Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 19 de abril de 2021
Pirâmide de Kelsen Instável
- «O nosso amigo e distinto sportman Gilmar Mendes parte
brevemente para uma viagem de recreio a Portugal. Desejamos ao elegante
touriste todas as prosperidades na sua bela excursão ao país do canto e das
artes."
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Pirâmide Kelseniana no Direito
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domingo, 18 de abril de 2021
Merval Pereira – As razões do STF
- O Globo
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem razões que até a razão desconhece, como disse o filósofo Blaise Pascal no século XVII sobre o coração. Só assim podemos compreender a série de decisões tomadas nos últimos dias, reflexos distorcidos de outras, que percorreram todas as instâncias jurídicas nos últimos cinco anos em que a Operação Lava-Jato esteve em pleno vigor no combate à corrupção.
O STF é o exemplo mais evidente de que, no Brasil, até o passado é incerto, frase que o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan colocou em evidência. Cinco anos depois de vários processos, vários julgamentos até na terceira instância do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vem o Supremo decidir, por maioria, que o foro para a Operação Lava-Jato não era Curitiba. Pior: ninguém sabe que comarca é o foro correto.
Dos onze ministros, oito votos a favor de transferir o foro se dividiram entre dois que achavam que era mesmo Curitiba, mas seguiram a maioria: o próprio relator Edson Fachin, e Luis Roberto Barroso. Outro, o ministro Alexandre de Moraes, votou por São Paulo, que deve prevalecer, e os demais pediram tempo para pensar. Três outros ministros votaram por manter o foro em Curitiba.
Como se vê, não é uma questão simples, e nem tampouco política. Denota um ponto de vista jurídico que é apoiado por cinco ministro do STF, e foi apoiado pelo STJ. Transformou-se a definição do foro em um ato político contra o ex-juiz Sérgio Moro, como se ele tivesse usurpado o juízo natural quando a questão foi discutida em diversos fóruns e, até o momento, a centralização em Curitiba dos processos da Lava-Jato por conexão era perfeitamente compatível com as normas jurídicas.
Aconteceu a mesma coisa no julgamento do mensalão. O então advogado Marcio Thomas Bastos, que já fora ministro da Justiça do governo Lula, tentou de diversas maneiras fatiar os processos, para mandar para tribunais regionais eleitorais ou varas comuns todos os que não envolvessem pessoas com prerrogativa de foro.
Por que queria fazer isso ? Porque era mais fácil para os advogados de defesa, desmembrando os casos, retirar deles a carga de uma operação organizada, conectada entre os diversos crimes. Assim como começou a ser feito pela Segunda Turma em relação à Lava-Jato, enviando processos para os tribunais eleitorais regionais e para instâncias inferiores da Justiça.
A segunda parte dessa história será julgada na próxima quinta-feira, a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá. Mais uma vez, as razões que a própria razão desconhece surgirão para serem debatidas. No início da sessão, vai ser levantada uma questão de ordem para saber se o plenário pode ou não analisar se a Segunda Turma poderia ter julgado o caso mesmo depois que o ministro Edson Fachin transferiu o foro para o Distrito Federal, decretando a perda de objeto do habeas-corpus.
Portanto, o plenário, embora não seja instância revisora das decisões das Turmas, como ressaltou a ministra Carmem Lucia, pode decidir que o julgamento da suspeição de Moro não deveria ter ocorrido. O que prevalece, a incompetência ou a suspeição? O artigo 96 do Código de Processo Penal diz que a suspeição é a primeira questão que tem que ser analisada nos processos, dentre as exceções: de competência, de impedimento, de suspeição.
Porém, segundo Douglas Fischer, renomado processualista penal, esse artigo só se aplica às exceções que são apresentadas na primeira instância. Quando essas exceções são arguidas em um habeas-corpus, ou em vários, impetrados em qualquer tribunal, inclusive no Supremo, não há ordem de precedência, pelo contrário.
Entre as duas, o que prevalece é a incompetência, porque você pode ter na mesma Vara, na mesma comarca, ou na mesma sessão judiciária, dois juízes, sendo que um é suspeito e o outro, não, ambos competentes. Mas não pode ter um juiz que é competente, e outro não, na mesma sessão judiciária. A competência prejudica a suspeição.
Vai ser outra das muitas discussões jurídicas a que assistiremos perplexos, no dizer do ministro Marco Aurelio Mello
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https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/04/merval-pereira-as-razoes-do-stf.html
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Espaçado, um vagalume vai sucedendo(-se) a si mesmo. Em torno, obscuro, o campo é uma grande falta de ruído que cheira quase bem. A paz de tudo dói e pesa. Um tédio informe afoga-me.Bernardo Soares
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2ª Turma do STF, que deu habeas corpus a Lula, negou benefício a 92% dos HC
Carolina Brígido
Colunista do UOL
18/04/2021 04h00
Com fama de atender pedidos de investigados, a Segunda Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) nega bem mais habeas corpus do que concede.
Levantamento obtido pela coluna mostra que, nos primeiros três meses de 2021, a turma, formada por cinco dos onze ministros do tribunal, concedeu em decisões colegiadas apenas cinco habeas corpus e negou 228. Em decisões individuais, os ministros concederam 172 habeas corpus e negaram 1.735. Os números são do STF.
No somatório das decisões, é possível dizer que a Segunda Turma e seus ministros concederam 177 pedidos neste ano e negaram 1.963. Isso equivale a dizer que 91,7% dos habeas corpus foram negados neste ano. Entre os pedidos negados, a maioria não teve o mérito julgado por questões processuais - ou seja, foram negadas sem sequer o pedido do investigado ser analisado. Estão nessa categoria 1.430 decisões.
A decisão que beneficiou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em março está na coluna minoritária. Em março, a Segunda Turma anulou uma condenação do petista ao atender pedido da defesa para considerar o ex-juiz Sergio Moro parcial na condução do processo.
Questionados pela coluna, os ministros Edson Fachin, Nunes Marques e Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que integram a turma, não quiseram comentar o levantamento.
Fama de garantista
Nos últimos anos, a Segunda Turma ganhou o codinome de Jardim do Éden entre os advogados, devido à grande chance de concessão de pedidos feitos por réus. A fama aumentou durante julgamentos Lava Jato, que são conduzidos por lá. Em contrapartida, a Primeira Turma foi apelidada de câmara de gás, pelo alto índice de benefícios negados aos investigados.
O garantismo é a linha do Direito que assegura amplamente a defesa do acusado e evita punições antecipadas ou exageradas. Na Lava Jato, a Segunda Turma tomou uma série de decisões dentro desse pensamento. Uma das mais relevantes foi em agosto de 2019, quando foi anulada a condenação imposta por Moro ao ex-presidente da Petrobras Adelmir Bendine por um detalhe processual: a ordem que os réus tinham prestado depoimento na instrução do processo. A filigrana resultou em outras anulações para a Lava Jato.
Na Segunda Turma, o tratamento dado a investigados da Lava Jato nem sempre se repete quando se trata de pessoas comuns. Ainda assim, o colegiado atende mais às defesas do que a Primeira Turma. Nos primeiros três meses deste ano, somando decisões plenárias e individuais dos ministros que compõem cada um dos colegiados, a Segunda Turma concedeu 177 habeas corpus e a Primeira, 96.
Entre os ministros da Segunda Turma, quem mais concedeu habeas corpus em decisões monocráticas foi Gilmar Mendes, com 58. Em seguida, vem Cármen Lúcia, com 53. Em votações da Lava Jato, a ministra é apontada como contrária ao garantismo, dona de uma interpretação mais dura do Direito Penal.
Kassio Nunes Marques, que também integra a Segunda Turma e chegou ao tribunal com um discurso garantista, é o ministro do STF que menos concedeu habeas corpus neste ano: apenas três. Durante o julgamento de Lula, Nunes Marques votou contra a concessão do habeas corpus. Ouviu de Gilmar Mendes "que aquilo não era garantismo nem ali, nem no Piauí," — em referência ao estado natal do colega.
No ano passado, durante a sabatina no Senado que confirmou sua nomeação para o STF, Nunes Marques foi perguntado se era garantista. Respondeu que sim. "O garantismo deve ser exaltado, porque todos os brasileiros merecem direito de defesa, precisam passar por um devido processo legal. Isso é o perfil do garantismo", declarou. Mesmo entre os ministros que concedem mais habeas corpus na Segunda Turma, todos negam o benefício em quantidade maior. Nunes Marques, por exemplo, negou 547 pedidos das defesas. Desses, 425 foram negados em exame de mérito, por questões processuais. Até mesmo Gilmar Mendes, tido como grande expoente do garantismo no tribunal, negou 299 habeas corpus neste ano, dos quais 235 foram recusados sem julgamento de mérito. Ainda assim, Mendes foi o ministro do tribunal que mais concedeu benefícios aos investigados em 2021.
Defensoria Pública
Em março, enquanto Lula era beneficiado com um habeas corpus, a maioria dos investigados que foi julgada pela Segunda Turma não obteve a mesma sorte. É o caso de Eduardo Carvalho Marques, preso em flagrante em julho de 2020 por tentativa de furto de fios de energia. Ele foi mantido preso porque, segundo os ministros, o crime foi cometido de forma qualificada, por ele ter escalado o local para subtrair os bens. Outro motivo é que, no passado, o preso cometeu crimes semelhantes.
Eduardo Marques teve o pedido de habeas corpus ajuizado pela DPU (Defensoria Pública da União), que atua em prol investigados sem condições financeiras para pagar um advogado. Em março, do total de habeas corpus julgados individualmente, foram negados 52 da DPU e concedidos apenas 4. Nas decisões colegiadas do mês passado, 5 pedidos da DPU foram negados e dois, concedidos. No somatório das decisões, 86% dos habeas corpus de investigados pobres foram negados pela Segunda Turma e seus integrantes. Os dados são da DPU.
"É normal que haja uma maioria de habeas corpus denegada pelo STF. Em primeiro lugar, porque só chegam processos que passaram por todas as instâncias e também por a Corte não funcionar como novo tribunal de apelação, analisando pormenorizadamente aspectos como a dosimetria (cálculo) da pena. Todavia, alguns temas caros à Defensoria levados ao tribunal poderiam ter entendimento mais brando, como no caso da insignificância. Ou, ainda, na imposição do regime de pena em crimes com pena reduzida", avalia o defensor público federal que atua nos julgamentos da Segunda Turma, Gustavo de Almeida Ribeiro.
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https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2021/04/18/segunda-turma-stf-habeas-corpus.htm
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Processo Trôpego, Voto Oscilante, Instabilidade Jurídica
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„Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer“ — Graciliano Ramos Memórias do Cárcere
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'Não foi uma absolvição', diz Gilmar sobre caso de Lula
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Gilmar Mendes durante julgamento da anulação
Imagem: Reprodução/Youtube
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Rafael Moraes Moura e Andreza Matais
Brasília 18/04/2021 16h00 Atualizada em 18/04/2021 18h23
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, avalia que a Operação Lava Jato provocou um "colapso" no Judiciário que atingiu da primeira instância até o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em entrevista ao Estadão, Gilmar disse que essas instâncias sucumbiram a "pressões políticas" da força-tarefa que comandou a operação em Curitiba. "O STJ não cumpriu adequadamente seu papel", afirmou.
Expoente da ala garantista, Gilmar reconhece que a correção de rumos imposta pelo STF coincide com o momento em que a Lava Jato caiu em desgraça, mas afirma que isso se deve à "estrutura hierárquica do Judiciário", em que o Supremo é o último a se manifestar.
O ministro ressalta que o Supremo anulou as condenações contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por questões meramente processuais, ao concluir que os casos não deveriam ter ficado em Curitiba. O STF não entrou no mérito se o petista cometeu corrupção passiva e lavagem de dinheiro. "Não foi uma absolvição", observou.
Gilmar já fez duras críticas a posições adotadas pelo novato Kassio Nunes Marques que coincidem com os interesses do presidente Jair Bolsonaro, responsável por sua indicação. Mesmo assim, disse não ver riscos de uma Corte "bolsonarista" e afirmou que os vínculos políticos dos magistrados vão se "esmaecendo com o tempo".
Anular as condenações de Lula legitima o discurso do PT de que ele não praticou corrupção?
Não. O que o tribunal está mandando é para o juiz competente processar e julgar as denúncias. É isso. Não foi uma absolvição. Claro que cancela as condenações, mas manda que o juiz competente prossiga no seu julgamento.
Lula ainda tem um novo encontro com a Justiça?
Com certeza. Você viu que surgiu a dúvida sobre a vara competente, São Paulo ou Distrito Federal. Definida a competência, essa vara vai prosseguir (o trabalho).
O Sr. vê espaço para o plenário derrubar a suspeição do Moro?
Essa questão está resolvida. Porque, de fato, nós julgamos o habeas corpus (da suspeição de Moro na Segunda Turma). Nós temos que ser rigorosos com as regras processuais. Não podemos fazer casuísmo com o processo, por se tratar de A ou de B.
O julgamento de Lula pode provocar um efeito cascata e beneficiar outros réus?
Não vejo assim. O caso do Lula, no que diz respeito à suspeição, é muito delimitado. É uma situação muito personalista.
Lula ficou 580 dias preso, acabou afastado das eleições de 2018 e só agora o plenário do STF decidiu que Curitiba não tinha competência para julgá-lo. O Supremo dormiu no ponto?
Acho que não. Na verdade, o processo judicial é muito complexo. E ele segue toda essa escala: o juiz de primeiro grau; o tribunal intermediário, no caso deles, o TRF-4; o STJ; e o Supremo. Desde 2015, o STF vem afirmando que a competência de Curitiba não é universal.
Como explicar à sociedade que o Judiciário cometeu um erro que levou à prisão de uma pessoa?
Isso é fruto, primeiro, dessa estrutura hierárquica do Judiciário. O Supremo só fala por último. Essa questão do Lula (da competência de Curitiba) só aportou no Supremo em novembro. Agora, o Supremo, no caso do "quadrilhão do MDB", já tinha decisão. O caso da Gleisi (Hoffmann, presidente do PT) e do Paulo Bernardo é um antecedente, de 2015, e ali se assentaram balizas muito interessantes. Dizendo, por exemplo, que não bastava que um delator informasse vários fatos para justificar a competência de Curitiba.
Por que instâncias inferiores não foram na mesma linha?
Havia uma ânsia de decidir rapidamente, de acordo com aquilo que a Lava Jato tinha estabelecido. Se nós formos olhar, havia uma certa opressão dos tribunais que eram suscetíveis de serem oprimidos. O STJ, nesse período, foi submetido a uma pressão político judicial. Uma perseguição judicial. Por conta daqueles episódios ligados à nomeação do Marcelo Navarro (alvo de acusação na delação de Delcídio Amaral). O tribunal, ele próprio, perdeu a ossatura. Ele não cumpriu, adequadamente, seu papel.
O STF impôs uma correção de rumos à Lava Jato?
A Lava Jato sofreu inúmeras derrotas ao longo desse tempo. Mas por seus próprios méritos. Ou deméritos. Ela causou isso, na medida em que avançavam sobre competências que não tinham. A pergunta básica é: como que se deu tanto poder a uma força-tarefa? Em que lugar do mundo haveria isso? É alguma coisa que precisa ser explicada. Virou um esquadrão.
O Sr.. utilizou as mensagens de hackers como reforço para declarar Moro parcial.
Isso sugere uma subversão institucional. Houve, de alguma forma, um colapso aí, em termos de gestão administrativa. Esses problemas se multiplicam. De alguma forma, estão ocorrendo episódios semelhantes na 7.ª Vara do Rio de Janeiro. Em que aparece um super advogado (Nythalmar Filho, alvo de mandados de busca da PF), que teria relacionamento com o juiz (Marcelo Bretas), que teria trânsito com os procuradores, que faziam todas as delações... E tudo mais. Nesse mundo obscuro que é o Rio de Janeiro. O combate à corrupção não pode ser instrumento de corrupção.
No julgamento da suspeição de Moro, o sr. ficou frustrado com o voto de Nunes Marques, que foi contra declarar o ex-juiz parcial?
Eu saio do julgamento, o tema se encerra, e a vida segue com a mesma normalidade. Sou bastante enfático, como vocês sabem. Posso até ter adversários, mas não tenho inimigos, não.
O Sr. destacou que "não há salvação para o juiz covarde". O voto dele foi covarde?
Não estava falando sobre isso. É um artigo de Ruy Barbosa, que diz: "O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde". É uma expressão clássica. Estimula-se muito a técnica do não conhecimento (rejeição do processo por questões técnicas), para evitar enfrentar determinadas questões, especialmente em matéria criminal. Eu sou crítico disso, porque depois nós acabamos por chancelar brutais injustiças.
Após a indicação para o STF, qual deve ser a relação do ministro com o chefe do Executivo?
Tenho a impressão de que esses vínculos políticos vão se esmaecendo com o tempo. É natural e surge até um distanciamento.
Bolsonaro riu ao ser informado por um apoiador de que uma ação contra Alexandre de Moraes ficou nas mãos de Nunes Marques. Essa "bancada bolsonarista" que pode se formar dentro do STF não preocupa?
Acho que não. A vida é tão dinâmica, e as pessoas vão se conscientizando do seu papel. O que acontece é que talvez o momento político está tão crispado e acaba acontecendo que muitos políticos ficam falando para os seus convertidos: 'Ah, estou atuando nisso', mas o ministro Kassio simplesmente encaminhou para o arquivo essa matéria. Portanto, aqui não sinaliza nenhuma subordinação hierárquica ao presidente da República. Ao revés, mostra que simplesmente ele está seguindo a jurisprudência do STF.
O Sr. vê risco de um "Supremo bolsonarista"?
Não vejo, acho que as pessoas (os indicados) começam a fazer uma autocrítica do seu papel. O senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) divulgou áudio de uma conversa reservada com Bolsonaro.
O sr. vê crime nesse tipo de conduta?
O senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) divulgou áudio de uma conversa reservada com Bolsonaro. O sr. vê crime nesse tipo de conduta?
Tudo isso é muito estranho. De fato, a gente tem de resguardar a figura do presidente da República. A impressão que ficou é de que um órgão que detém um tipo de soberania está muito vulnerável. A interdição do debate público e a criminalização da política estimularam aventureiros, que hoje compõem bancadas no Congresso, mas que não têm cultura política parlamentar. Espero que esses aventureiros não renovem mandato.
A Lei de Segurança Nacional é uma herança maldita da ditadura?
Nós temos muitas leis de ditadura. O próprio Código Penal e o Código de Processo Penal são de uma ditadura hoje considerada mais "soft", do Estado Novo, período Vargas. Mas eu torço para que, de fato, haja a substituição da Lei de Segurança Nacional. Que o Congresso faça um novo projeto, e a previsão expressa de uma lei de defesa do estado democrático de direito.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2021/04/18/nao-foi-uma-absolvicao-diz-gilmar-sobre-caso-de-lula.htm
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"Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros
com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas...
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Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro.
Já não compreendo nada..."
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http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/vo000008.pdf
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Ega, João da
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Artur Inês como João da Ega
Artur Inês como João da Ega
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Personagem de caracterização direta que começa por aparecer associada a Carlos, como «seu íntimo», desde os anos de Coimbra (cap. IV). Aí estabelece Ega a sua fama de demagogo e de ateu irreverente, imagem em que se empenha na vida de boémia estudantil.
A sua figura muito magra, alta e esguia é reiteradamente referida, bem como o nariz afilado e o monóculo. A descrição sugere uma atitude que será, sob diversas formas, uma imagem de marca de Ega: o satanismo que remonta a Coimbra, então uma atitude assumida e plenamente vivida, e que em Lisboa é forçada a conviver com novos interesses. A boémia dá lugar ao dandismo, degenerando naquele satanismo caricato de que é exemplo o episódio do baile de máscaras dos Cohen (cap. IX). Esta segunda fase do percurso de João da Ega começa com a cena do reencontro com Carlos, já no consultório do amigo; aí, o contraste entre o «antigo boémio de batina esfarrapada» e o espalhafato do novo dândi espanta Carlos. E daqui em diante Ega não cessa de arvorar a preocupação constante com a indumentária que conforma nele um dandismo irreverente; junta-se a isto o diletantismo, sempre paradoxal nas atitudes que defende e às vezes incoerente quanto aos valores estéticos e culturais que adota.
Essa incoerência é marcante sobretudo pelo contraste entre o percurso pessoal e o percurso literário de João da Ega. Romântico na vida, como se vê pelo seu caso amoroso com Raquel Cohen e pelo satanismo recorrente, Ega faz a episódica defesa de uma estética naturalista, que o leva à crítica mordaz do ultrarromantismo e de Tomás de Alencar: o episódio que melhor ilustra esta contradição é o do jantar do Hotel Central (cap. VI), um dos muitos momentos em que a ficção queirosiana se fixa em questões metaliterárias.
Um momento paradigmático da caracterização de João da Ega: a descrição da Vila Balzac, recheada de elementos satânicos (os tons escarlates, a referência ao Mefistófeles do Fausto, antecipando a fantasia que Ega há de levar aos baile dos Cohen), ao que se junta o gosto pelo vistoso, a vaidade e, muito marcadamente, o contraste das escolhas literárias, com «a Lógica de Stuart Mill por cima d’ “O Cavaleiro da Casa Vermelha”» (cap. VI). Este último componente está relacionado com o fracasso de projetos literários. Assim, o único passo que se conhece das Memórias de um Átomo corresponde precisamente a um episódio romântico, escrito sob a influência direta da relação com Raquel Cohen. Por fim, o livro não é acabado e a revista a fundar com Carlos não vai além de um vago projeto.
O envolvimento de Ega na tragédia do incesto, a par dos já referidos factos da sua biografia e das suas opiniões estéticas, atualiza sentidos fundamentais para a compreensão desta que é uma das grandes personagens de Eça. O trecho mais significativo, neste aspeto, é aquele em que Ega é confrontado com a existência do incesto e da desgraça do amigo (cap. XVI). As contradições inerentes ao carácter
da personagem tornam a defesa do naturalismo um esforço retórico que nunca chega a concretizar-se numa assimilação de facto. E é nesse esforço que se anuncia já o desintegrar das certezas racionalistas, quando Ega começa a aceitar a inevitabilidade da relação amorosa entre Carlos e Maria Eduarda, ao mesmo tempo que surge na sua mente o termo fatalismo. A par desta aceitação, vem o inevitável vencidismo de quem se reconhece, afinal, romântico (e até admirador de Alencar, aplaudido no sarau da Trindade), e de quem admite, juntamente com o amigo Carlos, o falhanço na vida (cap. XVIII).
O destaque de João da Ega na economia interna do romance está bem confirmado pela composição elaborada que a personagem recentemente mereceu na versão cinematográfica d’Os Maias, realizada por João Botelho.
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João da Ega por Wladimir A. de Souza
João da Ega por Wladimir A. de Souza
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https://queirosiana.wordpress.com/personagens/ega-joao-da/
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Eça de Queiroz - Os Maias
Capítulo XV
Maria Eduarda e Carlos – que ficara essa noite nos Olivais, na sua casinhola – acabavam de almoçar. O
Domingos servira o café, e antes de sair deixara ao lado de Carlos a caixa de cigarettes e o Figaro. As duas
janelas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã encoberta, entristecida ainda por
um dobre lento de sinos, que morria ao longe nos campos. No banco de cortiça, sob as árvores, Miss Sara
costurava preguiçosamente ; Rosa, ao lado, brincava na relva. E Carlos, que viera, numa intimidade
conjugal, com uma simples camisa de seda e um jaquetão de flanela, chegou então a cadeira para junto de
Maria, tomou−lhe a mão, brincando−lhe com os anéis, numa lenta carícia :
– Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim, quando queres partir ?
Nessa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ela mostrara o desejo enternecido de não alterar o
plano da Itália e de um ninho romântico entre as flores de Isola Bela : somente agora não iam esconder a
inquietação de uma felicidade culpada, mas gozar o repouso de uma felicidade legítima. E depois de todas as
incertezas e tormentos que o tinham agitado, desde o dia em que cruzara Maria Eduarda no Aterro, Carlos
anelava, também, pelo momento de se instalar enfim no conforto de um amor sem dúvidas e sem sobressaltos.
– Eu por mim abalava amanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego de preguiça !... Mas tu, dize,
quando queres ?
Maria não respondeu ; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem retirar a mão
que a longa carícia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa através da janela.
– Mamã, espera, já vou ! Passa−me umas migalhas... Andam aqui uns pardais que ainda não
almoçaram...
– Não, vem cá.
Quando ela apareceu à porta, toda de branco, corada, com uma das últimas rosas de Verão metida no
cinto – Maria qui−la mais perto, entre eles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando−lhe a fita solta do
cabelo, perguntou, muito séria, muito comovida, se ela gostaria que Carlos viesse viver com elas de todo e
ficar ali na Toca... Os olhos da pequena encheram−se de surpresa e de riso :
– O quê ! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite ?... E ter aqui as suas malas, as suas
coisas ?
Ambos murmuraram : «Sim.» Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse
já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...
– Escuta – disse−lhe ainda Maria gravemente, retendo−a sobre os joelhos. – E gostavas que ele fosse
como o papá, e que andasse sempre connosco, e que lhe obedecêssemos ambas, e que gostássemos muito
dele ?
Rosa ergueu para a mãe uma facezinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagara.
– Mas eu não posso gostar mais dele do que gosto !... Ambos a beijaram, num enternecimento que lhes
humedecia os olhos. – E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa, debruçando−se sobre ela, beijou
de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãe. E pareceu
compreender tudo ; escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar−se a Carlos com uma meiguice
humilde :
Os Maias
Capítulo XV 287
– Queres que te chame papá, só a ti ?
– Só a mim – disse ele, fechando−a toda nos braços. E assim obtiveram o consentimento de Rosa – que
fugiu, atirando a porta, com as mãos cheias de bolos para os pardais. Carlos levantou−se, tomou a cabeça de
Maria entre as mãos, e contemplando−a profundamente, até à alma, murmurou num enlevo :
– És perfeita !
Ela desprendeu−se, com melancolia, daquela adoração que a perturbava.
– Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso quiosque... Tu não
tens nada que fazer, não ? E que tenhas, hoje és meu... Vou já ter contigo. Leva as tuas cigarettes.
Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada do céu cinzento... E a vida
pareceu−lhe adorável, de uma poesia fina e triste, assim envolta naquela névoa macia onde nada resplandecia
e nada cantava, e que tão favorável era para que dois corações, desinteressados do mundo e em desarmonia
com ele, se abandonassem juntos ao contínuo encanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra.
– Vamos ter chuva, tio André – disse ele, passando junto do velho jardineiro que aparava o buxo.
O tio André, atarantado, arrancou o chapéu. Ah ! uma gota de água era bem necessária, depois da
estiagem ! O torrãozinho já estava com sede ! E em casa todos bons ? A senhora ? A menina ?
– Tudo bom, tio André, obrigado.
E no seu desejo de ver todos em torno de si felizes como ele e como a terra sequiosa que ia ser
consolada – Carlos meteu uma libra na mão do tio André, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos
sobre aquele oiro extraordinário que reluzia.
Quando Maria entrou no quiosque, trazia um cofre de sândalo. Atirou−o para o divã : fez sentar Carlos
ao lado, bem confortável, entre almofadas : acendeu−lhe uma cigarette. Depois agachou−se aos seus pés,
sobre o tapete, como na humildade de uma confissão.
– Estás bem assim ? Queres que o Domingos te traga água e conhaque ?... Não ? Então ouve agora,
quero−te contar tudo... Era toda a sua existência que ela desejava contar. Pensara mesmo em lha escrever
numa carta interminável, como nos romances. Mas decidira antes tagarelar ali uma manhã inteira, aninhada
aos seus pés.
– Estás bem, não estás ?
Carlos esperava, comovido. Sabia que aqueles lábios amados iam fazer revelações pungentes para o seu
coração – e amargas para o seu orgulho. Mas a confidência da sua vida completava a posse da sua pessoa :
quando a conhecesse toda no seu passado, senti−la−ia mais sua inteiramente. E, no fundo, tinha uma
curiosidade insaciável dessas coisas que o deviam pungir e que o deviam humilhar.
– Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta... Onde nasceste tu, por
fim ?
Nascera em Viena : mas pouco se recordava dos tempos de criança, quase nada sabia do papá, a não ser
a sua grande nobreza e a sua grande beleza. Tivera uma irmãzinha que morrera de dois anos e que se
chamava Heloísa. A mamã, mais tarde, quando ela era já rapariga, não tolerava que lhe perguntassem pelo
Os Maias
Capítulo XV 288
passado ; e dizia sempre que remexer a memória das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma
garrafa de vinho velho... De Viena apenas recordava confusamente largos passeios de árvores, militares
vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde se dançava : às vezes durante tempos ela ficava lá
só com o avô, um velhinho triste e tímido, metido pelos cantos, que lhe contava histórias de navios. Depois
tinham ido a Inglaterra : mas lembrava−se somente de ter atravessado um grande rumor de ruas, num dia de
chuva, embrulhada em peles, sobre os joelhos de um escudeiro. As suas primeiras memórias mais nítidas
datavam de Paris ; a mamã, já viúva, andava de luto pelo avô ; e ela tinha uma aia italiana que a levava
todas as manhãs, com um arco e com uma péla, brincar aos Campos Elísios. À noite costumava ver a mamã
decotada, num quarto cheio de cetins e de luzes ; e um homem loiro, um pouco brusco, que fumava sempre
estirado pelos sofás, trazia−lhe de vez em quando uma boneca, e chamava−lhe Mademoiselle Triste
Coeur por causa do seu arzinho sisudo. Enfim a mamã metera−a num convento ao pé de Tours – porque
nessa idade, apesar de cantar já ao piano as valsas da Belle Hélène, ainda não sabia soletrar. Fora nos jardins
do convento, onde havia lindos lilases, que a mamã se separara dela numa paixão de lágrimas ; e ao lado
esperava, para a consolar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre Superiora
falava com veneração.
