segunda-feira, 22 de setembro de 2025

O Dia em que a Luz se Equilibrou (um conto ao modo de Machado de Assis)

Machado de Assis contempla o equinócioum homem de barba grisalha e óculos, sentado à beira de uma janela onde o sol de fim de tarde distribui luz dourada por igual entre interior e exterior, enquanto um livro aberto repousa na mesa, refletindo a harmonia efêmera entre dia e noite.
O Dia em que a Luz se Equilibrou (um conto ao modo de Machado de Assis) Não sou dado a fenômenos celestes; nunca tive paciência para medir estrelas nem ânimo para calcular eclipses. Mas confesso que, naquela manhã de setembro, acordei com uma sensação de régua. Era como se o mundo inteiro houvesse sido passado a limpo, e a claridade — essa velha dama que costuma ter seus preferidos — decidira enfim praticar um ato de justiça. Era dia de equinócio, disseram-me. Palavra grave, quase latina, dessas que os jornais usam para dar ciência às miudezas do céu. Equinócio: noite igual. Mas a igualdade, meus amigos, é bicho arisco. Nem a matemática escapa às suas ironias; a própria ciência confessa que o dia ainda dura alguns minutos a mais. A luz, mesmo quando se propõe justa, não resiste a um capricho. Desci à rua. Vi a cidade — essa corte que insiste em chamar-se capital, mesmo quando não o é mais — banhada em um ouro sem partido. À direita, os prédios do comércio cintilavam com a mesma medida que, à esquerda, os sobrados da Gamboa. O sol não distinguiu cor, credo, voto ou balcão de negócios. Pensei então nos nossos políticos, esses lunáticos da luz, eternos Esaús e Jacós, a disputar um prato de claridade. Hoje, murmurei, nem eles terão vantagem. Mas logo a reflexão me corrigiu: a igualdade é como promessa de candidato — dura o tempo de um discurso. Basta que a Terra incline o ombro para que Norte e Sul tornem a divergir, e cada hemisfério volte ao seu jogo de luz e sombra. A justiça do equinócio não passa de um café curto, servido em xícara fina. Lembrei-me de Gênesis, livro antigo que sempre me surpreende pela ousadia de começar o mundo com uma simples frase. “No princípio, Deus criou o céu e a terra.” Depois veio a luz, dividida do escuro como se fosse questão de administração pública. Mas que diria o Criador ao ver os homens a transformarem a sua obra em plebiscito? Talvez sorrisse — ou, quem sabe, inclinasse discretamente o eixo da Terra, só para nos lembrar que a balança nunca fica imóvel. Voltei para casa antes do meio-dia. Carolina lia à janela, o rosto meio no sol, meio na sombra. Olhou-me com aquele olhar que já contém todas as respostas e nenhuma pergunta. — Está vendo, Carolina? — disse eu. — Hoje o dia e a noite são iguais. Ela fechou o livro, sorriu de leve e respondeu: — Pois aproveite, meu velho. Amanhã a conta muda. E assim terminou o grande espetáculo da igualdade: com um sorriso doméstico e a certeza de que a Terra, como a política, gira, inclina-se, desequilibra-se — e nós, espectadores, contentamo-nos com um instante de luz repartida, antes que as sombras voltem a negociar seu quinhão.

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