quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Conversa no Brasil II

O Brasil Colonial (Vol. 2): 1480-1720 Conversa no Brasil II – Fado de um Império Colonial E o rádio do bar, você ouviu?, tocava Chico, Fado Tropical, aquela voz arrastada, “oh musa do meu fado, oh minha mãe gentil”, e parecia debochar de nós, porque abril já não era de setenta e quatro em Lisboa, era de vinte e cinco no Brasil, e a anistia que se cochichava no Congresso não era libertação, era impunidade com nome de pacificação. Pacificação nacional, riram, eufemismo barato, como se tortura tivesse perfume, como se golpe tivesse bandeira de paz, e no fundo o que se quer é apagar crime com decreto, um imenso Portugal, disse a canção, e era como se os azulejos se pintassem de sangue e o Amazonas desaguasse no Tejo com gosto de pólvora. Mas ele, condenado, vinte e sete anos e três meses, prisão domiciliar, ainda pauta Brasília, ainda convoca Tarcísio, ainda recebe emissários, ainda dita manchete, ainda se vende como perseguido, e os zeros à volta fazem coro, multiplicam-se como sardinhas no canavial, como mandioca no azulejo, você entende, claro que entende. E lá no Supremo, Cármen Lúcia, mineira mas geraizeira, recitou Romano de Sant’Anna, “uma coisa é um país, outra um regimento”, disse no voto que enterrou de vez a farda no banco dos réus, e mesmo assim o eco dos quartéis não se cala, porque este sempre foi o país dos capitães, generais e almirantes, você sabe, eu sei, todos sabemos. Quinhentos anos caçando índios, queimando livros, sugando aluguéis, e ainda querem que a gente chame de povo o séquito sem nome, de democracia a boiada que passa onde já passou um boi, mas o poema advertia, povo não pode ser diminutivo de homem, e no entanto aqui é, sempre foi, talvez sempre será. E Chico ainda cantava, “mesmo quando as mãos torturam, meu coração chora”, ironia cruel, porque as mãos executam sem hesitar e o coração depois se diz sentimental, e assim se governa, golpeando com uma mão, abotoando o peito com a outra, e se escreve a história com dedos manchados de vinho tropical, doce e amargo. E no bar, na Henrique Vaz, as vozes confundidas repetiam: esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai se tornar um império colonial, e riram, mas riram sem humor, porque sabiam que talvez fosse verdade, talvez já estivéssemos nele, talvez nunca tivéssemos saído dele.

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