domingo, 18 de abril de 2021

Roberto Freire pede em carta aberta à OAB que "cumpra seu papel histórico" e convoque Plenária Nacional de Impeachment de Bolsonaro

*** Dirigente do Cidadania destaca em texto a Felipe Santa Cruz que um bloco de nove partidos vai endossar eventual ofensiva da entidade máxima da Advocacia pelo afastamento do presidente a partir de parecer elaborado por comissão de juristas em meio à pandemia *** Pepita Ortega 16 de abril de 2021 /17h15 ***
*** Roberto Freire envia carta aberta à OAB: ‘cumpra seu papel histórico’ e promova impeachment abril 17, 2021Redação O presidente Nacional do Cidadania, Roberto Freire, enviou carta aberta ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, propondo que a entidade convoque uma Plenária Nacional do Impeachment para elaborar um 113º e ‘derradeiro’ pedido de impedimento do presidente Jair Bolsonaro. No texto, Freire aponta que cabe à OAB ‘assumir o seu papel histórico’ e sinaliza que nove partidos – Cidadania, PCdoB, PDT, PSB, PSol, PT, PV, REDE e Unidade Popular – vão subscrever o eventual pedido de impeachment. Veja a carta aberta de Roberto Freire na íntegra abaixo: “Carta aberta a Felipe Santa Cruz Prezado Felipe, Vivemos num país que colapsou. A hora exige altivez, responsabilidade e ação. Me permita, por gentileza, começar destacando marcos históricos bastante conhecidos. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) teve papel fundamental nos dois processos de impeachment que o Brasil já enfrentou. Precisamos que a Ordem se apresente para o terceiro. Não há movimento de rua cobrando a queda de Jair Bolsonaro, como você bem já observou. E nem o contexto pandêmico permitiria mobilizações, como se diz hoje, orgânicas. Quem prega a favor de aglomerações são os negacionistas e charlatões que trabalham afinados com o vírus e contra as vacinas e a vida. E, nessa guerra particular contra seus próprios cidadãos, o governo federal já concorreu para a morte de centenas de milhares, como atesta inclusive a comissão de juristas reunida por você e liderada pelo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto. O senhor já deu uma olhada nas ruas digitais? Lá, nas redes sociais, onde o povo pode se reunir, a pressão é constante. Somente neste ano, segundo a consultoria Arquimedes, superam 2 milhões as menções ao impeachment. No Twitter, são mais de 1,1 milhão de #foraBolsonaro, o termo #genocida aparece 5,5 milhões de vezes e a hashtag #impeachmentBolsonaroUrgente tem mais de 100 mil citações. Números semelhantes foram observados no auge da pressão sobre Dilma Rousseff. Nas pesquisas de opinião, quase 60% da população já rejeitam o atual presidente. Quantos não estariam nas ruas se a pandemia permitisse? Sabemos quem certamente não estará: os mais de 365 mil brasileiros mortos de Covid-19. Todos os dias, esse total aumenta em cerca de mais 3 mil mães, pais, filhas e netos. Não há Fiat Elba ou pedalada fiscal que se compare a essa tragédia social e humana fomentada pela “absoluta indiferença” de Bolsonaro que transformou o Brasil na “República da Morte”. As palavras grifadas são do robusto, necessário e urgente documento entregue a você, que menciona, ainda, “sistemáticas ações e omissões” de um presidente que usou o coronavírus como arma biológica contra os brasileiros. Conforme levantamento da Agência Pública, no total, 1488 pessoas e mais de 500 organizações assinaram pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Há 106 deles aguardando análise. No Congresso Nacional e fora dele, um grupo de nove partidos, entre eles o Cidadania, que tenho a honra de presidir, passou a atuar nesta semana de forma conjunta para “enfrentar a gravíssima crise brasileira”. Na visão deles, isso só será possível “com um combate efetivo à pandemia e a Jair Bolsonaro, responsável por transformá-la num verdadeiro genocídio”. Não é possível mais esperar. Por mais longo que seja o caminho, é sempre preciso dar o primeiro passo. A hora é agora. Cabe à OAB assumir o seu papel histórico mais uma vez e, com base na fundamentação proposta por alguns dos mais renomados juristas do país, apresentar o 113º e derradeiro pedido de impeachment de Bolsonaro. CIDADANIA, PCdoB, PDT, PSB, PSol, PT, PV, REDE e Unidade Popular, os nove partidos que mencionei, secundarão a Ordem como signatários. A eles, certamente se somarão outros partidos democráticos e movimentos sociais, além dos quase dois mil autores de outros pedidos. Para isso, basta convocar a Plenária Nacional do Impeachment, conforme proposta desses partidos e outras lideranças, a fim de aprovar e subscrever a petição da Ordem, tão logo seja formulada. E, dali, em ato solene, encaminhar o documento ao presidente da Câmara, Arthur Lira, que não se furtará, tenho certeza, de seu papel constitucional: dará início ao fim desse pesadelo. Em nome dos que ainda estariam vivos. Em nome dos que ainda perderão a batalha para a doença e para a desídia governamental. Em nome dos princípios éticos e humanistas que devem guiar a sociedade. A democracia brasileira clama agora pela liderança da OAB, que a história legitima de forma incontestável. Brasília, 16 de abril de 2021 Roberto Freire Presidente Nacional do Cidadania” *** *** https://brasilindependente.com.br/destaque/roberto-freire-envia-carta-aberta-a-oab-cumpra-seu-papel-historico-e-promova-impeachment/ *** *** "REPÚBLICA DA MORTE" Bolsonaro cometeu homicídio por omissão e crime contra a humanidade, diz OAB 14 de abril de 2021, 10h35 Por Tiago Angelo Uma comissão criada pela Ordem dos Advogados do Brasil para analisar a conduta do presidente Jair Bolsonaro durante a epidemia de Covid-19 concluiu que o político cometeu crime de responsabilidade, homicídio e lesão corporal por omissão, além de crime contra a humanidade. *** Marcelo Camargo/Agência Brasil ***
*** Para a OAB, Bolsonaro cometeu homicídio e lesão corporal por omissão, além de crime de responsabilidade e contra a humanidade Marcelo Camargo/Agência Brasil *** O documento será enviado ao Conselho Federal da OAB para que se decida se a entidade entrará com um pedido de impeachment contra o presidente. O grupo responsável pelo parecer foi presidido por Carlos Ayres Britto, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal. Também contou com juristas e advogados, como Miguel Reale Jr., Carlos Roberto Siqueira Castro, Cléa Carpi, Nabor Bulhões, Antonio Carlos de Almeida Castro, Geraldo Prado, Marta Saad, José Carlos Porciuncula, entre outros. O documento lista episódios que evidenciariam a omissão do governo federal e diz que o número de mortos pela Covid-19 teria sido menor se o presidente tivesse adotado medidas restritivas para conter o