Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
sábado, 28 de janeiro de 2023
Sempre foi genocídio
delictum continuatum
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Entenda a diferença entre Crime Continuado e Crime Permanente - Debate Direito
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Crime continuado
Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou
omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas
condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras
semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como
continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos
crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em
qualquer caso, de um sexto a dois terços. (Redação dada pela
Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes,
cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o
juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta
social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as
circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se
idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as
regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.
(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Código Penal.
DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
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"O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prática da escravidão marcou a ascensão de uma série de nações ocidentais no interior da nascente economia global moderna."
Hegel e Haiti
Susan Buck-Morss
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sábado, 28 de janeiro de 2023
Pablo Ortellado - Falar em genocídio não é exagero
O Globo
A omissão do governo Bolsonaro é compatível com a postura pessoal do presidente
A Polícia Federal instaurou inquérito para apurar se houve crime de genocídio pela crise humanitária na Terra Indígena Yanomami. Para muita gente, falar em genocídio — “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso” — é exagero retórico que banaliza e desgasta um termo que deveria ser reservado para situações gravíssimas. Mas as evidências mostram que a omissão no governo Bolsonaro foi generalizada e, se tiver também sido deliberada, caracterizará genocídio.
A crise envolve o descaso e a omissão do governo federal, que levaram a um grave surto de malária, subnutrição e contaminação por mercúrio, no contexto de avanço descontrolado do garimpo ilegal. As imagens divulgadas por organizações indígenas no começo da semana lembram os momentos mais graves da fome na África subsaariana e o Holocausto.
Foram registrados mais de 11 mil casos de malária entre os ianomâmis em 2022, e pelo menos 570 crianças morreram de subnutrição. Nove por cento de todos os casos de malária no país aconteceram num território habitado por apenas 30 mil indígenas. Na última semana, mais de mil em situação de vulnerabilidade foram resgatados e encaminhados para tratamento. A nova gestão do Ministério da Saúde precisou decretar emergência em saúde pública.
A situação foi causada pela falta crônica de médicos e outros profissionais de saúde, de remédios, vacinas e alimentos. Segundo o Ministério Público Federal, apenas 30% dos medicamentos de uma das empresas contratadas para fornecer 90 tipos de remédio foram entregues em 2022. Apenas a falta de vermífugos deixou 10 mil crianças ianomâmis desassistidas.
A situação foi agravada pela ação de garimpeiros que atuam ilegalmente no território indígena. Eles se apropriaram de pistas de pouso, impedindo a chegada das equipes de saúde. As águas paradas do garimpo ampliaram a multiplicação dos mosquitos que transmitem a malária, e o uso de mercúrio contaminou os rios. Um estudo da Fiocruz, de 2019, mostrou que 56% dos ianomâmis tinham sido contaminados por mercúrio.
Denúncia do MPF de novembro de 2021 apontou que a organização criminosa que explora o garimpo ilegal no território indígena é de tal monta que usou 23 aeronaves, consumiu 3 milhões de litros de gasolina em um ano e meio e movimentou R$ 200 milhões em dois anos de atividades. Segundo estimativa de associações indígenas, há 20 mil garimpeiros atuando na Terra Indígena Yanomami.
A situação não surgiu de repente. Inúmeros alertas e apelos foram feitos por representantes dos indígenas, ONGs e Ministério Público. A Associação dos Povos Indígenas do Brasil e outras organizações indígenas denunciaram 21 vezes à Justiça a invasão de garimpeiros durante o governo Bolsonaro. Em novembro de 2021, uma reportagem do “Fantástico”, o programa de TV mais visto aos domingos, revelou o avanço da desnutrição infantil e a falta de atendimento médico entre os ianomâmis. Nada disso parece ter despertado o empenho do governo federal para corrigir o problema.
O corpo técnico do Ibama preparou um plano de ação que, por meio de uma ofensiva de seis meses com aeronaves e barcos, poderia estrangular logisticamente o garimpo na região. O plano foi descartado. Também parece ter havido omissão do Ministério da Defesa, acusado de não ter autorizado o Exército a conter a invasão de garimpeiros ou a apoiar ações da Polícia Federal.
No âmbito mais geral, houve corte drástico nas verbas de fiscalização ambiental, redução das multas por crimes ambientais e um esforço do governo para liberar o garimpo em terras indígenas.
A omissão do governo Bolsonaro é compatível com a postura pessoal do presidente, que propôs em 1992 um Projeto de Lei que revogava a demarcação da Terra Indígena Yanomami, homologada pelo presidente Fernando Collor. O projeto foi arquivado em 1995, mas, como lembrou Lira Neto em artigo no Diário do Nordeste, foi desarquivado três vezes pelo então deputado, entre 1995 e 2007. Bolsonaro combateu obsessivamente a reserva ianomâmi. Se essa postura pessoal se refletiu numa política de omissão deliberada quando era presidente, ele cometeu genocídio e deve ser punido.
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“Dois médicos, um delegado, um comandante e o poder“
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- Senhor presidente com a palavra.
- Melhor apresentação que eu já tive.
- Se o senhor quiser que talvez a vida de apresentador seja mais fácil de ministro das Relações Institucionais...
