sexta-feira, 24 de setembro de 2021

O TÍMIDO JOSÉ

(José Borba) ***
*** www.estacoesferroviarias.com.br Bondes de São Paulo -- Trens de passageiros do Brasil *** Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. A garoa descia brincando no ar. Levantou a gola do paletó, desceu a aba do chapéu, enfiou as mãos nos bolsos das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro já tomou conta do Anhangabaú. Começou a bater com os pés no asfalto molhado. Olhou o relógio: dez para as duas. A sensação sem propósito de estar sozinho, sozinho, sem ninguém, é o que o desanimava. Não podia ficar quieto. Precisava fazer qualquer cousa. Pensou numa. Olhou o relógio: sete para as duas. Tarde. A Lapa é longe. De vez em quando ia até o meio dos trilhos para ver se via as luzinhas do bonde. O sujeito ao lado falou: É bem capaz de já ter passado. Medindo os passos foi até o refúgio. Alguém atravessou a praça. Vinha ao encontro dele. Uma mulher. Uma mulher com uma pele no pescoço. Tinha certeza que ia acontecer alguma cousa. A mulher parou a dois metros se tanto. Olhou para ele. Desviou os olhos, puxou o relógio. - Pode me dizer que horas são? - Duas. Duas menos três minutos. Agradeceu e sorriu. Se o Anísio estivesse ali diria logo que era um gado e atracaria o gado. Ele se afastou. Disfarçadamente examinava a mulher. Aquilo era fácil. O Anísio? O Anísio já teria dado um jeito. Na boca é que a gente conhece a sem-vergonhice da mulher. Parecia nervosa. Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa. E caminhou na direção dele. Ele ficou frio sem saber que fazer. Passou ralando sem um olhar. Tomou o viaduto. O bonde vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou para trás. Mais uns segundos perdia o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. Achou que era uma besteira não ir dormir. Resolveu ir. O bonde parou diante do refúgio. Seguiu. Correndo um bocadinho ainda pegava. Agora não pegava mais nem que disparasse. Ficar com raiva de si mesmo é a cousa pior deste mundo. Pôs um cigarro na boca. Não tinha fósforos. Virando o cigarro nos dedos seguiu pelo viaduto. Apressou o passo. Não se enxergava nada. De repente era capaz de esbarrar com a mulher. Tomou a outra calçada. Esbarrar não. Mas precisava encontrar. Afinal de contas estava fazendo papel de trouxa. Quem sabe se seguiu pela Rua Barão de Itapetininga? Mais depressa não podia andar. Garoar, garoava sempre. Mas ali o nevoeiro já não era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no caminho da Lapa. Se encontrasse a mulher bem. Se não encontrasse paciência. Não iria procurar. Iria é para casa. Afinal de contas era mesmo um trouxa. Quando podia não quis. Agora que era difícil queria. Estava parada na esquina. E virada para o lado dele. Foi diminuindo o andar. Ficou atrás do poste. Procurava ver sem ser visto. Alguma cousa lhe dizia que era aquele o momento. Porém não se decidia e pensava no bonde da Lapa que já ia longe. Para sair dali esperava que ela andasse. Impacientava-se. BARBEARIA BRILHANTE. Dezoito letras. Se continuava parada é que esperava alguém. Se fosse ele era uma boa maçada. Sua esperança estava na varredeira da Limpeza Pública que vinha chegando. A poeira a afugentaria. Nem se lembrava de que estava garoando. Pôs o lenço no rosto. A mulher recomeçou a andar. Até que enfim. E ele também rente aos prédios. Agora já tinha desistido. Viu as horas: duas e um quarto. Antes das três e meia não chegaria na Lapa. Talvez caminhando bem depressa. Precisava desviar da mulher senão era capaz de parar de novo e pronto. Daria a volta na praça. Ela tinha tomado a rua do meio. Então reparou que outro também começara a seguir a sujeita. Um tipo de capa batendo nos calcanhares e parecia velho. Primeiro teve curiosidade. Curiosidade má. Depois uma espécie de despeito, de ciúme, de orgulho ferido, qualquer cousa assim. Nem ele nem ninguém. Cada vez apressava mais o passo. O tipo parou para acender um cigarro. Era velho mesmo, tinha bigodes brancos caídos, usava galochas e se via na cara a satisfação. Não. Isso é que não. Nem ele