A mamã ao princípio vinha vê−la todos os meses, demorando−se em Tours dois, três dias ; trazia−lhe
uma profusão de presentes, bonecas, bombons, lenços bordados, vestidos ricos, que lhe não permitia usar a
regra severa do convento. Davam então passeios de carruagem pelos arredores de Tours : e havia sempre
oficiais a cavalo, que escoltavam a caleche – e tratavam a mamã por tu. No convento, as mestras, a Madre
Superiora, não gostavam destas saídas – nem mesmo que a mamã viesse acordar os corredores devotos com
as suas risadas e o ruído das suas sedas ; ao mesmo tempo pareciam temê−la ; chamavam−lhe Madame la
Comtesse. A mamã era muito amiga do general que comandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor,
quando vinha ao convento, fazia−lhe uma festinha especial na face e aludia risonhamente à son excellente
mère. Depois a mamã começou a aparecer menos em Tours. Esteve um ano longe, quase sem escrever,
viajando na Alemanha ; voltou um dia, magra e coberta de luto, e ficou toda a manhã abraçada a ela a
chorar. Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, mais ligeira, com dois grandes galgos
brancos, anunciando uma romagem poética à Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ela tinha então quase
dezasseis anos : pela sua aplicação, os seus modos doces e graves, ganhara a afeição da Madre Superiora –
que às vezes, olhando−a com tristeza, acariciando−lhe o cabelo caído em duas tranças segundo a regra, lhe
mostrava o desejo de a conservar sempre ao seu lado. Le monde, dizia ela, ne vous sera bon, à rien, mon
enfant !... Um dia, porém, apareceu para a levar para Paris, para a mamã, uma Madame de Chavigny, fidalga
pobre, de caracóis brancos, que era como uma estampa de severidade e de virtude. O que ela chorara ao
deixar o convento ! Mais choraria se soubesse o que ia encontrar em Paris !
A casa da mamã, no Parque Monceaux, era na realidade uma casa de jogo – mas recoberta de um luxo
sério e fino. Os escudeiros tinham meias de seda ; os convidados, com grandes nomes no Nobiliário de
França, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado ; e as mesas de jogo armavam−se
depois como uma distracção mais picante. Ela recolhia sempre ao seu quarto às dez horas : Madame de
Chavigny, que ficara como sua dama de companhia, ia com ela cedo ao Bois num coupé escuro de
douairière. Pouco a pouco, porém, este grande verniz começou a estalar. A pobre mamã caíra sob o jugo de
um Mr. de Trevernnes, homem perigoso pela sua sedução pessoal e por uma desoladora falta de honra e de
senso. A casa descaiu rapidamente numa boémia mal dourada e ruidosa. Quando ela madrugava, com os seus
hábitos saudáveis do convento, encontrava paletós de homens por cima dos sofás : no mármore das
consoles restavam pontas de charuto, entre nódoas de champanhe ; e nalgum quarto mais retirado ainda tinha
o dinheiro de um bacará talhado à claridade do sol. Depois, uma noite, estando deitada, sentira de repente
gritos, uma debandada brusca na escada : veio encontrar a mamã estirada no tapete, desmaiada ; ela
dissera−lhe apenas mais tarde, alagada em lágrimas, «que tinha havido uma desgraça»...
Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée−d'Antin. Aí começou a aparecer uma gente
desconhecida e suspeita. Eram valacos de grandes bigodes, peruanos com diamantes falsos, e condes romanos
Os Maias
Capítulo XV 289
que escondiam para dentro das mangas os punhos enxovalhados... Por vezes, entre esta malta, vinha algum
gentleman – que não tirava o paletó, como num café−concerto. Um desses foi um irlandês, muito moço, Mac
Gren... Madame de Chavigny deixara−as desde que faltara o coupé severo, acolchoado de cetim ; e ela, só
com a mãe, insensivelmente, fatalmente, fora−se misturando a essa vida tresnoitada de grogues e de bacará.
A mamã chamava a Mac Gren o «bebé». Era com efeito uma criança estouvada e feliz. Namorara−se
dela logo com o ardor, a efusão, o ímpeto de um irlandês ; e prometeu−lhe fazê−la sua esposa apenas se
emancipasse – porque Mac Gren, menor ainda, vivia sobretudo das liberalidades de uma avó excêntrica e rica
que o adorava, e que habitava a Provença numa vasta quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto
induzia−a sem cessar a fugir com ele, desesperado de a ver entre aqueles valacos que cheiravam a genebra. O
seu desejo era levá−la para Fontainebleau, para um cottage com trepadeiras de que falava sempre, e esperar aí
tranquilamente a maioridade, que lhe traria duas mil libras de renda. Decerto, era uma situação falsa : mas
preferível a permanecer naquele meio, depravado e brutal, onde ela a cada instante corava... A esse tempo a
mamã parecia ir perdendo todo o senso, desarranjada de nervos, quase irresponsável. As dificuldades
crescentes estonteavam−na ; brigava com as criadas ; bebia champanhe pour s'étourdir. Para satisfazer as
exigências de Mr. de Trevernnes, empenhara as suas jóias, e quase todos os dias chorava com ciúmes dele.
Por fim houve uma penhora : uma noite tiveram de enfardelar à pressa roupa num saco, e ir dormir a um
hotel. E, pior, pior que tudo, Mr. de Trevernnes começava a olhar para ela de um modo que a assustava...
– Minha pobre Maria ! – murmurou Carlos, pálido, agarrando−lhe as mãos.
Ela permaneceu um momento sufocada, com o rosto caído nos joelhos dele. Depois, limpando as
lágrimas que a enevoavam :
– Aí estão as cartas de Mac Gren, nesse cofre... Tenho−as guardado sempre para me justificar a mim
mesma, se me é possível... Pede−me em todas que vá para Fontainebleau ; chama−me sua esposa ; jura que,
apenas juntos, iremos ajoelhar−nos diante da avó, obter a sua indulgência... Mil promessas ! E era sincero...
Que queres que te diga ? A mamã, uma manhã, partiu com uma súcia para Baden. Fiquei em Paris só, num
hotel... Tinha um palpite, um terror que Trevernnes aparecia... E eu só ! Estava tão transtornada que pensei
em comprar um revólver... Mas quem veio foi Mac Gren.
E partira com ele, sem precipitação, como sua esposa, levando todas as suas malas. A mamã, de volta de
Baden, correu a Fontainebleau, desvairada e trágica, amaldiçoando Mac Gren, ameaçando−o com a prisão de
Mazas, querendo esbofeteá−lo ; depois rompeu a chorar. Mac Gren, como um bebé, agarrou−se a ela aos
beijos, chorando também. A mamã terminou por os apertar a ambos contra o coração, já rendida, perdoando
tudo, chamando−lhes «filhos da sua alma». Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando «a patuscada
de Baden», já com o plano de vir instalar−se no cottage, viver junto deles numa felicidade calma e nobre de
avozinha... Era em Maio ; Mac Gren, à noite, deitou um fogo preso no jardim.
Começou um ano quieto e fácil. O seu único desejo era que a mamã vivesse com eles sossegadamente.
Diante das suas súplicas, ela ficava pensativa, dizia : «Tens razão, veremos !» Depois remergulhava no
torvelinho de Paris, donde ressurgia uma manhã, num fiacre, estremunhada e aflita, com uma rica peliça
sobre uma velha saia, a pedir−lhe cem francos... Por fim nascera Rosa. Toda a sua ansiedade desde então fora
legitimar a sua união. Mas Mac Gren adiava, levianamente, com um medo pueril da avó. Era um perfeito
bebé ! Entretinha as manhãs a caçar pássaros com visco ! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso : ela
pouco a pouco perdera−lhe todo o respeito. No começo da Primavera a mamã, um dia, apareceu em
Fontainebleau com as suas malas, sucumbida, enojada da vida. Rompera enfim com Trevernnes. Mas quase
imediatamente se consolou : e começou daí a adorar Mac Gren com uma tão larga efusão de carícias, e
achando−o tão lindo, que era às vezes embaraçadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de conhaque,
jogando o besigue.
Os Maias
Capítulo XV 290
De repente rebentou a guerra com a Prússia. Mac Gren, entusiasmado, e apesar das súplicas delas,
correra a alistar−se no batalhão de zuavos de Charette ; a avó, de resto, aprovara este rasgo de amor pela
França, e fizera−lhe, numa carta em verso, em que celebrava Joana d'Arc, uma larga remessa de dinheiro. Por
esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ela, sem lhe largar o leito, mal atendia às notícias da guerra. Sabia apenas
confusamente das primeiras batalhas perdidas na fronteira. Uma manhã a mamã rompeu−lhe no quarto,
estonteada, em camisa ; o exército capitulara em Sédan, o imperador estava prisioneiro ! «É o fim de tudo, é
o fim de tudo !», dizia a mamã espavorida. Ela veio a Paris procurar notícias de Mac Gren ; na Rue Royale
teve de se refugiar num portão, diante do tumulto de um povo em delírio, aclamando, cantando a Marselhesa,
em torno de uma caleche onde ia um homem, pálido como cera, com um cache−nez escarlate ao pescoço. E
um sujeito ao lado, aterrado, disse−lhe que o povo fora buscar Rochefort à prisão e que estava proclamada a
República.
Nada soubera de Mac Gren. Começaram então dias de infinito sobressalto. Felizmente Rosa
convalescia. Mas a pobre mamã causava dó, envelhecida de repente, sombria, prostrada numa cadeira,
murmurando apenas : «É o fim de tudo, é o fim de tudo !» E parecia na verdade o fim da França. Cada dia
uma batalha perdida ; regimentos presos, apinhados em vagões de gado, internados a todo o vapor para os
presídios da Alemanha ; os Prussianos marchando sobre Paris... Não podiam permanecer em
Fontainebleau ; o duro Inverno começava ; e com o que venderam à pressa, com o dinheiro que Mac Gren
deixara, partiram para Londres.
Fora uma exigência da mamã. E em Londres ela, desorientada na enorme e estranha cidade, doente
também, deixara−se levar pelas tontas ideias da mãe. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros
de luxo, ao pé de Mayfair. A mamã falava em organizar ali o centro de resistência dos bonapartistas
refugiados ; no fundo, a desgraçada pensava em criar uma casa de jogo em Londres. Mas ai ! eram outros
tempos... Os imperialistas, sem império, não jogavam já o bacará. E elas em breve, sem rendimentos,
gastando sempre, tinham−se achado com aquela dispendiosa casa, três criados, contas colossais e uma nota
de cinco libras no fundo de uma gaveta. E Mac Gren metido dentro de Paris, com meio milhão de prussianos
em redor. Foi necessário vender todas as jóias, vestidos, até as peliças. Alugaram então, no bairro pobre de
Soho, três quartos mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a sua suja, solitária tristeza ; uma
criadita única, enfarruscada como um trapo ; alguns carvões húmidos fumegando mal na chaminé ; e para
jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por fim faltara mesmo o escasso xelim para pagar o
lodging. A mamã não saía do catre, doente, sucumbida, chorando. Ela às vezes, ao anoitecer, escondida num
water−proof, levava ao prego embrulhos de roupa (até roupa branca, até camisas !) para que ao menos não
faltasse a Rosa a sua xícara de leite. As cartas que a mamã escrevia a alguns antigos companheiros de ceias
na Maison d'Or ficavam sem resposta : outras traziam, embrulhada num bocado de papel, alguma meia libra
que tinha o pavoroso sabor de uma esmola. Uma noite, um sábado de grande nevoeiro, indo empenhar um
chambre de rendas da mamã, perdera−se, errara na vasta Londres numa treva amarelada, a tiritar de frio,
quase com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a álcool. Para lhes fugir atirou−se para dentro
de um cab que a levou a casa. Mas não tinha um penny para pagar ao cocheiro ; e a patroa roncava no seu
cacifro, bêbeda. O homem resmungou ; ela, sucumbida, ali mesmo na porta rompeu a chorar. Então o
cocheiro desceu da almofada, comovido, ofereceu−se para a levar de graça ao prego, onde ajustariam as suas
contas. Foi ; o pobre homem só aceitou um xelim ; até mesmo supondo−a francesa grunhiu blasfémias
contra os Prussianos, e teimou em lhe oferecer uma bebida.
Ela no entanto procurava uma ocupação qualquer – costura, bordados, traduções, cópias de
manuscritos... Não achava nada. Naquele duro Inverno o trabalho escasseava em Londres ; surgira uma
multidão de franceses, pobres como ela, lutando pelo pão... A mamã não cessava de chorar ; e havia alguma
coisa mais terrível que as suas lágrimas – eram as suas alusões constantes à facilidade de se ter em Londres
dinheiro, conforto e luxo, quando se é nova e se é bonita.
– Que te parece esta vida, meu amor ? – exclamou ela, apertando as mãos amargamente.
Os Maias
Capítulo XV 291
Carlos beijou−a em silêncio, com os olhos humedecidos.
– Enfim tudo passou – continuou Maria Eduarda. – Fez−se a paz, o cerco acabou. Paris estava de novo
aberto... Somente a dificuldade era voltar.
– Como voltaste ?
Um dia, por acaso, em Regent Street, encontrara um amigo de Mac Gren, outro irlandês, que muitas
vezes jantara com eles em Fontainebleau. Veio vê−las ao Soho ; diante daquela miséria, do bule de chá
aguado, os ossos de carneiro requentado sobre três brasas mortas, começou, como bom irlandês, por acusar o
governo de Inglaterra e jurar uma desforra de sangue. Depois ofereceu, com os beiços já a tremer, toda a sua
dedicação. O pobre rapaz batia também o lajedo numa luta tormentosa pela vida. Mas era irlandês ; e partiu
logo generosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar, através de Londres, o pouco que elas
necessitavam para recolher a França. Com efeito, apareceu nessa mesma noite, derreado e triunfante,
brandindo três notas de banco e uma garrafa de champanhe. A mamã ao ver, depois de tantos meses de chá
preto, a garrafa de Clicquot encarapuçada de ouro – quase desmaiou, de enternecimento. Enfardelaram os
trapos. Ao partirem, na estação de Charing Cross, o irlandês levou−a para um canto, e engasgado, torcendo
os bigodes, disse−lhe que Mac Gren tinha morrido na batalha de Saint−Privat.
– Para que te hei−de contar o resto ? Em Paris recomecei a procurar trabalho. Mas tudo estava ainda em
confusão... Quase imediatamente veio a Comuna... Podes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas
enfim já não era Londres, nem o Inverno, nem o exílio. Estávamos em Paris, sofríamos de companhia com
amigos de outros tempos. Já não parecia tão terrível... Com todas estas privações, a pobre Rosa começava a
definhar... Era um suplício vê−la perder as cores, tristinha, mal vestida, metida numa trapeira... A mamã já se
queixava da doença de coração que a matou... O trabalho que eu encontrava, mal pago, dava−nos apenas para
a renda da casa, e para não morrer absolutamente de necessidade... Principiei a adoecer, de ansiedade, de
desespero. Lutei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se não tivesse outro regime, bom ar, algum
conforto... Conheci então Castro Gomes em casa de uma antiga amiga da mamã, que não perdera nada com a
guerra, nem com os Prussianos, e que me dava trabalhos de costura... E o resto sabe−lo... Nem eu me
lembro... Fui levada... Via às vezes Rosa, coitadinha, embrulhada num xale, muito quietinha ao seu canto,
depois de rapada a sua magra tigela de sopas, e ainda com fome...
Não pôde continuar ; rompeu a chorar, caída sobre os joelhos de Carlos. E ele, na sua emoção, só lhe
podia dizer, passando−lhe as mãos trémulas pelos cabelos, que a havia de desforrar bem de todas as misérias
passadas...
– Escuta ainda – murmurou ela, limpando as lágrimas. – Há só uma coisa mais que te quero dizer. E é a
santa verdade, juro−te pela alma de Rosa ! É que nestas duas relações que tive, o meu coração conservou−se
adormecido... Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar nada, até que te vi... E ainda te quero
dizer outra coisa...
Um momento hesitou, coberta de rubor. Passara os braços em torno de Carlos, pendurada toda dele, com
os olhos mergulhados nos seus. E foi mais baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confissão de todo o
seu ser :
– Além de ter o coração adormecido, o meu corpo permaneceu sempre frio, frio como mármore...
Ele estreitou−a a si arrebatadamente : e os seus lábios ficaram colados muito tempo, em silêncio,
completando, numa emoção nova e quase virginal, a comunhão perfeita das suas almas.
Daí a dias Carlos e Ega vinham numa vitória, pela estrada dos Olivais, em caminho da Toca.
Os Maias
Capítulo XV 292
Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera enfim contando ao Ega o impulso de paixão que o
lançara de novo e para sempre, como esposo, nos braços de Maria ; e, na confiança absoluta que o prendia
ao Ega, revelara−lhe mesmo miudamente a história dela, dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor,
propôs que fossem comer as sopas à Toca, Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim começou a
passar devagar a escova pelo paletó, murmurando, como durante as longas confidências de Carlos : «É
prodigioso !... Que estranha coisa, a vida !» E agora pela estrada, na aragem doce do rio, Carlos falava
ainda de Maria, da vida na Toca, deixando escapar do coração muito cheio o interminável cântico da sua
felicidade.
– É facto, Egazinho, conheço quase a felicidade perfeita !
– E cá na Toca ainda ninguém sabe nada ?
Ninguém – a não ser Melanie, a confidente – suspeitava a profunda alteração que se fizera nas suas
relações : e tinham assentado que Miss Sara e o Domingos, primeiras testemunhas da sua amizade, seriam
regiamente recompensados e despedidos quando em fins de Outubro eles partissem para Itália.
– E ides então casar a Roma ?...
– Sim... Em qualquer lugar onde haja um altar e uma estola. Isso não falta em Itália... E é então, Ega,
que reaparece o espinho de toda esta felicidade. É por isso que eu disse «quase». O terrível espinho, o avô !
– É verdade, o velho Afonso. Tu não tens ideia como lhe hás−de fazer conhecer esse caso ?
Carlos não tinha ideia nenhuma. Sentia só que lhe faltava absolutamente a coragem de dizer ao avô :
«Esta mulher, com quem vou casar, teve na sua vida estes erros...» E além disso, já reflectira, era inútil. O
avô nunca compreenderia os motivos complicados, fatais, iniludíveis, que tinham arrastado Maria. Se lhos
contasse miudamente – o avô veria ali um romance confuso e frágil, antipático à sua natureza forte e cândida.
A fealdade das culpas feri−lo−ia, exclusivamente ; e não lhe deixaria apreciar, com serenidade, a
irresistibilidade das causas. Para perceber este caso, de um carácter nobre apanhado dentro de uma
implacável rede de fatalidades, seria necessário um espírito mais dúctil, mais mundano que o do avô... O
velho Afonso era um bloco de granito : não se podiam esperar dele as subtis discriminações de um casuísta
moderno. Da existência de Maria só veria o facto tangível : caíra sucessivamente nos braços de dois homens.
E daí decorreria toda a sua atitude de chefe de família. Para que havia ele, pois, de fazer ao velho uma
confissão, que necessariamente originaria um conflito de sentimentos e uma irreparável separação
doméstica ?...
– Pois não te parece, Ega ?
– Fala mais baixo, olha o cocheiro.
– Não percebe bem o português, sobretudo o nosso estilo... Pois não te parece ?
Ega raspava fósforos na sola para acender o charuto. E resmungava :
– Sim, o velho Afonso é granítico...
Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz : consistia em esconder ao avô o passado de Maria e
fazer−lhe conhecer a pessoa de Maria. Casavam secretamente em Itália. Regressavam : ela para a Rua de S.
Francisco, ele filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos levava o avô a casa da sua boa amiga, que
conhecera em Itália, Madame de Mac Gren. Para o prender logo, lá estavam os encantos de Maria, todas as
Os Maias
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graças de um interior delicado e sério, jantarinhos perfeitos, ideias justas, Chopin, Beethoven, etc. E, para
completar a conquista de quem tão enternecidamente adorava crianças, lá estava Rosa... Enfim, quando o avô
estivesse namorado de Maria, da pequena, de tudo – ele, uma manhã, dizia−lhe francamente : «Esta criatura
superior e adorável teve uma queda no seu passado ; mas eu casei com ela ; e, sendo tal como é, não fiz
bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa ?» E o avô, perante esta terrível irremediabilidade do
facto consumado, com toda a sua indulgência de velho enternecido a defender Maria – seria o primeiro a
pensar que, se esse casamento não era o melhor segundo as regras do mundo, era decerto o melhor segundo
os interesses do coração...
– Pois não te parece, Ega ?
Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em resumo, adoptara para com o avô
a complicada combinação que Maria Eduarda tentara para com ele – e imitava sem o sentir os subtis
raciocínios dela.
– E acabou−se – continuava Carlos. – Se ele na sua indulgência aceitar tudo, bravo !, dá−se uma grande
festa no Ramalhete... Senão, foi−se ! Passaremos a viver cada um para seu lado, fazendo ambos prevalecer a
superioridade de duas coisas excelentes : o avô as tradições do sangue, eu os direitos do coração.
E, vendo o Ega ainda silencioso :
– Que te parece ? Dize lá. Tu andas tão falto de ideias, homem ! O outro sacudiu a cabeça, como
despertando.
– Queres que te diga o que me parece, com franqueza ? Que diabo, nós somos dois homens falando
como homens !... Então aqui está : teu avô tem quase oitenta anos, tu tens vinte e sete ou o quer que seja...
É doloroso dizê−lo, ninguém o diz com mais dor que eu, mas teu avô há−de morrer... Pois bem, espera até lá.
Não cases. Supõe que ela tem um pai muito velho, teimoso e caturra, que detesta o Sr. Carlos da Maia e a sua
barba em bico. Espera : continua a vir à Toca, na tipóia do Mulato ; e deixa o teu avô acabar a sua velhice
calma, sem desilusões e sem desgostos...
Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da vitória. Nunca, nesses dias de inquietação, lhe
acudira ideia tão sensata, tão fácil ! Sim, era isso, esperar ! Que melhor dever do que poupar ao pobre avô
toda a dor ?... Maria, decerto, como mulher, estava desejando, ansiosamente, a conversão do amante no
marido, pelo laço de estola que tudo purifica e nenhuma força desata. Mas ela mesma preferia uma
consagração legal – que não fosse assim precipitada, dissimulada... Depois, tão recta e generosa,
compreenderia bem a obrigação suprema de não mortificar aquele santo velho. De resto, não conhecia ela a
sua lealdade sólida e pura como um diamante ? Recebera a sua palavra : desde esse momento estavam
casados, não diante do sacrário e nos registos da sacristia mas diante da honra e na inabalável comunhão dos
seus corações...
– Tens razão ! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. – Tens imensamente razão ! Essa ideia é
genial ! Devo esperar... E enquanto espero ?...
– Como, enquanto esperas ? – acudiu Ega, rindo. – Que diabo ! Isso não é comigo !
E mais sério :
– Enquanto esperas, tens esse metal vil que faz a existência nobre. Instalas tua mulher, porque desde
hoje é tua mulher, aqui nos Olivais ou noutro sítio, com o gosto, o conforto e a dignidade que competem a tua
mulher... E deixas−te ir ! Nada impede que façais essa viagem nupcial à Itália... Voltas, continuas a fumar a
Os Maias
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tua cigarette e a deixar−te ir. Este é o bom senso : é assim que pensaria o grande Sancho Pança... Que diabo
tens tu naquele embrulho que cheira tão bem ?
– Um ananás... Pois é isso, querido : esperar, deixar−me ir. É uma ideia !
Uma ideia ! E a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com efeito enredar−se numa
meada de amarguras domésticas, por um excesso de cavalheirismo romântico ? Maria confiava nele ; era
rico, era moço ; o mundo abria−se ante eles, fácil e cheio de indulgências. Não tinha senão a deixar−se ir.
– Tens razão, Ega ! E Maria é a primeira a achar isto cheio de senso e de oportunismo. Eu tenho uma
certa pena em adiar a instalação da minha vida e do meu home. Mas, acabou−se ! Antes de tudo que o avô
seja feliz... E para celebrar o advento desta ideia, Deus queira que Maria nos tenha um bom jantar !
Agora, ao aproximar−se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda.
Incomodava−o esse enleio, esse rubor que ela não poderia ocultar – certa que, como confidente de Carlos, ele
conhecia a sua vida, as suas misérias, as suas relações com Castro Gomes. Por isso hesitara em vir à Toca.
Mas também, não aparecer mais a Maria Eduarda, seria marcar com um relevo quase ofensivo o desejo
caridoso de não molestar o seu pudor... Por isso decidira «dar o mergulho de uma vez». Quem, senão ele,
deveria ser o mais apressado em estender a mão à noiva de Carlos ?... Além disso, tinha uma infinita
curiosidade de ver no seu interior, à sua mesa, essa criatura tão bela, com a sua graça nobre de deusa
moderna ! Mas saltou da vitória muito embaraçado.
Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada nos degraus do jardim. Teve
um sobressalto, corou toda, com efeito, ao avistar o Ega, que procurava atarantadamente o monóculo : o
aperto de mão que trocaram foi mudo e tímido : mas Carlos, alegremente, desembrulhara o ananás – e na
admiração dele todo o constrangimento se dissipou.
– Oh ! é magnífico !
– Que cor, que luxo de tons !
– E que aroma ! Veio perfumando toda a estrada.
Ega não voltara à Toca desde a noite fatal da soirée dos Cohens, em que ele ali tanto bebera e delirara
tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo de um temporal, o grogue do Craft, a
ceia de peru...
– Já aqui sofri muito, minha senhora, vestido de Mefistófeles !...
– Por causa de Margarida ?
– Por quem se há−de sofrer neste apaixonado mundo, minha senhora, senão por Margarida ou por
Fausto ?
Mas Carlos quis que ele admirasse os esplendores novos da Toca. E foi já com familiaridade que Maria
o levou pelas salas, lamentando que só viesse assim à Toca no fim do Verão e no fim das flores. Ega
extasiou−se ruidosamente. Enfim, perdera a Toca o seu ar regelado e triste de museu ! Já ali se podia palrar
livremente !
– Isto é um bárbaro, Maria ! exclamava Carlos radiante. – Tem horror à arte ! É um Ibero, é um
Semita !...
Os Maias
Capítulo XV 295
Semita ? Ega prezava−se de ser um luminoso Ariano ! E por isso mesmo não podia viver numa casa
em que cada cadeira tinha a solenidade sorumbática de antepassados com cabeleira...
– Mas – dizia Maria rindo – todas estas lindas coisas do século dezoito lembram antes a ligeireza, o
espírito, a graça de maneiras...
– Vossa Excelência acha ? – acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, esses
rococós lembram−me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada ! nós vivemos numa democracia ! E não
há para exprimir a alegria simples, sólida e bonacheirona da democracia, como largas poltronas de
marroquim, e o mogno envernizado !...
Assim numa risonha, ligeira discussão sobre bricabraque, desceram ao jardim.
Miss Sara passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na mão. Ega, que conhecia já
os seus ardores nocturnos, cravou−lhe sofregamente o monóculo ; e enquanto Maria se abaixara a cortar um
gerânio, exprimiu a Carlos, num gesto mudo, a sua admiração por aquele beicinho escarlate, aquele seiozinho
redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto do caramanchão, encontraram Rosa, que se balouçava. Ega
pareceu deslumbrado com a sua beleza, a sua frescura mate de camélia branca. Pediu−lhe um beijo. Ela
exigiu primeiro, muito séria, que ele tirasse o vidro do olho.
– Mas é para te ver melhor ! é para te ver melhor !...
– Então porque não trazes um em cada olho ? Assim só me vês metade...
– Encantadora ! encantadora ! – murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada e impudente.
Maria resplandecia. E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo à sopa, falando−se de
campo e de um chalé que ele desejava construir em Sintra, nos Capuchos, dissera – «quando nos casarmos».
E Ega aludiu a esse futuro do modo mais grato ao coração de Maria. Agora que Carlos se instalava para
sempre numa felicidade estável (dizia ele) era necessário trabalhar ! E relembrou então a sua velha ideia do
Cenáculo, representado por uma Revista que dirigisse a literatura, educasse o gosto, elevasse a política,
fizesse a civilização, remoçasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espírito, pela sua fortuna (até pela
sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a direcção deste movimento. E que profunda alegria para o
velho Afonso da Maia !
Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida toda de inteligência e actividade,
reabilitaria supremamente aquela união, mostrando−lhe a influência fecunda e purificadora.
– Tem razão, tem bem razão ! – exclamava ela com ardor.
– Sem contar – acrescentava o Ega – que o país precisa de nós ! Como muito bem diz o nosso querido e
imbecilíssimo Gouvarinho, o país não tem pessoal... Como há−de tê−lo, se nós, que possuímos as aptidões,
nos contentamos em governar os nossos dog−carts e escrever a vida íntima dos átomos ? Sou eu, minha
senhora, sou eu que ando a escrever essa biografia de um átomo !... No fim, este diletantismo é absurdo.
Clamamos por aí, em botequins e livros, «que o país é uma choldra». Mas que diabo ! Porque é que não
trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas ideias ?... Vossa
Excelência não conhece este país, minha senhora. É admirável ! É uma pouca de cera inerte de primeira
qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui, a cera tem estado em mãos brutas, banais,
toscas, reles, rotineiras... É necessário pô−la em mãos de artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou !...