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Eu hein? Se eu não me desguio a tempo ele me rasga até as axilas. O hômi é de morte.
Olha o Padilha
Moreira da Silva
O último malandro
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Olha o Padilha
Moreira da Silva
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Pra se topar uma encrenca, basta andar distraído
Que ela um dia aparece
Não adianta fazer prece
Eu vinha anteontem lá da gafieira
Com a minha nega Cecília
Quando gritaram: Olha o Padilha!
Antes que eu me desguiasse
Um tira forte aborrecido me abotoou
E disse: Tu és o Nonô, hein?
Mas eu me chamo Francisco
Trabalho como mouro, sou estivador
Posso provar ao senhor
Nisso um moço de óculos ray ban
Me deu um pescoção
Bati com a cara no chão
E foi dizendo: Eu só queria saber quem disse que és trabalhador
Tu és salafra e achacador
Essa macaca a teu lado é uma mina mais forte que o Banco do Brasil
Eu manjo ao longe esse tiziu
E jogou uma melancia, pela minha calça adentro, que engasgou no funil
Eu bambeei, ele sorriu
Apanhou uma tesoura e o resultado dessa operação
É que a calça virou calção
Na chefatura, um barbeiro sorridente estava a minha espera
Ele ordenou: Raspe o cabelo desta fera!
Não está direito, seu Padilha
Me deixar com o coco raspado
Eu já apanhei um resfriado, isso não é brincadeira
Pois o meu apelido era Chico Cabeleira
Não volto mais a gafieira
Nisso um moço de óculos ray ban
Me deu um pescoção
Bati com a cara no chão
E foi dizendo: Eu só queria saber quem disse que és trabalhador
Tu és salafra e achacador
Essa macaca a teu lado é uma mina mais forte que o Banco do Brasil
Eu manjo ao longe esse tiziu
E jogou uma melancia, pela minha calça adentro, que engasgou no funil
Eu bambeei, ele sorriu
Apanhou uma tesoura e o resultado dessa operação
É que a calça virou calção
Na chefatura, um barbeiro sorridente estava a minha espera
Ele ordenou: Raspe o cabelo desta fera!
Não está direito, seu Padilha
Me deixar com o coco raspado
Eu já apanhei um resfriado, isso não é brincadeira
Pois o meu apelido era Chico Cabeleira
Não volto mais a gafieira ele quer ver minha caveira
Eu, hein?
Se eu não me desguio a tempo, ele me raspa até as axilas!
O homi é de morte!
Olha o Padilha (samba, 1952) – Moreira da Silva, Ferreira Gomes e Bruno Gomes
No samba “Olha o Padilha”, Moreira da Silva brinca com a fama nada boa de certo delegado, que dizem ter realmente existido. A música foi composta em 1952 ao lado de Ferreira Gomes e Bruno Gomes, e aborda como de costume as asperezas vividas no cotidiano do morro, sempre com muito bom humor.
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Composição: Moreira da Silva.
https://www.letras.mus.br/moreira-da-silva/564414/
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Memórias De Um Sargento De Milícias
Martinho Da Vila
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Era o tempo do rei
Quando aqui, chegou
Um modesto casal feliz pelo recente amor
Leonardo, tornando-se meirinho
Deu a Maria Hortaliça um novo lar
Um pouco de conforto e de carinho
Dessa união, nasceu
Um lindo varão
Que recebeu o mesmo nome do seu pai
Personagem central da história que contamos neste carnaval
Mas um dia Maria
Fez a Leonardo uma ingratidão
Mostrando que não era uma boa companheira
Provocou a separação
Foi assim que o padrinho passou
A ser do menino tutor
A quem lhe deu toda dedicação
Sofrendo uma grande desilusão
Outra figura importante em sua vida
Foi a comadre parteira popular
Diziam que benziam de quebranto
A beata mais famosa do lugar
Havia nesse tempo aqui no Rio
Tipos que devemos mencionar
Chico Juca, era mestre em valentia
E por todos se fazia, respeitar
O reverendo amante da cigana
Preso pelo Vidigal
O justiceiro
Homem de grande autoridade
Que à frente dos seus granadeiros
Era temido pelo povo da cidade
Luisinha primeiro amor
Que Leonardo conheceu
E que Dona Maria, a outro como esposa concedeu
Somente foi feliz
Quando José Manuel
Morreu
Nosso herói
Novamente se apaixonou
Quando com sua viola
A mulata Vidinha, esta singela modinha cantou:
Se os meus suspiros pudessem
Aos seus ouvidos chegar
Verias que uma paixão
Tem o poder de assassinar
compositores: PAULO CESAR BAPTISTA DE FARIA
álbum
Memorias de um Sargento de Melicias - Martinho Da Vila
Gravadora: RCA Records Label
Ano: 2011
Faixa: 11
https://www.kboing.com.br/martinho-da-vila/memorias-de-um-sargento-de-milicias/
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Um tipo penal que gera grandes controvérsias
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Hélio Schwartsman – Um tipo penal que gera grandes controvérsias
Folha de S. Paulo
É mais fácil condenar crimes individuais do que aferir um dolo ultraespecífico
Genocídio é provavelmente o mais controverso dos tipos penais. Ele gera polêmica desde a primeira tentativa de utilização, no Tribunal de Nuremberg (1945-46). Quem conta maravilhosamente bem essa história é Philippe Sands em "East West Street", livro que já comentei aqui. Por que o enquadramento por genocídio faz tanto barulho? Basicamente, ele leva para os tribunais a distinção entre indivíduo e grupo, ou entre abordagens universalistas e identitárias, que se tornou palco central das guerras culturais.