avanço da doença. Um dos exemplos citados envolve a Pfizer. Segundo o CEO da companhia, Carlos Murillo, a farmacêutica tentou negociar a venda de vacinas com o governo federal. As doses seriam entregues no final de 2020 e começo de 2021, mas não houve resposta do Executivo sobre a proposta. "O desinteresse do governo federal mostra-se verdadeiramente incompreensível, não somente pelo alto grau de eficácia da vacina, como também pela disponibilidade que tinha a Pfizer de entregar doses do imunizante ainda no final do ano passado [...] De acordo com estudos científicos, o simples atraso de alguns meses na imunização da população já seria suficiente para um aumento significativo no número de mortes", diz o parecer. Algo semelhante, aponta o documento, ocorreu com a CoronaVac. Isso porque o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, enviou carta ao Instituto Butantan em outubro de 2020 informando sobre a intenção de adquirir o imunizante. No dia seguinte, no entanto, o ministro foi desautorizado por Bolsonaro. "Houvesse o presidente cumprido com o seu dever constitucional de proteção da saúde pública, seguramente milhares de vidas teriam sido preservadas. Deve, por isso mesmo, responder por tais mortes em omissão imprópria, a título de homicídio. Deve também, evidentemente, responder, em omissão imprópria, pela lesão corporal de um número ainda indeterminado de pessoas que não teriam sido atingidas caso medidas eficazes de combate à Covid-19 tivessem sido implementadas." No plano nacional, o terceiro exemplo de omissão dado pela OAB envolve a não operacionalização de medidas restritivas de circulação de pessoas por parte do governo federal. "O presidente não somente descumpriu o seu dever de zelar pela saúde pública, como também tentou sistematicamente impedir que medidas adequadas ao combate da Covid-19 fossem tomadas", prossegue o relatório. Crime contra a humanidade Por fim, o parecer afirma que o presidente cometeu crime contra a humanidade, passível de denúncia perante o Tribunal Penal Internacional, ao fundar uma "república da morte". Os juristas se apoiam em uma estimativa feita pelo cientista Pedro Hallal na revista britânica The Lancet. Em março de 2021, quando o Brasil registrava 262 mil mortos, o pesquisador estimou que cerca de 180 mil pessoas morreram como consequência direta da omissão do governo federal. "Não há outra conclusão possível: houvesse o Presidente cumprido com o seu dever constitucional de proteção da saúde pública, seguramente milhares de vidas teriam sido preservadas. Deve, por isso mesmo, responder por tais mortes", diz a OAB. Clique aqui para ler o parecer *** *** https://www.conjur.com.br/2021-abr-14/bolsonaro-cometeu-homicidio-omissao-comissao-oab *** ***
*** Parecer da OAB conclui que Bolsonaro cometeu crime contra a humanidade 15 de abril de 2021 Raquel Morais A Comissão Especial de Juristas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional formulou um parecer de análise das medidas de enfrentamento da pandemia do coronavírus adotadas pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido), e identificou graves infrações cometidas pelo chefe do executivo. O documento foi enviado para presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, na noite desta terça-feira (13), e deverá ser discutido no Conselho Pleno da OAB Nacional e no Colégio de Presidentes das Seccionais. Dentre as infrações apontadas no documento, atribuídas ao presidente da República, que são: “I – no plano nacional: (a) delitos de homicídio e lesão corporal por omissão imprópria (comissão por omissão); (b) crimes de responsabilidade. II – no plano internacional, crime contra a humanidade (art. 7º do Estatuto de Roma). É o que se passa a demonstrar”, afirma trecho. Santa Cruz usou as redes sociais para comentar a falta de ação do governo federal. “Bolsonaro diz que aguarda uma sinalização do povo. São mais de 350 mil mortes sinalizando que o negacionismo e o atraso na contratação de vacinas prolongaram e intensificaram a pandemia, sacrificando inúmeras vidas em uma proporção assustadora em relação ao mundo. Esse é o sinal”, escreveu. Ao longo de 24 páginas, o parecer vai detalhando os itens e ressalta em vários trechos que o Poder Executivo, representado pelo presidente e pelo Ministério da Saúde, não exerceram o seu dever de zelar para Saúde pública da população, o que seria um dever constitucional. “O que se pôde verificar, ao longo de toda a grave crise pandêmica que assolou o país, foi exatamente o oposto. Constatou-se, a mais não poder, a sistemática e deliberada violação por parte de ambos do seu elevado munus [dever] de implementação ad tempus [em tempo] de políticas sociais e econômicas capazes de reduzir os progressivos riscos do coronavírus”, aponta trecho do documento. Um dos exemplos apontados pelo documento do comportamento avesso de Bolsonaro foi a “omissão do Presidente da República” no caso da compra de vacinas, o que tem um impacto enorme no combate a proliferação do vírus no país, o que levou a empresa a tentar negociar diretamente com os Estados. Isso ocasionou o atraso do início da vacinação no país e isso era de conhecimento “das autoridades pátrias, incluindo-se aí o Presidente da República” assim como as “gravíssimas consequências que o atraso na imunização poderia gerar”, justifica o documento. Além disso, o documento aponta o comportamento do presidente como algo grave em tempos de pandemia. Ainda de acordo com o parecer dos juristas, as omissões e ações de Jair Bolsonaro representam um ataque a um dos pilares da Constituição, que é o direito à saúde e à própria vida. Em outro trecho, o documento relata que o presidente “tentou sistematicamente impedir que medidas adequadas ao combate da Covid-19 fossem tomadas. Há vários exemplos de tentativa de interrupção de cursos causais salvadores empreendidos por outras autoridades”. Marcelo Almeida *** *** https://www.atribunarj.com.br/parecer-da-oab-conclui-que-bolsonaro-cometeu-crime-contra-a-humanidade/ *** ***
*** COMISSÃO ESPECIAL PARA ANÁLISE E SUGESTÕES DE MEDIDAS AO ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS PARECER ESTRUTURAS DE RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA “A hora é de fazer destino” Min. Carlos Ayres Britto “Das Alte stürzt, es ändert sich die Zeit, und neues Leben blüht aus den Ruinen” (“Cai o que velho está, muda o tempo, e entre as ruínas surge nova vida”) Friedrich Schiller A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, pelo Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho Federal, Doutor FELIPE DE SANTA CRUZ OLIVEIRA SCALETSKY, tem interesse na discussão sobre os crimes cometidos pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, JAIR MESSIAS BOLSONARO, ao longo da pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV2). A Comissão Especial de Juristas da OAB Nacional para Análise e Sugestões de Medidas de Enfrentamento da Pandemia do Coronavírus identifica nas condutas praticadas pelo Presidente da República as seguintes infrações em tese: I) no plano nacional, A) delitos de homicídio e lesão corporal por omissão imprópria (comissão por omissão); B) crimes de responsabilidade; II) no plano internacional, crime contra a humanidade (art. 7º do Estatuto de Roma). É o que se passa a demonstrar. I – DELITOS PRATICADOS NO PLANO NACIONAL A) DOS DELITOS DE HOMICÍDIO E LESÃO CORPORAL POR OMISSÃO IMPRÓPRIA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA 2 O art. 13, § 2º do Código Penal dispõe que “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei dever de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. Em primeiro lugar, é importante observar que o Código Penal Brasileiro positivou a teoria do dever jurídico formal1, que provém de Feuerbach, Spangenberg e Stübel2. De acordo com tal teoria, o dever de agir para evitar o resultado deriva, exclusivamente, da lei, da assunção de responsabilidade e da ação precedente perigosa. Essas são as fontes (formais) que originam as posições de garantidor. Embora a teoria do dever jurídico formal tenha sido abandonada pela moderna Ciência do Direito Penal, em razão de sua rigidez, deve-se reconhecer que seu grande mérito consiste na segurança jurídica. De qualquer sorte, eventuais debates a respeito de outras construções dogmáticas3 parecem ter relevância somente de lege ferenda (e não de lege lata!), pois, insista-se, o legislador pátrio foi claro ao abraçar a teoria do dever jurídico formal. 1 Nesse sentido, Tavares, Teoria dos Crimes Omissivos, Madrid/Barcelona/Buenos Aires/São Paulo, 2012, pág. 315; Cirino dos Santos, Direito Penal. PG, 3ª ed., Curitiba, 2008, pág. 214; Fragoso, Lições de Direito Penal. PG, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1995, pág. 231. 2 Feuerbach, Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Rechts, Gießen, 1803, págs. 24 e ss., considerando como fontes do dever de garantidor a lei e o contrato. Posteriormente, Spangenberg, Über Unterlassungsverbrechen und deren Strafbarkeit in Neues Archiv des Criminalrechts, Tomo IV, 1821, pág. 539, passa a admitir também como fonte do dever de garantidor relações pessoais estreitas, a exemplo do parentesco ou do matrimônio. Por fim, Stübel, Über die Teilnahme mehrerer Personen an einem Verbrechen, Dresden, 1928, pág. 61, reconhece como fonte do dever de garantidor o atuar precedente. Sobre a evolução história da teoria formal do dever jurídico cfr. Schünemann, Grund und Grenzen der unechten Unterlassungsdelikte, Göttingen, 1971, págs. 218 e ss. 3 Por exemplo, Armin Kaufmann, Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, Göttingen, 1959, passim; Schünemann, Grund und Grenzen der unechten Unterlassungsdelikte, passim;vFreund, Strafrecht. AT, Berlin, 1998, § 6/177 e ss. 3 Por expressa determinação da Constituição Federal, o Chefe do Poder Executivo da União tem o dever de zelar pela saúde pública (por meio da implementação de políticas sociais e econômicas) e, em última instância, de evitar situações que possam colocar a vida e a integridade física dos indivíduos em perigo. Assim determina o art. 23, II da Constituição Federal, ao afirmar que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “cuidar da saúde e assistência pública (...)”. De forma complementar, o art. 196 da Carta Maior dispõe que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Aqui é importante observar que, de acordo com o artigo 76 da Constituição Federal, “O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado”, o que, evidentemente, atrai também a (eventual) responsabilização do Ministro da Saúde em questões dessa natureza. Embora seja inequívoco, sob o ponto de vista constitucional, que cabe ao Presidente e ao Ministro da Saúde zelar pela saúde pública (como garantidores de tal bem jurídico), o que se pôde verificar ao longo de toda a grave crise pandêmica que assolou o país foi exatamente o oposto. Constatou-se, a mais não poder, a sistemática e deliberada violação por parte de ambos do seu elevado munus de implementação ad tempus de políticas sociais e econômicas capazes de reduzir os progressivos riscos do coronavírus. Um dos exemplos mais eloquentes da omissão do Presidente da República encontra-se no caso da vacina da Pfizer. De fato, em impactante entrevista concedida à revista Veja, em outubro do ano passado, Carlos Murillo, CEO da Pfizer 4 Brasil, revelou o absoluto desinteresse do Governo Federal na aquisição do imunizante, o que levou a empresa a tentar negociar diretamente com os Governadores dos Estados. Confirase o seguinte trecho da entrevista: “Em julho o senhor revelou a VEJA o início da negociação com o governo brasileiro de um acordo de compra de doses da vacina da Pfizer. De lá pra cá, essa negociação avançou? Em agosto, depois de várias reuniões com integrantes do governo, incluindo do Ministério da Saúde e da Economia, a Pfizer fez uma proposta formal de fornecimento da vacina ao Brasil, sujeita à aprovação regulatória, claro. Essa proposta permitiria vacinar milhões de brasileiros e especificava um prazo para o governo responder. Mas nós nunca recebemos uma resposta formal do governo brasileiro, nem pelo sim nem pelo não. Pelo interesse da companhia de tentar fechar um acordo com o Brasil, principalmente por acreditar nos benefícios dessa tecnologia [a vacina da Pfizer utiliza uma plataforma inovadora, baseada em mRNA}, após ter vencido o prazo, o CEO global da Pfizer mandou uma carta ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro da saúde retomando a proposta e enfatizando a importância da companhia trabalhar com o Brasil. Tampouco recebemos resposta”4. O desinteresse do Governo Federal mostra-se verdadeiramente incompreensível, não somente pelo alto grau de eficácia da vacina, como também pela disponibilidade que tinha a Pfizer de entregar doses do imunizante ainda no final do ano passado. Verifique-se o seguinte trecho da entrevista, em que Carlos Murillo, CEO da Pfizer Brasil, afirma categoricamente que parte das doses estaria disponível para ser entregue no final de 2020: “A oferta inicial para o governo brasileiro previa a entrega de doses ainda este ano? Sim. A previsão de entrega era no final de 2020 e janeiro de 2021. É claro que isso estaria sujeito a aprovação regulatória da Anvisa”. 