania de um Brasil barroco: em meio à enchente, um lampejo. A fala do repórter, grotesca e verdadeira, abre espaço para pensar os modos como o popular se inscreve no erudito, e vice-versa. A linguagem da televisão, muitas vezes tomada por alienante, aqui se faz pista de uma leitura profunda, se submetida a uma escuta barroca.
Neste sentido, a proposta de pensar um país a partir de suas falhas — de sentido, de rede elétrica, de narrativas históricas — não é um gesto de desespero, mas de esperança. Pois, como lembra o barroco, a fissura é também possibilidade de luz.
Epígrafe final:
“Quando a forma transborda o conteúdo, e o conteúdo não cabe na forma, nasce o barroco — e com ele, o Brasil.”
— Anônimo do Recife, sob a chuva, ao microfone
Referências:
Barboza Filho, R. (2000). Tradição e artifício: Iberismo e Barroco na formação americana. Editora UFMG.
Barboza Filho, R. (2006). Barroco: nossa origem e singularidade. Acervo (Rio de Janeiro), 19, 7–22.
Gramsci, A. (1999). Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Henriques, L. S. (2023). Artigos e ensaios publicados em jornais e revistas brasileiras.
Ricupero, R. (2017). A diplomacia na construção do Brasil: 1750–2016. Versal Editores.
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sexta-feira, 16 de maio de 2025
Protagonismo de Janja, com apoio de Lula, não é só o de primeira-dama – Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense
O contraponto é Michelle Bolsonaro, uma liderança evangélica, que pode vir a ser a candidata de Bolsonaro à Presidência, pois ele está inelegível
Mexeu com Janja, mexeu comigo.
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