Quem criou o conceito de genocídio foi Rafal Lemkin, um advogado polonês de origem judaica. A obra em que ele trata do tema é "Axis Rule in Occupied Europe". Lemkin fez um intenso trabalho de lobby com juízes e promotores de Nuremberg para que a cúpula nazista respondesse por genocídio. O termo até apareceu na etapa de indiciamento dos réus, mas, para desgosto de Lemkin, não foi usado nas fases posteriores.
Um dos principais responsáveis para que as acusações de genocídio não prosperassem foi Hersch Lauterpacht, também advogado, também judeu. Lauterpacht admirava o idealismo de Lemkin e partilhava seu objetivo de usar o direito internacional para prevenir massacres, mas não gostava nem um pouco do tipo penal de genocídio, que via como pouco prático (é muito difícil provar a intenção de exterminar um grupo) e politicamente perigoso. Ele preferia usar o conceito de crimes contra a humanidade (que lida com direitos individuais sem referência a grupos e põe menos ênfase na intenção).
Na ponta do lápis, Lauterpacht provavelmente tem razão. É mais fácil condenar algozes por crimes individuais do que entrar em suas mentes para aferir um dolo ultraespecífico. Mas, por razões psicológicas, as pessoas parecem fazer questão não apenas de ver perpetradores condenados, mas condenados pelo "crime certo". E aí genocídio tem muito mais apelo do que homicídios, mesmo que em série.
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crime continuado - Direito Penal e Processo Penal
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Crime continuado
última modificação: 14/02/2020 14:17
Tema criado em 13/12/2019.
Doutrina
"O crime continuado, ou delictum continuatum, dá-se quando o agente pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, mediante duas ou mais condutas, os quais, pelas condições de tempo, lugar, modo de execução e outras, podem ser tidos uns como continuação dos outros. Exemplo: uma empregada doméstica, visando subtrair o faqueiro de sua patroa, decide furtar uma peça por dia, até ter em sua casa o jogo completo; 120 dias depois, terá completado o faqueiro e cometido 120 furtos! Não fosse a regra do art. 71 do CP, benéfica ao agente, a pena mínima no exemplo proposto corresponderia a 120 anos de reclusão!
Classifica-se em comum ou simples (caput): quando presentes os requisitos acima; e específico ou qualificado (parágrafo único): quando, além disso, tratar-se de crimes dolosos, praticados com violência ou grave ameaça à pessoa e contra vítimas diferentes." (ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral (arts. 1º a 120). 8ª. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 462).
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"Há quem defina como unidade real de crimes (crime único) e há quem prefira a tese da ficção jurídica (crime único, por ficção). Outros ainda se referem a uma teoria supostamente mista, que consistiria em considerar a existência de ainda outro crime, resultante da continuação. A discussão, com o devido respeito a todos os seus autores, não oferece maiores proveitos.
Na verdade, o que resta nesse campo é o tratamento que o ordenamento jurídico escolhe para a punibilidade de fatos criminosos praticados pelo mesmo agente. No concurso material o critério escolhido foi o da cumulação de crimes, reconhecendo a autonomia geral entre eles. No concurso formal, prevaleceu a exasperação de uma das penas (a mais grave) em atenção à unidade da conduta, embora mais de um resultado (crime). E, no crime continuado, como veremos, optou-se também pela regra da exasperação da pena, ainda que evidenciada a pluralidade de ações e de crimes. A Lei, CP, portanto, trata a questão como se houvesse uma unidade de ações, em continuidade, fazendo, então, daquilo que lhe oferece a realidade fática – a pluralidade de fatos efetivamente acontecidos – uma ficção normativa, considerando-as ou regulando-as como uma mesma ação a ser punida com a pena agravada de um dos crimes." (PACELLI, Eugênio. Manual de Direito Penal. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 414).
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"A conceituação legal da espécie de crime continuado nos traz requisitos que também se encontram presentes na espécie do concurso material ou real de crimes, pois ambos ocorrem 'quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes (...)', porém, a continuidade delitiva se diferencia por exigir:
1º) que os crimes cometidos sejam da mesma espécie: crimes da mesma espécie são aqueles que possuem a mesma tipificação legal, não importando se simples, privilegiados ou qualificados, se tentados ou consumados;
2º) que os crimes tenham sido cometidos pelas mesmas condições de tempo: predomina o entendimento na jurisprudência da possibilidade de se reconhecer a espécie de crime continuado entre infrações praticadas em intervalo de tempo não superior a trinta dias (STF, HCs 107636 e 69896);
3º) que os crimes tenham sido cometidos com identidade de lugar: permite-se o reconhecimento da espécie de crime continuado entre os delitos praticados na mesma rua, no mesmo bairro, na mesma cidade ou até mesmo em cidades vizinhas (limítrofes) (RT 542/455);
4º) que os crimes tenham sido cometidos pelo mesmo modo de execução: exige-se que ocorra identidade quanto ao modus operandi do agente ou do grupo;
5º) que os crimes subsequentes sejam tidos como continuação do primeiro: exige-se que as ações subsequentes devam ser tidas como desdobramento lógico da primeira, demonstrando a existência de unidade de desígnios.