4 https://veja.abril.com.br/saude/governo-federal-ignora-proposta-decompra-de-vacina-da-pfizer/ 5 Aliás, a simples leitura da carta enviada pelo CEO Global da Pfizer ao Presidente da República mostra a seriedade de propósito da empresa e o seu compromisso de enviar milhões de doses do imunizante ao Brasil ainda em 2020. Confira-se: 6 Note-se que, mesmo havendo a possibilidade remanescente de negociação com os Estados, o CEO da Pfizer Brasil mostrava-se bastante preocupado com o timing da aquisição da vacina, alertando as autoridades brasileiras para o fato de que, de acordo com estudos científicos, o simples atraso de alguns meses na imunização da população já seria suficiente para um aumento significativo no número de mortes. É o que se constata no seguinte excerto da entrevista: “Então não há mais vacinas disponíveis para o Brasil nesta primeira leva? Quando o governo federal não nos respondeu, a companhia nos autorizou a iniciar negociações em nível estadual. O objetivo da companhia é garantir que a vacina, sobretudo essas doses iniciais, possam chegar ao Brasil. Eu venho falando muito que seria muito ruim que as pessoas comecem a ser vacinadas em outros países e não no Brasil. Então, se o governo federal acha que já tem essa questão resolvida, temos 7 avançado na discussão com vários estados. Com alguns estados, a negociação já está mais avançada, o que significa que já fizemos uma oferta e estamos nesse processo de entender se essa oferta vai caminhar. Com outros, ainda estamos no início das conversas, na estimativa das quantidades. Mas as ofertas para os estados já consideram a entrega para começo de 2021 e não mais final de 2020. É importante ressaltar que iniciar a vacinação em janeiro é bastante diferente de vacinar em março ou abril. Pode parecer pouco tempo de diferença, mas o impacto desses três, quatro meses é, do ponto de vista econômico, milhões, e do ponto de vista de vidas, também é incalculável, na realidade. Uma das informações que nós temos mostrado às autoridades brasileiras é um estudo feito por uma empresa independente que mostra qual é o impacto, em termos positivos, de um mês de vacinação antecipada e o ganho que isso tem é imenso”. É importante ressaltar, desde já, que o trecho acima referido mostra que algumas das autoridades pátrias, incluindo-se aí o Presidente da República, tinham pleno conhecimento das gravíssimas consequências que o atraso na imunização poderia gerar, tendo, por isso mesmo, na melhor das hipóteses, assumido o risco de produção de um elevadíssimo número de mortes e lesões corporais. Adiante, quando tratarmos de questões relativas à imputação subjetiva, voltaremos a esse ponto. Pois bem. O segundo exemplo de omissão penalmente relevante por parte do Presidente da República5 encontra-se no caso da vacina CoronaVac. Note-se bem. No dia 20.10.2020, o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, enviou carta ao Presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, informando-o sobre a intenção do Governo Federal de comprar a vacina CoronaVac, bem como solicitando documentos sobre o andamento das pesquisas. A compra de 46 milhões de doses do imunizante fora amplamente divulgada pela mídia6. Entretanto, no dia 5 Também constitucionalmente relevante, como veremos. 6 Ministério da Saúde pretende comprar vacina chinesa do Governo de São Paulo | Atualidade | EL PAÍS Brasil (elpais.com) 8 seguinte, em 21.10.2020, o Presidente da República desautorizou o Ministro Pazuello, suspendendo a compra da CoronaVac. Na oportunidade, por meio de uma rede social, o Presidente da República afirmou o seguinte: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. [...] Minha decisão é a de não adquirir a referida vacina”. Na tarde do mesmo dia, durante visita a um centro de tecnologia da Marinha em Iperó, no interior de São Paulo, o Presidente confirmou a decisão de não comprar o imunizante, afirmando ainda que “Os números têm apontado que a pandemia está indo embora”, em que pese o país já contar à época com aproximadamente 154 mil óbitos e uma média diária de quase 700 mortes7. Também no dia 21.10.2020, na linha do Presidente da República, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, afirmou: “Não há intenção de compra da vacina”8. Embora o Governo Federal tenha decidido adquirir o imunizante em momento posterior, o fato é que toda essa política deliberadamente omissiva gerou indevido (rectius: ilícito) atraso na imunização da população, com consequências dramáticas. Aliás, a confirmar a grave e inadmissível omissão do Governo Federal, Dimas Covas, Diretor do Instituto Butantan, em entrevista concedida à Folha de São Paulo no dia 23.02.2021, asseverou: “Já foi demonstrado que o Butantan fez ofertas de vacinas ao ministério desde julho do ano passado e ele sempre negou. Caso tivesse aceitado, poderíamos ter entregado as doses desde novembro de 2020, e o ministério não se mexeu nesse sentido. O contrato foi assinado tardiamente com o Butantan, então colocar a responsabilidade do atraso do PNI no Butantan me parece 7 Bolsonaro desautoriza Pazuello sobre vacina e entra em atrito com seu terceiro ministro da Saúde seguido | Atualidade | EL PAÍS Brasil (elpais.com). 8 Bolsonaro desautoriza Pazuello e suspende compra da vacina CoronaVac | Jornal Nacional | G1 (globo.com). 9 gratuito, mesmo porque a vacinação só começou porque o Butantan entregou as doses.”9 Também no dia 23.02.2021, em entrevista concedida à BBC News Brasil, o Doutor Gonzalo Vecina Neto, Professor de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), afirmou o seguinte: “O Brasil teria condições de ter uma oferta muito maior de vacina se nós tivéssemos feito o que outros países fizeram, como, por exemplo, o Chile. O Chile hoje tem três doses de vacina por habitante, só que ele começou a comprar vacina em setembro. Nós não começamos a comprar vacina cedo. O governo federal não fez nenhuma aposta. Se não fosse pelo Butatan e a Fiocruz (respectivamente, responsáveis no país pelas vacinas CoronaVac e Oxford-AstraZeneca) não teríamos nenhuma vacina"10 Na ocasião, tanto o Professor Gonzalo Vecina Neto, quanto a epidemiologista Ethel Maciel, também ouvida pela BBC News Brasil, concordaram que “o primeiro e maior erro foi o governo federal não comprar vacinas antecipadamente, ainda em 2020”11. A propósito da extemporânea e insuficiente aquisição dos imunizantes, a Folha de São Paulo, no dia 13.02.2021, noticiou que, até aquela data, o Governo Bolsonaro só havia despendido insignificantes 9% da verba liberada em caráter de urgência para a compra e o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-1912 13. Mais um dado a evidenciar a 9 'Nunca vivemos uma interferência política tão extrema na saúde pública', diz Dimas Covas - 23/02/2021 - Equilíbrio e Saúde - Folha (uol.com.br). 