nem o velho nem ninguém. Nem que tivesse que brigar. Mas por que não ele mesmo? Resolveu: seria ele mesmo. Via a ponta da pele caída nas costas. De repente ela parou e sentou-se num banco. Sentia o velho rente. E agora? Fez um esforço para que as pernas não parassem. A mulher virou o rosto na direção dele. Quem é que estava olhando? O velho? Mas a sujeita endireitou logo o rosto, abaixou a cabeça. Vai ver que o olhava sem ver. Passou como um ladrão, o coração batendo forte e sentou-se dois bancos adiante. Prova de audácia sim. Mas não podia ser de outro modo. O velho também passou, passou devagarzinho, depois de passar ainda se virou mas não parou. Tinha receio de suportar o olhar do velho. Começou a passar o lenço no rosto. Já era pavor mesmo. Por isso tremia. O velho continuou. Dava uns passos, virava para trás, andava mais um pouquinho, virava de novo. No fim da praça ficou encostado numa árvore. A sujeita se levantou, deu um jeito na pele, veio vindo. Com toda a coragem a fixava. Impossível que deixasse escapar de novo a ocasião. Bastaria um sorrisozinho. Mas nem um olhar quanto mais um sorriso. Mulher é assim mesmo: facilita, facilita até demais e depois nada. Só dando mesmo pancada como recomendava o Anísio. Bombeiro é que sabe tratar mulher. Já estava ali mesmo: seguiu-a. O velho estava esperando com todo o cinismo. O gozo dele foi que quando ela ia chegando pegou outra rua do jardim e o velho ficou no ora veja. Vá ser cínico na praia. Não é que o raio da sujeita apressou o passo? Melhor. Quanto mais longe melhor. Preferia assim porque no fundo era um trouxa mesmo. Reconhecia. Ela esperou que o automóvel passasse (tinha mulheres dentro cantando) para depois atravessar a rua correndo e desaparecer na esquina. Então ele quase que corria também. Dobrou a esquina. Um homem sem chapéu e sem paletó (naquela umidade) gritava palavrões na cara da sujeita que chorava. À primeira vista pensou até que não fosse ela. Mas era. Dando com ele o homem segurou-a por um braço (ela dizia que estava doendo) e com um safanão jogou-a para dentro do portão. E fechou o portão imediatamente. Uma janela se iluminou na casinha cinzenta. Ficou ali de olhos esbugalhados Alguém dobrou a esquina. Era o velho. Maldito velho. Então seguiu. E o outro atrás. Nem tinha tempo de pensar em nada. Lapa. Lapa. Puxou o relógio: vinte e cinco para as três. Um quarto para as quatro em casa. E que frio. E o velho atrás. Virou-se estupidamente. O velho fez-lhe um sinal. O quê? Não queria conversa. Não falava com quem não conhecia. Cada pé dentro de um quadrado no cimento da calçada. Assim era obrigado a caminhar ligeiro. - Faz favor, seu! *** *** http://www.soleis.com.br/AlcantaraMachado/AlcantaraLima0-53.htm *** *** ***
*** A (re)construção da referência em contos literários Mônica Magalhães Cavalcante Universidade Federal do Ceará Vicência Maria Freitas Jaguaribe Universidade Estadual do Ceará ABSTRACT: Penetrating through the meaning of a text, specially a literary one, implies engendering many referencial processes. We consider the presupposition that the referent in the literary text is determined not only by their contexts of production and reception, but also by other superposed, co-existent conditioning facts. We analyze, in this paper, the different modulation of referents and the different ways of designating them as they (re)construct the meanings in the literary narrative. PALAVRAS-CHAVE: expressões referenciais; construção dos sentidos; recategorização. 1 Entenda-se por estrutura profunda, ou nível fundamental, o nível mais abstrato do percurso de geração do sentido de um discurso, onde se situam as categorias semânticas que estão na base da construção de um texto. Esse nível constitui-se de uma oposição entre dois termos que pertencem a um mesmo eixo semântico. 