Carlos ria, preparando numa travessa o ananás com sumo de laranja e vinho da Madeira. Mas Maria não
queria que ele risse. A ideia do Ega parecia−lhe superior, inspirada num alto dever. Quase tinha remorsos,
Os Maias
Capítulo XV 296
dizia ela, daquela preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cercado de afeição serena, queria−o ver trabalhar,
mostrar−se, dominar...
– Com efeito – disse o Ega recostado e sorrindo – a era do romance findou. E agora...
Mas o Domingos servia o ananás. E o Ega provou e rompeu em clamores de entusiasmo. Oh ! que
maravilha ! Oh ! que delícia !
– Como fazes tu isto ? Com Madeira...
– E génio ! – exclamou Carlos. – Delicioso, não é verdade ? Ora digam−me se tudo o que eu pudesse
fazer pela civilização valeria este prato de ananás ! É para estas coisas que eu vivo ! Eu não nasci para fazer
civilização...
– Nasceste – acudiu o Ega – para colher as flores dessa planta da civilização, que a multidão rega com o
seu suor ! No fundo também eu, menino !
Não, não ! Maria não queria que falassem assim !
– Esses ditos estragam tudo. E o Sr. Ega, em lugar de corromper Carlos, devia inspirá−lo...
Ega protestou, requebrando o olho, já lânguido. Se Carlos necessitava uma musa inspiradora e benéfica
– não podia ser ele, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava toute trouvée !
– Ah, com efeito !... Quantas páginas belas, quantas nobres ideias se não podem produzir num paraíso
destes !...
E o seu gesto mole e acariciador indicava a Toca, a quietação dos arvoredos, a beleza de Maria. Depois,
na sala, enquanto Maria tocava um «nocturno» de Chopin e Carlos e ele acabavam os charutos à porta do
jardim, vendo nascer a Lua – Ega declarou que, desde o começo do jantar, estava com ideias de casar !...
Realmente não havia nada como o casamento, o interior, o ninho...
– Quando penso, menino – murmurou ele, mordendo sombriamente o charuto – que quase todo o ano da
minha vida foi dado àquela israelita devassa que gosta de levar bordoada...
– Que faz ela em Sintra ? – perguntou Carlos.
– Ensopa−se na crápula. Não há a menor dúvida que dá todo o seu coração ao Dâmaso... Tu sabes o que
nestes casos significa o termo coração... Viste já imundície igual ? É simplesmente obscena !
– E tu adora−la – disse Carlos.
O outro não respondeu. Depois, dentro, num ódio repentino da boémia e do romantismo, entoou
louvores sonoros à família, ao trabalho, aos altos deveres humanos – bebendo copinhos de conhaque. À
meia−noite, ao sair, tropeçou duas vezes na rua de acácias, já vago, citando Proudhon. E quando Carlos o
ajudou a subir para a vitória, que ele quis descoberta para ir comunicando com a Lua, Ega ainda lhe agarrou o
braço para lhe falar da Revista, de um forte vento de espiritualidade e de virtude viril que se devia fazer
soprar sobre o país... Por fim, já estirado no assento, tirando o chapéu à aragem da noite :
– E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas a inglesa... Há vícios deliciosos naquelas pestanas baixas...
Vê se ma arranjas... Vá lá, bate lá, cocheiro ! Caramba, que beleza de noite !
Os Maias
Capítulo XV 297
Carlos ficara encantado com este primeiro jantar de amizade na Toca. Ele tencionava não apresentar
Maria aos seus íntimos senão depois de casado e à volta de Itália. Mas agora a «união legal» estava já no seu
pensamento adiada, remota, quase dispersa no vago. Como dizia o Ega, devia esperar deixar−se ir... E no
entanto Maria e ele não poderiam isolar−se ali todo um longo Inverno, sem o calor sociável de alguns amigos
em redor. Por isso uma manhã, encontrando o Cruges, que fora o vizinho de Maria e outrora lhe dava notícias
da «lady inglesa», pediu−lhe para vir jantar à Toca no domingo.
O maestro apareceu numa tipóia, à tardinha, de laço branco e de casaca : e os fatos claros de campo,
com que encontrou Carlos e Ega, começaram logo a enchê−lo de mal−estar. Toda a mulher, além das Lolas e
Conchas, o atarantava, o emudecia : Maria, «com o seu porte de grande dame», como ele dizia, intimidou−o
a tal ponto que ficou diante dela, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar,
por lembrança de Carlos, foram−lhe mostrar a quinta. O pobre maestro, roçando a casaca mal feita pela
folhagem dos arbustos, fazia esforços ansiosos por murmurar algum elogio «à beleza do sítio» ; mas
escapavam−lhe então inexplicavelmente coisas reles, em calão : «Vista catita» ! «É pitada» ! Depois ficava
furioso, coberto de suor, sem compreender como se lhe babavam dos lábios esses ditos abomináveis, tão
contrários ao seu gosto fino de artista. Quando se sentou à mesa sofria um negríssimo acesso de spleen e
mudez ! Nem uma controvérsia, que Maria arranjara caridosamente para ele sobre Wagner e Verdi, pôde
descerrar−lhe os lábios empedernidos. Carlos ainda tentou envolvê−lo na alegria da mesa – contando a ida a
Sintra, quando ele procurava Maria na Lawrence, e em vez dela achara uma matrona obesa, de bigode, de
cãozinho ao colo, ralhando com o homem em espanhol. Mas a cada exclamação de Carlos – «Lembras−te,
Cruges ?», «Não é verdade, Cruges ?» – o maestro, rubro, grunhia apenas um sim avaro. Terminou por estar
ali, ao lado de Maria, como um trambolho fúnebre. Estragou o jantar.
Combinara−se para depois do café um passeio pelos arredores, num break. E Carlos já tomara as guias,
Maria na almofada acabava de abotoar as luvas – quando Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do
break, correu a buscar o paletó. Nesse mesmo momento sentiram um trote de cavalo na estrada – e apareceu o
marquês.
Foi uma surpresa para Carlos, que o não vira durante esse Verão. O marquês parou logo, tirando
profundamente, ao ver Maria, o seu largo chapéu desabado.
– Imaginava−o pela Golegã ! – exclamou Carlos. – Foi até o Cruges que me disse... Quando chegou
você ?
Chegara na véspera. Lá fora ao Ramalhete ; tudo deserto. Agora vinha aos Olivais ver um dos Vargas
que tinha casado, se instalara ali perto, a passar o noivado...
– Quem, o gordo, o das corridas ?
– Não, o magro, o das regatas.
Carlos, debruçado da almofada, examinava a eguazita do marquês, pequena, bem estampada, de um baio
escuro e bonito.
– Isso é novo ?
– Uma facazita do Darque... Quer−ma você comprar ? Sou já um pouco pesado para ela, e isto mete−se
a um dog−cart...
– Dê lá uma volta...
Os Maias
Capítulo XV 298
O marquês deu a volta, bem posto na sela, avantajando a égua. Carlos achou−lhe «boas acções». Maria
murmurou : «Muito bonita, uma cabeça fina...» Então Carlos apresentou o marquês de Sousela a Madame
Mac Gren. Ele chegou a égua à roda, descoberto, para apertar a mão a Maria : e à espera do Ega que se
eternizava lá dentro, ficaram falando do Verão, de Santa Olávia, dos Olivais, da Toca... Há que tempos o
marquês ali não passava ! A última vez fora vítima da excentricidade do Craft...
– Imagine Vossa Excelência – disse ele a Maria Eduarda – que esse Craft me convida a almoçar. Venho,
e o hortelão diz−me que o Sr. Craft, criado e cozinheiro, tudo partira para o Porto ; mas que o Sr. Craft
deixara um cartaz na sala... Vou à sala, e vejo dependurada ao pescoço de um ídolo japonês uma folha de
papel com estas palavras pouco mais ou menos : «O deus Tchi tem a honra de convidar o senhor marquês,
em nome de seu amo ausente, a passar à sala de jantar, onde encontrará, num aparador, queijo e vinho, que é
o almoço que basta ao homem forte.» E foi com efeito o meu almoço... Para não estar só, partilhei−o com o
hortelão.
– Espero que se tivesse vingado ! – exclamou Maria rindo.
– Pode crer, minha senhora... Convidei−o a jantar, e quando ele apareceu, vindo daqui da Toca, o meu
guarda−portão disse−lhe que o senhor marquês fora para longe, e que não havia nem pão nem queijo...
Resultado : o Craft mandou−me uma dúzia de magníficas garrafas de Chambertin. Esse deus Tchi nunca
mais o tornei a ver... O deus Tchi lá estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos convidou o
marquês a revisitar nessa noite, à volta da casa do Vargas, o seu velho amigo Tchi.
O marquês veio, às dez horas – e foi um serão encantador. Conseguiu sacudir logo a melancolia do
Cruges, arrastando−o com mão de ferro para o piano ; Maria cantou ; palrou−se com graça ; e aquele
esconderijo de amor ficou alumiado até tarde, na sua primeira festa de amizade.
Estas reuniões alegres foram ao princípio, como dizia o Ega, dominicais : mas o Outono arrefecia, bem
depressa se despiriam as árvores da Toca, e Carlos acumulou−as duas vezes por semana, nos velhos dias
feriados da Universidade, domingos e quintas. Tinha descoberto uma admirável cozinheira alsaciana, educada
nas grandes tradições, que servira o bispo de Estrasburgo, e a quem as extravagâncias de um filho e outras
desgraças tinham arrojado a Lisboa. Maria, de resto, punha na composição dos seus jantares uma ciência
delicada : o dia de vir à Toca era considerado pelo marquês «dia de civilização».
A mesa resplandecia ; e as tapeçarias, representando massas de arvoredos, punham em redor como a
sombra escura de um retiro silvestre onde, por um capricho, se tivessem acendido candelabros de prata. Os
vinhos saíam da frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisas da Terra e do Céu se grulhava com
fantasia – menos de «política portuguesa», considerada conversa indecorosa entre pessoas de gosto.
Rosa aparecia ao café, exalando do seu sorriso, dos bracinhos nus, dos vestidos brancos tufados sobre as
meias de seda preta, um bom aroma de flor. O marquês adorava−a, disputando−a ao Ega, que a pedira a
Maria em casamento e lhe andava compondo havia tempo um soneto. Ela preferia o marquês : achava o Ega
«muito...» – e completava o seu pensamento com um gestozinho do dedo ondeando no ar, como a exprimir
que o Ega «era muito retorcido».
– Aí está ! – exclamava ele. – Porque eu sou mais civilizado que o outro ! É a simplicidade não
compreendendo o requinte.
– Não, desgraçado ! – exclamavam do lado. – É porque és impresso !... É a Natureza repelindo a
convenção !...
Os Maias
Capítulo XV 299
Bebia−se à saúde de Maria : ela sorria, feliz entre os seus novos amigos, divinamente bela, quase
sempre de escuro, com um curto decote onde resplandecia o incomparável esplendor do seu colo. Depois
organizaram−se solenidades. Num domingo, em que os sinos repicavam e à distância foguetes esfuziavam no
ar – Ega lamentou que os seus austeros princípios filosóficos o impedissem de festejar, também, aquele santo
de aldeia, que fora decerto em vida um caturra encantador, cheio de ilusões e doçura... Mas de resto,
acrescentou, não teria sido num dia assim, fino e seco, sob um grande céu cheio de sol, que se feriu a batalha
das Termópilas ? Porque não se atiraria uma girândola de foguetes em honra de Leónidas e dos Trezentos ?
E atirou−se a girândola pela eterna glória de Esparta. Depois celebraram−se outras datas históricas. O
aniversário da descoberta da Vénus de Milo foi comemorado com um balão que ardeu. Noutra ocasião o
marquês trouxe de Lisboa, apinhados numa tipóia, fadistas famosos, o Pintado, o Vira−Vira e o Gago : e
depois de jantar, até tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de
Portugal.
Quando estavam sós, Carlos e Maria passavam as suas manhãs no quiosque japonês – afeiçoados àquele
primeiro retiro dos seus amores, pequeno e apertado, onde os seus corações batiam mais perto um do outro.
Em lugar das esteiras de palha, Carlos revestira−o com as suas formosas colchas da Índia, cor de palha e cor
de pérola. Um dos maiores cuidados dele, agora, era embelezar a Toca : nunca voltava de Lisboa sem trazer
alguma figurinha de Saxe, um marfim, uma faiança, como noivo feliz que aperfeiçoa o seu ninho. Maria, no
entanto, não cessava de lembrar os planos intelectuais do Ega : queria que ele trabalhasse, ganhasse um
nome : seria isso o orgulho íntimo dela, e sobretudo a alegria suprema do avô. Para a contentar (mais que
para satisfazer as suas necessidades de espírito), Carlos recomeçara a compor alguns dos seus artigos de
medicina literária, para a Gazeta Médica. Trabalhava no quiosque, de manhã. Trouxera para lá rascunhos,
livros, o seu famoso manuscrito da Medicina Antiga e Moderna. E por fim achara um grande encanto em
estar ali, com um leve casaco de seda, as suas cigarettes ao lado, um fresco murmúrio de arvoredo em redor
cinzelando as suas frases, enquanto ela ao lado bordava silenciosa. As suas ideias surgiam com mais
originalidade, a sua forma ganhava em colorido naquele estreito quiosque acetinado que ela perfumava com a
sua presença. Maria respeitava este trabalho, como coisa nobre e sagrada. De manhã, ela mesma espanejava
os livros do leve pó que a aragem soprava pela janela ; dispunha o papel branco, punha cuidadosamente
penas novas ; e andava bordando numa almofada de penas e cetim, para que o trabalhador estivesse mais
confortável na sua vasta cadeira de couro lavrado.
Um dia oferecera−se a passar a limpo um artigo. Carlos, entusiasmado com a letra dela, quase
comparável à lendária letra do Dâmaso, ocupava−a agora incessantemente como copista, sentindo mais amor
por um trabalho a que ela se associava. Quantos cuidados se dava a doce criatura ! Tinha para isso um papel
especial, de um tom macio de marfim : e, com o dedinho no ar, ia desenrolando as pesadas considerações de
Carlos sobre o Vitalismo e o Transformismo na graça delicada de uma renda... Um beijo pagava−a de tudo.
Às vezes Carlos dava lições a Rosa – ora de história, contando−lha familiarmente como um conto de
fadas, ora de geografia, interessando−a pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm
entre as ruínas dos santuários. Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda, cheia de religião, escutava
aquele ser bem−amado ensinando sua filha. Deixava escapar das mãos o trabalho – e o interesse de Carlos, a
enlevada atenção de Rosa sentada aos pés dele, bebendo aquelas belas histórias de Joana d'Arc ou das
caravelas que foram à Índia, fazia resplandecer nos seus olhos uma névoa de lágrimas felizes...
Desde o meado de Outubro, Afonso da Maia falava da sua partida de Santa Olávia, retardada apenas por
algumas obras, que começara na parte velha da casa e nas cocheiras : porque ultimamente invadira−o a
paixão de edificar – sentindo−se remoçar, como ele dizia, no contacto das madeiras novas e no cheiro vivo
das tintas. Carlos e Maria pensavam também em abandonar os Olivais. Carlos não poderia, por dever
doméstico, permanecer ali instalado desde que o avô recolhesse ao Ramalhete. Além disso, aquele fim de
Outono ia escuro e agreste ; e a Toca era agora pouco bucólica, com a quinta desfolhada e alagada, uma
névoa sobre o rio, e um fogão único no gabinete de cretones – além da sumptuosa chaminé da sala de jantar,
Os Maias
Capítulo XV 300
que, por entre os seus núbios de olhos de cristal, soltava uma fumaraça odiosa, quando o Domingos a tentava
acender. Numa dessas manhãs, Carlos, que ficara até tarde com Maria, e depois no seu delgado casebre mal
pudera dormir com um temporal, de vento e água, desencadeado de madrugada, ergueu−se às nove horas,
veio à Toca. As janelas do quarto de Maria conservavam−se ainda cerradas ; a manhã clareara ; a quinta
lavada, meio despida, no ar fino e azul, tinha uma linda e silenciosa graça de Inverno. Carlos passeava,
olhando os vasos onde os crisântemos floriam, quando retiniu a sineta do portão. Era o toque do carteiro.
Justamente ele escrevera dias antes ao Cruges, perguntando se estaria desocupado, para os primeiros frios de
Dezembro, o andar da Rua de S. Francisco : e, esperando carta do maestro, foi abrir, acompanhado por
Niniche. Mas o correio, nessa manhã, consistia apenas numa carta do Ega e dois números de jornal cintados –
um para ele, outro para «Madame Castro Gomes, na quinta do Sr. Craft, aos Olivais».
Caminhando sob as acácias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da véspera, com a data : «À noite, à
pressa.» E dizia : «Lê, nesse trapo que te mando, esse superior pedaço de prosa que lembra Tácito. Mas não
te assustes ; eu suprimi, mediante pecúnia, toda a tiragem, com excepção de dois números mais que foram,
um para a Toca, outro (oh ! lógica suprema dos hábitos constitucionais !) para o Paço, para o Chefe do
Estado !... Mas esse mesmo não chegará ao seu destino. Em todo o caso desconfio de que esgoto saiu esse
enxurro e precisamos providenciar ! Vem já ! Espero−te às duas. E, como Iago dizia a Cássio, mete
dinheiro na bolsa.» Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava−se a Corneta do Diabo : e na impressão,
no papel, na abundância dos itálicos, no tipo gasto, todo ele revelava imundície e malandrice. Logo na
primeira página duas cruzes a lápis marcavam um artigo que Carlos, num relance, viu salpicado com o seu
nome. E leu isto : «Ora viva, sô Maia ! Então já se não vai ao consultório, nem se vêem os doentes do
bairro, sô janota ? – Esta piada era botada no Chiado, à porta da Havanesa, ao Maia, ao Maia dos cavalos
ingleses, um tal Maia do Ramalhete, que abarrota por aí de catita ; e o pai Paulino que tem olho e que
passava nessa ocasião ouviu a seguinte cornetada : – É que o sô Maia acha que é mais quente viver nas
fraldas de uma brasileira casada, que nem é brasileira nem é casada, e a quem o papalvo pôs casa, aí para o
lado dos Olivais, para estar ao fresco ! Sempre os há neste mundo !... Pensa o homem que botou
conquista ; e cá a rapaziada de gosto ri−se, porque o que a gaja lhe quer não são os lindos olhos, são as
lindas louras... O simplório, que bate aí pilecas bifes, que nem que fosse o marquês, o verdadeiro marquês,
imaginava que se estava abiscoitando com uma senhora do chique, e do boulevard de Paris, e casada, e
titular !... E no fim (não, esta é para a gente deixar estourar o bandulho a rir !) no fim descobre−se que a tipa
era uma cocotte safada, que trouxe para aí um brasileiro já farto dela para a passar cá aos belos lusitanos... E
caiu a espiga ao Maia ! Pobre palerma ! Ainda assim o sô Maia só apanhou os restos de outro, porque a
tipa, já antes de ele se enfeitar, tinha pandegado à larga, aí para a Rua de S. Francisco, com um rapaz da fina,
que safou também, porque cá como nós só aprecia a bela espanhola. Mas não obsta a que o sô Maia seja
traste ! – Pois se assim é, dissemos nós, cautelinha, porque o Diabo cá tem a sua Corneta preparada para
cornetear por esse mundo as façanhas do Maia das conquistas. Ora viva, sô Maia !» Carlos ficou imóvel
entre as acácias, com o jornal na mão, no espanto furioso e mudo de um homem que subitamente recebe na
face uma grossa chapada de lodo ! Não era a cólera de ver o seu amor assim aviltado na publicidade chula de
um jornal sórdido : era o horror de sentir aquelas frases em calão, pandilhas, afadistadas, como só Lisboa as
pode criar, pingando fetidamente, à maneira de sebo, sobre si, Maria, sobre o esplendor da sua paixão...
Sentia−se todo emporcalhado. E uma única ideia surgia através da sua confusão – matar o bruto que
escrevera aquilo.
Matá−lo ! Ega sustera a tiragem da folha, Ega pois conhecia o foliculário. Nada importava que aqueles
números que tinha na mão fossem os únicos impressos. Recebera lama na face. Que a injúria fosse espalhada
nas praças numa profusa publicidade ou lhe fosse atirada só a ele escondidamente num papel único, era
igual... Quem tanto ousara tinha de cair, esmagado !
Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos, à janela da cozinha, areava pratas, assobiando. Mas quando
Carlos lhe falou de ir buscar um calhambeque aos Olivais, o bom Domingos consultou o relógio :
Os Maias
Capítulo XV 301
– Vossa Excelência tem às onze horas a caleche do Torto, que a senhora mandou cá estar para ir a
Lisboa...
Carlos, com efeito, recordou−se que Maria, na véspera, planeara ir à Aline e aos livreiros. Uma
contrariedade, justamente nesse dia em que ele precisava ficar livre – ele e a sua bengala ! Mas Melanie,
passando então com um jarro de água quente, disse que a senhora ainda se não vestira, que talvez nem fosse a
Lisboa... E Carlos recomeçou a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras. Sentou−se por fim no banco de
cortiça ; descintou a Corneta sobrescritada para Maria, releu lentamente a prosa imunda : e, nesse número
que lhe fora destinado a ela, todo aquele calão lhe pareceu mais ultrajante, intolerável, punível só com
sangue. Era monstruoso, na verdade, que sobre uma mulher, quieta, inofensiva no silêncio da sua casa,
alguém ousasse tão brutalmente arremessar esse lodo às mãos−cheias ! E a sua indignação alargava−se, do
foliculário que babara aquilo – até à sociedade que, na sua decomposição, produzira o foliculário. Decerto
toda a cidade sofria a sua vérmina... Mas só Lisboa, só a horrível Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o
seu rebaixamento social, a perda inteira de bom senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu
calão, podia produzir uma Corneta do Diabo.
E, no meio desta alta cólera de moralista, uma dor perpassava, precisa e dilacerante. Sim, toda a
sociedade de Lisboa fazia um monturo sórdido neste canto do mundo – mas, em suma, havia no artigo da
Corneta uma calúnia ? Não. Era o passado de Maria, que ela arrancara de si como um vestido roto e sujo,
que ele mesmo enterrara muito fundo, deitando−lhe por cima o seu amor e o seu nome – e que alguém
desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora ameaçava
para sempre a sua vida, como um terror sobre ela suspenso. Debalde ele perdoara, debalde ele esquecera. O
mundo em redor sabia. E a todo o tempo, o interesse ou a perversidade poderiam refazer o artigo da Corneta.
Ergueu−se, abalado. E então ali, sob essas árvores desfolhadas, onde durante o Verão, quando elas se
enchiam de sombra e de murmúrio, ele passeara com Maria, esposa eleita da sua vida – Carlos perguntou,
pela primeira vez a si mesmo, se a honra doméstica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia,
a dignidade dos homens que dele descendessem, lhe permitiam em verdade casar com ela...
Dedicar−lhe toda a sua afeição, toda a sua fortuna, certamente ! Mas casar... E se tivesse um filho ? O
seu filho, já homem, altivo e puro, poderia um dia ler numa Corneta do Diabo que sua mãe fora amante de
um brasileiro, depois de ser amante de um irlandês. E se seu filho lhe viesse gritar, numa bela indignação :
«É uma calúnia ?» – ele teria de baixar a cabeça, murmurar : «É uma verdade !» E seu filho veria para
sempre colada a si aquela mãe de quem o mundo ignorava os martírios e os encantos – mas de quem conhecia
cruelmente os erros.
E ela mesma ! Se ele apelasse para a sua razão, alta e tão recta, mostrando−lhe as zombarias e as
afrontas de que uma vil Corneta do Diabo poderia um dia traspassar o filho que deles nascesse – ela mesma o
desligaria alegremente do seu voto, contente em entrar no Ramalhete pela escadinha secreta, forrada de
veludo cor de cereja, contanto que em cima a esperasse um amor constante e forte... Nunca ela tornara, em
todo o Verão, a aludir a uma união diferente dessa em que os seus corações viviam tão lealmente, tão
confortavelmente. Não, Maria não era uma devota, preocupada «do pecado mortal» ! Que lhe podia importar
a estola banal do padre ?... Sim ; mas ele, que lhe pedira essa consagração, na hora mais comovida do seu
longo amor, iria dizer−lhe agora – «foi uma criancice, não pensemos mais nisso, desculpa» ? Não ; nem o
seu coração o desejava ! Antes pendia todo para ela... Pendia todo para ela, num enternecimento mais
generoso e mais quente – enquanto a sua razão assim arengava, cautelosa e austera. Ele tinha naquela alma o
seu culto perfeito, naqueles braços a sua voluptuosidade magnífica ; fora dali não havia felicidade ; a única
sabedoria era prender−se a ela pelo derradeiro elo, o mais forte, o seu nome, embora as Cornetas do
Diabo atroassem todo o ar. E assim afrontaria o mundo numa soberba revolta, afirmando a omnipotência, o
reino único da Paixão... Mas primeiro mataria o foliculário ! – Passeava, esmagava a relva. E todos os seus
pensamentos se resolviam, por fim, em fúria contra o infame que babara sobre o seu amor, e durante um
Os Maias
Capítulo XV 302
instante introduzia na sua vida tanta incerteza e tanto tormento !
Maria ao lado abriu a janela. Estava vestida de escuro para sair ; e bastou o brilho terno do seu sorriso,
aqueles ombros a que o estofo justo modelava a beleza cheia e quente – para que Carlos detestasse logo as
dúvidas desleais e cobardes, a que se abandonara um momento sob as árvores desfolhadas... Correu para ela.
O beijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildade de um perdão que se implora.
– Que tens tu, que estás tão sério ?
Ele sorriu. Sério, no sentido de solene, não estava. Talvez secado. Recebera uma carta do Ega, uma das
eternas complicações do Ega. E precisava ir a Lisboa, ficar lá naturalmente toda a noite...
– Toda a noite ? – exclamou ela com um desapontamento, pousando−lhe as mãos sobre os ombros.
– Sim, é bem possível, um horror ! Nos negócios do Ega há fatalmente o inesperado... Tu, com efeito,
vais a Lisboa ?
– Agora, com mais razão... Se me queres.
– O dia está bonito... Mas há−de fazer frio na estrada. Maria justamente gostava desses dias de Inverno,
cheios de sol, com um arzinho vivo e arrepiado. Tornavam−na mais leve, mais esperta.
– Bem, bem – disse Carlos atirando o cigarro. – Vamos ao almoço, minha filha... O pobre Ega deve estar
a uivar de impaciência. Enquanto Maria correra a apressar o Domingos – Carlos, através da relva húmida, foi
ainda lentamente até ao renque baixo de arbustos que daquele lado fechava a Toca como uma sebe. Aí a
colina descia, com quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chaminé de fábrica que fumegava :
para além era o azul fino e frio do rio : depois os montes, de um azul mais carregado, com a casaria branca
da povoação aninhada à beira da água, nítida e suave na transparência do ar macio. Parou um momento,
olhando. E aquela aldeia de que nunca soubera o nome, tão quieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo
repentino de sossego e de obscuridade, num canto assim do mundo, à beira de água, onde ninguém o
conhecesse nem houvesse Cornetas do Diabo, e ele pudesse ter a paz de um simples e de um pobre debaixo
de quatro telhas, no seio de quem amava...
Maria gritou por ele da janela da sala de jantar, onde se debruçara a apanhar uma das últimas rosas
trepadeiras que ainda floriam.
– Que lindo tempo para viajar, Maria ! – disse Carlos chegando, através da relva.
– Lisboa é também muito linda, agora, havendo sol...
– Pois sim, mas o Chiado, a coscuvilhice, os politiquetes, as gazetas, todos os horrores... A mim
está−me positivamente a apetecer uma cubata na África !
O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora, quando a caleche do Torto começou a rolar na
estrada, ainda encharcada da chuva da noite. Logo adiante da vila, na descida, cruzaram um coupé que
trepava num trote esfalfado. Maria julgou avistar nele de relance o chapéu branco e o monóculo do Ega...
Pararam. E era com efeito o Ega, que reconhecera também a caleche da Toca, vinha já saltitando as lamas
com longas pernadas de cegonha, chamando por Carlos. Ao ver Maria, ficou atrapalhado :
– Que bela surpresa ! Eu ia para lá... Vi o dia tão bonito, disse comigo...
Os Maias
Capítulo XV 303
– Bem, paga a tua tipóia, vem connosco ! – atalhou Carlos, que traspassava o Ega com os olhos
inquietos, querendo adivinhar o motivo daquela brusca chegada aos Olivais.
Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraçado, sem poder desabafar diante de
Maria sobre o caso da Corneta, começou, sob os olhos de Carlos que o não deixavam, a falar do Inverno, das
inundações do Ribatejo... Maria lera. Uma desgraça, duas crianças afogadas nos berços, gados perdidos, uma
grande miséria ! Por fim Carlos não se conteve :
– Eu lá recebi a tua carta...
Ega acudiu :
– Arranja−se tudo ! Está tudo combinado ! E com efeito eu não vim senão por um sentimento
bucólico...
Muito discretamente Maria olhara para o rio. Ega fez então um gesto rápido com os dedos, significando
«dinheiro, só questão de dinheiro». Carlos sossegou : e Ega voltou a falar dos inundados do Ribatejo e do
sarau literário e artístico que, em benefício deles, se «ia cometer» no salão da Trindade... Era uma vasta
solenidade oficial. Tenores do Parlamento, rouxinóis da literatura, pianistas ornados com o hábito de
Sant'Iago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo ia entrar em fogo. Os reis assistiam, já
se teciam grinaldas de camélias para pendurar na sala. Ele, apesar de demagogo, fora convidado para ler um
episódio das Memórias de Um Átomo : recusara−se, por modéstia, por não encontrar, nas Memórias, nada
tão suficientemente palerma que agradasse à capital. Mas lembrara o Cruges ; e o maestro ia ribombar ou
arrulhar uma das suas Meditações. Além disso, havia uma poesia social pelo Alencar. Enfim, tudo
prenunciava uma imensa orgia...