10 3 erros que levaram à falta de vacinas contra covid-19 no Brasil - BBC News Brasil. 11 3 erros que levaram à falta de vacinas contra covid-19 no Brasil - BBC News Brasil 10 violação por parte do Chefe do Poder Executivo da União do seu dever constitucional de salvaguardar a saúde pública. O terceiro exemplo de omissão penalmente relevante do Presidente da República14 encontra-se em sua renitente resistência em operacionalizar medidas previstas na Lei 13.979/20, a exemplo da restrição de circulação de pessoas e de atividades comerciais, que são insistentemente recomendadas pelos especialistas como medidas necessárias para evitar a disseminação descontrolada do coronavírus e, consequentemente, preservar a vida e a integridade física dos indivíduos. Aliás, a experiência de outros países demonstra que a única forma de combater eficazmente o vírus é por meio da combinação de uma ampla campanha de vacinação com o lockdown. Recentemente, pesquisadores do Imperial College London e da Universidade de Leiscester ouvidos pela BBC News Brasil sustentaram que “lockdowns e outras medidas de contenção são particularmente necessários durante a vacinação de uma população”15. É preciso aqui registrar que o Presidente da República não somente violou o seu dever constitucional de zelar pela saúde pública, como também tentou impedir, por meio da abstrusa ADI 6764/DF, que Governadores cumprissem com o seu dever de decretar medidas restritivas necessárias. Isso, mesmo depois do Supremo Tribunal Federal ter decidido, no âmbito da ADI 6341/DF, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem competência concorrente para administrar a atual crise sanitária ocasionada pela Covid-19. 12 Governo Bolsonaro só gastou 9% da verba emergencial liberada para vacinas contra a Covid-19 - 13/02/2021 - Equilíbrio e Saúde - Folha (uol.com.br) 13 Um evidentíssimo atentado ao princípio da eficiência (art. 37 da Constituição Federal). Uma violação clara, também, ao art. 198, II, da Carta Maior. 14 Também constitucionalmente relevante, como veremos. 15 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56255766 11 Pois bem. O Presidente, ao descumprir o seu dever constitucional de proteção do bem jurídico saúde pública, justamente no curso da mais grave emergência sanitária da história país, elevou um risco juridicamente proibido de morte para pessoas pertencentes aos grupos vulneráveis e, pelo menos, de lesão corporal para os demais indivíduos. Houvesse cumprido com o seu dever constitucional, numerosas mortes e lesões corporais produzidas pela Covid-19 teriam sido evitadas com “probabilidade próxima da certeza”. Esse é justamente o critério utilizado pela jurisprudência alemã. Com efeito, o Bundesgerichtshof (Tribunal Federal alemão, equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça) parte da consideração de que uma omissão é “causa” de um resultado quando este teria sido evitado através da ação exigida “com probabilidade próxima da certeza” (“mit einer an Sicherheit grenzenden Wahrscheinlichkeit”)16. Claus Roxin explica que, nessa matéria, o Tribunal Federal alemão trabalha com uma inversão lógica do conhecido critério da eliminação hipotética17, aplicado aos delitos comissivos, para então indagar se o resultado teria sido evitado caso a ação exigida fosse “mentalmente acrescida”. Não se requer a plena segurança, mas apenas a constatação de que a realização da conduta devida teria evitado o resultado “com probabilidade próxima da certeza”. O Tribunal Federal alemão assim sintetiza o seu entendimento: 16 Sobre a posição do BGH cfr. Roxin, Strafrecht. AT II, München, 2003, § 31/44-45; Jescheck/Weigend, Lehrbuch des Strafrechts. AT, Berlin, 1996, pág. 619. 17 Próprio, como se sabe, da fórmula da conditio sine qua non. Os loci classici de referência são Glaser, Abhandlungen aus dem österreichischen Strafrecht I, Wien, 1858, em especial, pág. 298; von Buri, Zur Lehre von der Teilnahme an dem Verbrechen und der Begünstigung, Gieβen, 1860, págs. 15 e ss.; o mesmo, Ueber Causalität und deren Verantwortung, Leipzig, 1873, págs. 1 e ss. 12 “Deve-se imputar a realização do resultado ao autor quando a ação omitida não possa ser acrescida mentalmente sem que se suprima o resultado produzido. Deve existir uma probabilidade próxima da certeza de que o resultado, caso fosse realizada a ação omitida, não teria se produzido, ou teria se produzido consideravelmente mais tarde ou em magnitude essencialmente menor”18. A jurisprudência italiana majoritária também adota o critério segundo o qual, nos crimes comissivos por omissão ou omissivos impróprios, o resultado pode ser imputado a um autor quando a realização da conduta devida o teria evitado “con una probabilità vicina alla certeza”19. O Professor Emérito da Universidade de Padova, Roland Riz, resume com notável precisão o critério adotado pela prevalente doutrina e jurisprudência daquele país: “La dottrina e la giurisprudenza prevalenti sono ormai orientate in tale direzione, precisando che il nesso di causalità tra la condotta omissiva di chi riveste la «posizione di garanzia» e l´evento, va ricercato secondo i criteri probabilistici, accertando che sulla base di un alto grado di probabilità (...) la condotta del garante, se fosse stata regolarmente attuata, sarebbe stata in grado di evitare l´evento lesivo”20. No Brasil, embora a jurisprudência ainda não tenha tomado um caminho seguro, a melhor doutrina nacional também tem adotado o critério acima referido, segundo o qual, repitase, nos crimes comissivos por omissão ou omissivos impróprios um resultado pode ser imputado a um sujeito quando teria sido evitado através da conduta exigida com “probabilidade próxima da certeza”. 18 BGH, NStZ 1985, 27. Citada por Roxin, Strafrecht. AT II, § 31/44. 19 Assim, Riz, Lineamenti di Diritto Penale. PG, 5ª ed., Padova, 2006, pág. 177. Cfr. ademais, Fiandaca/Musco, Diritto Penale. PG, 6ª ed., Bologna, 2010, pág. 602. 20 Riz, Lineamenti di Diritto Penale. PG, pág. 177, com as devidas referências jurisprudenciais. 