O artigo 71 do Código Penal nos fornece, portanto, os requisitos indispensáveis à caracterização do crime continuado ou da continuidade delitiva, que se constituem na prática de mais de uma ação ou omissão, tendo como resultado dois ou mais crimes da mesma espécie, que pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, os crimes subsequentes devem ser havidos como continuação do primeiro, o que conduzirá à aplicação da pena de um só dos crimes, se idênticas, aumentadas de 1/6 até 2/3, ou a aplicação da mais graves das penas, se diversas, aumentada de 1/6 até 2/3, ou, ainda, nos crimes dolosos contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, a aplicação da pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a aplicação da mais grave das penas, se diversas, aumentadas em quaisquer hipóteses até o triplo." (SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença Penal Condenatória: Teoria e Prática. 13ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 315).
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"Crime continuado e unidade de desígnio: Há duas teorias no que diz respeito à necessidade de o crime continuado ser praticado pelo agente com unidade de desígnio: 1ª Teoria objetivo-subjetiva ou mista: Não basta a presença dos requisitos objetivos previstos no art. 71, caput, do CP. Reclama-se também a unidade de desígnio, isto é, os vários crimes resultam de plano previamente elaborado pelo agente. É a posição adotada, entre outros, por Eugênio Raúl Zaffaroni, Magalhães Noronha e Damásio E. de Jesus, e amplamente dominante no âmbito jurisprudencial. Esta teoria permite a diferenciação entre a continuidade delitiva e a habitualidade criminosa. 2ª Teoria objetiva pura ou puramente objetiva: Basta a presença dos requisitos objetivos elencados pelo art. 71, caput, do CP. Sustenta ainda que, como o citado dispositivo legal apresenta apenas requisitos objetivos, as “outras semelhantes” condições ali admitidas devem ser de natureza objetiva, exclusivamente. Traz ainda o argumento arrolado pelo item 59 da Exposição de Motivo da Nova Parte Geral do CP: 'O critério da teoria puramente objetiva não revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetivo-subjetiva.' Em suma, dispensa-se a intenção do agente de praticar os crimes em continuidade. É suficiente a presença das semelhantes condições de índole objetiva. É a posição, na doutrina, de Roberto Lyra, Nélson Hungria e José Frederico Marques." (MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 7ª ed. São Paulo: Método, 2019. p. 430).
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"a) Não se deve confundir o crime continuado com o crime habitual. No crime continuado, há diversas condutas que, separadas, constituem crimes autônomos, mas que são reunidas por uma ficção jurídica dentro dos parâmetros do art. 71 do Código Penal. O crime habitual é, normalmente, constituído de uma reiteração de atos, penalmente indiferentes de per si, que constituem um todo, um delito apenas, traduzindo geralmente um modo ou estilo de vida. Exemplos: exercer ilegalmente a Medicina (art. 282 do CP); estabelecimento em que ocorra exploração sexual (art. 229 do CP); participar dos lucros da prostituta (art. 230 do CP) ou se fazer sustentar por ela.
b) Não se deve confundir crime continuado com o crime permanente. No crime continuado, há diversas condutas que, separadas, constituem crimes autônomos, mas que são reunidas por uma ficção jurídica dentro dos parâmetros do art. 71 do Código Penal. No crime permanente há apenas uma conduta, que se prolonga no tempo. Exemplo: sequestro ou cárcere privado (art. 148 do CP).
c) Não se deve confundir o crime continuado com a habitualidade criminosa (perseveratio in crimine). No crime continuado, há diversas condutas que, separadas, constituem crimes autônomos, mas que são reunidas por uma ficção jurídica dentro dos parâmetros do art. 71 do Código Penal. O delinquente habitual faz do crime uma profissão e pode infringir a lei várias vezes, do mesmo modo, mas não comete crime continuado com reiteração das práticas delituosas." (ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 192-193).
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"No crime continuado, o único critério a ser levado em conta para dosar o aumento (1/6 a 2/3, no caput, e até o triplo, no parágrafo único, do art. 71) é o número de infrações praticadas. É a correta lição de Fragoso. Lições de direito penal, p. 352. Sobre o aumento, Flávio Augusto Monteiro de Barros fornece uma tabela: para 2 crimes, aumenta-se a pena em um sexto; para 3 delitos, eleva-se em um quinto; para 4 crimes, aumenta-se em um quarto; para 5 crimes, eleva-se em um terço; para 6 delitos, aumenta-se na metade; para 7 ou mais crimes, eleva-se em dois terços. (Direito penal – parte geral, p. 447)." (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 488).