– E a Sr. a D. Maria – acrescentou ele – devia ir !... É sumamente pitoresco. Tinha Vossa Excelência
ocasião de ver todo o Portugal romântico e liberal, à la besogne, engravatado de branco, dando tudo que tem
na alma !
– Com efeito devias ir – disse Carlos, rindo. – Demais a mais se o Cruges toca, se o Alencar recita, é
uma festa nossa...
– Pois está claro ! – gritou Ega, procurando o monóculo, já excitado. – Há duas coisas que é necessário
ver em Lisboa... Uma procissão do Senhor dos Passos e um sarau poético !
Rolavam então pelo Largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que parasse no começo da Rua do
Alecrim : eles apeavam−se e tomavam de lá o americano para o Ramalhete.
Mas a tipóia estacou antes da calçada, rente ao passeio, em frente de uma loja de alfaiate. E nesse
instante achava−se aí parado, calçando as suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas de apóstolo, todo
vestido de luto. Ao ver Maria, que se inclinara à portinhola, o homem pareceu assombrado ; depois, com
uma leve cor na face larga e pálida, tirou gravemente o chapéu, um imenso chapéu de abas recurvas, à moda
de 1830, carregado de crepe.
– Quem é ? – perguntou Carlos.
– É o tio do Dâmaso, o Guimarães – disse Maria, que corara também. – É curioso, ele aqui !
Ah, sim ! o famoso Mr. Guimarães, o do Rappel, o íntimo de Gambetta ! Carlos recordava−se de ter já
encontrado aquele patriarca no Price com o Alencar. Cumprimentou−o também ; o outro ergueu de novo,
Os Maias
Capítulo XV 304
com uma gravidade maior, o seu sombrio chapéu de carbonário. Ega entalara vivamente o monóculo para
examinar esse lendário tio do Dâmaso, que ajudava a governar a França : e depois de se despedirem de
Maria, quando a caleche já subia a Rua do Alecrim e eles atravessavam para o Hotel Central, ainda se voltou,
seduzido por aqueles modos, aquelas barbas austeras de revolucionário...
– Bom tipo ! E que magnífico chapéu, hem ! Donde diabo o conhece a Sr. a D. Maria ?
– De Paris... Este Mr. Guimarães era muito da mãe dela. A Maria já me tinha falado nele. É um pobre
diabo. Nem amigo de Gambetta, nem coisa nenhuma... Traduz notícias dos jornais espanhóis para o Rappel, e
morre de fome...
– Mas então, o Dâmaso ?
– O Dâmaso é um trapalhão. Vamos nós ao nosso caso... Essa imundície que me mandaste, a Corneta ?
Dize lá.
Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a história da imundície. Fora na véspera à tarde que recebera
no Ramalhete a Corneta. Ele já conhecia o papelucho, já privara mesmo com o proprietário e redactor – o
Palma, chamado Palma Cavalão para se distinguir de outro benemérito chamado Palma Cavalinho.
Compreendeu logo que, se a prosa era do Palma, a inspiração era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem
de Maria, nem da casa da Rua de S. Francisco, nem da Toca... Não era natural que escrevesse por deleite
intelectual um documento que só lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fora−lhe
simplesmente encomendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por este
sólido princípio correra a procurar o Palma Cavalão no seu antro.
– Também lhe conheces o antro ? – perguntou Carlos, com horror.
– Tanto não... Fui perguntar à Secretaria da Justiça, a um sujeito que esteve associado com ele num
negócio de almanaques religiosos...
Fora pois ao antro. E encontrara as coisas dispostas pelas mãos hábeis de uma Providência amiga.
Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis números, a máquina, esfalfada na prática daquelas
maroteiras, desmanchara−se. Além disso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe encomendara
o artigo, por divergência na seriíssima questão de pecúnia. De sorte que apenas ele propôs comprar a tiragem
do jornal – o jornalista estendeu logo a mão larga, de unhas roídas, tremendo de reconhecimento e de
esperança. Dera−lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais dez...
– É caro, mas que queres ? – continuou o Ega. – Deixei−me atarantar, não regateei bastante... E
enquanto a dizer quem é o cavalheiro que encomendou o artigo, o Palma, coitado, afirma que tem uma
rapariga espanhola a sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, que Lisboa está caríssima, que
a literatura neste desgraçado país...
– Quanto quer ele ?
– Cem mil réis. Mas, ameaçando−o com a polícia, talvez desça a quarenta.
– Promete os cem, promete tudo, contanto que eu tenha o nome... Quem te parece que seja ?
Ega encolheu os ombros, deu um risco lento no chão com a bengala. E mais lentamente ainda foi
considerando que o inspirador da Corneta devia ser alguém familiar com Castro Gomes ; alguém
frequentador da Rua de S. Francisco ; alguém conhecedor da Toca ; alguém que tinha, por ciúme ou
Os Maias
Capítulo XV 305
vingança, um desejo ferrenho de magoar Carlos ; alguém que sabia a história de Maria ; e enfim alguém
que era um cobarde...
– Estás a descrever o Dâmaso ! – exclamou Carlos, pálido e parando.
Ega encolheu de novo os ombros, tornou a riscar o chão :
– Talvez não... Quem sabe ! Enfim, nós vamos averiguá−lo com certeza, porque, para terminar a
negociação, fiquei de me ir encontrar com o Palma às três horas no Lisbonense... E o melhor é vires também.
Trazes tu dinheiro ?
– Se for o Dâmaso, mato−o ! – murmurou Carlos.
E não trazia suficiente dinheiro. Tomaram uma tipóia para correr ao escritório do Vilaça. O procurador
fora a Mafra, a um baptizado. Carlos teve de ir pedir cem mil réis ao velho Cortês, alfaiate do avô. Quando
perto das quatro horas se apearam à entrada do Lisbonense, no Largo de Santa Justa, o Palma no portal, com
um jaquetão de veludo coçado e calça de casimira clara colada à coxa, acendia um cigarro. Estendeu logo
rasgadamente a mão a Carlos – que lhe não tocou. E Palma Cavalão, sem se ofender, com a mão abandonada
no ar, declarou que ia justamente sair ; cansado já de esperar em cima diante de um grogue frio. De resto
sentia que o Sr. Maia se incomodasse em vir ali...
– Eu arranjava cá o negociozinho com o amigo Ega... Em todo o caso, se os senhores querem, vamos lá
para cima para um gabinete, que se está mais à vontade, e toma−se outra bebida. Subindo a escada lôbrega,
Carlos recordava−se de ter já visto aquela luneta de vidros grossos, aquela cara balofa cor de cidra... Sim,
fora em Sintra, com o Eusebiozinho e duas espanholas, nesse dia em que ele farejara pelas estradas
silenciosas, como um cão abandonado, procurando Maria !... Isto tornou−lhe mais odioso o Sr. Palma. Em
cima entraram num cubículo, com uma janela gradeada por onde resvalava uma luz suja de saguão. Na toalha
da mesa, salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um galheteiro que tinha moscas no azeite. O
Sr. Palma bateu as palmas, mandou vir genebra. Depois, dando um grande puxão às calças :
– Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu já disse cá ao amigo Ega, em todo este
negócio...
Carlos atalhou−o, tocando muito significativamente com a ponteira da bengala na borda da mesa.
– Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o Sr. Palma por me dizer quem lhe encomendou o artigo da
Corneta ?
– Dizer quem o encomendou, e prová−lo ! – acudiu o Ega, que examinava na parede uma gravura onde
havia mulheres nuas à beira de água. – Não nos basta o nome... O amigo Palma, está claro, é de toda a
confiança... Mas enfim, que diabo, não é natural que nós acreditássemos se o amigo nos dissesse que tinha
sido o senhor D. Luís de Bragança.
Palma encolheu os ombros. Está visto que havia de dar provas. Ele podia ter outros defeitos, trapalhão
não ! Em negócios era todo franqueza e lisura... E, se se entendessem, ali lhas entregava logo essas provas
que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e de escachar ! Tinha a carta do amigo que lhe
encomendara a piada : a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta : o rascunho do artigo a lápis...
– Quer cem mil réis por tudo isso ? – perguntou Carlos. O Palma ficou um momento indeciso, ajeitando
as lunetas com os dedos moles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra : e então o redactor da
Corneta ofereceu a bebida rasgadamente, puxou mesmo as cadeiras para aqueles cavalheiros abancarem.
Os Maias
Capítulo XV 306
Ambos recusaram – Carlos de pé junto da mesa onde terminara por pousar a bengala, Ega passando a outra
gravura onde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado saiu, Ega acercou−se, tocou com
bonomia no ombro do jornalista :
– Cem mil réis são uma linda soma, Palma amigo ! E olhe que se lhe oferecem por delicadeza consigo.
Porque artiguinhos como este da Corneta, apresentados na Boa Hora, levam à grilheta !... Está claro, este
caso é outro, você não teve intenção de ofender ; mas levam à grilheta !... Foi assim que o Severino
marchou para a África. Ali no porãozinho de um navio, com ração de marujo e chibatadas. Desagradável,
muito desagradável. Por isso eu quis que tratássemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.
Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de açúcar dentro do copo de genebra. E suspirou, findou por
dizer, um pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil réis...
Imediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um punhado de libras, que começou a deixar cair em
silêncio uma a uma dentro de um prato. E Palma Cavalão, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o
jaquetão, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monograma de prata sob uma enorme coroa de
visconde. Os dedos tremiam−lhe ; por fim desdobrou, estendeu três papéis sobre a mesa. Ega, que esperava,
com o monóculo sôfrego, teve um brado de triunfo. Reconhecera a letra do Dâmaso !
Carlos examinou os papéis lentamente. Era uma carta do Dâmaso ao Palma, curta e em calão, remetendo
o artigo, recomendando−lhe «que o apimentasse». Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo
Dâmaso, com entrelinhas. Era a lista, escrita pelo Dâmaso, das pessoas que deviam receber a Corneta :
vinha lá a Gouvarinho, o ministro do Brasil, D. Maria da Cunha, El−rei, todos os amigos do Ramalhete, o
Cohen, várias autoridades, e a Fancelli prima−dona...
Palma, no entanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato onde reluziam as libras.
E foi o Ega que o animou, depois de relancear os olhos aos documentos por cima do ombro de Carlos :
– Recolha o bago, amigo Palma ! Negócios são negócios, e o baguinho está aí a arrefecer !
Então, ao palpar o ouro, Palma Cavalão comoveu−se. Palavra, caramba, se soubesse que se tratava de
um cavalheiro como o Sr. Maia, não tinha aceitado o artigo ! Mas então !... Fora o Eusébio Silveira, rapaz
amigo, que lhe viera falar. Depois o Salcede. E ambos com muitas lérias e que era uma brincadeira, e que o
Maia não se importava, e isto e aquilo, e muita promessa... Enfim deixara−se tentar. E tanto o Salcede como
o Silveira se tinham portado pulhamente.
– Foi uma sorte que se escangalhasse a máquina ! Senão estava agora entalado, irra ! E tinha desgosto,
palavra, caramba, tinha desgosto ! Mas acabou−se ! O mal não foi grande, e sempre se fez alguma coisa
pela porca da vida.
Vivamente, com um olhar, recontara o dinheiro na palma da mão : depois esvaziou a genebra, de um
trago consolado e ruidoso. Carlos guardara as cartas do Dâmaso, levantava já o fecho da porta. Mas
voltou−se ainda, numa derradeira averiguação :
– Então esse meu amigo Eusébio Silveira também se meteu no negócio ?
O Sr. Palma, muito lentamente, afiançou que o Eusébio lhe falara apenas em nome do Dâmaso !
– O Eusébio, coitado, veio só como embaixador... Que o Dâmaso e eu não vamos muito na mesma bola.
Ficámos esquisitos, desde uma pega em casa da Biscainha. Aqui para nós, eu prometi−lhe dois estalos na
cara, e ele embuchou. Passados tempos tornámos a falar, quando eu fazia o High Life na Verdade. Ele
Os Maias
Capítulo XV 307
veio−me pedir com bons modos, em nome do conde de Landim, para eu dar umas piadas catitas sobre um
baile de anos... Depois, quando o Dâmaso fez também anos, eu dei outra piadita. Ele pagou a ceia, ficámos
mais calhados... Mas é traste... E lá o Eusebiozinho, coitado, veio só de embaixador.
Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou o cubículo. O redactor da
Corneta ainda baixou a cabeça para a porta ; depois, sem se ofender, voltou alegremente à genebra, dando
outro puxão às calças. Ega, no entanto, acendia devagar o charuto.
– Você agora é que redige o jornal todo, Palma ?
– O Silvestre, também...
– Que Silvestre ?
– O que está com a Pingada. Você não conhece, creio eu. Um rapazola magro, que não é feio...
Sensaborão, escreve uma palhada... Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de
Cabelas, que ele chama a sua cabeluda... Que o Silvestre às vezes tem graça ! E sabe, sabe coisas da
sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices... Você nunca leu nada dele ? Chocho. Tenho
sempre de lhe arranjar o estilo... Neste número é que havia um folhetinzito meu, catita, cá à moderna, como
eu gosto, ali com a piadinha realista a bater... Enfim, fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe
agradeço. Quando quiser, eu e a Corneta às ordens !
Ega estendeu−lhe a mão :
– Obrigado, digno Palma ! E adiós !
– Pues vaya usted con Dios, Don Juanito ! – exclamou logo o benemérito homem com infinito salero.
Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.
– E agora ? – perguntou Ega, à portinhola.
– E agora salta para dentro e vamos liquidar com o Dâmaso... Carlos já esboçara sumariamente o plano
dessa liquidação. Queria mandar desafiar o Dâmaso, como autor comprovado de um artigo de jornal que o
injuriava. O duelo devia ser a espada ou ao florete, um desses ferros cujo lampejo, na sala de armas do
Ramalhete, fazia empalidecer o Dâmaso. Se, contra toda a verosimilhança, ele se batesse, Carlos fazia−lhe
algures, entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse meses na cama. Senão, a única explicação que
Carlos aceitaria do Sr. Salcede seria um documento em que ele escrevesse esta coisa simples : «Eu, abaixo
assinado, declaro que sou um infame.» E para estes serviços Carlos contava com o Ega.
– Agradeço ! agradeço ! vamos a isso ! – exclamava o Ega esfregando as mãos, faiscando de júbilo.
No entanto, dizia ele, a etiqueta fúnebre reclamava outro padrinho ; e lembrou o Cruges, moço passivo
e maleável. Mas era impossível encontrar o maestro, porque invariavelmente a criada afirmava que o menino
Vitorino não estava em casa... Decidiram ir ao Grémio, mandar de lá um bilhete chamando o Cruges – «para
um caso urgente de amizade e de arte».
– Com quê – dizia o Ega continuando a esfregar as mãos, enquanto a tipóia trotava para a Rua de S.
Francisco – com quê demolir o nosso Dâmaso ?
Os Maias
Capítulo XV 308
– Sim, é necessário acabar com esta perseguição. Chega a ser ridículo... E com uma estocada, ou com a
carta, temos esse biltre aniquilado por algum tempo. Eu preferia a estocada. Senão deixo−te a ti arranjar os
termos de uma carta forte...
– Hás−de ter uma boa carta ! – disse o Ega com um sorriso de ferocidade.
No Grémio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por ele na sala das Ilustrações. O
conde de Gouvarinho e Steinbroken conversavam de pé, no vão de uma janela. E foi uma surpresa. O
ministro da Finlândia abriu os braços para o cher Maia, que ele não vira desde a partida de Afonso para Santa
Olávia. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente, reatando uma certa camaradagem que entre eles se formara
nesse Verão, em Sintra : mas o aperto de mão a Carlos foi seco e curto. Já dias antes, tendo−se encontrado
no Loreto, o Gouvarinho murmurara de leve e de passagem um «como está, Maia ?» em que se sentia
arrefecimento. Ah ! já não eram essas efusões, essas palmadas enternecidas pelos ombros, dos tempos em
que Carlos e a condessa fumavam cigarettes na cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos abandonara a
senhora condessa de Gouvarinho, a Rua de S. Marçal e o cómodo sofá em que ela caía com um rumor de
saias amarrotadas – o marido amuava, como abandonado também.
– Tenho tido saudades das nossas belas discussões em Sintra !
– disse ele, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outrora pertencia ao Maia. Tivemo−las de
primeira ordem !
Eram realmente «pegas tremendas» no pátio do Vítor sobre literatura, sobre religião, sobre moral... Uma
noite mesmo tinham−se zangado por causa da divindade de Jesus.
– É verdade ! – acudiu o Ega. – Você nessa noite parecia ter às costas uma opa de irmão do Senhor dos
Passos !
O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos, não, graças a Deus ! Ninguém melhor do que ele sabia
que, nesses sublimes episódios do Evangelho, reinava bastante lenda... Mas enfim eram lendas que serviam
para consolar a alma humana. É o que ele objectara nessa noite ao amigo Ega... Sentiam−se a filosofia e o
racionalismo capazes de consolar a mãe que chora ? Não. Então...
– Em todo o caso, tivemo−las brilhantes ! – concluiu ele, olhando o relógio. – E, eu confesso, uma
discussão elevada sobre religião, sobre metafísica, encanta−me... Se a política me deixasse vagares,
dedicava−me à filosofia... Nasci para isso, para aprofundar problemas.
Steinbroken, no entanto, esticado na sua sobrecasaca azul, com um raminho de alecrim ao peito, tomara
as mãos de Carlos :
– Mais vous êtes encore devenu plus fort !... Et Afonso da Maia, toujours dans ses terres ?... Est−ce
qu'on ne va pas le voir un peu cet hiver ?
E imediatamente lamentou não ter visitado Santa Olávia. Mas quê ! a família real instalara−se em
Sintra ; ele fora forçado a acompanhá−la, fazer a sua corte... Depois necessitara ir de fugida a Inglaterra,
donde acabava de chegar, havia dias.
Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Ilustrada...
– Vous avez lu ça ? Oh oui, on a été très aimable, très aimable pour moi à la Gazette...
Os Maias
Capítulo XV 309
Tinham−lhe anunciado a partida, depois a chegada, com palavras de amizade particularmente bem
escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta afeição sincera que liga Portugal e a Finlândia... «Mais enfin
on avait été charmant, charmant !...» – Seulement – ajuntou ele, sorrindo com finura e voltando−se também
para o Gouvarinho – on a fait une petite erreur... On a dit que j'étais venu de Southampton par le Royal Mail...
Ce n'est pas vrai, non ! Je me suis embarqué à Bordeaux, dans les Messageries. J'ai même pensé à écrire à
Mr. Pinto, redacteur de la Gazette, qui est un charmant garçon... Puis, j'ai reflechi, je me suis dit : «Mon
Dieu, on va croire que je veux donner une leçon d'exactitude à la Gazette, c'est très grave...» Alors, voilà, très
prudemment, j'ai gardé le silence... Mais enfin c'est une erreur : je me suis embarqué à Bordeaux. Ega
murmurou que a História se encarregaria um dia de rectificar esse facto. O ministro sorria modestamente,
fazendo um gesto em que parecia desejar, por polidez, que a História se não incomodasse. E então o
Gouvarinho, que acendera o charuto, espreitara outra vez o relógio, perguntou se os amigos tinham ouvido
alguma coisa do Ministério e da crise.
Foi uma surpresa para ambos, que não tinham lido os jornais... Mas, exclamou logo o Ega, crise porquê,
assim em pleno remanso, com as câmaras fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo de Outono ? O
Gouvarinho encolheu os ombros com reserva. Houvera na véspera, à noitinha, uma reunião de ministros ;
nessa manhã o presidente do Conselho fora ao Paço, fardado, determinado a «largar o Poder»... Não sabia
mais. Não conferenciara com os seus amigos, nem mesmo fora ao seu Centro. Como noutras ocasiões de
crise, conservara−se retirado, calado, esperando... Ali estivera toda a manhã, com o seu charuto, e a Revista
dos Dois Mundos.
Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriótica.
– Porque enfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...
– Exactamente por isso – acudiu o conde com uma cor viva na face – não desejo pôr−me em evidência...
Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a minha experiência, a minha palavra, o meu nome são
necessários, os meus correligionários sabem onde eu estou, venham pedir−mos...
Calou−se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas políticas, começou
logo a retrair−se para o fundo da janela, limpando os vidros da luneta, recolhido, já impenetrável, no grande
recato neutral que competia à Finlândia. Ega no entanto não saía do seu espanto. Mas porque caía, porque
caía assim um governo com maioria nas câmaras, sossego no país, o apoio do exército, a bênção da Igreja, a
protecção do Comptoir d'Escompte ?
O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pêra, e murmurou esta razão :
– O Ministério estava gasto.
– Como uma vela de sebo ? – exclamou Ega, rindo. O conde hesitou. Como uma vela de sebo não
diria... Sebo subentendia obtusidade... Ora neste Ministério sobrava o talento. Incontestavelmente havia lá
talentos pujantes...
– Essa é outra ! gritou Ega atirando os braços ao ar. – É extraordinário ! Neste abençoado país todos os
políticos têm imenso talento. A oposição confessa sempre que os ministros, que ela cobre de injúrias, têm, à
parte os disparates que fazem, um talento de primeira ordem ! Por outro lado a maioria admite que a
oposição, a quem ela constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de robustíssimos
talentos ! De resto todo o mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta portanto este facto
supracómico : um país governado com imenso talento, que é de todos na Europa, segundo o consenso
unânime, o mais estupidamente governado ! Eu proponho isto, a ver : que, como os talentos sempre falham,
se experimentem uma vez os imbecis !
Os Maias
Capítulo XV 310
O conde sorria com bonomia e superioridade a estes exageros de fantasista. E Carlos, ansioso por ser
amável, atalhou, acendendo o charuto no dele :
– Que pasta preferia você, Gouvarinho, se os seus amigos subissem ? A dos Estrangeiros, está claro...
O conde fez um largo gesto de abnegação. Era pouco natural que os seus amigos necessitassem da sua
experiência política. Ele tornara−se sobretudo num homem de estudo e de teoria. Além disso não sabia bem
se as ocupações da sua casa, a sua saúde, os seus hábitos lhe permitiriam tomar o fardo do governo. Em todo
o caso, decerto a pasta dos Estrangeiros não o tentava...
– Essa nunca ! – prosseguiu ele, muito compenetrado. – Para se poder falar de alto na Europa, como
ministro dos Estrangeiros, é necessário ter por trás um exército de duzentos mil homens e uma esquadra com
torpedos. Nós, infelizmente, somos fracos... E eu, para papéis subalternos, para que venha um Bismarck, um
Gladstone, dizer−me «há−de ser assim», não estou !... Pois não acha, Steinbroken ?
O ministro tossiu, balbuciou :
– Certainement... C'est très grave... C'est excessivement grave...
Ega então afirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interesse geográfico pela África, faria um
ministro da Marinha iniciador, original, rasgado...
Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.
– Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias todas as coisas belas, todas as coisas
grandes estão feitas. Libertaram−se já os escravos ; deu−se−lhes já uma suficiente noção da moral cristã ;
organizaram−se já os serviços aduaneiros... Enfim, o melhor está feito. Em todo o caso há ainda detalhes
interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque
mais de progresso a dar. Em Luanda precisava−se bem um teatro normal, como elemento civilizador !
Nesse momento um criado veio anunciar a Carlos que o Sr.
Cruges estava em baixo, no portal, à espera. Imediatamente os dois amigos desceram.
– Extraordinário, este Gouvarinho ! – dizia o Ega na escada.
– E este – observou Carlos com um imenso desdém de mundano – é um dos melhores que há na política.
Pensando mesmo bem, e metendo a roupa branca em linha de conta, este é talvez o melhor !
Acharam o Cruges à porta, de jaquetão claro, embrulhando um cigarro. E Carlos pediu−lhe logo que
voltasse a casa vestir uma sobrecasaca preta. O maestro arregalava os olhos.
– É jantar ?
– É enterro.
E rapidamente, sem aludir a Maria, contaram ao maestro que o Dâmaso publicara num jornal, a Corneta
do Diabo (cuja tiragem eles tinham suprimido, não sendo possível por isso mostrar o número imundo) um
artigo em que a coisa mais doce que se chamava a Carlos era pulha. Portanto Ega e ele Cruges iam a casa do
Dâmaso pedir−lhe a honra ou a vida.
Os Maias
Capítulo XV 311
– Bem rosnou o maestro. – Que tenho eu a fazer ?... Que eu dessas coisas não entendo.
– Tens – explicou Ega – de ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o sobrolho. Depois vir comigo ;
não dizer nada ; tratar o Dâmaso por «Vossa Excelência» ; assentar em tudo o que eu propuser ; e nunca
desfranzir o sobrolho nem despir a sobrecasaca... Sem outra observação, Cruges partiu a cobrir−se de
cerimónia e de negro. Mas no meio da rua retrocedeu :
– Ó Carlos, olha que eu falei lá em casa. Os quartos do primeiro andar estão livres, e forrados de papel
novo...
– Obrigado. Vai−te fazer sombrio, depressa !...
O maestro abalara, quando diante do Grémio estacou a todo o trote uma caleche. De dentro saltou o
Teles da Gama que, ainda com a mão no fecho da portinhola, gritou aos dois amigos :
– O Gouvarinho ? está lá em cima ?
– Está... Novidade fresca ?
– Os homens caíram. Foi chamado o Sá Nunes !
E enfiou pelo pátio, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar até ao portão do Cruges. As janelas do
primeiro andar estavam abertas, sem cortinas. Carlos, erguendo para lá os olhos, pensava nessa tarde das
corridas em que ele viera no faetonte, de Belém, para ver aquelas janelas : ia então escurecendo, por trás dos
estores fechados surgira uma luz, ele contemplara−a como uma estrela inacessível... Como tudo passa !
Retrocederam para o Grémio. Justamente o Gouvarinho e Teles atiravam−se à pressa para dentro da
caleche que esperara. Ega parou, deixou cair os braços :
– Lá vai o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a Dama das Camélias no sertão !
Deus se amerceie de nós ! Mas o Cruges apareceu enfim de chapéu alto, entalado numa sobrecasaca solene,
com botins novos de verniz. Apinharam−se logo na tipóia estreita e dura. Carlos ia levá−los a casa do
Dâmaso. E como queria ainda jantar nos Olivais, esperaria por eles, para saber o resultado «do chinfrim», no
Jardim da Estrela, junto ao coreto.
– Sede rápidos e medonhos !
A casa do Dâmaso, velha e de um andar só, tinha um enorme portão verde, com um arame pendente que
fez ressoar dentro uma sineta triste de convento : e os dois amigos esperaram muito antes que aparecesse,
arrastando as chinelas, o galego achavascado que o Dâmaso (agora livre de Carlos e das suas pompas) já não
trazia torturado em botins cruéis de verniz. A um canto do pátio uma portinha abria sobre a luz de um quintal,
que parecia ser um depósito de caixotes, de garrafas vazias e de lixo.
O galego, que reconhecera o Sr. Ega, conduziu−os logo, por uma escadinha esteirada, a um corredor
largo, escuro, com cheiro a mofo. Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade de
uma porta entreaberta. Quase imediatamente Dâmaso gritou de lá :
– Ó Ega, é você ? Entre para aqui, homem ! Que diabo !... Eu estou−me a vestir...
Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta efusão, Ega ergueu a voz da sombra do corredor,
gravemente :
Os Maias
Capítulo XV 312
– Não tem dúvida, nós esperamos...
O Dâmaso insistia, à porta, em mangas de camisa, cruzando os suspensórios :
– Venha você, homem ! Que diabo, eu não tenho vergonha, já estou de calças !
– Há aqui uma pessoa de cerimónia – gritou o Ega para findar. A porta ao fundo cerrou−se, o galego
veio abrir a sala. O tapete era exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor
abundavam os vestígios da antiga amizade com o Maia : o retrato de Carlos a cavalo, num vistoso caixilho
de flores em faiança : uma das colchas da Índia das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano,
arranjada por Carlos com alfinetes : e sobre um contador espanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de
cetim, de mulher, novo, que o Dâmaso comprara no Serra, por ter ouvido um dia a Carlos que «em todo o
quarto de rapaz deve aparecer, discretamente disposta, alguma relíquia de amor...». Sob estes retoques de
chique, dados à pressa sob a influência do Maia, empertigava−se a sólida mobília do pai Salcede, de mogno e
veludo azul ; a console de mármore, com um relógio de bronze dourado, onde Diana acariciava um galgo ;
o grande e dispendioso espelho, tendo entalada no caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de
cantoras, de convites para soirées. E Cruges ia examinar estes documentos, quando os passos alegres do
Dâmaso soaram no corredor. O maestro correu logo a perfilar−se ao lado do Ega, diante do canapé de veludo,
teso, cómodo, com o seu chapéu alto na mão. Ao vê−lo, o bom Dâmaso, que se abotoara todo numa
sobrecasaca azul, florida por um botão de camélia, atirou risonhamente os braços ao ar :
– Então esta é que é a pessoa de cerimónia ? Sempre vocês têm coisas ! E eu a pôr a sobrecasaca... Por
pouco que não lhe afinfo com o hábito de Cristo !...
Ega atalhou, muito sério :
– O Cruges não é de cerimónia, mas o motivo que aqui nos traz é delicado e grave, Dâmaso.