13 Miguel Reale Júnior, por exemplo, ao refletir sobre a omissão imprópria, chama a atenção para a necessidade de se recorrer, na análise do caso concreto, a dados técnicos específicos que compõem a situação, exigindo para a imputação do resultado a comprovação de que a realização da conduta devida o teria evitado com “uma probabilidade ao limite da segurança”21. De forma semelhante, Juarez Tavares sustenta que “A causalidade na omissão deve ser aferida conforme a teoria da condição, mas com uma modificação do respectivo processo: não se trata de eliminar a omissão, como pode parecer da leitura da lei, mas a ação mandada (...) Aqui, não é qualquer ação mandada; é a ação que possa orientar o sujeito a se conduzir de conformidade com o dever, ou seja, a ação que, com probabilidade nos limites da certeza, impediria a ocorrência do resultado”22. Last but not least, Juarez Cirino dos Santos também considera que “se a realização da ação mandada teria evitado o resultado com probabilidade próxima da certeza, então o resultado é atribuível ao autor”23. Pois bem. Embora a fórmula do “acréscimo mental” tenha inegável valor heurístico, é preciso complementá-la, perquirindo se a realização da ação exigida teria impedido a produção do resultado de acordo com as leis da natureza24. Portanto, a questão que se põe no presente momento é a seguinte: pode-se provar com segurança, e de acordo com as leis da natureza, que centenas de milhares de vidas teriam 21 Reale Júnior, Instituições de Direito Penal. PG, 3ª ed., Rio de Janeiro, 2009, pág. 257. 22 Tavares, Fundamentos de Teoria do Delito, Florianópolis, 2018, págs. 404- 405. 23 Cirino dos Santos, Direito Penal. PG, pág. 213. 24 Sobre a necessidade de se recorrer às leis da natureza já Engisch, Die Kausalität als Merkmal der strafrechtlichen Tatbestände, Tübingen, 1931, págs 29 e ss. Recentemente, Jescheck/Weigend, Lehrbuch des Strafrechts, pág. 283 e págs. 618-619; Puppe, ZStW 92, 1980, pág. 899; Mir Puig, Derecho Penal. PG, 7a ed., Barcelona, 2004, pág. 243; Canestrari/Cornacchia/De Simone, Manuale di Diritto Penale. PG, Bologna, 2007, págs. 320 e ss., e págs. 364 e ss. 14 sido salvas, caso o Presidente e outras autoridades tivessem cumprido com o seu dever constitucional de zelar pela saúde pública? A resposta é um retumbante sim. Com efeito, em impressionante artigo publicado na revista The Lancet no dia 22.01.2021, o renomado cientista Pedro Hallal estimava que 156.582 vidas já haviam sido perdidas no país em razão da irresponsável política empreendida pelo Governo Bolsonaro. Em outros termos: à época, 156.582 vidas teriam sido salvas se o Presidente da República e demais autoridades tivessem tomado as providências cabíveis no combate à pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV2). Confira-se o seguinte trecho de sua entrevista: “Brazil's tragic COVID-19 policy comes with a price. With 211 million people, the Brazilian population represents 2·7% of the world's population. If Brazil accounted for 2·7% of global COVID-19 deaths (ie, performing as the global average in fighting the pandemic), 56 311 people would have died. However, by Jan 21, 2021, 212 893 people have died from COVID-19. In other words, 156 582 lives were lost in the country because of underperformance. Attacking scientists will definitely not help solve the problem”25. Em nova entrevista concedida no dia 03.03.2021, Pedro Hall voltou a afirmar peremptoriamente que, dos 262 mil óbitos ocorridos até aquela data, “cerca de 180 mil ‘não teriam acontecido caso o Brasil não fosse um fracasso no combate à pandemia’”26. Em suma: “três a cada quatro mortes no Brasil pela covid-19 poderiam ter sido evitadas não fosse o 25 SOS Brazil: science under attack - The Lancet. 26 https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2021/03/mortes-porcovid-19-eram-evitaveis-responsabilidade-bolsonaro/. 15 governo federal e o Ministério da Saúde terem um trabalho tão vexatório no enfrentamento da pandemia”27. Não há outra conclusão possível: houvesse o Presidente cumprido com o seu dever constitucional de proteção da saúde pública, seguramente milhares de vidas teriam sido preservadas. Deve, por isso mesmo, responder por tais mortes, em omissão imprópria, a título de homicídio. Deve também, evidentemente, responder, em omissão imprópria, pela lesão corporal de um número ainda indeterminado de pessoas que não teriam sido atingidas caso medidas eficazes de combate à Covid-19 tivessem sido implementadas. Por óbvio, para fins de responsabilização criminal, esse número deve ser apurado. Pois bem. Mesmo que não fosse possível provar cientificamente que milhares de mortes e lesões corporais poderiam ter sido evitadas com “probabilidade próxima da certeza”, o que se admite apenas para argumentar, é importante assinalar que parte da moderna doutrina considera suficiente, para fins de imputação, que a realização da conduta devida tivesse simplesmente diminuído o risco de produção de tais resultados. Trata-se, a toda evidência, da adequação da conhecida “teoria do incremento do risco” (aplicada no âmbito dos delitos comissivos) para a esfera dos delitos omissivos impróprios ou comissivos por omissão. No âmbito da omissão imprópria ou comissão por omissão, seria mais adequado denominá-la, por razões óbvias, de “teoria da diminuição do risco” (Risikoverminderungslehre). Assim, de acordo com tal corrente doutrinária28, para fins de imputação do resultado, não seria preciso provar que a realização da ação devida teria evitado as milhares de 27 https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2021/03/mortes-porcovid-19-eram-evitaveis-responsabilidade-bolsonaro/ 28 Por todos, Greco, ZIS 8-9, 2011, págs. 675 e ss. 16 mortes ocorridas no país com “probabilidade próxima da certeza”, bastando para tanto a simples possibilidade de fazêlo. Em termos de imputação subjetiva, parece bastante evidente que o Presidente da República agiu, na melhor das hipóteses, com dolo eventual, ao representar como possível todas essas mortes e lesões corporais (não faltaram alertas diários dos mais conspícuos cientistas do país!), e ao se conformar com elas por absoluta indiferença29. Recorde-se, na linha de Claus Roxin, que “a indiferença é um indício seguro de que o sujeito se resignou com o resultado e, portanto, atuou dolosamente”30. Ora, não é preciso nenhum sacrificium intellectus para que se possa demonstrar, em diversas situações, a absoluta indiferença do Presidente com a conjuntura do país. No dia 20.04.2020, ao ser indagado por um jornalista sobre o crescente número de mortes por Covid-19 no Brasil, Bolsonaro respondeu: “Não sou coveiro”31. Dias depois, em 28.04.2020, ao ser perguntado a respeito do número recorde de óbitos no país, o Presidente retrucou: “E daí?”32. Mais recentemente, veio a público um abstruso vídeo (não há outra expressão!) em que o Presidente imita um doente com falta de ar33. Abundam evidências de sua indiferença, mesmo quando a situação chegava a limites insuportáveis para a população! 29 Sobre a noção de dolo como “indiferença” cfr. Engisch, Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht, Berlin, 1930, págs. 186 e ss. Note-se que a “teoria da indiferença” (Gleichgültichkeitstheorie) de Engisch é falha, pois é possível que exista dolo mesmo sem indiferença. Entretanto, sempre que há indiferença há dolo. 30 Roxin, Strafrecht. AT I, 4ª ed., München, 2006, § 12/40. 