Jurisprudência
TJDFT
Crime continuado - teoria objetivo-subjetiva
"1. A continuidade delitiva é uma ficção jurídica criada pelo legislador para beneficiar o agente, sendo necessário, para o seu reconhecimento, a presença de requisitos objetivos (mesmas condições de tempo, espaço e modus operandi) e subjetivo (unidade de desígnios), de modo que os delitos subsequentes sejam um desdobramento do primeiro. 2. A teoria objetivo-subjetiva é a adotada pelo Código Penal, em especial porque o artigo 71, caput, dispõe que, além das condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes (requisitos objetivos), devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, de modo a diferenciar o agente que comete delitos em contexto de continuidade delitiva, punido com menos rigor, do criminoso habitual ou contumaz."
Acórdão 1222103, 07207158920198070000, Relator: SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, 2ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 5/12/2019.
Concurso formal e continuidade delitiva – dosimetria
"4. Se houver concomitância entre o concurso formal e a continuidade delitiva, deve ser aplicado apenas o aumento relativo ao crime continuado, considerando-se a maior pena e o número total de crimes para eleição da fração de acréscimo."
Acórdão 1198922, 20190610000086APR, Relator: JESUINO RISSATO, 3ª Turma Criminal, data de julgamento: 5/9/2019, publicado no DJE: 11/9/2019.
STJ
Crime continuado - crimes da mesma espécie cometidos em comarcas limítrofes
"6. No caso, resta clara a configuração da continuidade delitiva entre os crimes, por restar demonstrado o liame subjetivo entre as condutas, assim como preenchimento dos elementos de ordem objetiva necessários para a concessão do benefício. Perpetrados crimes da mesma espécie em comarca limítrofes, com o mesmo modus operandi, o simples fato de ter decorrido prazo um pouco superior a 30 dias entre a terceira conduta e a última conduta não afasta a viabilidade da concessão do referido benefício." HC 490707/SC
Continuidade delitiva - cálculo da prescrição
"No caso de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente (art. 119, do Código Penal). Também quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação (Súmula n. 497/STF)." HC 478748 / PR
Crime continuado - aplicação da fração de aumento de pena com base no número de infrações
"8. Esta Corte Superior firmou a compreensão de que a fração de aumento no crime continuado é determinada em função da quantidade de delitos cometidos, aplicando-se a fração de aumento de 1/6 pela prática de 2 infrações; 1/5, para 3 infrações; 1/4, para 4 infrações; 1/3, para 5 infrações; 1/2, para 6 infrações; e 2/3, para 7 ou mais infrações (HC 342.475/RN, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, DJe 23/2/2016)." AgRg no AREsp 724584 / DF
https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/a-doutrina-na-pratica/concurso-de-crimes/crime-continuado
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Qual a competência para o julgamento de genocídio?
DIREITO PROCESSUAL PENALCRIME DE GENOCÍDIOTRIBUNAL DO JÚRI
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Qual a competência para o julgamento de genocídio?
Luiz Flávio Gomes, Político
Publicado por Luiz Flávio Gomes
há 11 anos
16,7K visualizações
O genocídio é crime definido na Lei 2.889/56, que assim dispõe em seu artigo 1º:
Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
Trata-se de crime que tutela a existência de grupo racial e, por isso, tem caráter coletivo ou transindividual. O crime de genocídio em si não atrai a competência do Tribunal do Júri.
Ocorre que uma das formas de praticar genocídio, de acordo com o artigo 1º, a, da Lei 2.889/56, é por meio da morte de membros do grupo. Como se sabe, a competência constitucional para o julgamento de crimes dolosos contra a vida é do júri.
Assim, o STF ao julgar o RE 351.487/RR sublinhou que havendo concurso formal entre genocídio e homicídio doloso, compete ao Tribunal do Júri da Justiça Federal o julgamento dos crimes de homicídio e genocídio, quando cometidos no mesmo contexto fático.
Confira-se a ementa do julgado:
1. CRIME. Genocídio. Definição legal. Bem jurídico protegido. Tutela penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter coletivo ou transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Consumação mediante ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção e a outros bens jurídicos individuais, constituem modalidade executórias. Inteligência do art. 1º da Lei nº 2.889/56, e do art. 2º da Convenção contra o Genocídio, ratificada pelo Decreto nº 30.822/52. O tipo penal do delito de genocídio protege, em todas as suas modalidades, bem jurídico coletivo ou transindividual, figurado na existência do grupo racial, étnico ou religioso, a qual é posta em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens jurídicos individuais, como o direito à vida, a integridade física ou mental, a liberdade de locomoção etc..
2. CONCURSO DE CRIMES. Genocídio. Crime unitário. Delito praticado mediante execução de doze homicídios como crime continuado. Concurso aparente de normas. Não caracterização. Caso de concurso formal. Penas cumulativas. Ações criminosas resultantes de desígnios autônomos. Submissão teórica ao art. 70, caput, segunda parte, do Código Penal. Condenação dos réus apenas pelo delito de genocídio. Recurso exclusivo da defesa. Impossibilidade de reformatio in peius. Não podem os réus, que cometeram, em concurso formal, na execução do delito de genocídio, doze homicídios, receber a pena destes além da pena daquele, no âmbito de recurso exclusivo da defesa.
3. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ação penal. Conexão. Concurso formal entre genocídio e homicídios dolosos agravados. Feito da competência da Justiça Federal. Julgamento cometido, em tese, ao tribunal do júri. Inteligência do art. 5º, XXXVIII, da CF, e art. 78, I, cc. Art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal. Condenação exclusiva pelo delito de genocídio, no juízo federal monocrático. Recurso exclusivo da defesa. Improvimento. Compete ao tribunal do júri da Justiça Federal julgar os delitos de genocídio e de homicídio ou homicídios dolosos que constituíram modalidade de sua execução. (STF, RE 351.487/RR, Plenário, Rel. Min. Cezar Peluso, 03/08/2006).
Luiz Flávio Gomes, Político
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Luiz Flávio Gomes
Por Um Brasil Ético
Criador do movimento de combate a corrupção, “Quero um Brasil Ético”. Professor, Jurista, Deputado Federal por São Paulo e Membro da CCJ. Foi Delegado, Promotor de Justiça e Juiz de Direito, exerceu também a advocacia. Fundou a Rede LFG, democratizando o ensino jurídico no Brasil. Diretor-presidente do Instituto de Mediação Luiz Flávio Gomes. Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Publicou mais de 60 livros, sendo o seu mais recente “O Jogo Sujo da Corrupção”. Foi comentarista do Jornal da Cultura. Escreve para sites, jornais e revistas sobre temas da atualidade, especialmente sobre questões sociais e políticas, e seus desdobramentos jurídicos.
https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121928261/qual-a-competencia-para-o-julgamento-de-genocidio
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Haiti
Gilberto Gil
Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
Composição: Caetano Veloso / Gilberto Gil.
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sexta-feira, 27 de janeiro de 2023
Flávia Oliveira - Sempre foi genocídio
O Globo
A tragédia dos ianomâmis de Roraima nunca cessou
O Brasil adormeceu no último sábado assombrado com uma brutalidade recorrente, ora transmitida em rede nacional. A tragédia dos ianomâmis de Roraima, remanescentes dos mil povos indígenas que habitavam Pindorama até a chegada dos invasores portugueses, nunca cessou. Em 1500, pesquisadores estimam que o território abrigava pelo menos 3 milhões de habitantes nativos; dois terços viviam no litoral. Em século e meio foram reduzidos a não mais de 700 mil. Por homicídio ou aculturação forçada, foram dizimados. Sempre foi genocídio.
— Por meio direto ou por dissolução na ideia de população brasileira, o projeto sempre foi genocida — diz a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, professora na Universidade de Brasília (UnB), recém-indicada diretora-geral do Arquivo Nacional.
Em 1970, quando publicou “Os índios e a civilização”, resultado de mais de uma década de pesquisas, o antropólogo Darcy Ribeiro, grande intelectual e político brasileiro que completaria 100 anos em 2022, já denunciava o desaparecimento de 88 de 230 etnias encontradas na virada do século passado. Somente em 1991, o IBGE incluiu os indígenas no Censo Demográfico. Desde então, a participação dos nativos na população total, impulsionada pela autodeclaração e pelo reconhecimento de direitos fundamentais, saiu de 0,2% para 1,6%. Em 2010, o Brasil tinha 896.917 indígenas, dos quais 572.083 em área rural — os dados do Censo 2022 ainda não estão disponíveis.
Brasileiras e brasileiros podemos — e devemos — nos horrorizar com a barbárie perpetrada contra os povos originários, de modo geral, e contra os ianomâmis, em particular. Só não têm direito à surpresa. O país é cruel desde sempre; e a brutalidade se intensificou nos quatro anos de Jair Bolsonaro no Planalto. O presidente neobandeirante nem quando deputado federal escondeu a vocação para Borba Gato. Apoiador da corrida do ouro contemporânea, sempre defendeu o garimpo e desprezou territórios e povos indígenas. Ainda assim, foi eleito com 57,7 milhões de votos em 2018 e, quatro anos depois, derrotado na campanha à reeleição com votação ainda maior (58,2 milhões).
As imagens de adultos e crianças — passado e futuro, portanto — famélicos, doentes, humilhados são de partir o coração, de envergonhar a nação. Os indígenas foram abandonados à própria sorte para definhar e morrer pela supressão de alimentos, pela contaminação da água, pela falta de medicamentos, pelo estímulo ao alcoolismo, pelas agressões físicas, pela violência sexual contra meninas no limiar da puberdade. Em quatro anos, 570 ianomâmis com menos de 5 anos de idade perderam a vida. Nos últimos dias, mil indígenas foram resgatados, cinco dezenas de crianças internadas com desnutrição e outras doenças tratáveis.
Relatório de abril de 2022 do Instituto Socioambiental traz relatos desoladores. Em três meses, Funai, Exército e autoridades do governo Bolsonaro receberam uma dúzia de ofícios denunciando a tragédia. Em nota no início da semana, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF) elencou medidas judiciais e extrajudiciais tomadas nos últimos tempos para socorrer os ianomâmis. Em novembro passado, os procuradores relataram ao então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e ao secretário especial de Saúde Indígena, coronel Reginaldo Ramos Machado, irregularidades e deficiências no atendimento, incluindo falta de remédios; sugeriram contratação de profissionais; alertaram sobre a alta incidência de malária, mortalidade e desnutrição infantil. Na Justiça, foram três ações solicitando instalação de bases de proteção etnoambiental; plano emergencial de enfrentamento à Covid-19; combate a ilícitos ambientais e expulsão de garimpeiros.