Dâmaso arregalou os olhos, reparando enfim naquele estranho modo dos seus amigos, ambos de negro,
secos, tão solenes. E recuou, todo o sorriso se lhe apagou na face.
– Que diabo é isso ? Sentem−se, sentem−se vocês...
A voz apagava−se−lhe também. Pousado à borda de uma poltrona baixa, junto de uma mesa coberta de
encadernações ricas, com as mãos nos joelhos, ficou esperando, numa ansiedade.
– Nós vimos aqui – começou Ega – em nome do nosso amigo Carlos da Maia...
Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Dâmaso, até à risca do cabelo encaracolado a
ferro. E não achou uma palavra, atónito, sufocado, esfregando estupidamente os joelhos. Ega prosseguiu,
lento, direito no canapé :
– O nosso amigo Carlos da Maia queixa−se de que o Dâmaso publicou, ou fez publicar, um artigo
extremamente injurioso para ele e para uma senhora das relações dele, na Corneta do Diabo...
– Na Corneta, eu – acudiu o Dâmaso, balbuciando. – Que Corneta ? Nunca escrevi em jornais, graças a
Deus ! Ora essa, a Corneta !...
Ega, muito friamente, tirou do bolso um maço de papéis. E veio colocá−los um por um, ao lado do
Dâmaso, na mesa, sobre um magnífico volume da Bíblia de Doré.
Os Maias
Capítulo XV 313
– Aqui está a sua carta remetendo ao Palma Cavalão o rascunho do artigo... Aqui está, pela sua letra
igualmente, a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta, desde o Rei até à Fancelli... Além disso
nós temos as declarações do Palma. O Dâmaso não é só o inspirador, mas materialmente o autor do artigo...
O nosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado, uma reparação pelas armas...
Dâmaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado – que involuntariamente Ega recuou, no receio de uma
brutalidade. Mas já o Dâmaso estava no meio da sala, esgazeado, com os braços trémulos no ar :
– Então o Carlos manda−me desafiar ? A mim ?... Que lhe fiz eu ? Ele a mim é que me pregou uma
partida !... Foi ele, vocês sabem perfeitamente que foi ele !...
E desabafou, num prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao peito, com os olhos marejados
de lágrimas. Fora Carlos, Carlos, que o desfeiteara a ele, mortalmente ! Durante todo o Inverno tinha−o
perseguido para que ele o apresentasse a uma senhora brasileira muito chique, que vivia em Paris, e que lhe
fazia olho... E ele, bondoso como era, prometia, dizia : «Deixa estar, eu te apresento !» Pois, senhores, que
faz Carlos ? Aproveita uma ocasião sagrada, um momento de luto, quando ele Dâmaso fora ao Norte por
causa da morte do tio, e mete−se dentro da casa da brasileira... E tanto intriga, que leva a pobre senhora a
fechar−lhe a sua porta, a ele, Dâmaso, que era íntimo do marido, íntimo de tu ! Caramba, ele é que devia
mandar desafiar Carlos ! Mas não ! fora prudente, evitara o escândalo por causa do Sr. Afonso da Maia..
Queixara−se de Carlos, é verdade... Mas no Grémio, na Casa Havanesa, entre rapaziada amiga... E no fim
Carlos prega−lhe uma destas !
– Mandar−me desafiar, a mim ! A mim, que todo o mundo conhece !...
Calou−se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placidamente que se desviavam do ponto vivo
da questão. O Dâmaso concebera, rascunhara, pagara o artigo da Corneta. Isso não o negava, nem o podia
negar : as provas estavam ali, abertas sobre a mesa : eles tinham disso a declaração do Palma...
– Esse desavergonhado ! – gritou o Dâmaso, levado noutra rajada de indignação que o fez redemoinhar,
estonteado, tropeçando nos móveis. – Esse descarado do Palma ! Com esse é que eu me quero ver !... Lá a
questão com o Carlos não vale nada, arranja−se, somos todos rapazes finos... Com o Palma é que é ! Esse
traidor é que eu quero rachar ! Um homem a quem eu tenho dado às meias libras, aos sete mil réis ! E ceias,
e tipóias ! Um ladrão que pediu o relógio ao Zeferino para figurar num baptizado, e pô−lo no prego !... E
faz−me uma destas !... Mas hei−de escavacá−lo ! Onde é que você o viu, Ega ? Diga lá, homem ! Que
quero ir procurá−lo, hoje mesmo, corrê−lo a chicotadas... Traições não, não admito a ninguém ! Ega, com a
tranquilidade paciente de quem sente a presa certa, lembrou de novo a inutilidade daquelas divagações :
– Assim nunca acabamos, Dâmaso... O nosso ponto é este : o Dâmaso injuriou Carlos da Maia : ou se
retracta publicamente dessa injúria, ou dá uma reparação pelas armas...
Mas o Dâmaso, sem escutar, apelava desesperadamente para o Cruges, que se não movera do sofá de
veludo, esfregando, um contra o outro, com um ar arrepiado e de dor, os dois sapatos novos de verniz.
– Aquele Carlos ! Um homem que se dizia meu amigo íntimo ! Um homem que fazia de mim tudo !
Até lhe copiava coisas... Você bem viu, Cruges. Diga ! Fale, homem ! Não sejam vocês todos contra
mim !... Até às vezes ia à Alfândega despachar−lhe caixotes... O maestro baixava os olhos, vermelho, num
infinito mal−estar. E Ega, por fim, já farto, lançou uma intimidação derradeira :
– Em resumo, Dâmaso, desdiz−se ou bate−se ?
Os Maias
Capítulo XV 314
– Desdizer−me ? – tartamudeou o outro, empertigando−se, num penoso esforço de dignidade, a tremer
todo. – E de quê ? Ora essa ! É boa ! Eu sou lá homem que me desdiga !
– Perfeitamente, então bate−se...
Dâmaso cambaleou para trás, desvairado :
– Qual bater−me ! Eu sou lá homem que me bata ! Eu cá é a soco. Que venha para cá, não tenho medo
dele, arrombo−o... Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados e em riste. E
queria Carlos ali, para o escavacar ! Não lhe faltava mais senão bater−se... E então duelos em Portugal, que
acabavam sempre por troça !
Ega, no entanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoara a sobrecasaca e recolhia os papéis
espalhados sobre a Bíblia. Depois, serenamente, fez a última declaração de que fora incumbido. Como o Sr.
Dâmaso Salcede recusava retractar−se e rejeitava também uma reparação pelas armas, Carlos da Maia
prevenia−o de que em qualquer parte que o encontrasse, daí por diante, fosse uma rua, fosse um teatro, lhe
escarraria na face...
– Escarrar−me ! – berrou o outro, lívido, recuando, como se o escarro já viesse no ar.
E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou−se sobre o Ega, agarrando−lhe as mãos,
numa agonia :
– Ó João, ó João, tu que és meu amigo, por quem és, livra−me desta entaladela !
Ega foi generoso. Desprendeu−se dele, empurrou−o brandamente para a poltrona, calmando−o com
palmadinhas fraternais pelo ombro. E declarou que, desde que Dâmaso apelava para a sua amizade,
desaparecia o enviado de Carlos, necessariamente exigente, ficava só o camarada, como no tempo dos
Cohens e da Vila Balzac. Queria pois o amigo Dâmaso um conselho ? Era assinar uma carta afirmando que
tudo o que fizera publicar na Corneta, sobre o Sr. Carlos da Maia e certa senhora, fora invenção falsa e
gratuita. Só isto o salvava. De outro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava−lhe na cara. E,
dado esse desastre, Damasozinho, a não querer ser apontado em Lisboa como um incomparável cobarde,
tinha de se bater à espada ou à pistola...
– Ora, em qualquer desses casos, você era um homem morto. O outro escutava, esbarrondado no fundo
do assento de veludo, com a face emparvecida para o Ega. Alargou molemente os braços, murmurou da
profundidade do seu terror :
– Pois sim, eu assino, João, eu assino...
– É o que lhe convém... Arranje então papel. Você está perturbado, eu mesmo redijo.
Dâmaso ergueu−se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago por sobre os móveis :
– Papel de carta ? É para carta ?
– Sim, está claro, uma carta ao Carlos !
Os passos do desgraçado perderam−se enfim no corredor, pesados e sucumbidos.
– Coitado ! – suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arrepio, a mão aos sapatos.
Os Maias
Capítulo XV 315
Ega lançou−lhe um psiu severo. Dâmaso voltava com o seu sumptuoso papel de monograma e coroa.
Para envolver em silêncio e segredo aquele transe amargo, cerrou o reposteiro ; e o vasto pano de veludo,
desdobrando−se, mostrou o brasão de Salcede, onde havia um leão, uma torre, um braço armado, e por baixo,
a letras de ouro, a sua formidável divisa : SOU FORTE ! Imediatamente Ega afastou os livros na mesa,
abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do Dâmaso...
– Eu faço o rascunho, você depois copia...
– Pois sim ! – gemeu o outro, de novo aluído na poltrona, passando o lenço pelo pescoço e pela face.
Ega, no entanto, escrevia muito lentamente, com amor. E naquele silêncio, que o embaraçava, Cruges
terminou por se erguer, foi coxeando até ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho,
bilhetes e fotografias. Eram as glórias sociais do Dâmaso, os documentos do chique a valer que era a paixão
da sua vida : bilhetes com títulos, retratos de cantoras, convites para bailes, cartas de entrada no hipódromo,
diplomas de membro do Clube Naval, de membro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos : – até
pedaços cortados de jornais anunciando os anos, as partidas, as chegadas do Sr. Salcede, «um dos nossos
mais distintos sportmen».
Desventuroso sportman ! Aquela folha de papel, onde o Ega rascunhava, ia−o enchendo pouco a pouco
de um terror angustioso. Santo Deus ! Para que eram tantos apuros numa carta ao Carlos, um rapaz íntimo ?
Uma linha bastaria : «Meu querido Carlos, não te zangues, desculpa, foi brincadeira.» Mas não ! Toda uma
página de letra miúda, com entrelinhas ! Já mesmo Ega voltava a folha, molhava a pena, como se dela
devessem escorrer, sem cessar, coisas humilhadoras ! Não se conteve, estendeu a face por sobre a mesa, até
ao papel :
– Ó Ega, isso não é para publicar, pois não é verdade ? Ega reflectiu, com a pena no ar :
– Talvez não... Estou certo que não. Naturalmente Carlos, vendo o seu arrependimento, deixa isto
esquecido no fundo de uma gaveta.
Dâmaso respirou com alívio. Ah, bem ! Isso parecia−lhe mais decente entre amigos ! Que lá isso,
mostrar o seu arrependimento, até ele desejava ! Com efeito, o artigo fora uma tolice... Mas então ! Em
questões de mulheres era assim, assomado, um leão...
Abanou−se com o lenço, desanuviado, recomeçando a achar sabor à vida. Findou mesmo por acender
um charuto, levantar−se sem rumor, acercar−se do Cruges que, coxeando através das curiosidades da sala,
encalhara sobre o piano e sobre os livros de música, com o pé dorido no ar.
– Então tem−se feito alguma coisa de novo, Cruges ?
Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada. Dâmaso ficou ali um momento, a mascar
o charuto. Depois, atirando um olhar inquieto à mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente, murmurou,
sobre o ombro do maestro :
– Uma entaladela assim ! Eu é por causa da gente conhecida... Senão não me importava ! Mas veja
você também se arranja as coisas e se o Carlos deixa aquilo na gaveta...
Justamente Ega erguera−se com o papel na mão e caminhava para o piano, devagar, relendo baixo.
– Ficou óptimo, salva tudo ! exclamou por fim. – Vai em forma de carta ao Carlos, é mais correcto.
Você depois copia e assina. Ouça lá : «Ex. mo Sr...» Está claro, você dá−lhe «excelência» porque é um
Os Maias
Capítulo XV 316
documento de honra... «Ex. mo Sr. – Tendo−me Vossa Excelência, por intermédio dos seus amigos João da
Ega e Vitorino Cruges, manifestado a indignação que lhe causara um certo artigo da Corneta do Diabo, de
que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho declarar francamente a Vossa Excelência
que esse artigo, como agora reconheço, não continha senão falsidades e incoerências : e a minha desculpa
única está em que o compus e enviei à redacção da Corneta no momento de me achar no mais completo
estado de embriaguez...» Parou. E nem se voltou para o Dâmaso, que deixara pender os braços, rolar o
charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o monóculo :
– Achas talvez forte ?... Pois eu redigi assim, por ser justamente a única maneira de ressalvar a
dignidade do nosso Dâmaso. E desenvolveu a sua ideia, mostrando quanto era generosa e hábil – enquanto o
Dâmaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem ele queriam que o Dâmaso, numa carta (que se
podia tornar pública), declarasse «que caluniara por ser caluniador». Era necessário, pois, dar à calúnia uma
dessas causas fortuitas e ingovernáveis que tiram a responsabilidade às acções. E que melhor, tratando−se de
um rapaz mundano e femeeiro, do que estar bêbedo ?... Não era vergonha para ninguém embebedar−se... O
próprio Carlos, todos eles ali, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos
Romanos, onde isso era uma higiene e um luxo, muitos grandes homens na História bebiam de mais. Em
Inglaterra era tão chique, que Pitt, Fox e outros nunca falavam na Câmara dos Comuns senão aos bordos.
Musset, por exemplo, que bêbedo ! Enfim a História, a Literatura, a Política, tudo fervilhava de piteiras...
Ora, desde que o Dâmaso se declarava borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que
apanhara uma carraspana e que cometera uma indiscrição... Nada mais !
– Pois não te parece, Cruges ?
– Sim, talvez, que estava bêbedo – murmurou o maestro timidamente.
– Pois não lhe parece a você, francamente, Dâmaso ?
– Sim, que estava bêbedo – balbuciou o desgraçado. Imediatamente Ega retomou a leitura : «Agora que
voltei a mim, reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que é Vossa Excelência um carácter
absolutamente nobre ; e as outras pessoas que nesse momento de embriaguez ousei salpicar de lama são−me
só merecedoras de veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a suceder soltar eu alguma
palavra ofensiva para Vossa Excelência, não lhe devia dar Vossa Excelência ou aqueles que a escutassem
mais importância do que a que se dá a uma involuntária baforada de álcool – pois que, por um hábito
hereditário que reaparece frequentemente na minha família, me acho repetidas vezes em estado de
embriaguez... De Vossa Excelência, com toda a estima, etc.». Rodou sobre os tacões, pousou o rascunho na
mesa – e, acendendo o charuto ao lume do Dâmaso, explicou com amizade, com bonomia, o que o
determinara àquela confissão de bebedeira incorrigível e palreira. Fora ainda o desejo de garantir a
tranquilidade do «nosso Dâmaso». Atribuindo todas as imprudências em que pudesse cair a um hábito de
intemperança hereditária, de que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo, o Dâmaso punha−se, para
sempre, ao abrigo das provocações de Carlos...
– Você, Dâmaso, tem génio, tem língua... Um dia esquece−se, e no Grémio, sem querer, na cavaqueira
depois do teatro, lá lhe escapa uma palavra contra Carlos... Sem esta precaução, aí recomeça a questão, o
escarro, o duelo... Assim já Carlos não se pode queixar. Lá tem a explicação que tudo cobre, uma gota de
mais, a gota tomada por impulso de borrachice hereditária... Você alcança deste modo a coisa que mais se
apetece neste nosso século XIX – a irresponsabilidade !... E depois para a sua família não é vergonha,
porque você não tem família. Em resumo, convém−lhe ?
O pobre Dâmaso escutava−o, esmagado, enervado, sem compreender aquelas roncantes frases sobre «a
hereditariedade», sobre «o século XIX». E um único sentimento vivo o dominava : acabar, reentrar na sua
paz pachorrenta, livre de floretes e de escarros. Encolheu os ombros, sem forças :
Os Maias
Capítulo XV 317
– Que lhe hei−de eu fazer ?... Para evitar falatórios. E abancou, meteu um bico novo na pena, escolheu
uma folha de papel em que o monograma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua maravilhosa letra,
com finos e grossos, de uma nitidez de gravura em aço.
Ega, no entanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em torno da mesa, seguindo
sofregamente as linhas que traçava a mão aplicada do Dâmaso, ornada de um grosso anel de armas. E durante
um momento atravessou−o um susto...
Dâmaso parara, com a pena indecisa. Diabo ! Acordaria enfim, no fundo de toda aquela gordura balofa,
um resto escondido de dignidade, de revolta ?... Dâmaso alçou para ele os olhos embaciados :
– Embriaguez é com n ou com m ?
– Com um m, um m só, Dâmaso ! – acudiu Ega afectuosamente. – Vai muito bem... Que linda letra
você tem, caramba ! E o infeliz sorriu à sua própria letra – pondo a cabeça de lado, no orgulho sincero
daquela soberba prenda.
Quando findou a cópia, foi Ega que conferiu, pôs a pontuação. Era necessário que o documento fosse
chique e perfeito.
– Quem é o seu tabelião, Dâmaso ?
– O Nunes, na Rua do Ouro... Porquê ?
Oh ! nada. É um detalhe que nestes casos se pergunta sempre. Mera cerimónia... Pois amigos, como
papel, como letra, como estilo, está de apetite a cartinha !
Meteu−a logo num envelope onde rebrilhava a divisa «Sou Forte», sepultou−a preciosamente no interior
da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapéu, batendo no ombro do Dâmaso com uma familiaridade folgazã e
leve :
– Pois, Dâmaso, felicitemo−nos todos ! Isto podia acabar fora de portas, numa poça de sangue ! Assim
é uma delícia. E adeus... Não se incomode você. Então o grande sarau sempre é na segunda−feira ? Vai lá
tudo, hem ! Não venha cá, homem... Adeus !
Mas o Dâmaso acompanhou−os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega,
desafogou outra inquietação que o assaltara :
– Isso não se mostra a ninguém, não é verdade, Ega ?
Ega encolheu os ombros. O documento pertencia a Carlos... Mas enfim, Carlos era tão bom rapaz, tão
generoso !
Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Dâmaso :
– E chamei eu àquele homem meu amigo !
– Tudo na vida são desapontamentos, meu Dâmaso ! – foi a observação do Ega, saltando alegremente
os degraus.
Os Maias
Capítulo XV 318
Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrela, Carlos já esperava ao portão de ferro, numa
impaciência, por causa do jantar na Toca. Enfiou logo para dentro, atropelando o maestro, bradou ao cocheiro
que voasse ao Loreto.
– Então, meus senhores, temos sangue ?
– Temos melhor ! – exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o envelope.
Carlos leu a carta do Dâmaso. E foi um imenso assombro :
– Isto é incrível... Chega a ser humilhante para a natureza humana !
– O Dâmaso não é o género humano – acudiu Ega. – Que diabo esperavas tu ? Que ele se batesse ?
– Não sei, corta o coração... Que se há−de fazer a isto ? Segundo o Ega, não se devia publicar ; seria
criar curiosidade e escândalo em torno do artigo da Corneta, que custara trinta libras a sufocar. Mas convinha
conservar aquilo como uma ameaça pairando sobre o Dâmaso, tornando−o para longos anos nulo e
inofensivo.
– Eu estou mais que vingado – concluiu Carlos. – Guarda o papel : é obra tua, usa−o como quiseres...
Ega guardou−o com prazer, enquanto Carlos, batendo no joelho do maestro, queria saber como ele se
portara naquele lance de honra...
– Pessimamente ! – gritou Ega. – Com expressões de compaixão ; sem linha nenhuma ; estendido por
cima do piano ; agarrando com a mão no sapato...
– Pudera ! – exclamou Cruges desafogando enfim. – Vocês dizem−me que me ponha de cerimónia,
calço uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde num tormento !
E não se conteve mais, arrancou o sapato, pálido, com um medonho suspiro de consolação.
No dia seguinte, depois do almoço, enquanto uma chuva grossa alagava os vidros sob as lufadas de
sudoeste, Ega, no fumoir, enterrado numa poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do Dâmaso : e
pouco a pouco subia nele a mágoa de que esse colossal documento de cobardia humana, tão interessante para
a fisiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado no escuro de uma gaveta !... Que efeito, que
soberbo efeito se aquela confissão do «nosso distinto sportman» surgisse um dia na Gazeta Ilustrada ou no
novo jornal A Tarde, nas colunas do High Life, sob este título : «PENDÊNCIA DE HONRA !» E que lição,
que meritório acto de justiça social ! Todo esse Verão, Ega detestara o Dâmaso, certo, desde Sintra, de que
ele era o amante da Cohen e de que, por esse imbecil de grossas nádegas, esquecera ela para sempre a Vila
Balzac, as manhãs na colcha de cetim preto, os seus beijos delicados, os versos de Musset que lhe lia, os
lunchezinhos de perdiz, tantos encantos poéticos. Mas o que lhe tornara o Dâmaso intolerável – fora a sua
farófia radiante de homem preferido ; o ar de posse com que passeava ao lado de Raquel pelas estradas de
Sintra, vestido de flanela branca ; os segredinhos que tinha sempre a cochichar−lhe sobre o ombro ; e o
acenozinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a ele próprio, Ega... Era odioso !
Odiava−o : e através desse ódio ruminara sempre o desejo de uma vingança – pancada, desonra ou ridículo
que tornasse o Sr. Salcede, aos olhos de Raquel, desprezível, grotesco, chato como um balão furado... E agora
ali tinha essa carta providencial, em que o homem solenemente se declarava bêbedo. «Sou um bêbedo, estou
sempre bêbedo !» Assim o dizia, no seu papel de monograma de ouro, o Sr. Salcede, num medo vil de cão
goso, rastejando com o rabo entre as pernas diante de qualquer pau !... Nenhuma mulher resistiria a isto... E
havia de encafuar tão decisivo documento no fundo de um gavetão ? Publicá−lo na Gazeta Ilustrada ou n'A
Os Maias
Capítulo XV 319
Tarde não podia, infelizmente, por interesse de Carlos. Mas porque o não mostraria «em segredo», como uma
curiosidade psicológica, ao Craft, ao marquês, ao Teles, ao Gouvarinho, ao primo do Cohen ? Podia mesmo
confiar uma cópia ao Taveira, que, ressentido eternamente da questão com o Dâmaso em casa da Lola Gorda,
correria a lê−la em segredo na Casa Havanesa, no bilhar do Grémio, no Silva, nos camarins de cantoras. E ao
fim de uma semana a Sr. a D. Raquel saberia, inevitavelmente, que o escolhido do seu coração era, por
confissão própria, um caluniador e um bêbedo !... Delicioso !
Tão delicioso que não hesitou mais, subiu ao quarto para copiar a carta do Dâmaso. Mas quase
imediatamente, um criado trouxe−lhe um telegrama de Afonso da Maia, anunciando que chegava no dia
seguinte ao Ramalhete. Ega teve de sair, telegrafar para os Olivais, avisar Carlos.
Carlos apareceu nessa noite, já tarde, transido de frio, com um monte de bagagens – porque abandonara
definitivamente os Olivais. Maria Eduarda regressava também a Lisboa, para o primeiro andar da Rua de S.
Francisco, tomado agora por seis meses, tapetado de novo pela mãe Cruges. E Carlos vinha muito
impressionado, com profundas saudades da Toca. Depois de cear, ao fogão, acabando o charuto, relembrou
infindavelmente esses dias alegres, a sua casinhola, o banho da manhã tomado dentro de uma dorna, a festa
do deus Tchi, as guitarradas do marquês, as longas cavaqueiras ao café com as janelas abertas e as borboletas
voando em torno dos candeeiros... Fora as cordas de água, sob o vento de Inverno, batiam os vidros na mudez
da noite negra. Ambos terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos no lume.
– Quando esta tarde dei pela última vez uma volta na quinta – disse por fim Carlos – já não havia uma
única folha nas árvores... Tu não sentes sempre uma grande melancolia, nestes fins de Outono ?...
– Imensa ! – murmurou Ega lugubremente.
Ao outro dia a manhã clareava, limpa e branca, quando Ega e Carlos, ainda estremunhados e tiritando,
se apearam em Santa Apolónia. O comboio acabava justamente de chegar ; e viram logo, entre o rumor de
gente que se escoava das portinholas abertas, Afonso, com o seu velho capote de gola de veludo, apegado a
uma bengala, debatendo−se entre homens de boné agaloado que lhe ofereciam o Hotel Terreirense e a Pomba
d'Oiro. Atrás Mr. Antoine, o chef francês, grave, de chapéu alto, trazia o cesto em que viajara o «Reverendo
Bonifácio».
Carlos e Ega acharam Afonso mais acabado, mais pesado. Todavia gabaram−lhe muito, entre os
primeiros abraços, a sua robustez de patriarca. Ele encolheu os ombros, queixando−se de ter sentido, desde o
fim do Verão, vertigens, um cansaço vago...
– Vocês é que estão excelentes – acrescentou abraçando outra vez Carlos e sorrindo ao Ega. – E que
ingratidão foi essa tua, John, metido aqui todo o Verão sem me ir visitar ?... Que tens tu feito ? Que têm
vocês feito ?
– Mil coisas ! – acudiu Ega alegremente. – Planos, ideias, títulos... Temos sobretudo o projecto de uma
Revista, um aparelho de educação superior, que vamos montar com uma força de mil cavalos !... Enfim, logo
se lhe conta tudo ao almoço.
E ao almoço, com efeito, para justificar as suas ocupações em Lisboa, falaram da Revista como se ela já
estivesse organizada e os artigos a imprimir na oficina – tanta foi a precisão com que lhe descreveram as
tendências, a feição crítica, as linhas de pensamento sobre que ela devia rolar... Ega já preparara um trabalho
para o primeiro número : A Capital dos Portugueses. Carlos meditava uma série de ensaios à inglesa, sob
este título : Porque Falhou entre Nós o Sistema Constitucional. E Afonso escutava, encantado com aquelas
belas ambições de luta, querendo partilhar da grande obra, como sócio capitalista... Mas Ega entendia que o
Sr. Afonso da Maia devia descer à arena, lançar também a palavra do seu saber e da sua experiência. Então o
Os Maias
Capítulo XV 320
velho riu. O quê ! compor prosa, ele, que hesitava para traçar uma carta ao feitor ? De resto, o que teria a
dizer ao seu país, como fruto da sua experiência, reduzia−se pobremente a três conselhos, em três frases – aos
políticos : «menos liberalismo e mais carácter» ; aos homens de letras : «menos eloquência e mais ideia» ;
aos cidadãos em geral : – «menos progresso e mais moral». Isto entusiasmou o Ega ! Justamente, aí
estavam as verdadeiras feições da reforma espiritual que a Revista devia pregar ! Era necessário tomá−las
como moto simbólico, inscrevê−las em letras góticas no frontispício porque Ega queria que a Revista fosse
original logo na capa. E então a conversação desviou para o exterior da Revista – Carlos pretendendo que
fosse azul−claro com tipo Renascença, Ega exigindo uma cópia exacta da Revista dos Dois Mundos, numa
nuance mais cor de canário. E, levados pela sua imaginação de meridionais, já não era só para agradar a
Afonso da Maia que iam levantando e dando forma àquele confuso plano.
Carlos exclamava para o Ega, com os olhos já apaixonados :
– Isto agora é sério. Precisamos arranjar imediatamente a casa para a redacção !
Ega bravejava :
– Pudera ! E móveis ! E máquinas !
Toda a manhã, no escritório de Afonso, azafamados, com papel e lápis, se ocuparam em fixar uma lista
de colaboradores. Mas já as dificuldades surgiam. Quase todos os escritores sugeridos desagradavam ao Ega,
por lhes faltar, no estilo, aquele requinte plástico e parnasiano de que ele desejava que a Revista fosse o
impecável modelo. E a Carlos alguns homens de letras pareciam impossíveis – sem querer confessar que
neles lhe repugnava exclusivamente a falta de linha e o fato mal feito...
Uma coisa porém ficou decidida : a casa da redacção. Devia ser mobilada luxuosamente, com sofás do
consultório de Carlos e algum bricabraque da Toca : e sobre a porta (ornada de um guarda−portão de libré) a
tabuleta de verniz preto, com Revista de Portugal em altas letras a ouro. Carlos sorria, esfregava as mãos,
pensando na alegria de Maria ao saber esta decisão que o lançava, como era desejo dela, na actividade, numa
luta interessante de ideias. Ega, esse, via já a brochura cor de canário aos montões nas vitrinas dos livreiros,
discutida nas soirées do Gouvarinho, folheada na Câmara, com espanto, pelos políticos...
– Vai−se remexer Lisboa este Inverno, Sr. Afonso da Maia ! – gritou ele atirando um gesto imenso até
ao tecto.
E o mais contente era o velho.
Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com ele à Rua de S. Francisco (onde Maria se instalara
nessa manhã), levarem a nova da grande obra. Mas encontraram à porta uma carroça descarregando malas ;
e a senhora, contou o Domingos, que ajudava os carroceiros, estava ainda jantando a um canto da mesa e sem
toalha. Com tanta confusão na casa, Ega não quis subir.
– Até logo – disse ele. – Vou talvez procurar o Simão Craveiro e falar−lhe da Revista.
Subiu lentamente o Chiado, leu os telegramas na Casa Havanesa. Depois, à esquina da Rua Nova da
Trindade, um homem rouco, sumido num paletó, ofereceu−lhe uma «senhazinha». Outros, em volta, gritavam
na sombra do Hotel Aliança :
– Bilhete para o Ginásio ! Mais barato... Bilhete para o Ginásio ! Quem vende ?...
Os Maias
Capítulo XV 321
Havia um cruzar animado de carruagens com librés. Os bicos de gás do Ginásio tinham um fulgor de
festa. E Ega deu de rosto com o Craft que atravessava do lado do Loreto, de gravata branca e flor no paletó.