279 ressalta o paradoxo da condição humana: o homem, ser social por excelência, é às vezes levado a isolar-se por incapacidade de comunicar-se. Ao longo da narrativa, a palavra “Lapa” é empregada dez vezes, sem nenhuma determinação ou predicação. O que mostraremos é como essa palavra, que no início do conto indicava simplesmente o bairro onde morava José Borba, acaba transformando-se, no final, em um verdadeiro grito de socorro da personagem, num processo não de recategorização lexical – de vez que o item lexical é precisamente o mesmo -, mas de recategorização apenas cognitiva, que o leitor vai processando aos poucos. Para que se alcance a dimensão das transformações que sofre a palavra Lapa, convém lembrar um de seus significados dicionarizados: grande pedra ou laje que forma um abrigo. É importante, para se acompanhar a análise, transcrever os trechos em que a palavra aparece: (1) “Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa.” (2) “A sensação sem propósito de estar sozinho, sozinho, sem ninguém, é o que o desanimava. Não podia ficar quieto. Precisava fazer qualquer cousa. Pensou numa. Olhou o relógio: sete para as duas. Tarde. A Lapa é longe.” (3) “O bonde vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou para trás. Mais uns segundos perdia o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. Achou que era uma besteira não ir dormir. Resolveu ir.” (4) “Mas ali o nevoeiro já não era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no caminho da Lapa. Se encontrasse a mulher bem. Se não encontrasse paciência.” (5) “Estava parada na esquina. E virada para o lado dele. Foi diminuindo o andar. Ficou atrás do poste. Procurava ver sem ser visto. Alguma cousa lhe dizia que era aquele o momento. Porém não se decidia e pensava no bonde da Lapa que já ia longe.” (6) “A mulher recomeçou a andar. Até que enfim. E ele também rente aos prédios. Agora já tinha desistido. Viu as horas: duas e um quarto. Antes das três e meia não chegaria na Lapa.” (7) “Nem tinha tempo de pensar em nada. Lapa. Lapa. Puxou o relógio: vinte e cinco para as três. Um quarto para as quatro em casa. E que frio. E o velho atrás. Virou-se estupidamente. O velho fez-lhe um sinal. O quê? Não queria conversa. Não falava com quem não conhecia.” (8) “Corria com as mãos fechando a gola do paletó. Só depois de muito tempo pegou no passo de novo. Porque estava ofegante a garganta doía com o ar da madrugada. Lapa. Lapa. E pensava: A esta hora é capaz de ainda estar apanhando.” Na ocorrência (1), segunda linha do texto, antes de José Borba se encontrar com a mulher, “Lapa” indica simplesmente o bairro em que ele morava. Em (2), a palavra começa a adquirir um matiz diferente e parece indicar algo que está além do plano meramente físico. Naquele momento, a personagem começa a mostrar os primeiros sinais de angústia por estar só. Nesse contexto, a frase em discurso indireto-livre “A Lapa é longe.” expressa mais a angústia de Borba do que uma distância real. A ocorrência (3) dá-se depois de surgir na escuridão uma mulher, que lhe pergunta as horas. A presença da mulher deixa em Borba uma forte impressão, mas ela segue em frente, deixando-o com raiva de si mesmo por não ter tido a capacidade de retê-la a seu lado. Nesse momento, aponta o bonde, que ele acaba perdendo. É quando é empregada a frase “O último bonde que ia para a Lapa.”, que, com a forma de discurso indireto-livre, sugere um lamento. É como se ele ansiasse pelo refúgio de sua casa, mas não conseguisse alcançá-lo. Depois de perder o ônibus, muito mais por uma decisão íntima do que propriamente por incapacidade real de alcançá-lo, Borba continua a procurar a mulher na escuridão. Nesse momento revela-se o comportamento típico dos tímidos: o temor ao convívio de outras pessoas e, ao mesmo tempo, a necessidade dele. Em (4), a frase, que também soa como discurso indiretolivre, confirma a impossibilidade de se ler a palavra Lapa como o simples referente do bairro paulistano. E, se é verdade que em (5) a palavra perde algo de sua força sugestiva, por vir dentro do sintagma “no bonde da Lapa”, forçando o leitor a ler somente o nome do bairro, em (6) ela começa a recuperar seu valor conotativo. Atente-se para o crescendo de angústia do protagonista: seguindo furtivamente a mulher, ele vê um velho fazer o mesmo; e, por fim, os dois