31 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-dizbolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-por-coronavirus.ghtml. 32 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-queeu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-por-coronavirus-no-brasil.ghtml. 33 https://www.youtube.com/watch?v=g4K_WlfUhuI. 17 B) DO CRIME DE RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA Os fatos anteriormente narrados também configuram crime de responsabilidade do Presidente da República. O art. 85, inciso III da Constituição Federal dispõe que “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”. A Lei 1.079/50, anterior à Constituição de 88, porém por ela recepcionada na matéria, define como crimes de responsabilidade do Presidente da República aqueles atos que atentem “(...) contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais” (art. 4º, inciso III). E o art. 7º, inciso 9 da referida lei prevê como crime de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais “violar patentemente qualquer direito ou garantia individual (...) e bem assim os direitos sociais (...)”. Ora, como visto, o Presidente não só violou o seu dever de zelar pela saúde pública (art. 23, inciso II da CF), como também, e em razão disso, conspurcou acintosamente esse direito social fundamental. Não é demais pontuar que o direito à saúde foi inserido no Capítulo II (“Dos Direitos Sociais”), do Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”) da Carta Maior. Em seu art. 6º, lê-se claramente: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. O superlativo apreço da Constituição Federal pelo bem jurídico saúde pública parece indiscutível. A reforçar tal ponto de vista, note-se que, em seu art. 34, inciso VII, alínea “e”, a Carta Maior estabelece como uma das hipóteses de 18 intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal a inobservância da “aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde”. E, simetricamente, o art. 35, inciso III, estabelece como uma das hipóteses de intervenção dos Estados em seus Municípios a não aplicação do “mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde”. Mais adiante, a Constituição Federal dedica toda uma seção ao precioso bem jurídico em questão, dispondo o seu art. 196 que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”34. Note-se ainda que o art. 198, II, da Carta Maior determina, no âmbito da saúde pública, a prioridade de atividades preventivas, como é justamente o caso da vacina. Uadi Lammêgo Bulos lembra que a Constituição Federal de 88 foi a primeira, em nossa história, a elevar a saúde à condição de direito fundamental, exatamente na linha da Constituição italiana de 1947 e da Carta portuguesa de 1976. Como sustenta convincentemente o ilustre jurista, “Isso revela a preocupação de se constitucionalizar a saúde, vinculando-a à seguridade social, pois os constituintes compreenderam que a vida humana é o bem supremo que merece amparo na Lei Maior. Por isso, o estado de higidez do 34 Parece bastante paradoxal – para dizer o mínimo - que mesmo contando com uma constituição na qual a saúde pública é elevada à condição de bem jurídico fundamental, o Brasil acabe por ocupar o vergonhoso ranking de país com o pior desempenho no combate à Covid. Cfr. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55870630 19 indivíduo passou a ser ponto de destaque nas constituições hodiernas”35. Uadi Lammêgo Bulos ainda observa, com admirável perspicácia, que o direito à saúde reclama, para sua efetivação, o cumprimento de prestações positivas e negativas. A prestação positiva consiste em tomar medidas preventivas ou paliativas no combate e no tratamento de doenças. A prestação negativa, por sua vez, consiste em abster-se de praticar atos de obstaculização ao exercício desse direito fundamental36. Como revela a distinção analítica traçada por Bulos, o ataque do Presidente da República a esse direito social fundamental deu-se numa dupla dimensão: não somente deixou de zelar pela saúde pública, como também criou uma série de embaraços e obstáculos à sua efetivação. Recorde-se, por exemplo, que, em 02.07.2020, o Presidente da República vetou 25 (vinte e cinco) dispositivos da Lei 14.019/20, relativos à obrigatoriedade do uso de máscaras em estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, escolas e demais locais fechados em que possa 35 Bulos, Constituição Federal Anotada, São Paulo, 2000, pág. 1.170. Numa linha muito próxima, observa certeiramente Siqueira Castro, 30 anos da Constituição Democrática de 88, in: Direito Constitucional e Regulatório – Ensaios e Pareceres, vol. II, Rio de Janeiro, 2020, págs. 75 e ss.: “(...) as Constituições portuguesa e espanhola serviram de atrativo natural ao constituinte brasileiro, na medida em que se ocuparam em dicção minuciosa de toda sorte de temas e de problemáticas que cativam a sociedade de massas e os ambientes das megalópoles num mundo cada vez mais urbanizado e globalizado. Dentre tantos exemplos figuráveis, haurimos nesses ordenamentos peninsulares a preocupação constitucional quanto à ecologia e ao meio ambiente; à proteção do consumidor; à tutela da imagem e da intimidade; ao direito à informação; ao processo de urbanização e à qualidade da vida nas cidades e no campo; ao papel dos partidos políticos para a democracia pluralista; às formas de exercício direto e não delegado da soberania, através do plebiscito e da iniciativa popular das leis; aos meios de comunicação de massa, muito especialmente no relativo à concessão e ao controle dos órgãos de telecomunicações; ao avanço tecnológico e aos efeitos da automação industrial; à salvaguarda dos materiais e atividades nucleares; aos instrumentos de participação da cidadania nos negócios do Estado; ao sistema educacional, de saúde pública e de seguridade social (...)” 36 Bulos, Constituição Federal Anotada, págs. 1.170-1.171. No mesmo sentido, Sarlet, in: Canotilho/Mendes/Sarlet/Streck (Coords.), Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo, 2013, pág. 1.933. 