– Que é isto ?
– Festa de beneficência, não sei – disse o Craft. – Uma coisa promovida por senhoras, a baronesa de
Alvim mandou−me um bilhete... Venha você daí ajudar−me a levar esta caridade ao Calvário.
E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha. No peristilo do Ginásio
encontraram Taveira passeando e fumando solitariamente, à espera que findasse a primeira comédia, O Fruto
Proibido. Então Craft propôs «botequim e genebra».
– E que há do Ministério – perguntou ele, apenas abancaram a um canto.
O Taveira não sabia. Todos esses dois longos dias se intrigara desesperadamente. O Gouvarinho queria
as Obras Públicas : o Videira também. E falava−se de uma cena terrível por causa de sindicatos, em casa do
presidente do Conselho, o Sá Nunes, que terminara por dar um murro na mesa, gritar : «Irra que isto não é o
pinhal de Azambuja !».
– Canalha ! – rosnou Ega com ódio.
Depois falaram do Ramalhete, da volta de Afonso, da reaparição de Carlos. Craft louvou Deus por haver
outra vez, nesse Inverno, uma casa com fogões, onde se passasse uma hora civilizada e inteligente.
Taveira acudiu com o olho brilhante :
– Diz que vamos ter um centrozinho muito mais interessante ainda, na Rua de S. Francisco ! Foi o
marquês que me disse. Madame Mac Gren vai receber.
Craft não sabia mesmo que ela já tivesse recolhido da Toca.
– Voltou hoje – disse o Ega. – Você ainda não a conhece ?... Encantadora.
– Creio que sim.
O Taveira vira−a de relance no Chiado. Parecera−lhe uma beleza ! E um ar tão simpático !
– Encantadora ! – repetiu Ega.
Mas O Fruto Proibido findara, os homens enchiam o peristilo, num rumor lento, acendendo os cigarros.
E Ega, deixando o Craft e Taveira com a genebra, correu à plateia para descobrir o camarote da Alvim.
Mal erguera, porém, a cortina e assestara o monóculo – avistou defronte, na primeira ordem, a Cohen,
toda de preto, com um grande leque de rendas brancas ; por trás negrejavam as suíças fortes do marido ; e
em face dela, recostado no veludo da grade, de casaca, com a bochecha risonha, uma grossa pérola no
peitilho da camisa, o Dâmaso, o bêbedo !
Ega caiu ao acaso, molemente, na borda de uma cadeira : e perturbado, já esquecido da Alvim, ali ficou
a olhar o pano coberto de anúncios, correndo os dedos trémulos pelo bigode.
Os Maias
Capítulo XV 322
No entanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na plateia. Um cavalheiro, gordo e
carrancudo, tropeçou no joelho do Ega : outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissão
a Sua Excelência. Ele não escutava, não percebia : os seus olhos, um momento errantes, tinham−se enfim
cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de lá, numa emoção que o empalidecia. Não a tornara a
encontrar desde Sintra, onde só a via de longe, com vestidos claros sob o verde das árvores ; e agora ali, toda
de preto, em cabelo, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu colo, ela era outra vez a
sua Raquel, dos tempos divinos da Vila Balzac. Era assim que ele, todas as noites em S. Carlos, a
contemplava do fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada ao tabique, saturado de felicidade. Lá tinha
a sua luneta de ouro, presa por um fio de ouro. Parecia mais pálida, mais delicada, com o longo quebranto dos
olhos pisados, o seu ar de romance e de lírio meio murcho ; e, como então, os seus cabelos magníficos e
pesados caíam habilmente numa massa meio solta sobre as costas, num desalinho de nudez. Pouco a pouco,
entre o afinar de rabecas e o rumor das cadeiras, Ega revia, numa onda de recordações que o sufocava, o
grande leito da Vila Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa à borda do sofá, e a
melancolia deliciosa das tardes, quando ela saía furtivamente, coberta de véus, e ele ficava, cansado, no
crepúsculo poético do quarto, cantarolando a Traviata.
– Vossa Excelência dá licença, Sr. Ega ?
Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira. Ega ergueu−se, confusamente,
sem reconhecer o Sr. Sousa Neto. O pano subira. À borda da rampa um lacaio, piscando o olho à plateia,
fazia confidências sobre a patroa, de espanejador debaixo do braço. E Cohen, agora de pé, enchia o meio do
camarote, cofiando as suíças com um correr lento da mão bem tratada, onde reluzia um diamante.
Ega então, num soberbo alarde de indiferença, cravou o monóculo no palco. O lacaio abalara
espavorido, a um repique furioso de sineta ; e uma megera azeda, de roupão verde e touca à banda, rompera
de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida que batia o tacão, se
esganiçava : «Pois hei−de amá−lo sempre ! hei−de amá−lo sempre !».
Irresistivelmente, Ega revirou o canto do olho para o camarote : Raquel e o Dâmaso, com as cabeças
chegadas como em Sintra, cochichavam num sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu num imenso ódio
ao Dâmaso ! Colado à ombreira da porta, rilhava os dentes, num desejo de subir, escarrar−lhe na bochecha
gorda. E não desviava dele os olhos, que dardejavam. Na cena, um velho general, gotoso e resmungão,
sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca. A plateia ria, o Cohen ria. E nesse momento Dâmaso, que se
debruçara no camarote, com as mãos de fora, calçadas de gris−perle, descobriu o Ega, sorriu, atirou−lhe
como em Sintra um acenozinho petulante, muito de alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um
insulto. E ainda na véspera aquele cobarde se lhe agarrara às mãos, tremendo todo, a gritar «que o
salvasse» ! Subitamente, com uma ideia, palpou por sobre o bolso a carteira onde na véspera guardara a carta
do Dâmaso... «Eu t'arranjo !», murmurou ele. E abalou, desceu a Rua da Trindade, cortou pelo Loreto como
uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da Praça de Camões, num grande portão que uma lanterna alumiava.
Era a redacção da Tarde.
Dentro do pátio desse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um sujeito
encatarroado que lhe disse que o Neves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, político, director da
Tarde, fora, havia anos, numas férias, seu companheiro de casa no Largo do Carmo ; e desde esse Verão
alegre em que o Neves lhe ficara sempre devendo três moedas, os dois tratavam−se por tu. Foi encontrá−lo
numa vasta sala alumiada por bicos de gás sem globo, sentado na borda de uma mesa atulhada de jornais,
com o chapéu para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de província que o escutavam de pé, num
respeito de crentes. Num vão de janela, com dois homens de idade, um rapaz esgalgado, de jaquetão de
cheviote claro e uma cabeleira crespa que parecia erguida numa rajada de vento, bracejava como um moinho
na crista de um monte. E, abancado, outro sujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel. Ao
ver o Ega (um íntimo do Gouvarinho) ali na redacção, naquela noite de intriga e de crise, Neves cravou nele
Os Maias
Capítulo XV 323
os olhos tão curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou−se a dizer :
– Nada de política, negócio particular... Não te interrompas. Depois falaremos.
O outro findou a injúria que estava lançando ao José Bento, «essa grande besta que fora meter tudo no
bico da amiga do Sousa e Sá, o par do Reino» – e na sua impaciência saltou da mesa, travou do braço do Ega,
arrastando−o para um canto :
– Então que é ?
– É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi ofendido aí por um sujeito muito conhecido. Nada de
interessante. Um parágrafo imundo na Corneta do Diabo, por uma questão de cavalos... O Maia pediu−lhe
explicações. O outro deu−as, chatas, medonhas, numa carta que quero que vocês publiquem.
A curiosidade do Neves flamejou :
– Quem é ?
– O Dâmaso.
O Neves recuou de assombro :
– O Dâmaso ! ? Ora essa ! Isso é extraordinário ! Ainda esta tarde jantei com ele ! Que diz a carta ?
– Tudo. Pede perdão, declara que estava bêbedo, que é de profissão um bêbedo...
O Neves agitou as mãos com indignação :
– E tu querias que eu publicasse isso, homem ? O Dâmaso, nosso amigo político !... E que não fosse,
não é questão de partido, é de decência ! Eu faço lá isso !... ; Se fosse uma acta de duelo, uma coisa
honrosa, explicações dignas... Mas uma carta em que um homem se declara bêbedo ! Tu estás a mangar !
Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face, teve ainda uma revolta àquela
ideia de o Dâmaso se declarar bêbedo !
– Isso não pode ser ! É absurdo ! Aí há história... Deixa ver a carta.
E, mal relanceara os olhos ao papel, à larga assinatura floreada, rompeu num alarido :
– Isto não é o Dâmaso nem é a letra do Dâmaso !... Salcede ! Quem diabo é Salcede ? Nunca foi o
meu Dâmaso !
– É o meu Dâmaso – disse o Ega. – o Dâmaso Salcede, um gordo...
O outro atirou os braços ao ar :
– O meu é o Guedes, homem, o Dâmaso Guedes ! Não há outro ! Que diabo, quando se diz o Dâmaso
é o Guedes !...
Respirou com grande alívio :
Os Maias
Capítulo XV 324
– Irra, que me assustaste ! Olha agora neste momento, com estas coisas de Ministério, uma carta dessas
escrita pelo Guedes... Se é o Salcede, bem, acabou−se ! Espera lá... Não é um gordalhufo, um janota que tem
uma propriedade em Sintra ? Isso ! Um maganão que nos entalou na eleição passada, fez gastar ao Silvério
mais de trezentos mil réis... Perfeitamente, às ordens... Ó Pereirinha, olhe aqui o Sr. Ega. Tem aí uma carta
para sair amanhã, na primeira página, tipo largo...
O Sr. Pereirinha lembrou o artigo do Sr. Vieira da Costa sobre a reforma das pautas.
– Vai depois ! – gritou o Neves. – As questões de honra antes de tudo !
E voltou ao seu grupo, onde agora se falava do conde de Gouvarinho, saltou para a borda da mesa,
lançou logo o seu vozeirão de chefe, afirmando no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar ! Ega acendeu
o charuto, ficou um momento considerando aqueles sujeitos que pasmavam para o verbo do Neves. Eram
decerto deputados que a crise arrastara a Lisboa, arrancara à quietação das vilas e das quintas. O mais novo
parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face a estourar de sangue, jucundo, crasso,
lembrando ares sadios e lombo de porco. Outro, esguio, com o paletó solto sobre as costas em arco, tinha um
queixo duro e maciço de cavalo : e dois padres muito rapados, muito morenos, fumavam pontas de cigarro.
Em todos havia esse ar, conjuntamente apagado e desconfiado, que marca os homens de província, perdidos
entre as tipóias e as intrigas da capital. Vinham ali às noites, àquele jornal do partido, saber as novas, beber
do fino, uns com esperanças de empregos, outros por interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos
o Neves era um «robusto talento» ; admiravam−lhe a verbosidade e a táctica ; decerto gostavam de citar nas
lojas das suas vilas o amigo Neves, o jornalista, o da Tarde... Mas, através dessa admiração e do prazer de
roçar por ele, percebia−se−lhes um vago medo que aquele «robusto talento» lhes pedisse, num vão de janela,
duas ou três moedas. O Neves, no entanto, celebrava o Gouvarinho como orador. Não que tivesse os rasgos, a
pureza, as belas sínteses históricas do José Clemente ! Nem a poesia do Rufino ! Mas não havia outro para
as piadas que ferem e que ficam cravadas, ali a arder, na pele do touro ! E era a grande coisa na Câmara – ter
a farpa, sabê−la ferrar !
– Ó Gonçalo, tu lembras−te da piada do Gouvarinho, a do trapézio ? – gritou ele virando−se para a
janela, para o rapaz de jaquetão claro.
O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiam de agudeza e malícia, estendeu o pescoço magro num colarinho
muito decotado, lançou de lá :
– A do trapézio ? Divina ! Conta à rapaziada !
A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, à espera da «do trapézio». Fora na Câmara dos Pares, na
reforma da instrução. Estava falando o Torres Valente, esse maluco que defendia a ginástica dos colégios e
queria as meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue−se e atira−lhe esta : «Sr. Presidente, direi uma
palavra só. Portugal sairá para sempre da senda do progresso, em que tanto se tem ilustrado, no dia em que
nós formos ao ensino, com mão ímpia, substituir a cruz pelo trapézio !».
– Muito bem ! – rosnou um dos padres, profundamente satisfeito.
E no murmúrio de admiração que se ergueu destacou um ganido – o do rapaz mais grosso que um pote,
que mexia os ombros, chasqueava com uma risota na bochecha cor de tomate :
– Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sai é um grandíssimo carola !
E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de província, liberais e finórios, que achavam aquele
fidalgo excessivamente apegado à cruz. Mas já o Neves, de pé, bravejava :
Os Maias
Capítulo XV 325
– Carola ! Vem−nos agora o menino gordo com carola !... O Gouvarinho carola ! Está claro que tem
toda a orientação mental do século, é um racionalista, um positivista... Mas a questão aqui é a réplica, a
táctica parlamentar ! Desde que o tipo da maioria vem de lá com a descoberta do trapézio, Gouvarinho
amigo, ainda que fosse tão ateu como Renan, zás !, atira−lhe logo para cima com a cruz !... Isto é que é a
estratégia parlamentar ! Pois não é assim, Ega ? Ega murmurou, através do fumo do charuto :
– Sim, com efeito, a cruz para isso ainda serve...
Mas nesse momento o sujeito calvo, que repelira a tira de papel e se espreguiçava, caído para as costas
da cadeira, exausto, pediu ao Sr. João da Ega «que falasse à gente e guardasse o seu dinheiro...». Ega
acercou−se logo daquele simpático homem, tão engraçado, tão querido de todos :
– Então, na grande faina, Melchior ?
– Estou aqui a ver se faço uma coisa sobre o livro do Craveiro, os Cantos da Serra, e não me sai nada
em termos... Não sei o que hei−de dizer !
Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito camarada com o Melchior :
– Nada ! Vocês aqui são simples localistas, noticiaristas, anunciadores. De um livro como o do
Craveiro têm só respeitosamente a dizer onde se vende e quanto custa.
O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por trás da nuca :
– Então onde queria você que se falasse dos livros ?... Nos repertórios ?
Não, nas revistas críticas : ou então nos jornais – que fossem jornais, não papeluchos volantes, tendo
em cima uma cataplasma de política em estilo mazorro ou em estilo fadista, um romance mal traduzido do
francês por baixo e o resto cheio com anos, despachos, parte de polícia e lotaria da Misericórdia. E como em
Portugal não havia nem jornais sérios nem revistas críticas – que se não falasse em parte nenhuma.
– Com efeito – murmurou Melchior – ninguém fala de nada, ninguém parece pensar em nada...
E com toda a razão, afirmou Ega. Certamente muito desse silêncio provinha do natural desejo que têm,
os que são medíocres, de que se não aluda muito aos que são grandes. É a invejazinha reles e rastejante !
Mas em geral o silêncio dos jornais para com os livros provém sobretudo de eles terem abdicado todas as
funções elevadas de estudo e de crítica, de se terem tornado folhas rasteiras de informação caseira, e de
sentirem por isso a sua incompetência...
– Está claro, não falo por você, Melchior, que é dos nossos e de primeira ordem ! Mas os seus colegas,
menino, calam−se por se saberem incompetentes...
O Melchior ergueu os ombros com um ar cansado e descrente :
– Calam−se também porque o público não se importa, ninguém se importa...
Ega protestou, já excitado. O público não se importava ! ? Essa era curiosa ! O público então não se
importa que lhe falem de livros que ele compra aos três mil, aos seis mil exemplares ? E isto, dada a
população de Portugal, caramba, é igual aos grandes sucessos de Paris e de Londres... Não, Melchiorzinho
amigo, não ! Esse silêncio diz ainda mais claramente e retumbantemente que as palavras : «Nós somos
incompetentes. Nós estamos bestializados pela notícia do senhor conselheiro que chegou, ou do senhor
Os Maias
Capítulo XV 326
conselheiro que partiu, pelos High Lifes, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo em
descompostura e calão, por toda esta prosa chula em que nos atolamos... Nós não sabemos, não podemos já
falar de uma obra de arte ou de uma obra de história, deste belo livro de versos ou deste belo livro de viagens.
Não temos nem frases nem ideias. Não somos talvez cretinos – mas estamos cretinizados. A obra de literatura
passa muito alto – nós chafurdamos aqui muito em baixo...» – E aqui tem você, Melchior, o que diz, através
do silêncio dos jornais, o coro dos jornalistas !
Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para trás, como quem goza uma bela ária. Depois, com
uma palmada na mesa :
– Caramba, ó Ega, muito bem fala você !.. Você nunca pensou em ser deputado ? Eu ainda outro dia
dizia ao Neves : «O Ega ! O Ega é que era, para atirar ali na Câmara a piadinha à Rochefort. Ardia Tróia !».
E imediatamente, enquanto Ega ria, contente, tornando a acender o charuto – Melchior arrebatou a
pena :
– Você está em veia ! Diga lá, dite lá... Que hei−de eu aqui pôr sobre o livro do Craveiro ?
Ega quis saber o que escrevera já o amigo Melchior. Apenas três linhas : «Recebemos o novo livro do
nosso glorioso poeta Simão Craveiro. O precioso volume, onde cintilam, em caprichosos relevos, todas as
jóias deste prestigioso escritor, é publicado pelos activos editores...» E aqui o Melchior emperrara. Melchior
não gostava daquele frouxo termo – activos. Ega então sugeriu – empreendedores. Melchior emendou, leu :
– «...publicado pelos empreendedores editores...» Ora sebo, rima !
Arrojou a pena, descoroçoado. Acabou−se ! Não estava em verve. E além disso era tarde, tinha a
rapariga à espera...
– Fica para amanhã... O pior é que já ando nisto há cinco dias ! Irra ! Você tem razão, a gente
bestializa−se. E faz−me raiva ! Não é lá pelo livro, não me importa o livro... É pelo Craveiro, que é bom
rapaz, e demais a mais pertence cá ao partido !
Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar−se com desespero. E Ega ia ajudá−lo,
limpar−lhe as costas cheias de cal – quando entre eles surgiu a face chupada e nervosa do Gonçalo, com a sua
gaforinha perpetuamente erguida como por uma rajada de vento.
– Que está o Egazinho a fazer neste covil da notícia ?
– Aqui a escovar o Sampaio... Estive também a ouvir o Neves, a grande frase do Gouvarinho...
O Gonçalo pulou, com uma faísca de malícia nos olhos negros de algarvio esperto.
– A da cruz ? Espantosa ! Mas há melhor, há melhor !
Travou do braço do Ega, puxou−o para um canto da janela :
– É necessário falar baixo por causa da rapaziada de província... Há outra deliciosa. Eu não me lembro
bem, o Neves é que sabe ! É uma coisa da Liberdade conduzindo à mão o corcel do Progresso... O quer que
seja assim, uma imagem equestre ! A Liberdade com calções de jóquei, o Progresso com um grande freio...
Espantoso ! Que besta, aquele Gouvarinho ! E os outros, menino, os outros ! Você não foi à Câmara
quando se discutiu a questão de Tondela ? Extraordinário ! O que se disse ! Foi de morrer ! E eu morro !
Os Maias
Capítulo XV 327
Esta política, este S. Bento, esta eloquência, estes bacharéis matam−me. Querem dizer agora aí que isto por
fim não é pior que a Bulgária. Histórias ! Nunca houve uma choldra assim no universo !
– Choldra em que você chafurda ! – observou o Ega, rindo. O outro recuou com um grande gesto :
– Distingamos ! Chafurdo por necessidade, como político : e troço por gosto, como artista !
Mas Ega, justamente, achava uma desgraça incomparável para o país esse imoral desacordo entre a
inteligência e o carácter. Assim, ali estava o amigo Gonçalo, como homem de inteligência, considerando o
Gouvarinho um imbecil...
– Uma cavalgadura – corrigiu o outro.
– Perfeitamente ! E todavia, como político, você quer essa cavalgadura para ministro, e vai apoiá−la
com votos e com discursos sempre que ela relinche ou escoucinhe.
Gonçalo correu lentamente a mão pela gaforinha, com a face franzida :
– É necessário, homem ! Razões de disciplina e de solidariedade partidária... Há uns compromissos... O
Paço quer, gosta dele... Espreitou em roda, murmurou, colado ao Ega :
– Há aí umas questões de sindicatos, de banqueiros, de concessões em Moçambique... Dinheiro, menino,
o omnipotente dinheiro ! E como Ega se curvava, vencido, cheio só de respeito – o outro, faiscando todo de
finura e cinismo, atirou−lhe uma palmada ao ombro :
– Meu caro, a política hoje é uma coisa muito diferente ! Nós fizemos como vocês, os literatos.
Antigamente a literatura era a imaginação, a fantasia, o ideal... Hoje é a realidade, a experiência, o facto
positivo, o documento. Pois cá a política em Portugal também se lançou na corrente realista. No tempo da
Regeneração e dos Históricos, a política era o progresso, a viação, a liberdade, o palavrório... Nós mudámos
tudo isso. Hoje é o facto positivo – o dinheiro, o dinheiro ! o bago ! a massa ! A rica massinha da nossa
alma, menino ! O divino dinheiro !
E de repente emudeceu, sentindo na sala um silêncio – onde o seu grito de «dinheiro ! dinheiro !»
parecera ficar vibrando, no ar quente do gás, com a prolongação de um toque de rebate acordando as cobiças,
chamando ao longe e ao largo todos os hábeis para o saque da Pátria inerte !...
O Neves desaparecera. Os cavalheiros de província dispersavam, uns enfiando o paletó, outros sem
pressa, dando um olhar amortecido aos jornais sobre a mesa. E o Gonçalo bruscamente disse adeus ao Ega,
rodou nos tacões, desapareceu também, abraçando ao passar um dos padres a quem tratou de «malandro !»
Era meia−noite, Ega saiu. E na tipóia que o levava ao Ramalhete, já mais calmo, começou logo a reflectir que
o resultado da publicação da carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A «questão de
cavalos» com que o Neves se contentara prontamente, distraído e absorvido nessa noite pela crise – ninguém
mais a acreditaria... O Dâmaso decerto, interrogado, para se desculpar, contaria horrores de Maria e de
Carlos : e uma intolerável luz de escândalo ia bater coisas que deviam permanecer na sombra. Eram talvez
apoquentações, desesperos que ele assim estivera preparando a Carlos – por causa de um odiozinho ao
Dâmaso. Nada mais egoísta e pequeno !... E subindo para o quarto, Ega decidia correr depois de almoço à
redacção da Tarde, suster a publicação da carta. Mas toda essa noite sonhou com Raquel e com Dâmaso.
Via−os rolando por uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados numa carroça de bois, sobre um
enxergão onde se desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha de cetim preto da Vila Balzac : os dois
beijavam−se, enroscados, sem pudor, sob a fresca sombra que caía dos ramos, ao chiar lento das rodas. E por
um requinte do sonho cruel, ele, Ega, sem perder a consciência e o orgulho de homem, era um dos bois que
Os Maias
Capítulo XV 328
puxava ao carro ! Os moscardos picavam−no, a canga pesava−lhe ; e, a cada beijo mais cantado que atrás
soava no carro, ele erguia o focinho a escorrer de baba, sacudia os cornos, mugia lamentavelmente para os
céus !
Acordou nestes urros de agonia : e a sua cólera contra o Dâmaso ressurgiu, mais nutrida pelas
incoerências do sonho. Além disso chovia. E decidiu não voltar à Tarde, deixar imprimir a carta. Que
importava, de resto, o que dissesse o Dâmaso ? O artigo da Corneta estava extinto, o Palma bem pago. – E
quem jamais acreditaria num homem que nos jornais se declara caluniador e bêbedo ? E Carlos assim
pensou também – quando, depois de almoço, Ega lhe contou a sua resolução da véspera ao ver o Dâmaso no
camarote, de olho trocista posto nele, a segredar com a Cohen...
– Percebi claramente, sem erro possível, que estava a falar de ti, da Sr. a D. Maria, de nós todos,
contando horrores... E então acabou−se, não hesitei mais. Era necessário deixar passar a justiça de Deus !
Não tínhamos paz enquanto o não aniquilássemos !
Sim, concordou Carlos, talvez. Somente receava que o avô, sabendo o escândalo, se desgostasse de ver o
seu nome misturado a toda aquela sordidez de Corneta e de bebedeira...
– Ele não lê a Tarde acudiu Ega. – O rumor, se lhe chegar, é já vago e desfigurado.
Com efeito, Afonso soube apenas confusamente que o Dâmaso soltara, no Grémio, algumas palavras
desagradáveis para Carlos, e declarara depois num jornal que, nesse momento, estava bêbedo. E a opinião do
velho foi que, se o Dâmaso estava embriagado (e de outro modo como teria injuriado Carlos, seu antigo
amigo ?), a sua declaração revelava extrema lealdade e um amor quase heróico da verdade !
– Por esta não esperávamos nós ! – exclamou depois Ega, no quarto de Carlos. – O Dâmaso torna−se
um justo !
De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da Corneta, aprovavam a aniquilação do Dâmaso. Só
o Craft sustentou que Carlos lhe devia ter antes dado «bengaladas secretas» ; e o Taveira achou cruel que se
dissesse ao desgraçado, com um florete ao peito : «Ou a dignidade ou a vida !» Mas dias depois não se
falava mais nesse escândalo. Outras coisas interessavam o Chiado e a Casa Havanesa. O Ministério fora
formado, finalmente ! Gouvarinho entrava na Marinha – Neves no Tribunal de Contas. Já os jornais do
Governo caído começavam, segundo a prática constitucional, a achar o país irremediavelmente perdido e a
aludir ao rei com azedume... E o derradeiro, esvaído eco da carta do Dâmaso foi, na véspera do sarau da
Trindade, um parágrafo da própria Tarde onde ela fora publicada, nestas amáveis palavras :
«O nosso amigo e distinto sportman, Dâmaso Salcede, parte brevemente para uma viagem de recreio a
Itália. Desejamos ao elegante touriste todas as prosperidades, na sua bela excursão ao país do canto e das
artes.»
Os Maias
Capítulo XV 329
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http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000181.pdf
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Dâmaso Salcede
Personagem ficcional
Interpretado por: Hugo Mestre Amaro
Filme: Os Maias
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Filme Os Maias (2015) | Trailer Oficial
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Trailer do longa metragem "Os Maias" (2015), um filme de João Botelho e produzido pela Raccord Produções.
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Carlos da Maia é o último herdeiro da tradicional família portuguesa. Ele é formado em medicina pela antiga Universidade de Coimbra, mas prefere gastar seu tempo na companhia de amigos e amantes, junto a seu grande colega João da Ega. Mas isso muda quando ele finalmente se apaixona. A história pessoal de Carlos se mistura à de Portugal, ambas banhadas de doses generosas de tragédia e comédia.
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https://www.youtube.com/watch?v=c3oiP4oB1QQ
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- «O nosso amigo e distinto sportman Dâmaso Salcede parte
brevemente para uma viagem de recreio a Itália. Desejamos ao elegante
touriste todas as prosperidades na sua bela excursão ao país do canto e das
artes.»
Capítulo XV
Maria Eduarda e Carlos, que ficara essa noite nos Olivais na sua
casinhola, acabavam de almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sair
deixara ao lado de Carlos a caixa de cigarretes e o Figaro. As duas janelas
estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã encoberta,
entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos
campos. No banco de cortiça, sob as árvores, miss Sarah costurava
preguiçosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera numa
intimidade conjugal, com uma simples camisa de seda e um jaquetão de
flanela, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a mão,
brincando-lhe com os anéis, numa lenta carícia:
- Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?
Nessa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ela mostrara o
desejo enternecido de não alterar o plano da Itália e dum ninho romântico
entre as flores da Isola-bela: somente agora não iam esconder a inquietação
duma felicidade culpada, mas gozar o repouso duma felicidade legítima. E,
depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia
em que cruzara Maria Eduarda no Aterro, Carlos anelava também pelo
momento de se instalar enfim no conforto dum amor sem dúvidas e sem
sobressaltos:
- Eu por mim abalava amanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego
de preguiça... Mas tu, dize, quando queres?
Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e
apaixonado. Depois, sem retirar a mão que a longa carícia de Carlos ainda
prendia, chamou Rosa através da janela.
- Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns
pardais que ainda não almoçaram...
- Não, vem cá.
Quando ela apareceu à porta, toda de branco, corada, com uma das
ultimas rosas de verão metida no cinto - Maria qui-la mais perto, entre eles,
encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabelo,
perguntou, muito séria, muito comovida, se ela gostaria que Carlos viesse
viver ver com elas de todo e ficar ali na Toca. Os olhos da pequena encheram-
se de surpresa e de riso:
- O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E
ter aqui as suas malas, as suas coisas?...
Ambos murmuraram - «sim».
Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse
já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...
- Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos.
E gostavas que ele fosse como o papá, e que, andasse sempre conosco, e que
lhe obedecêssemos ambas, e que gostássemos muito dele?
Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o
sorriso se apagara.
- Mas eu não posso gostar mais dele do que gosto!...
Ambos a beijaram, num enternecimento que lhes humedecia os olhos. E
Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa debruçando-se sobre ela,
beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo,
depois para a mãe. E pareceu compreender tudo; escorregou dos joelhos de
Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:
- Queres que te chame papá, só a ti?
- Só a mim, disse ele, fechando-a toda nos braços.
E assim obtiveram o consentimento de Rosa que fugiu, atirando a porta,
com as mãos cheias de bolos para os pardais.
Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e
contemplando-a profundamente, até à alma, murmurou num enlevo:
- És perfeita!
Ela desprendeu-se, com melancolia, daquela adoração que a
perturbava.
- Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos
para o nosso quiosque... Tu não tens nada que fazer, não? E que tenhas, hoje
és meu... Vou já ter contigo. Leva as tuas cigarretes.
Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada
do céu cinzento... E a vida pareceu-lhe adorável, duma poesia fina e triste,
assim envolta naquela névoa macia onde nada resplandecia e nada cantava, e
que tão favorável era para que dois corações, desinteressados do mundo e em
desarmonia com ele, se abandonassem juntos ao contínuo encanto de
estremecerem juntos na mudez e na sombra.
- Vamos ter chuva, tio André, disse ele, passando junto do velho
jardineiro que aparava o buxo.
O tio André, atarantado, arrancou o chapéu. Ah! uma gota de água era
bem necessária, depois da estiagem! O torrãosinho já estava com sede! E em
casa todos bons? A senhora? A menina?
- Tudo bom, tio André, obrigado.
E no seu desejo de ver todos em torno de si felizes como ele e como a
terra sequiosa que ia ser consolada - Carlos meteu uma libra na mão do tio
André, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre aquele ouro
extraordinário que reluziu.
Quando Maria entrou no quiosque trazia um cofre de sândalo. Atirou-o
para o divã: fez sentar Carlos ao lado, bem confortável, entre almofadas:
acendeu-lhe uma cigarrete. Depois agachou-se aos seus pés, sobre o tapete,
como na humildade de uma confissão.
- Estás bem assim? Queres que o Domingos te traga água e cognac?...
Não? Então ouve agora, quero-te contar tudo...
Era toda a sua existência que ela desejava contar. Pensara mesmo em lha
escrever numa carta interminável, como nos romances. Mas decidira antes
tagarelar ali uma manhã inteira, aninhada aos seus pés.
- Estás bem, não estás?
Carlos esperava, comovido. Sabia que aqueles lábios amados iam fazer
revelações pungentes para o seu coração e amargas para o seu orgulho. Mas a
confidência da sua vida completava a posse da sua pessoa: quando a
conhecesse toda no seu passado senti-la-hia mais sua inteiramente. E no
fundo tinha uma curiosidade insaciável dessas coisas que o deviam pungir e
que o deviam humilhar.
- Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize,
conta... Onde nasceste tu por fim?
Nascera em Viena: mas pouco se recordava dos tempos de criança,
quasi nada sabia do papá, a não ser a sua grande nobreza e a sua grande
beleza. Tivera uma irmãsinha que morrera de dois anos e que se chamava
Heloisa. A mamã, mais tarde, quando ela era já rapariga, não tolerava que lhe
perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a memória das
coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho...
De Viena apenas recordava confusamente largos passeios de árvores,
militares vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde se
dançava: ás vezes durante tempos ela ficava lá só com o avô, um velhinho
triste e tímido, metido pelos cantos, que lhe contara histórias de navios.
Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se somente de ter atravessado
um grande rumor de ruas, num dia de chuva, embrulhada em peles, sobre os
joelhos dum escudeiro. As suas primeiras memórias mais nítidas datavam de
Paris; a mamã, já viúva, andava de luto pelo avô; e ela tinha uma aia italiana
que a levava todas as manhãs, com um arco e com uma péla, brincar aos
Campos Elíseos. A noite costumava ver a mamã decotada, num quarto cheio
de cetins e de luzes; e um homem louro, um pouco brusco, que fumava
sempre estirado pelos sofás, trazia-lhe de vez em quando uma boneca, e
chamava-lhe mademoisele Triste-coeur por causa do seu arzinho sisudo.
Enfim a mamã metera-a num convento ao pé de Tours - porque nessa idade,
apesar de cantar já ao piano as valsas da Bele Helène, ainda não sabia
soletrar. Fora nos jardins do convento, onde havia lindos lilases, que a mamã
se separara dela numa paixão de lágrimas; e ao lado esperava, para a
consolar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a
Madre Superiora falara com veneração.
A mamã ao principio vinha vê-la todos os meses, demorando-se em
Tours dois, três dias; trazia-lhe uma profusão de presentes, bonecas,
bombons, lenços bordados, vestidos ricos, que lhe não permitia usar a regra
severa do convento. Davam então passeios de carruagem pelos arredores de
Tours: e havia sempre oficiais a cavalo, que escoltavam a caleche - e tratavam
a mamã por tu. No convento as mestras, a Madre Superiora não gostavam
destas saídas - nem mesmo que a mamã viesse acordar os corredores devotos
com as suas risadas e o ruído das suas sedas; ao mesmo tempo pareciam
teme-la; chamavam-lhe Madame la Comtesse. A mamã era muito amiga do
general que comandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor, quando
vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na face e aludia
risonhamente a son excelente mère. Depois a mamã começou a aparecer
menos em Tours. Esteve um ano longe, quasi sem escrever, viajando na
Alemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e ficou toda a manhã
abraçada a ela a chorar.
Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, mais ligeira,
com dois grandes galgos brancos, anunciando uma romagem poética à Terra
Santa e a todo o remoto Oriente. Ela tinha então quasi dezasseis anos: pela
sua aplicação, os seus modos doces e graves, ganhara a afeição da Madre
Superiora - que ás vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabelo
caído em duas tranças segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar
sempre ao seu lado. Le monde, dizia ela, ne vous sera bon à rien, mon
enfant!... Um dia, porém, apareceu para a levar para Paris, para a mamã, uma
Madame de Chavigny, fidalga pobre, de caracóis brancos, que era como uma
estampa de severidade e de virtude.
O que ela chorara ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que
ía encontrar em Paris!
A casa da mamã, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo -
mas recoberta de um luxo sério e fino. Os escudeiros tinham meias de seda;
os convidados, com grandes nomes no Nobiliário de França, conversavam de
corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas de jogo
armavam-se depois como uma distracção mais picante. Ela recolhia sempre
ao seu quarto ás dez horas: Madame de Chavigny, que ficara como sua dama
de companhia, ia com ela cedo ao Bois num coupé estufo de douairière.
Pouco a pouco, porém, este grande verniz começou a estalar. A pobre mamã
caíra sob o jugo dum Mr. de Trevernes, homem perigoso pela sua sedução
pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descaiu
rapidamente numa boémia mal dourada e ruidosa. Quando ela madrugava,
com os seus hábitos saudáveis do convento, encontrava paletós de homens
por cima dos sofás: no mármore das consoles restavam pontas de charuto
entre nódoas de champagne; e nalgum quarto mais retirado ainda tinia o
dinheiro dum bacarat talhado à claridade do sol. Depois uma noite, estando
deitada, sentira de repente gritos, uma debandada brusca na escada; veio
encontrar a mamã estirada no tapete, desmaiada; ela dissera-lhe apenas mais
tarde, alagada em lágrimas, «que tinha havido uma desgraça»...
Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d’Antin. Aí
começou a aparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de
grandes bigodes, Peruanos com diamantes falsos, e condes romanos que
escondiam para dentro das mangas os punhos enxovalhados... Por vezes
entre esta malta vinha algum gentleman que não tirava o paletó, como num
café-concerto. Um desses foi um irlandês, muito moço, Mac-Gren... Madame
de Champigny deixara-as desde que faltara o coupé severo, acolchoado de
cetim; e ela, só com a mãe, insensivelmente, fatalmente, fora-se misturando a
essa vida tresnoitada de grogs e de bacarat.
A mamã chamava a Mac-Gren o «bebé». Era com efeito uma criança
estouvada e feliz. Namorara-se dela logo com o ardor, a efusão, o ímpeto
dum irlandês; e prometeu-lhe faze-la sua esposa apenas se emancipasse -
porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo das liberalidades de uma
avó excêntrica e rica que o adorava, e que habitava a Provença numa vasta
quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir
com ele, desesperado de a ver entre aqueles Valachos que cheiravam a
genebra. O seu desejo era leva-la para Fontainebleau, para um cotage com
trepadeiras de que falava sempre, e esperar aí tranquilamente a maioridade
que lhe traria duas mil libras de renda. Decerto, era uma situação falsa: mas
preferível a permanecer naquele meio depravado e brutal onde ela a cada
instante corava... A esse tempo a mamã parcela ir perdendo todo o senso,
desarranjada de nervos, quasi irresponsável. As dificuldades crescentes
estonteavam-na; brigava com as criadas; bebia champagne «pour s’étourdir».
Para satisfazer as exigências de Mr. de Trevernes empenhara as suas jóias, e
quasi todos os dias chorava com ciúmes dele. Por fim houve uma penhora:
uma noite tiveram de enfardelar à pressa roupa num saco, e ir dormir a um
hotel. E, pior, pior que tudo! Mr. de Trevernes começava a olhar para ela dum
modo que a assustava...
- Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pálido, agarrando-lhe as mãos.
Ela permaneceu um momento sufocada, com o rosto caído nos joelhos
dele. Depois limpando as lágrimas que a enevoavam:
- Aí estão as cartas de Mac-Gren, nesse cofre... Tenho-as guardado
sempre para me justificar a mim mesma, se me é possível... Pede-me em
todas que vá para Fontainebleau; chama-me sua esposa; jura que apenas
juntos iremos ajoelhar-nos diante da avó, obter a sua indulgência... Mil
promessas! E era sincero... Que queres que te diga? A mamã uma manhã
partiu com uma súcia para Baden. Fiquei em Paris só, num hotel... Tinha um
palpite, um terror que Trevernes aparecia... E eu só! Estava tão transtornada
que pensei em comprar um revólver... Mas quem veio foi Mac-Gren.
E partira com ele, sem precipitação, como sua esposa, levando todas as
suas malas. A mamã de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada e
trágica, amaldiçoando Mac-Gren, ameaçando-o com a prisão de Mazas,
querendo esbofeteá-lo; depois rompeu a chorar. Mac-Gren, como um bebé,
agarrou-se a ela aos beijos, chorando também. A mamã terminou por os
apertar a ambos contra o coração, já rendida, perdoando tudo, chamando-
lhes «filhos da sua alma». Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando
«a patuscada de Baden», já com o plano de vir instalar-se no cotage, viver
junto deles numa felicidade calma e nobre de avósinha... Era em maio; Mac-
Gren, à noite, deitou um «fogo preso» no jardim.
Começou um ano quieto e fácil. O seu único desejo era que a mamã
vivesse com eles sossegadamente. Diante das suas suplicas ela ficava
pensativa, dizia: «Tens razão, veremos!» Depois remergulhava no torvelinho
de Paris, de onde ressurgia uma manhã, num fiacre, estremunhada e aflita,
com uma rica peliça sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem francos... Por fim
nascera Rosa. Toda a sua ansiedade desde então fora legitimar a sua união.
Mas Mac-Gren adiava, levianamente, com um medo pueril da avó. Era um
perfeito bebé! Entretinha as manhãs a caçar pássaros com visco! E ao mesmo
tempo terrivelmente teimoso: ela pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito.
No começo da primavera a mamã um dia apareceu em Fontainebleau com as
suas malas, sucumbida, enojada da vida. Rompera enfim com Trevernes. Mas
quasi imediatamente se consolou: e começou daí a adorar Mac-Gren com
uma tão larga efusão de carícias, e achando-o tão lindo, que era ás vezes
embaraçadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac, jogando o
besigue.
De repente rebentou a guerra com a Prússia. Mac-Gren entusiasmado, e
apesar das suplicas delas, correra a alistar-se no batalhão de Zuavos de
Charete; a avó de resto aprovara este rasgo de amor pela França, e fizera-lhe
numa carta em verso, em que celebrava Jeane d’Arc, uma larga remessa de
dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ela, sem lhe largar o leito,
mal atendia ás noticias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras
batalhas perdidas na fronteira. Uma manhã a mamã rompeu-lhe no quarto,
estonteada, em camisa: o exercito capitulara em Sédan, o imperador estava
prisioneiro! «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» dizia a mamã espavorida. Ela
veio a Paris procurar noticias de Mac-Gren: na rua Royale teve de se refugiar
num portão, diante do tumulto dum povo em delírio, aclamando, cantando a
Marselhesa, em torno de uma caleche onde ia um homem, pálido como cera,
com um cache-nez escarlate ao pescoço. E um sujeito ao lado, aterrado, disse-
lhe que o povo fora buscar Rochefort à prisão e que estava, proclamada a
República.
Nada soubera de Mac-Gren. Começaram então dias de infinito
sobressalto. Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mamã causava dó,
envelhecida de repente, sombria, prostrada numa cadeira, murmurando
apenas: «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» E parecia na verdade o fim da
França. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em
wagons de gado, internados a todo o vapor para os presídios da Alemanha;
os prussianos marchando sobre Paris... Não podiam permanecer em
Fontainebleau; o duro inverno começava; e com o que venderam à pressa,
com o dinheiro que Mac-Gren deixara, partiram para Londres.
Fora uma exigência da mamã. E em Londres ela, desorientada na
enorme e estranha cidade, doente também, deixara-se levar pelas tontas
ideias da mãe. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros de luxo,
ao pé de Mayfair. A mamã falava em organizar ali o centro de resistência dos
bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraçada pensava em criar uma casa
de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem
império, não jogavam já o bacarat. E elas em breve, sem rendimentos,
gastando sempre, tinham-se achado com aquela dispendiosa casa, três
criados, contas colossais e uma nota de cinco libras no fundo duma gaveta. E
Mac-Gren metido dentro de Paris, com meio milhão de prussianos em redor.
Foi necessário vender todas as jóias, vestidos, até as peliças. Alugaram então,
no bairro pobre de Soho, três quartos mal mobilados. Era o lodging de
Londres em toda a sua suja, solitária tristeza; uma criadita única,
enfarruscada como um trapo; alguns carvões húmidos fumegando mal na
chaminé; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por
fim faltara mesmo o escasso shiling para pagar o lodging. A mamã não saia
do catre, doente, sucumbida, chorando. Ela ás vezes ao anoitecer, escondida
num water-proof, levava ao prego embrulhos de roupa (até roupa branca, até
camisas!) para que ao menos não faltasse a Rosa a sua xícara deleite. As cartas
que a mamã escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na Maison d’Or
ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada num bocado de papel,
alguma meia-libra que tinha o pavoroso sabor duma esmola. Uma noite, um
sábado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mamã,
perdera-se, errara na vasta Londres numa treva amarelada, a tiritar de frio,
quasi com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a álcool. Para
lhes fugir atirou-se para dentro dum cab que a levou a casa. Mas não tinha
um peny para pagar ao cocheiro; e a patroa roncava no seu cacifro, bêbeda. O
homem resmungou; ela, sucumbida, ali mesmo na porta rompeu a chorar.
Então o cocheiro desceu da almofada, comovido, ofereceu-se para a levar de
graça ao prego, onde ajustariam as suas contas. Foi; o pobre homem só
aceitou um shiling; até mesmo supondo-a francesa grunhiu blasfémias contra
os prussianos, e teimou em lhe oferecer uma bebida.
Ela no entanto procurava uma ocupação qualquer costura, bordados,
traduções, cópias de manuscritos... Não achava nada. Naquele duro inverno
o trabalho escasseava em Londres; surgira uma multidão de franceses,
pobres como ela, lutando pelo pão... A mamã não cessava de chorar; e havia
alguma coisa mais terrível que as suas lágrimas - eram as suas alusões
constantes à facilidade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo,
quando se é nova e se é bonita...
- Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ela, apertando as mãos
amargamente.
Carlos beijou-a em silêncio, com os olhos humedecidos.
- Enfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cerco
acabou. Paris estava de novo aberto... Somente a dificuldade era voltar.
- Como voltaste?
Um dia por acaso, em Regent-Street, encontrara um amigo de Mac-
Gren, outro irlandês, que muitas vezes jantara com eles em Fontainebleau.
Veio vê-las a Soho; diante daquela miséria, do bule de chá aguado, dos ossos
de carneiro requentando sobre três brasas mortas, começou, como bom
irlandês, por acusar o governo de Inglaterra e jurar uma desforra de sangue.
Depois ofereceu, com os beiços já a tremer, toda a sua dedicação. O pobre
rapaz batia também o lagedo numa luta tormentosa pela vida. Mas era
irlandês; e partiu logo generosamente, armado de todos os seus ardis, a
conquistar através de Londres o pouco que elas necessitavam para recolher a
França. Com efeito apareceu nessa mesma noite, derreado e triunfante,
brandindo três notas de banco e uma garrafa de champagne. A mamã ao ver,
depois de tantos meses de chá preto, a garrafa de Clicquot encarapuçada de
ouro - quasi desmaiou, de enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao
partirem, na estação de Charing-Cross, o irlandês levou-a para um canto, e
engasgado, torcendo os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na
batalha de Saint-Privat...
- Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar
trabalho. Mas tudo estava ainda em confusão... Quasi imediatamente veio a
Comuna... Podes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas enfim já não
era Londres, nem o inverno, nem o exílio. Estávamos em Paris, sofríamos de
companhia com amigos de outros tempos. Já não parecia tão terrível... Com
todas estas privações a pobre Rosa começava a definhar... Era um suplício vê-
la perder as cores, tristinha, mal vestida, metida numa trapeira... A mamã já
se queixava da doença de coração que a matou... O trabalho que eu
encontrava, mal pago, dava-nos apenas para a renda da casa, e para não
morrer absolutamente de necessidade... Principiei a adoecer de ansiedade, de
desespero. Lutei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se não tivesse outro
regime, bom ar, algum conforto... Conheci então Castro Gomes em casa duma
antiga amiga da mamã, que não perdera nada com a guerra, nem com os
prussianos, e que me dava trabalhos de costura... E o resto sabe-lo... Nem eu
me lembro... Fui levada... Via ás vezes Rosa, coitadinha, embrulhada num
chale, muito quietinha ao seu canto, depois de rapada a sua magra tigela de
sopas, e ainda com fome...
Não pôde continuar; rompeu a chorar, caída sobre os joelhos de Carlos.
E ele na sua emoção só lhe podia dizer, passando-lhe as mãos tremulas pelos
cabelos, que a havia de desforrar bem de todas as misérias passadas...
- Escuta ainda, murmurou ela, limpando as lágrimas. Há só uma coisa
mais que te quero dizer. E é a santa verdade, juro-te pela alma de Rosa! É que
nestas duas relações que tive o meu coração conservou-se adormecido...
Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar nada, até que te vi... E
ainda te quero dizer outra coisa...
Um momento hesitou, coberta de rubor. Passara os braços em torno de
Carlos, pendurada toda dele, com os olhos mergulhados nos seus. E foi mais
baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confissão de todo o seu ser:
- Além de ter o coração adormecido, o meu corpo permaneceu sempre
frio, frio como um mármore...
Ele estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus lábios ficaram colados
muito tempo, em silêncio, completando, numa emoção nova e quasi virginal,
a comunhão perfeita das suas almas.
daí a dias Carlos e Ega vinham numa vitória, pela estrada dos Olivais,
em caminho da Toca.
Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera enfim contando ao Ega
o impulso de paixão que o lançara de novo e para sempre, como esposo, nos
braços de Maria; e, na confiança absoluta que o prendia ao Ega, revelara-lhe
mesmo miudamente a história dela, dolorosa e justificadora. Depois, ao
acalmar o calor, propôs que fossem comer as sopas à Toca. Ega deu uma volta
pelo quarto, hesitando. Por fim começou a passar devagar a escova pelo
paletó, murmurando, como durante as longas confidências de Carlos: «É
prodigioso!... Que estranha coisa, a vida!»
E agora pela estrada, na aragem doce do rio, Carlos falava ainda de
Maria, da vida na Toca deixando escapar do coração muito cheio o
interminável cântico da sua felicidade.
- É facto, Egasinho, conheço quasi a felicidade perfeita!
- E cá na Toca ainda ninguém sabe nada?
Ninguém - a não ser Melanie, a confidente - suspeitava a profunda
alteração que se fizera nas suas relações: e tinham assentado que miss Sarah e
o Domingos, primeiras testemunhas da sua amizade, seriam regiamente
recompensados e despedidos quando em fins de outubro eles partissem para
Itália.
- E ides então casar a Roma?...
- Sim... Em qualquer lugar onde haja um altar e uma estola. Isso não
falta em Itália... E é então, Ega, que reaparece o espinho de toda esta
felicidade. É por isso que eu disse «quasi.» O terrível espinho, o avô! - É
verdade, o velho Afonso. Tu não tens ideia como lhe hás-de fazer conhecer
esse caso?...
Carlos não tinha ideia nenhuma. Sentia só que lhe faltava
absolutamente a coragem de dizer ao avô: «esta mulher, com quem vou casar,
teve na sua vida estes erros»... E além disso, já reflectira, era inútil. O avô
nunca compreenderia os motivos complicados, fatais, iniludíveis que tinham
arrastado Maria. Se lhos contasse miudamente o avô veria ali um romance
confuso e frágil, antipático à sua natureza forte e cândida. A fealdade das
culpas feri-lo-hia, exclusivamente; e não lhe deixaria apreciar, com
serenidade, a irresistibilidade das causas. Para perceber este caso dum
carácter nobre apanhado dentro duma implacável rede de fatalidades, seria
necessário um espírito mais dúctil, mais mundano que o do avô... O velho
Afonso era um bloco de granito: não se podiam esperar dele as subtis
discriminações dum casuísta moderno. Da existência de Maria só veria o
facto tangível: - caíra sucessivamente nos braços de dois homens. E daí
decorreria toda a sua atitude de chefe de família. Para que havia ele pois de
fazer ao velho uma confissão, que necessariamente originaria um conflito de
sentimentos e uma irreparável separação domestica?...
- Pois não te parece, Ega?
- Fala mais baixo, olha o cocheiro.
- Não percebe bem o português, sobretudo o nosso estilo... Pois não te
parece?
Ega raspava fósforos na sola para acender o charuto. E resmungava:
- Sim, o velho Afonso é granítico...
Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em
esconder ao avô o passado de Maria - e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria.
Casavam secretamente em Itália. Regressavam: ela para a rua de S. Francisco,
ele filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos levava o avô a casa da sua
boa amiga, que conhecera em Itália, M. de Mac-Gren. Para o prender logo lá
estavam os encantos de Maria, todas as graças dum interior delicado e sério,
jantarinhos perfeitos, ideias justas, Chopin, Beetoven, etc. E, para completar a
conquista de quem tão enternecidamente adorava crianças, lá estava Rosa...
Enfim, quando o avô estivesse namorado de Maria, da pequena, de tudo - ele,
uma manhã, dizia-lhe francamente: «Esta criatura superior e adorável teve
uma queda no seu passado; mas eu casei com ela; e, sendo tal como é, não fiz
bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?» E o avô, perante esta
terrível irremediabilidade do facto consumado, com toda a sua indulgência
de velho enternecido a defender Maria - seria o primeiro a pensar que, se esse
casamento não era o melhor segundo as regras do mundo, era decerto o
melhor segundo os interesses do coração...
- Pois não te parece, Ega?
Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em
resumo, adoptara para com o avô a complicada combinação que Maria
Eduarda tentara para com ele - e imitava sem o sentir os subtis raciocínios
dela.
- E acabou-se, continuava Carlos. Se ele na sua indulgência aceitar tudo,
bravo! dá-se uma grande festa no Ramalhete... Senão, foi-se! passaremos a
viver cada um para seu lado, fazendo ambos prevalecer a superioridade de
duas coisas excelentes: o avô as tradições do sangue, eu os direitos do
coração.
E, vendo o Ega ainda silencioso:
- Que te parece? Dize lá. Tu andas tão falto de ideias, homem!
O outro sacudiu a cabeça, como despertando.
- Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, nós
somos dois homens falando como homens!... Então aqui está: teu avô tem
quasi oitenta anos, tu tens vinte e sete ou o quer que seja... É doloroso dize-lo,
ninguém o diz com mais dor que eu, mas teu avô há de morrer... Pois bem,
espera até lá. Não cases. Supõe que ela tem um pai muito velho, teimoso e
caturra, que detesta o Sr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera;
continua a vir à Toca, na tipóia do Mulato; e deixa teu avô acabar a sua
velhice calma, sem desilusões e sem desgostos...
Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da vitória. Nunca,
nesses dias de inquietação, lhe acudira ideia tão sensata, tão fácil! Sim, era
isso, esperar! Que melhor dever do que poupar ao pobre avô toda a dor?...
Maria de certo, como mulher, estava desejando ansiosamente a conversão do
amante no marido pelo laço de estola que tudo purifica e nenhuma força
desata. Mas ela mesma preferiria uma consagração legal - que não fosse
assim precipitada, dissimulada... Depois, tão recta e generosa, compreenderia
bem a obrigação suprema de não mortificar aquele santo velho. De resto, não
conhecia ela a sua lealdade sólida e pura como um diamante? Recebera a sua
palavra: desde esse momento estavam casados, não diante do sacrário e nos
registos da sacristia - mas diante da honra e na inabalável comunhão dos seus
corações...
- Tens razão! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens
imensamente razão! Essa ideia é genial! Devo esperar... E enquanto espero?...
- Como, enquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso não é
comigo!
E mais sério:
- Enquanto esperas tens esse metal vil que faz a existência nobre.
Instalas tua mulher, porque desde hoje é tua mulher, aqui nos Olivais ou
noutro sítio, com o gosto, o conforto e a dignidade que competem a tua
mulher... E deixas-te ir! Nada impede que façais essa viagem nupcial à Itália...
Voltas, continuas a fumar a tua cigarrete e a deixar-te ir. Este é o bom senso: é
assim que pensaria o grande Sancho Pansa... Que diabo tens tu naquele
embrulho que cheira tão bem?
- Um ananás... Pois é isso, querido: esperar, deixar-me ir. É uma ideia!
Uma ideia! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com
efeito enredar-se numa meada de amarguras domesticas, por um excesso de
cavalheirismo romântico? Maria confiava nele; era rico, era moço; o mundo
abria-se ante eles fácil e cheio de indulgências. Não tinha senão a deixar-se ir.
- Tens razão, Ega! E Maria é a primeira a achar isto cheio de senso e de
oportunismo. Eu tenho uma certa pena em adiar a instalação da minha vida e
do meu home. Mas, acabou-se! Antes de tudo que o avô seja feliz... E para
celebrar o advento desta ideia, Deus queira que Maria nos tenha um bom
jantar!
Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro
com Maria Eduarda. Incomodava-o esse enleio, esse rubor que ela não
poderia ocultar - certa que, como confidente de Carlos, ele conhecia a sua
vida, as suas misérias, as suas relações com Castro Gomes. Por isso hesitara
em vir à Toca. Mas também, não aparecer mais a Maria Eduarda seria marcar
com um relevo quasi ofensivo o desejo caridoso de não molestar o seu
pudor... Por isso decidira «dar o mergulho duma vez». Quem, senão ele,
deveria ser o mais apressado em estender a mão à noiva de Carlos?... Além
disso tinha uma infinita curiosidade de ver no seu interior, à sua mesa, essa
criatura tão bela, com a sua graça nobre de Deusa moderna! Mas saltou da
vitória muito embaraçado.
Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava,
sentada nos degraus do jardim. Teve um sobressalto, corou toda, com efeito,
ao avistar o Ega que procurava atarantadamente o monóculo: o aperto de
mão que trocaram foi mudo e tímido: mas Carlos, alegremente,
desembrulhara o ananás - e na admiração dele todo o constrangimento se
dissipou.
- Oh! é magnífico!
- Que cor, que luxo de tons!
- E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.
Ega não voltara à Toca desde a noite fatal da soirée dos Cohens em que
ele ali tanto bebera e delirara tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na
velha traquitana, debaixo dum temporal, o grog do Craft, a ceia de peru...
- Já aqui sofri muito, minha senhora, vestido de Mefistófeles!...
- Por causa de Margarida?
- Por quem se há de sofrer neste apaixonado mundo, minha senhora,
senão por Margarida ou por Fausto?
Mas Carlos quis que ele admirasse os esplendores novos da Toca. E foi
já com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que só viesse
assim à Toca no fim do verão e no fim das flores. Ega êxtaseou-se
ruidosamente. Enfim, perdera a Toca o seu ar regelado e triste de museu! Já
ali se podia palrar livremente!
- Isto é um bárbara, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror à
arte! É um Ibero, é um Semita...
Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Ariano! E por isso mesmo
não podia viver numa casa, em que cada cadeira tinha a solenidade
sorumbática de antepassados com cabeleira...
- Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do século dezoito
lembram antes a ligeireza, o espírito, a graça de maneiras...
- V. Exc.ª acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses
enramalhetados, esses rococós lembram-me uma vivacidade estouvada e
sirigaita... Nada! nós vivemos numa Democracia! E não há para exprimir a
alegria simples, sólida e bonacheirona da Democracia, como largas poltronas
de marroquim, e o mogno envernizado!...
Assim numa risonha, ligeira discussão sobre bric-à-brac, desceram ao
jardim.
Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro
fechado na mão. Ega, que conhecia já os seus ardores nocturnos, cravou-lhe
sofregamente o monóculo; e enquanto Maria se abaixara a cortar um gerânio,
exprimiu a Carlos num gesto mudo a sua admiração por aquele beicinho
escarlate, aquele seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto do
caramanchão, encontraram Rosa que se balouçava. Ega pareceu
deslumbrado com a sua beleza, a sua frescura mate de camélia branca. Pediu-
lhe um beijo. Ela exigiu primeiro, muito séria, que ela tirasse o vidro do olho.
- Mas é para te ver melhor! é para te ver melhor!...
- Então porque não trazes um em cada olho? Assim só me vês metade...
Encantadora! Encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a
pequena espevitada e impudente. Maria resplandecia.