presenciam a aproximação de um terceiro homem, que segura a mulher pelo braço e, com palavrões e um safanão, empurra-a para uma casa cinzenta. Nesse momento, José Borba fica totalmente transtornado, e o discurso narrativo sugere sua angústia por meio de frases curtas, algumas sincopadas, algumas em discurso indireto-livre, como se observa em (7). Nesse contexto a palavra Lapa adquire um valor fortemente conotativo, desaparecendo dela qualquer sugestão da denominação do bairro. Veja-se que, em (8), o processo de recategorização da palavra se completa: nas duas ocorrências finais, a palavra parece formar frases interjectivas; são gritos de socorro e de dor de alguém sufocado pela angústia, pelo desespero de se reconhecer incapaz de concretizar um dos maiores anseios humanos: sair de si mesmo e encontrar-se com o outro. E Lapa, aí, passa a ser lida simplesmente como um abrigo, um lugar de refúgio, no qual José Borba deseja esconder-se. Entenda-se, portanto, que as repetições nem sempre são co-significativas e que, além disso, nem sempre instauram uma relação de correferencialidade. No conto em exame, por exemplo, o referente de Lapa foi progressivamente transformado, até constituir-se num outro referente, ao qual se aplicaria o sentido original do termo, o sentido dicionarizado, que desaparecera da memória do usuário da língua no processo de nomeação do bairro, e que agora o conto recupera. Como mostraremos a seguir, às vezes, as reiterações podem monitorar a interpretação do leitor, conduzindo-o ora para um significado e para um dado referente, ora para outro, orquestrando, por esse recurso, um fabuloso jogo de ambigüidades. 3. As repetições e a estruturação das ambigüidades No conto Betsy, de Rubem Fonseca, a referenciação construída pelas repetições é a grande responsável pela ambigüidade, neste caso, suporte da significação. Apoiando-se 2 As figuras “são palavras ou expressões que correspondem a algo existente no mundo natural” (cf. Fiorin, 1999), entendendo-se por mundo natural não só o mundo real, mas também o fictício. As figuras (juntamente com os temas) concretizam os esquemas narrativos. 3 O nível discursivo é o nível em que se concretizam as formas abstratas do nível narrativo. Enquanto o segundo se caracteriza pela invariabilidade, pois constitui uma das estruturas de base dos textos, o primeiro caracteriza-se pela variabilidade: textos variados possuem estruturas discursivas variadas. 280 numa estrutura profunda que joga com a dicotomia companhia vs. solidão, o conto focaliza os últimos dias da relação de um homem com um animal de estimação, Betsy. A solidão afirma-se no final do conto, figurativizada2 pela morte do animal. No nível discursivo3 , temos a concretização dos papéis actanciais em dois únicos atores: Betsy e o homem, introduzidos logo no primeiro parágrafo da narrativa, constituído de uma única frase: “Betsy esperou a volta do homem para morrer”. A partir do segundo parágrafo, o narrador inicia um jogo de escondeesconde com o leitor, no qual a correferenciação é a única arma: os referentes Betsy e o homem vão sendo retomados, ora por elementos co-significativos, pela reiteração de Betsy e de o homem; ora por pronomes retos ou oblíquos: “ele”, “ela”, “o”, “a”; ora por sucessivas elipses; ora por pronomes possessivos: “seu”, “sua”; e uma única vez pela expressão recategorizadora “os dois”. Tais elementos referenciais ocultam a verdadeira identidade de Betsy, e o leitor é levado a fazer uma primeira leitura do conto pela isotopia4 humana. Essa isotopia parece confirmar-se, ao longo da leitura, por certas seqüências de ação que apelam para o conhecimento de mundo do leitor, conduzindoo, propositalmente, na construção de um esquema mental de relacionamento a dois, como em “os dois passearam no calçadão da praia”. O quadro se completa com a descrição da agonia de ambos: (9) “o homem permaneceu com Betsy na cama durante toda a sua agonia, acariciando o seu corpo, sentindo com tristeza a magreza de suas ancas. No último dia, Betsy, muito quieta, os olhos azuis abertos, fitou o homem com