20 ocorrer aglomeração37. E mais recentemente, por meio da ADI 6764/DF, tentou impedir que Governadores cumprissem com o seu dever de decretar medidas restritivas necessárias ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV2). Como sempre observa o Ministro Ayres Britto, o crime de responsabilidade caracteriza-se (aí estaria o seu proprium!) por um “dar as costas à Constituição”. E, sem dúvida alguma, essa foi a atitude do Governo Bolsonaro ao longo de toda a grave crise pandêmica38. Em suma: as omissões e ações do Presidente da República ao longo da pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV2) são perfeitamente subsumíveis ao tipo prescrito no art. 7º, inciso 9 da Lei 1.079/50, representando um ataque frontal a um dos núcleos da Constituição Cidadã, qual seja, o direito à saúde e, em última instância, à própria vida. II – RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA NO PLANO INTERNACIONAL POR CRIME CONTRA A HUMANIDADE (ART. 7º DO ESTATUTO DE ROMA). De acordo com o art. 7º (1) do Estatuto de Roma, “(…) ‘crime against humanity’ means any of the following acts when committed as part of a widespread or systematic attack directed against any civilian population, with knowledge of the attack: (a) Murder; (b) Extermination; (c) Enslavement; (d) Deportation or forcible transfer of population; (e) Imprisonment or other severe deprivation of physical liberty in violation of fundamental rules of international law; (f) Torture; (g) Rape, sexual slavery, enforced prostitution, forced pregnancy, enforced sterilization, or any other form of sexual violence of comparable gravity; (h) Persecution against any identifiable group or collectivity on political, racial, national, ethnic, cultural, religious, gender as defined in paragraph 3, or other grounds that are universally recognized as impermissible under 37 O veto foi derrubado pelo Congresso Nacional em 19.08.20. 38 https://www.conjur.com.br/2015-set-01/ayres-britto-crimesresponsabilidade-presidente 21 international law, in connection with any act referred to in this paragraph or any crime within the jurisdiction of the Court; (i) Enforced disappearance of persons; (j) The crime of apartheid; (k) Other inhumane acts of a similar character intentionally causing great suffering, or serious injury to body or to mental or physical health”. A partir da leitura do tipo penal em questão, indaga-se: acaso uma gestão governamental deliberadamente atentatória à saúde pública, que acaba por abandonar a população à própria sorte, submetendo-a a um superlativo grau de sofrimento, não poderia ser caracterizada como um autêntico crime contra a humanidade? Em outras palavras: fundar uma “República da Morte”39 não configuraria tal crime? Parece-nos que sim. Essa é também a compreensão do eminente Professor de Direito Internacional da Northwestern University, David Scheffer, para quem “political leaders could be tagged as perpetrators of a crime against humanity resulting in tens of thousands of deaths because they intentionally failed to provide timely and widespread testing for the virus, or failed to acquire personal protective equipment for health workers, or failed to order critical social-distancing measures”40. Aqui é importante insistir num ponto: o Presidente não somente descumpriu o seu dever de zelar pela saúde pública, como também tentou sistematicamente impedir que medidas adequadas ao combate da Covid-19 fossem tomadas. Há vários exemplos de tentativa de interrupção de cursos causais salvadores empreendidos por outras autoridades. Recorde-se somente o veto aos 25 (vinte e cinco) dispositivos da Lei 14.019/20 e a ADI 6464/DF. Em suma: os eventos ocorridos 39 A expressão é do advogado Antonio Carlos de Almeida Castro. Cfr. https://www.poder360.com.br/opiniao/coronavirus/exterminio-cumplicidademorbida-por-kakay/. 40https://www.cfr.org/article/it-crime-mishandle-public-health-response. 22 revelam ataques “generalizados e sistemáticos contra toda a população”41. Todos esses sucessivos atos obstrutivos foram rigorosamente documentados no primoroso estudo coordenado pela eminente Professora Deyse Ventura, e cuja conclusão é a seguinte: estamos diante, a toda evidência, de uma “estratégia institucional de propagação do vírus”42. O referido estudo ainda aponta para o fato de que os seus resultados “afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência da parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional”43. Em suma: por meio de sistemáticas ações e omissões, o Governo Bolsonaro acabou por ter a pandemia sob seu controle, sob seu domínio, utilizando-a deliberadamente como instrumento de ataque (arma biológica) e submissão de toda a população. Algumas observações finais relativas à jurisdição do Tribunal Penal Internacional devem ser feitas. Sabe-se perfeitamente que, à luz do princípio da complementariedade, a atuação do Tribunal Penal Internacional tem caráter subsidiário em relação à jurisdição nacional, pressupondo, por exemplo, a ausência de vontade ou a incapacidade do Estado de conduzir uma investigação ou um 41 Sobre tal requisito cfr., por exemplo, Schabas, Unimaginable Atrocities, Oxford, 2012, pág. 44; o mesmo, An Introduction to the International Criminal Court, 4ª ed., Cambridge, 2011, págs. 110 e ss. 42https://www.conectas.org/wp/wp-content/uploads/2021/01/Boletim_Direitosna-Pandemia_ed_10.pdf. No mesmo sentido, Reale Júnior, Estadão, 06.03.21. 43https://www.conectas.org/wp/wp-content/uploads/2021/01/Boletim_Direitosna-Pandemia_ed_10.pdf. 23 procedimento criminal (art. 17. 1, alíneas “a” e “b” do Estatuto de Roma)44. Ora, diante do patente imobilismo do ProcuradorGeral da República, mesmo depois de oferecidas numerosas representações (rectius: notitiae criminis) a respeito dos gravíssimos fatos narrados45, ou está configurada a hipótese de ausência de vontade do Estado em conduzir uma investigação/ procedimento criminal, ou está caracterizada a incapacidade de fazê-lo. Tertium non datur! Em qualquer caso, entretanto, estará legitimada a atuação do Tribunal Penal Internacional. A conclusão não poderia ser outra: há fundadas e sobradas razões para que o Presidente da República possa responder, no plano internacional, por crime contra a humanidade. É o parecer da Comissão. Min. Carlos Ayres Britto (Presidente) Miguel Reale Jr. - Carlos Roberto Siqueira Castro - Cléa Carpi Nabor Bulhões - Antonio Carlos de Almeida Castro - Geraldo Prado 44 Sobre tal questão, Schabas, An Introduction to the International Criminal Court, págs. 190 e ss., em especial, pág. 193; o mesmo/Bassiouni, The Legislative History of the International Criminal Court, vol. I, 2a ed., Leiden/Boston, 2016, págs. 150 e ss.; Fletcher, The Grammar of Criminal Law: American, Comparative and International I, Oxford/New York, 2007, págs. 106-107. 45 https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2021/03/bolsonaro-ealvo-de-recorde-de-pedidos-de-investigacao-ckmf3ralc004w01f1gqoe6b0r.html 24 *** *** https://www.conjur.com.br/dl/bolsonaro-cometeu-homicidio-omissao.pdf *** ***

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