Antes disso, em agosto de 2021, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) já tinha encaminhado ao Tribunal Penal Internacional denúncia de genocídio e crime contra a humanidade por extermínio, perseguição, desmonte das instituições de proteção e atos desumanos. A entidade voltou à Corte de Haia em meados do ano passado para acusar o então presidente e o governo de morosidade nas investigações sobre os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips na Terra Indígena do Vale do Javari, no Amazonas. Nesta semana, a Polícia Federal apontou o traficante Rubens Villar, o Colômbia, como mandante do crime. A Univale, que representa os indígenas da região, cobra a continuidade das investigações para debelar o crime organizado e identificar a conivência de políticos locais.
No Sul da Bahia, dois jovens pataxós foram mortos a tiros por disputa fundiária, dias depois da posse de Sonia Guajajara no inédito Ministério dos Povos Indígenas. O Brasil é um dos países que mais matam defensores de direitos humanos no planeta, indígenas e quilombolas entre eles. Anteontem, a deputada federal eleita Célia Xakriabá marchou em Brumadinho (MG) com indígenas afetados pelo rompimento de uma barragem de resíduos da Vale, que deixou 270 mortos em janeiro de 2019. A mineradora, uma prestadora de serviços, a Tüv Süd, e 16 executivos tornaram-se réus somente nesta semana.
O rol de violações contra povos indígenas no Brasil começou em 1500 e não terminou. O Estado deve reconhecimento e reparação aos donos da terra; a sociedade, um pedido sincero de desculpas; o Judiciário, a condenação dos genocidas do século XXI, do Planalto à planície, do topo à base, de cabo a rabo.
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sábado, 28 de janeiro de 2023
Oscar Vilhena Vieira* - STF e TSE não vacilaram na defesa da democracia
Folha de S. Paulo
E calibrar o emprego desses instrumentos não é uma tarefa simples
A ideia de que a democracia deve se defender de maiorias tomadas de fúria não é nova. Freios e contrapesos nada mais são do que ferramentas voltadas a arrefecer a paixão circunstancial das maiorias.
A discussão sobre a necessidade de criação de mecanismos especiais para defender a democracia de seus inimigos abertos ganhou força, no entanto, com a ascensão ao poder do fascismo e do nazismo, nos anos 1930. A ironia de Goebbels, de que "uma das melhores pilhérias sobre a democracia sempre será a de que ela própria proporcionou aos seus mortais inimigos os meios pelos quais foi aniquilada", não pode ser desprezada.
O ponto de partida dessa discussão deu-se com a publicação de dois textos seminais de Karl Loewenstein, na American Political Science Review, em 1937. Jurista alemão de origem judaica, Loewenstein havia sido aluno de Max Weber, que desconfiava da democracia de massas. A título de curiosidade, esteve no Brasil durante o Estado Novo, quando escreveu um clássico sobre legalismo autoritário, chamado "Brazil Under Vargas", publicado em 1942.
Sua preocupação fundamental era com a "irracionalidade" e o "emocionalismo" promovidos pelo nazi-fascismo, contra o que a política democrática e liberal não conseguiria concorrer. Dessa forma, era necessário convocar as instituições constitucionais para defender a democracia. Assumir uma postura "neutra", como propunha Kelsen, ou mesmo uma atitude "fundamentalista liberal" equivaleria a cometer um suicídio institucional.
A proposta de restringir a participação dos inimigos da democracia no processo político, promovida pela doutrina da "democracia militante" de Loewenstein, sempre foi vista com ceticismo por liberais e democratas, por motivos óbvios.
Na prática, entretanto, diversas democracias constitucionais que surgiram no pós-Guerra ou após períodos autoritários, como a brasileira, inseriram mecanismos de autodefesa em suas novas leis e constituições.
A possibilidade de suspensão de partidos políticos antidemocráticos, o poder de controlar emendas contrárias a princípios do Estado democrático de Direito conferido às supremas cortes, a prerrogativa de restrição da liberdade de expressão ou de manifestação, em casos especiais, assim como a criminalização daqueles que ameacem ou atentem contra as instituições, são exemplos dessas ferramentas institucionais de autodefesa democrática.
Calibrar o emprego desses instrumentos não é tarefa simples, como demonstram as enormes controvérsias em torno da doutrina da "democracia combatente", concebida pela Corte Constitucional alemã a partir dos anos 1950.
O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral não vacilaram em assumir um papel militante na defesa do processo democrático nos últimos anos. A capitulação de órgãos como a PGR e a constante tensão com os militares exigiram ainda mais ousadia desses tribunais. Se a democracia não sucumbiu nesse período, muito se deve a postura dessas cortes.
A resposta do STF à intentona de 8 de janeiro não tem sido menos robusta. Dois são os principais desafios do Supremo neste momento. O primeiro deles é aplicar a lei de forma rigorosa em relação àqueles que conspiraram contra nossas instituições, especialmente aqueles que se encontram no topo da cadeia de comando dos atos golpistas. O segundo desafio é não restringir desnecessariamente os direitos processuais dos investigados.