o mesmo olhar de sempre, que indicava o conforto e o prazer produzidos pela presença e pelos carinhos dele. Começou a tremer e ele a abraçou com mais força. (...) A noite inteira, o homem passou acordado ao lado de Betsy, afagandoa de leve, em silêncio, sem saber o que dizer. Eles haviam vivido juntos dezoito anos.” Apesar de os elementos indicados sugerirem que Betsy é um ser humano, há determinadas expressões – tratadas na teoria semiótica como conectores de isotopia -, que indicam uma nova direção de leitura, agora pela isotopia não humana: “a magreza das suas ancas”; “a língua para fora, pendendo do lado da boca.”; “ela passou a golpear a barriga com os dois pés juntos, como fazia ocasionalmente, apenas com mais violência”. Vale notar que essa segunda isotopia só se confirma nas últimas linhas do conto quando o homem põe o corpo de Betsy dentro de uma caixa de papelão: (10) “Cuidadosamente, colocou o corpo de Betsy dentro da caixa. Com a caixa debaixo do braço, caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos. Não queria que o vissem assim.” Queremos ressaltar que o fato de o enunciador ter lançado mão da reiteração do sintagma “o homem”, repetido no texto doze vezes, para designar a personagem masculina, enquanto a feminina é chamada de Betsy, aponta para duas direções: primeiro, que pode haver, nessa reiteração, a marcação de um traço nãohumano em Betsy, sugerido pela insistência de se marcar tão enfaticamente o traço humano da personagem masculina; segundo, que pode haver uma tentativa de generalizar o drama vivido pela personagem – não é um homem em particular que vivencia o problema da solidão, mas a humanidade em geral. Observe-se que a convivência do homem com Betsy não deixa de ser uma tentativa frustrada de fugir da solidão; Betsy, a nosso ver, preencheria um espaço que só pode ser preenchido por um ser humano: o espaço das afinidades afetivas e da troca de experiências. Como vemos, se, no discurso ordinário, a construção da referência é um processo dinâmico, na literatura ela se move sobre ambigüidades contextuais, exacerbando ainda mais esse dinamismo, que exige do leitor maior elasticidade nas expectativas que cria. No conto Betsy, uma vez que é por meio da referência que se constrói a ambigüidade que sustenta a narrativa, as anáforas por repetição passam a ser elementos de base. 5. Reflexões finais Não há como não cair na tentação de enfatizar – por mais que isso seja lugar comum – as especificidades do texto literário e a necessidade de o leitor desse texto estar sempre atento às flutuações do nível da expressão. É nele que se inscreve não só o significado, mas também o trabalho de recriação da língua que somente a literatura consegue fazer. É nessa instância que se desenha o valor particular da trama referencial, que, por ser responsável ora pela compreensão das relações textuais mais simples, ora pela recuperação dos significados mais complexos, ajuda a desvendar os “segredos” (e por que não dizer os “mistérios”?) desse evento que, para Koch (2002), é um “‘milagre’ que se repete a cada nova interlocução” – o texto. Referências bibliográficas APOTHÉLOZ, Denis. Rôle et fonctionnement de l’anaphore dans la dynamique textuelle. Tese (Doutorado) - Université de Neuchâtel, 1995. BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas, 2000. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1989. MACHADO, Antônio de Alcântara. In: ____. Novelas Paulistanas: Brás, Bexiga e Barra Funda, Laranja da China, Mana Maria, contos avulsos. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. .p. 99-103. (Coleções Sagarana, v. 84.) GUIMARÃES, Eduardo. Textualidade e enunciação. In: VALENTE, André (org.). Aulas de português – perspectivas inovadoras. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 113-21. KOCH, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Contexto, 2002. KOCH, I. G.; MARCUSCHI, L. A. Processos de referenciação na produção discursiva. DELTA 14, nº Especial, 1998. MACHADO, Antônio de Alcântara. In: ____. Novelas Paulistanas. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. MONDADA, Lorenza. Verbalisation de l’espace et fabrication du savoir: approche linguistique de la construction des objets de discours. Tese (Doutorado) - Université de Lausanne, 1994. SCHWARZ, M. Indirekte Anaphern in Texten. Tübingen: Niemeyer, 2000. VILELA, Mário; KOCH, Ingedore G. V. Gramática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina, 2001. WHITESIDE, Anna. “Conclusion”. In: On referring in literature. s/d. /xerocopiado/ 4 Por isotopia entenda-se a redundância, a reiteração ou a recorrência de traços semânticos, que apontam ao leitor uma direção de leitura. *** *** http://www.gelne.com.br/arquivos/anais/gelne-2002/artigos/01_teoria_e_analise_linguistica/artigo97.pdf *** *** Rubem Fonseca / Betsy ***
*** Rubem Fonseca BIOGRAFIA Betsy
*** Rubem Fonseca / Betsy (De otros mundos) Betsy esperou a volta do homem para morrer. Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite incomum. Depois surgiram outros sintomas, ingestão excessiva de água, incontinência urinária. O único problema de Betsy até então era a catarata numa das vistas. Ela não gostava de sair, mas antes da viagem entrara inesperadamente com ele no elevador e os dois passearam no calçadão da praia, algo que ela nunca fizera. No dia em que o homem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte dias sem comer, deitada na cama com o homem. Os especialistas consultados disseram que não havia nada a fazer. Betsy só saia da cama para beber água. O homem permaneceu com Betsy na cama durante toda a sua agonia, acariciando seu corpo, sentindo com tristeza a magreza de suas ancas. No último dia, Betsy, muito quieta, os olhos azuis abertos, fitou o homem com o mesmo olhar de sempre, que indicava o conforto e o prazer produzidos pela presença e pelos carinhos dele. Começou a tremer e ele a abraçou com mais força. Sentindo que os membros dela estavam frios, o homem arranjou para Betsy uma posição confortável na cama. Então ela estendeu o corpo, parecendo se espreguiçar, e virou a cabeça para trás, num gesto cheio de langor. Depois esticou o corpo ainda mais e suspirou, uma exalação forte. O homem pensou que Betsy havia morrido. Mas alguns segundos depois ela emitiu novo suspiro. Horrorizado com sua meticulosa atenção o homem contou, um a um, todos os suspiros de Betsy. Com o intervalo de alguns segundos ela exalou nove suspiros iguais, a língua para fora, pendendo do lado da boca. Logo ela passou a golpear a barriga com os dois pés juntos, como fazia ocasionalmente, apenas com mais violência. Em seguida, ficou imóvel. O homem passou a mão de leve no corpo de Betsy. Ela se espreguiçou e alongou os membros pela última vez. Estava morta. Agora, o homem sabia, ela estava morta. A noite inteira o homem passou acordado ao lado de Betsy, afagando-a de leve, em silêncio, sem saber o que dizer. Eles haviam vivido juntos dezoito anos. De manhã, ele a deixou na cama e foi até a cozinha e preparou um café puro. Foi tomar o café na sala. A casa nunca estivera tão vazia e triste. Felizmente o homem não jogara fora a caixa de papelão do liqüidificador. Voltou para o quarto. Cuidadosamente, colocou o corpo de Betsy dentro da caixa. Com a caixa debaixo do braço caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos. Não queria que o vissem assim. Rubem Fonseca "Histórias de amor" Cia. das Letras, São Paulo, 1997, pág. 09. FONTE: PESSOA quinta-feira, 25 de junho de 2015 *** *** http://totodenadie.blogspot.com/2015/06/rubem-fonseca-betsy.html *** *** ***
*** 5:42 YouTube Soldado Amarelo | VIDAS SECAS | PROJETO UERJ #13 *** ***
*** Soldado Amarelo | VIDAS SECAS | PROJETO UERJ #13 1.688 visualizações25 de nov. de 2019 Do Monteiro Fabiano sofre várias explorações e passa por várias situações covardes impostas pelo meio ou pelo homem. Dessas, a que é feita pelo Soldado amarelo revela o abuso de autoridade sobre os mais fracos. Ele representa os desmandos do Poder público que usa gente pobre para explorar gente pobre. *** *** https://www.youtube.com/watch?v=4zPNTajQPTc *** *** Capítulo XI - O Soldado Amarelo FABIANO meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca, torrada, coberta de catingueiras e capões de mato. Ia pesado, o alo cheio a tiracolo, muitos látegos e chocalhos pendurados num braço. O facão batia nos tocos. Espiava o chão como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da égua ruça e da cria, marcas de cascos grandes e pequenos. A égua ruça, com certeza. Deixara pêlos brancos num tronco de angico. Urinara na areia e o mijo desmanchara as pegadas, o que não aconteceria se se tratasse de um cavalo. Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia farejar o solo - e a catinga deserta animava-se, os bichos que ali tinham passado voltavam, apareciam-lhe diante dos olhos miúdos. Seguiu a direção que ~a égua havia tomado. Andara cerca de cem braças quando o cabresto de cabelo que trazia no ombro se enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que interrompiam a passagem. Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas espinhosas. Detevese percebendo rumor de garranchos, voltou- se e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara a cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário. A lâmina parou de chofre, junto à cabeça do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento, deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para outro. O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam. Realmente não quisera matar um cristão: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sela. Alguma coisa o empurrava para a direita ou para a esquerda. Era essa coisa que ia partindo a cabeça do amarelo. Se ela tivesse demorado um minuto, Fabiano seria um cabra valente. Não demorara. A certeza do perigo surgira - e ele estava indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos. Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe pareceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na cidade? Não pisava os pés dos matutos, na feira? Não botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino. Irritou-se. Porque seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar- se? Não via? Fechou a cara. A idéia do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquilo nem precisava facão, bastavam as unhas. Agitando os chocalhos e os látegos, chegou a mão esquerda, grossa e cabeluda, à cara do polícia, que recuou e se encostou a uma catingueira. Se não fosse a catingueira, o infeliz teria caído. Fabiano pregou nele os olhos ensangüentados, meteu o facão na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se, medonho, mais feio que um focinho. Hem? Estava certo? Bulir com as pessoas que não fazem mal a ninguém. Porque? Sufocava-se, as rugas da testa aprofundavam-se, os pequenos olhos azuis abriam-se demais, numa interrogação dolorosa. O soldado encolhia-se, escondia-se por detrás da árvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. Desejava ficar cego outra vez. Impossível readquirir aquele instante de inconsciência. Repetia que a arma era desnecessária, mas tinha a certeza de que não conseguiria utilizá-la - e apenas queria enganar-se. Durante um minuto a cólera que sentia por se considerar impotente foi tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo. A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se - e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo amolecido. Grudando-se à catingueira, o soldado apresentava apenas um braço, uma perna e um pedaço da cara, mas esta banda de homem começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou afastar a idéia absurda: - Como a gente pensa coisas bestas! Alguns minutos antes não pensava em nada, mas agora suava frio e tinha lembranças insuportáveis. Era um sujeito violento, de coração perto da goela. Não, era um cabra que se arreliava algumas vezes - e quando isto acontecia, sempre se dava mal. Naquela tarde, por exemplo, se não tivesse perdido a paciência e xingado a mãe da autoridade, não teria dormido na cadeia depois de agüentar zinco no lombo. Dois excomungados tinham-lhe caído em cima, um ferro batera-lhe no peito, outro nas costas, ele se arrastara tiritando como um frango molhado. Tudo porque se esquentara e dissera uma palavra inconsideradamente. Falta de criação. Tinha lá culpa? O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os feirantes que se apertavam em redor: - "Toca pra frente". Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano, tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reiúna em cima da alpercata. Impacientara-se e largara o palavrão. Natural, xingar a mãe de uma pessoa não vale nada, porque todo o mundo vê logo que a gente não tem a intenção de maltratar ninguém. Um ditério sem importância. O amarelo devia saber isso. Não sabia. Saíra-se com quatro pedras – figura. na mão, apitara. E Fabiano comera da banda podre. - "Desafasta". Deu um passo para a catingueira. Se ele gritasse agora "desafasta", que faria o polícia? Não se afastaria, ficaria colado ao pé de pau. Uma lazeira, a gente podia xingar a mãe dele. Masentão... Fabiano estirava o beiço e rosnava. Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque, estava certo. Enfim apanhar do governo não é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo... Soltou uns grunhidos. Porque motivo o governo aproveitava gente assim? Só se ele tinha receio de empregar tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles? Não iria. Aproximou-se lento, fez uma volta, achou-se em frente do polícia, que embasbacou, apoiado ao tronco, a pistola e o punhal inúteis. Esperou que ele se mexesse. Era uma lazeira, certamente, mas vestia farda e não ia ficar assim, os olhos arregalados, os beiços brancos, os dentes chocalhando como bilros. Ia bater o pé, gritar, levantar a espinha, plantar- lhe o salto da reiúna em cima da alpercata. Desejava que ele fizesse isso. A idéia de ter sido insultado, preso, moído por uma criatura mofina era insuportável. Mirava-se naquela covardia, via-se mais lastimoso e miserável que o outro. Baixou a cabeça, coçou os pêlos ruivos do queixo. Se o soldado não puxasse o facão, não gritasse, ele, Fabiano, seria um vivente muito desgraçado. Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um bicho resistente, calejado. Tinhanervo, queria brigar, metera-se em espalhafatos e saíra de crista levantada. Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmea e cachaça. Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Aí Sinha Vitória começara a gostar dele. Sempre fora reimoso. Iria esfriando com a idade? Quantos anos teria? Ignorava, mas certamente envelhecia e fraquejava. Se possuísse espelhos, veria rugas e cabelos brancos. Arruinado, um caco. Não sentira a transformação, mas estava-se acabando. O suor umedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo de uma peste que se escondiatremendo? Não era uma infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo, muito diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança. Um Fabiano bom para agüentar facão no lombo e dormir na cadeira. Virou a cara, enxergou o facão de rasto. Aquilo nem era facão, não servia para nada. Ora não servia! - Quem disse que não servia? Era um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando palmas de quipá. E estivera a pique de rachar o quengo de um sem-vergonha. Agora dormia na bainha rota, era um troço inútil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa tivesse durado mais um segundo, o polícia estaria morto. Imaginou-o assim, caído, as pernas abertas, os bugalhos apavorados, um fio de sangue empastando-lhe os cabelos, formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia arrastá-lo para dentro da catinga, entregá-lo aos urubus. E não sentiria remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam criação. Era um homem, evidentemente. Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força. Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins. Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro. - Governo é governo. Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. ***
*** *** *** https://cs.ufgd.edu.br/download/Vidas%20Secas%20-%20Graciliano%20Ramos.pdf *** ***

Nenhum comentário:

Postar um comentário