A autoridade do Supremo será tanto maior quanto mais fielmente aplicar a lei aos que serão julgados por conspirar contra a próprio império do direito.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP
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sábado, 28 de janeiro de 2023
Marco Aurélio Nogueira* - O jogo já está sendo jogado
O Estado de S. Paulo.
A terra ainda treme. Além da tensão inerente ao pós-golpe, há sequelas do período Bolsonaro e a necessidade premente de que o governo mostre a que veio
Muita coisa ocorreu depois dos atos terroristas de 8 de janeiro. Prisões e revelações sobre os principais personagens da balbúrdia golpista, esforços governamentais para controlar a situação, indícios claros de que a articulação que levou àquela selvageria é muito maior do que se imaginava. Apuração de responsabilidades é um desdobramento lógico, indispensável para que se mude o rumo da situação. É impossível fazer de conta que nada aconteceu, que não há criminosos a serem julgados e presos.
A terra ainda treme. Além da tensão inerente ao pós-golpe, há as sequelas do período Bolsonaro e a necessidade premente de que o governo mostre a que veio. Desafios terão de ser enfrentados.
O primeiro diz respeito à questão militar, ao posicionamento institucional das Forças Armadas no novo quadro político. Enredam-se aí fios desencapados da história republicana, manipulações ideológicas que contaminaram parte dos militares nos últimos anos e expectativas de que o novo governo acerte os passos com Exército, Marinha e Aeronáutica. Discursos que acusem os militares de serem “intrinsecamente golpistas” criam arestas improdutivas. O caminho passará por negociações e ajustes difíceis, que não poderão desculpar erros e responsabilidades, nem ser reduzidos a “acertos de conta”. Para que o poder civil prevaleça, as Forças precisam funcionar como instituições de Estado, equacionar seus problemas internos, seus programas educacionais, sua “narrativa” para a caserna e para a sociedade. O governo deve ajudá-las a dar esse passo.
O segundo diz respeito à volta do crescimento, do emprego e da renda. Não há como saber se algumas dissonâncias entre a equipe de Fernando Haddad e o núcleo político-petista do governo se devem a futricas palacianas, a disputas por poder ou a divergências teóricas. A política econômica ainda não foi explicitada, em que pese Haddad defender a responsabilidade social e um novo arcabouço fiscal. Embates entre “desenvolvimentistas” e “fiscalistas” ficaram para trás, o que não significa que não possam ressurgir.
O terceiro desafio é mais complexo. Diz respeito à população, que até agora ainda flutua ao léu, à espera de sinais que a movimentem. Os milhões de votos recebidos por Jair Bolsonaro continuam vivos, traduzidos em desconfiança e má vontade com o novo governo. O 8 de janeiro causou repulsa generalizada, aumentou o capital político de Lula da Silva e o ajudou a dissolver cristalizações bolsonaristas. A rejeição ao PT crescerá caso o governo derrape ou fracasse na resolução dos problemas com que deve lidar.
O antipetismo está sustentado por um assustador processo de deseducação política e fanatismo. O 8 de janeiro contou com articulação profissional, mas também mobilizou pessoas sem convicções cívicas razoáveis, movidas por ideias rasas e desinformação, convencidas de suas próprias verdades. Deve ter havido torcida para que o golpe funcionasse. O bolsonarismo sempre se alimentou de um sentimento social de hostilidade à política e às instituições. Esse sentimento por pouco não venceu as eleições. Não desaparecerá de um dia para outro.
Falas imprudentes, brigas de ministros, comportamentos revanchistas, bravatas provocativas e pressa reformadora não só desgastarão o governo como poderão chamuscar os compromissos de coalizão ampla que demarcaram sua constituição. Não terão, por óbvio, qualquer efeito positivo, nem ajudarão a que se dissolva a rejeição ao PT e a Lula.
Por tudo isso, o governo terá de atuar com o máximo de equilíbrio, tanto para fora (a opinião pública) quanto para dentro, ou seja, para as correntes petistas, os partidos, o Congresso e o Judiciário. Terá de receber de braços abertos as críticas e sugestões que lhe forem dirigidas, até porque não possui nenhum mapa do tesouro. Seu desafio é estabelecer um novo padrão de relacionamento com o Legislativo e acalmar o fogo que arde nas beiradas. Uma base de sustentação é vital, mas ela não virá sem largueza de visão. Uma boa dose de flexibilidade do Executivo será indispensável, mas não poderá implicar a concessão de espaços administrativos que impeçam a definição das políticas governamentais e o planejamento de suas ações.
A moderação, o espírito conciliador e a inteligência política serão peças-chave. Assim como a firmeza e a determinação. Democracia implica conflito e disputa, não o sossego dos cemitérios. O jogo já está sendo jogado, mas os jogadores ainda buscam as posições definitivas. No Congresso, a oposição a Lula parece estar encolhida, mas os alinhamentos ainda não se completaram. Poderá surgir uma variante de direita distante do bolsonarismo, ou aparecer um centro afastado do “Centrão” e disposto a dar dignidade ao liberalismo. Qualquer dessas hipóteses mudará a correlação de forças e exigirá novos cálculos do governo.
O País precisa de paz. De um pacto com partidos e instituições, mas também de um contrato social que traga os brasileiros para um patamar mais elevado de convivência.
*Professor titular de teoria política da Unesp
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