E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo à sopa,
falando-se de campo e dum chalet que ele desejava construir em Sintra, nos
Capuchos, dissera - «quando nos casarmos». E Ega aludiu a esse futuro do
modo mais grato ao coração de Maria. Agora que Carlos se instalava para
sempre numa felicidade estável (dizia ele) era necessário trabalhar! E
relembrou então a sua velha ideia do Cenaculo, representado por uma
Revista que dirigisse a literatura, educasse o gosto, elevasse a política, fizesse
a civilização, remoçasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espírito,
pela sua fortuna (até pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a
direcção deste movimento. E que profunda alegria para o velho Afonso da
Maia!
Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida
toda de inteligência e de actividade, reabilitaria supremamente aquela união
mostrando-lhe a influência fecunda e purificadora.
- Tem razão, tem bem razão! exclamava ela com ardor.
- Sem contar, acrescentava o Ega, que o país precisa de nós! Como muito
bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o país não tem
pessoal... Como há de te-lo, se nós, que possuímos as aptidões, nos
contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos
átomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biografia
dum átomo!... No fim, este diletantismo é absurdo. Clamamos por ai, em
botequins e livros, «que o país é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que
não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde
perfeito das nossas ideias?... V. Exc.ª não conhece este país, minha senhora. É
admirável! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão
toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas,
banais, toscas, reles, rotineiras... É necessário pô-la em mãos de artistas, nas
nossas. Vamos fazer disto um bijou!...
Carlos ria, preparando numa travessa o ananás com sumo de laranja e
vinho da Madeira. Mas Maria não queria que ele risse. A ideia do Ega
parecia-lhe superior, inspirada num alto dever. Quasi tinha remorsos, dizia
ela, daquela preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cerrado de afeição serena,
queria-o ver trabalhar, mostrar-se, dominar...
- Com efeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou.
E agora...
Mas o Domingos servia o ananás. E o Ega provou e rompeu em
clamores de entusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delícia!
- Como fazes tu isto? Com Madeira...
- E génio! exclamou Carlos. Delicioso, não é verdade? Ora digam-me se
tudo o que eu pudesse fazer pela civilização valeria este prato de ananás! É
para estas coisas que eu vivo! Eu não nasci para fazer civilização...
- Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flores dessa planta da
civilização que a multidão rega com o seu suor! No fundo também eu,
menino!
Não, não! Maria não queria que falassem assim!
- Esses ditos estragam tudo. E o Sr. Ega, em lugar de corromper Carlos,
devia inspira-lo...
Ega protestou requebrando o olho, já lânguido. Se Carlos necessitava
uma musa inspiradota e benéfica não podia ser ele, bicho com barbas e
bacharel em leis... A musa estava toute trouvée!
- Ah, com efeito!... Quantas paginas belas, quantas nobres ideias se não
podem produzir num paraíso destes!...
E o seu gesto mole e acariciador indicava a Toca, a quietação dos
arvoredos, a beleza de Maria. Depois na sala, enquanto Maria tocava um
nocturno de Chopin e Carlos e ele acabavam os charutos à porta do jardim
vendo nascer a lua - Ega declarou que, desde o começo do jantar, estava com
ideias de casar!... Realmente não havia nada como o casamento, o interior, o
ninho...
- Quando penso, menino, murmurou ele mordendo sombriamente o
charuto, que quasi todo um ano da minha vida foi dado àquela israelita
devassa que gosta de levar bordoada...
- Que faz ela em Sintra? perguntou Carlos.
- Ensopa-se na crápula. Não há a menor dúvida que dá todo o seu
coração ao Dâmaso... Tu sabes o que nestes casos significa o termo coração...
Viste já imundície igual? É simplesmente obscena!
- E tu adora-la, disse Carlos.
O outro não respondeu. Depois, dentro, num ódio repentino da boémia
e do romantismo, entoou louvores sonoros à família, ao trabalho, aos altos
deveres humanos - bebendo copinhos de cognac. Á meia noite, ao sair,
tropeçou duas vezes na rua de acácias, já vago, citando Proudhon. E quando
Carlos o ajudou a subir para a vitória, que ele quis descoberta para ir
comunicado com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braço para lhe falar da
Revista, dum forte vento de espiritualidade e de virtude viril que se devia
fazer soprar sobre o país... Por fim, já estirado no assento, tirando o chapéu à
aragem da noite:
- E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas a inglesa... Há vícios
deliciosos naquelas pestanas baixas... Vê se ma arranjas... Vá lá, bate lá,
cocheiro! Caramba, que beleza de noite!
Carlos ficara encantado com este primeiro jantar de amizade na Toca.
Ele tencionava não apresentar Maria aos seus íntimos senão depois de casado
e à volta de Itália. Mas agora a «união legal» estava já no seu pensamento
adiada, remota, quasi dispersa no vago. Como dizia o Ega, devia esperar,
deixar-se ir... E no entanto, Maria e ele não poderiam isolar-se ali todo um
longo inverno, sem o calor sociável de alguns amigos em redor. Por isso uma
manhã, encontrando o Cruges, que fora o vizinho de Maria e outrora lhe
dava noticias da «lady inglesa», pediu-lhe para vir jantar à Toca no domingo.
O maestro apareceu numa tipóia, à tardinha, de laço branco e de casaca:
e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e Ega começaram logo a
enche-lo de mal-estar. Toda a mulher, além das Lolas e Conchas, o atarantava,
o emudecia: Maria, «com o seu porte de grande-dame», como ele dizia,
intimidou-o a tal ponto que ficou diante dela, sem uma palavra, escarlate,
torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar, por lembrança de Carlos,
foram-lhe mostrar a quinta. O pobre maestro, roçando a casaca mal feita pela
folhagem dos arbustos, fazia esforços ansiosos por murmurar algum elogio
«á beleza do sítio»; mas escapavam-lhe então inexplicavelmente coisas reles,
em calão: «vista catita»! «é pitada»! Depois ficava furioso, coberto de suor,
sem compreender como se lhe babavam dos lábios esses ditos abomináveis,
tão contrários ao seu gosto fino de artista. Quando se sentou à mesa sofria um
negríssimo acesso de spleen e mudez! Nem uma controvérsia que Maria
arranjara caridosamente para ele sobre Wagner e Verdi pôde descerrar-lhe os
lábios empedernidos. Carlos ainda tentou envolve-lo na alegria da mesa -
contando a ida a Sintra, quando ele procurava Maria na Lawrence, e em vez
dela achara uma matrona obesa, de bigode, de cãosinho ao colo, ralhando
com o homem em espanhol. Mas a cada exclamação de Carlos - «Lembras-te,
Cruges?», «Não é verdade, Cruges?» - o maestro, rubro, grunhia apenas um
sim avaro. Terminou por estar ali, ao lado de Maria, como um trambolho
fúnebre. Estragou o jantar. Combinara-se para depois do café um passeio
pelos arredores, num break. E Carlos já tomara as guias, Maria na almofada
acabava de abotoar as luvas - quando Ega, que receava a friagem da tarde,
saltou do break, correu a buscar o paletó. Nesse mesmo momento sentiram
um trote de cavalo na estrada - e apareceu o marquês.
Foi uma surpresa para Carlos, que o não vira durante esse verão. O
marquês parou logo, tirando profundamente, ao ver Maria, o seu largo
chapéu desabado.
- Imaginava-o pela Golegã! exclamou Carlos. Foi até o Cruges que me
disse... Quando chegou vossê?
chegara na véspera. La fora ao Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha
aos Olivais ver um dos Vargas que tinha casado, se instalara ali perto, a
passar o noivado...
- Quem, o gordo, o das corridas?
- Não, o magro, o das regatas.
Carlos, debruçado da almofada, examinava a éguasita do marquês,
pequena, bem estampada, dum baio escuro e bonito.
- Isso é novo?
- Uma facasita do Darque... Quer-ma vossê comprar? Sou já um pouco
pesado para ela, e isto mete-se a um dog-cart...
- Dê lá uma volta.
O marquês deu a volta, bem posto na sela, avantajando a égua. Carlos
achou-lhe «boas acções». Maria murmurou - «Muito bonita, uma cabeça
fina...» Então Carlos apresentou o marquês de Souzela a madame Mac-Gren.
Ele chegou a égua à roda, descoberto, para apertar a mão a Maria: e à espera
do Ega que se eternizava lá dentro, ficaram falando do verão, de Santa
Olavia, dos Olivais, da Toca... Há que tempos o marquês ali não passava! A
ultima vez fora vítima da excentricidade do Craft...
- Imagine V. Exc.ª, disse ele a Maria Eduarda, que esse Craft me convida
a almoçar. Venho, e o hortelão diz-me que o Sr. Craft, criado e cozinheiro,
tudo partira para o Porto; mas que o Sr. Craft deixara um cartaz na sala... Vou
à sala, e vejo dependurado ao pescoço dum ídolo japonês uma folha de papel
com estas palavras pouco mais ou menos: «O deus Tchi tem a honra de
convidar o Sr. marquês, em nome de seu amo ausente, a passar à sala de
jantar onde encontrará, num aparador, queijo e vinho, que é o almoço que
basta ao homem forte.» E foi com efeito o meu almoço... Para não estar só,
partilhei-o com o hortelão.
- Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo.
- Pode crer, minha senhora... Convidei-o a jantar, e quando ele apareceu,
vindo daqui da Toca, o meu guarda-portão disse-lhe que o Sr. marquês fora
para longe, e que não havia nem pão nem queijo... Resultado: o Craft
mandou-me uma dúzia de magníficas garrafas de Chambertin. Esse deus
Tchi nunca mais o tornei a ver...
O deus Tchi la estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos
convidou o marquês a revisitar nessa noite, à volta da casa do Vargas, o seu
velho amigo Tchi.
O marquês veio, ás dez horas - e foi um serão encantador. Conseguiu
sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o com mão de ferro para o
piano; Maria cantou; palrou-se com graça; e aquele esconderijo de amor ficou
alumiado até tarde, na sua primeira festa de amizade.
Estas reuniões alegres foram ao principio, como dizia o Ega, dominicais:
mas o outono arrefecia, bem depressa se despiriam as árvores da Toca, e
Carlos acumulou-as duas vezes por semana, nos velhos dias feriados da
Universidade, domingos e quintas. Tinha descoberto uma admirável
cozinheira alsaciana, educada nas grandes tradições, que servira o bispo de
Strasburgo, e a quem as extravagâncias dum filho e outras desgraças tinham
arrojado a Lisboa. Maria, de resto, punha na composição dos seus jantares
uma ciência delicada: o dia de vir à Toca era considerado pelo marquês «dia
de civilização».
A mesa resplandecia; e as tapeçarias representando massas de
arvoredos punham em redor como a sombra escura dum retiro silvestre onde
por um capricho se tivessem acendido candelabros de prata. Os vinhos saiam
da frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisas da terra e do céu se
grulhava com fantasia - menos de «política portuguesa», considerada
conversa indecorosa entre pessoas de gosto.
Rosa aparecia ao café, exalando do seu sorriso, dos bracinhos nús, dos
vestidos brancos tufados sobre as meias de seda preta, um bom aroma de flor.
O marquês adorava-a, disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria em
casamento e lhe andava compondo havia tempo um soneto. Ela preferia o
marquês: achava o Ega «muito...» - e completava o seu pensamento com um
gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega «era muito
retorcido».
- Aí está! exclamava ele. Porque eu sou mais civilizado que o outro! É a
simplicidade não compreendendo o requinte.
- Não, desgraçado! exclamavam do lado. É porque és impresso!... É a
natureza repelindo a convenção!...
Bebia-se à saúde de Maria: ela sorria, feliz entre os seus novos amigos,
divinamente bela, quasi sempre de escuro, com um curto decote onde
resplandecia o incomparável esplendor do seu colo.
Depois organizaram-se solenidades. Num domingo, em que os sinos
repicavam e a distância foguetes esfuziavam no ar - Ega lamentou que os
seus austeros princípios filosóficos o impedissem de festejar também aquele
santo de aldeia, que fora decerto em vida um caturra encantador, cheio de
ilusões e doçura... Mas de resto, acrescentou, não teria sido num dia assim,
fino e seco, sob um grande céu cheio de sol, que se feriu a batalha das
Termópilas? Porque não se atiraria uma girândola de foguetes em honra de
Leónidas e dos trezentos? E atirou-se a girândola pela eterna gloria de
Esparta.
Depois celebraram-se outras datas históricas. O aniversario da
descoberta da Vénus de Milo foi comemorado com um balão que ardeu.
Noutra ocasião o marquês trouxe de Lisboa, apinhados numa tipóia, fadistas
famosos, o Pintado, o Vira-vira e o Gago: e depois de jantar, até tarde, com o
luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de
Portugal.
Quando estavam sós, Carlos e Maria passavam as suas manhãs no
quiosque japonês - afeiçoados àquele primeiro retiro dos seus amores,
pequeno e apertado, onde os seus corações batiam mais perto um do outro.
Em lugar das esteiras de palha Carlos revestira-o com as suas formosas
colchas da Índia, cor de palha e cor de pérola. Um dos maiores cuidados dele,
agora, era embelezar a Toca: nunca voltava de Lisboa sem trazer alguma
figurinha de Saxe, um marfim, uma faiança, como noivo feliz que aperfeiçoa
o seu ninho.
Maria no entanto não cessava de lembrar os planos intelectuais do Ega:
queria que ele trabalhasse, ganhasse um nome: seria isso o orgulho íntimo
dela, e sobretudo a alegria suprema do avô. Para a contentar (mais que para
satisfazer as suas necessidades de espírito) Carlos recomeçara a compor
alguns dos seus artigos de medicina literária para a Gazeta Medica.
Trabalhava no quiosque, de manhã. Trouxera para lá rascunhos, livros, o seu
famoso manuscrito da Medicina antiga e moderna. E por fim achara um
grande encanto em estar ali, com um leve casaco de seda, as suas cigarretes
ao lado, um fresco murmúrio de arvoredo em redor - cinzelando as suas
frases, enquanto ela ao lado bordava silenciosa. As suas ideias surgiam com
mais originalidade, a sua forma ganhava em colorido, naquele estreito
quiosque acetinado que ela perfumava com a sua presença. Maria respeitava
este trabalho como coisa nobre e sagrada. De manhã, ela mesma espanejava
os livros do leve pó que a aragem soprava pela janela; dispunha o papel
branco, punha cuidadosamente penas novas; e andava bordando uma
almofada de penas e cetim para que o trabalhador estivesse mais confortável
na sua vasta cadeira de couro lavrado.
Um dia oferecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, entusiasmado
com a letra dela, quasi comparável à lendária letra do Dâmaso, ocupava-a
agora incessantemente como copista, sentindo mais amor por um trabalho a
que ela se associava. Quantos cuidados se dava a doce criatura! Tinha para
isso um papel especial, dum tom macio de marfim: e, com o dedinho no ar, ia
desenrolando as pesadas considerações de Carlos sobre o Vitalismo e o
Transformismo na graça delicada duma renda... Um beijo pagava-a de tudo.
As vezes Carlos dava lições a Rosa - ora de história, contando-lha
familiarmente como um conto de fadas; ora de geografia, interessando-a
pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm entre
as ruínas dos santuários. Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda,
cheia de religião, escutava aquele ser bem-amado ensinando sua filha.
Deixava escapar das mãos o trabalho - e o interesse de Carlos, a enlevada
atenção de Rosa sentada aos pés dele, bebendo aquelas belas histórias de
Joana d’Arc ou das caravelas que foram à Índia, fazia resplandecer nos seus
olhos uma névoa de lágrimas felizes...
Desde o meado de outubro Afonso da Maia falava da sua partida de
Santa Olavia, retardada apenas por algumas obras que começara na parte
velha da casa e nas cocheiras: porque ultimamente invadira-o a paixão de
edificar - sentindo-se remoçar, como ele dizia, no contacto das madeiras
novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam também em
abandonar os Olivais. Carlos não poderia por dever doméstico permanecer
ali instalado desde que o avô recolhesse ao Ramalhete. Além disso aquele fim
de outono ia escuro e agreste; e a Toca era agora pouco bucólica, com a quinta
desfolhada e alagada, uma névoa sobre o rio, e um fogão único no gabinete
de cretones - além da sumptuosa chaminé da sala de jantar, que, por entre os
seus Núbios de olhos de cristal, soltava uma fumaraça odiosa quando o
Domingos a tentava acender.
Numa dessas manhãs, Carlos, que ficara até tarde com Maria, e depois
no seu delgado casebre mal pudera dormir com um temporal de vento e água
desencadeado de madrugada - ergueu-se ás nove horas, veio à Toca. As
janelas do quarto de Maria conservavam-se ainda cerradas; a manhã clareara;
a quinta lavada, meio despida, no ar fino e azul, tinha uma linda e silenciosa
graça de inverno. Carlos passeava, olhando os vasos onde os crisântemos
floriam, quando retiniu a sineta do portão. Era o toque do carteiro.
Justamente ele escrevera dias antes ao Cruges, perguntando se estaria
desocupado para os primeiros frios de dezembro o andar da rua de S.
Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir, acompanhado por
Niniche. Mas o correio, nessa manhã, consistia apenas numa carta do Ega e
dois números de jornal cintados - um para ele, outro para «Madame Castro
Gomes, na quinta do Sr. Craft, aos Olivais».
Caminhando sob as acácias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da véspera,
com a data «á noite, à pressa». E dizia: «- Lê, nesse trapo que te «mando, esse
superior pedaço de prosa que lembra Tácito. Mas não te «assustes; eu
suprimi, mediante pecúnia, toda a tiragem, com excepção «de dois números
mais que foram, um para a Toca, outro (oh «lógica suprema dos hábitos
constitucionais!) para o Paço, para o chefe do «Estado!... Mas esse mesmo não
chegará ao seu destino. Em todo o caso «desconfio de que esgoto saiu esse
enxurro e precisamos providenciar! «Vem já! Espero-te até ás duas. E, como
Iago dizia a Cassio - mete dinheiro na bolsa.»
Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a Corneta do Diabo: e
na impressão, no papel, na abundancia dos itálicos, no tipo gasto, todo ele
revelava imundície e malandrice. Logo na primeira pagina duas cruzes a
lápis marcavam um artigo que Carlos, num relance, viu salpicado com o seu
nome. E leu isto: «- Ora viva, sô Maia! «Então já se não vai ao consultório,
nem se vêem os doentes do bairro, «sô janota? - Esta piada era botada no
Chiado, à porta da «Havaneza, ao Maia, ao Maia dos cavalos ingleses, um tal
Maia do «Ramalhete, que abarrota por aí de catita; e o pai Paulino que «tem
olho e que passava nessa ocasião ouviu a seguinte «cornetada: - É que o sô
Maia acha que é mais «quente viver nas fraldas duma brasileira casada, que
nem é «brasileira nem é casada, e a quem o papalvo pôs casa, aí para o lado
dos «Olivais, para estar ao fresco! Sempre os há neste mundo!... Pensa «o
homem que botou conquista; e cá a rapaziada de gosto ri-se, porque o «que a
gaja lhe quer não são os lindos olhos, são as lindas louras... «O simplório, que
bate aí pilecas bifes, que nem que fosse o «marquês, o verdadeiro Marquês,
imaginava que se estava «abiscoitando com uma senhora do chic, e do
boulevard de Paris, e «casada, e titular!... E no fim (não, esta é para a gente
deixar estoirar o «bandulho a rir!) no fim descobre-se que a tipa era uma
cocote «safada, que trouxe para aí um brasileiro já farto dela para a «passar
cá, aos belos lusitanos... E caiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! «Ainda
assim o sô Maia só apanhou os restos de outro, porque a «tipa já antes dele se
enfeitar, tinha pandegado à larga, «aí para a rua de S. Francisco com um
rapaz da fina, que se safou «também, porque cá como nós só aprecia a bela
espanhola. Mas «não obsta a que o sô Maia seja traste! - Pois se assim é,
dissemos «nós, cautelinha, porque o diabo cá tem a sua Corneta preparada
«para cornetear por esse mundo as façanhas do Maia das «conquistas. Ora
viva, sô Maia!»
Carlos ficou imóvel entre as acácias, com o jornal na mão, no espanto
furioso e mudo dum homem que subitamente recebe na face uma grossa
chapada de lodo! Não era a cólera de ver o seu amor assim aviltado na
publicidade chula dum jornal sórdido: era o horror de sentir aquelas frases
em calão, pandilhas, afadistadas, como só Lisboa as pode criar, pingando
fétidamente, à maneira de sebo, sobre si, sobre Maria, sobre o esplendor da
sua paixão... Sentia-se todo emporcalhado. E uma única ideia surgiu através
da sua confusão matar o bruto que escrevera aquilo.
Mata-lo! Ega sustara a tiragem da folha, Ega pois conhecia o foliculário.
Nada importava que aqueles números, que tinha na mão, fossem os únicos
impressos. Recebera lama na face. Que a injuria fosse espalhada nas praças
numa profusa publicidade ou lhe fosse atirada só a ele escondidamente num
papel único, era igual... Quem tanto ousara tinha de cair, esmagado!
Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos à janela da cozinha areava
pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe falou de ir buscar um
calhambeque aos Olivais, o bom Domingos consultou o relógio:
- V. Exc.ª tem às onze horas a caleche do Torto que a senhora mandou cá
estar para ir a Lisboa...
Carlos, com efeito, recordou-se que Maria na véspera planeara ir à Aline
e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente nesse dia em que ele precisava
ficar livre - ele e a sua bengala! Mas Melanie, passando então com um jarro de
água quente, disse que a senhora ainda se não vestira, que talvez nem fosse a
Lisboa... E Carlos recomeçou a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras.
Sentou-se por fim no banco de cortiça, descintou a Corneta
sobrescritada para Maria, releu lentamente a prosa imunda: e, nesse número
que lhe fora destinado a ela, todo aquele calão lhe pareceu mais ultrajante,
intolerável, punível só com sangue. Era monstruoso, na verdade, que sobre
uma mulher, quieta, inofensiva no silêncio da sua casa, alguém ousasse tão
brutalmente arremessar esse lodo ás mãos cheias! E a sua indignação
alargava-se do foliculário que babara aquilo - até à sociedade que, na sua
decomposição, produzira o foliculário. Decerto toda a cidade sofria a sua
vermina... Mas só Lisboa, só a horrível Lisboa, com o seu apodrecimento
moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio
profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calão, podia produzir uma
Corneta do Diabo.
E, no meio desta alta cólera de moralista, uma dor perpassava, precisa e
dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sórdido neste
canto do mundo - mas, em suma, havia no artigo da Corneta uma calunia?
Não. Era o passado de Maria, que ela arrancara de si como um vestido roto e
sujo, que ele mesmo enterrara muito fundo, deitando-lhe por cima o seu
amor e o seu nome - e que alguém desenterrava para o mostrar bem alto ao
sol, com as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora ameaçava para
sempre a sua vida como um terror sobre ela suspenso. Debalde ele perdoara,
debalde ele esquecera. O mundo em redor sabia. E a todo o tempo o interesse
ou a perversidade poderiam refazer o artigo da Corneta.
Ergueu-se, abalado. E então ali, sob essas árvores desfolhadas, onde
durante o verão, quando elas se enchiam de sombra e de murmúrio, ele
passeara com Maria, esposa eleita da sua vida - Carlos perguntou pela vez
primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos
homens de quem descendia, a dignidade dos homens que dele descendessem
lhe permitiam em verdade casar com ela...
Dedicar-lhe toda a sua afeição, toda a sua fortuna, certamente! Mas
casar... E se tivesse um filho? O seu filho, já homem, altivo e puro, poderia um
dia ler numa Corneta do Diabo que sua mãe fora amante dum brasileiro,
depois de ser amante dum irlandês. E se seu filho lhe viesse gritar, numa bela
indignação, «é uma calunia?» - ele teria de baixar a cabeça, murmurar - «é
uma verdade!» E seu filho veria para sempre colada a si aquela mãe de quem
o mundo ignorava os martírios e os encantos - mas de quem conhecia
cruelmente os erros.
E ela mesma! Se ele apelasse para a sua razão, alta e tão recta,
mostrando-lhe as zombarias e as afrontas de que uma vil Corneta do Diabo
poderia um dia trespassar o filho que deles nascesse - ela mesma o desligaria
alegremente do seu voto, contente em entrar no Ramalhete pela escadinha
secreta forrada de veludo cor de cereja, contanto que em cima a esperasse um
amor constante e forte... Nunca ela tornara, em todo o verão, a aludir a uma
união diferente dessa em que os seus corações viviam tão lealmente, tão
confortavelmente. Não, Maria não era uma devota, preocupada «do pecado
mortal»! Que lhe podia importar a estola banal do padre?...
Sim; mas ele que lhe pedira essa consagração na hora mais comovida do
seu longo amor, iria dizer-lhe agora - «foi uma criancice, não pensemos mais
nisso, desculpa?» Não; nem o seu coração o desejava! Antes pendia todo para
ela... Pendia todo para ela, num enternecimento mais generoso e mais quente
- enquanto a sua razão assim arengava, cautelosa e austera. Ele tinha naquela
alma o seu culto perfeito, naqueles braços a sua voluptuosidade magnífica;
fora dali não havia felicidade; a única sabedoria era prender-se a ela pelo
derradeiro elo, o mais forte, o seu nome, embora as Cornetas do Diabo
atroassem todo o ar. E assim afrontaria o mundo numa soberba revolta,
afirmando a omnipotência, o reino único da Paixão... Mas primeiro mataria o
foliculário! - Passeava, esmagava a relva. E todos os seus pensamentos se
resolviam por fim em fúria contra o infame que babara sobre o seu amor, e
durante um instante introduzia na sua vida tanta incerteza e tanto tormento!
Maria ao lado abriu a janela. Estava vestida de escuro para sair; e bastou
o brilho terno do seu sorriso, aqueles ombros a que o estofo justo modelava a
beleza cheia e quente - para que Carlos detestasse logo as dúvidas desleais e
covardes, a que se abandonara um momento sob as árvores desfolhadas...
Correu para ela. O beijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildade dum
perdão que se implora.
- Que tens tu, que estás tão sério?
Ele sorriu. Sério, no sentido de solene, não estava. Talvez secado.
Recebera uma carta do Ega, uma das eternas complicações do Ega. E
precisava ir a Lisboa, ficar lá naturalmente toda a noite...
- Toda a noite? exclamou ela com um desapontamento, pousando-lhe as
mãos sobre os ombros.
- Sim, é bem possível, um horror! Nos negócios do Ega há fatalmente o
inesperado... Tu com efeito vais a Lisboa?
- Agora, com mais razão... Se me queres.
- O dia esta bonito... Mas há de fazer frio na estrada.
Maria justamente gostava desses dias de inverno, cheios de sol, com um
arzinho vivo e arrepiado. Tornavam-na mais leve, mais esperta.
- Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almoço, minha
filha... O pobre Ega deve estar a uivar de impaciência.
Enquanto Maria correra a apressar o Domingos - Carlos, através da
relva húmida, foi ainda lentamente até ao renque baixo de arbustos que
daquele lado fechava a Toca como uma sebe. Aí a colina descia, com
quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chaminé de fabrica que
fumegava: para além era o azul fino e frio do rio: depois os montes, dum azul
mais carregado, com a casaria branca da povoação aninhada à beira da água,
nítida e suave na transparência do ar macio. Parou um momento, olhando. E
aquela aldeia de que nunca soubera o nome, tão quieta e feliz na luz, deu a
Carlos um desejo repentino de sossego e de obscuridade, num canto assim do
mundo, à beira de água, onde ninguém o conhecesse nem houvesse Cornetas
do Diabo, e ele pudesse ter a paz dum simples e dum pobre debaixo de
quatro telhas, no seio de quem amava...
Maria gritou por ele da janela da sala de jantar, onde se debruçara a
apanhar uma das ultimas rosas trepadeiras que ainda floriam.
- Que lindo tempo para viajar, Maria! - disse Carlos chegando, através
da relva.
- Lisboa é também muito linda, agora, havendo sol...
- Pois sim, mas o Chiado, a coscuvilhice, os politiquetes, as gazetas,
todos os horrores... A mim está-me positivamente a apetecer uma cubata na
África!
O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche
do Torto começou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite.
Logo adiante da vila, na descida, cruzaram um coupé que trepava num trote
esfalfado. Maria julgou avistar nele de relance o chapéu branco e o monóculo
do Ega... Pararam. E era com efeito o Ega, que reconhecera também a caleche
da Toca, vinha já saltitando as lamas com longas pernadas de cegonha,
chamando por Carlos.
Ao ver Maria ficou atrapalhado:
- Que bela surpresa! Eu ia para lá... Vi o dia tão bonito disse comigo...
- Bem, paga a tua tipóia, vem conosco! atalhou Carlos que trespassava o
Ega, com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo daquela brusca
chegada aos Olivais.
Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraçado,
sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso da Corneta, começou, sob
os olhos de Carlos que o não deixavam, a falar do inverno, das inundações do
Riba-Tejo... Maria lera. Uma desgraça, duas crianças afogadas nos berços,
gados perdidos, uma grande miséria! Por fim Carlos não se conteve:
- Eu lá recebi a tua carta...
Ega acudiu:
- Arranja-se tudo! Está tudo combinado! E com efeito eu não vim senão
por um sentimento bucólico...
Muito discretamente Maria olhara para o rio. Ega fez então um gesto
rápido com os dedos significando «dinheiro, só questão de dinheiro». Carlos
sossegou: e Ega voltou a falar dos inundados do Riba-Tejo e do sarau literário
e artístico que em beneficio deles se «ia cometer» no salão da Trindade... Era
uma vasta solenidade oficial. Tenores do parlamento, rouxinóis da literatura,
pianistas ornados com o habito de S. Tiago, todo o pessoal canoro e
sentimental do constitucionalismo ia entrar em fogo. Os reis assistiam, já se
teciam grinaldas de camélias para pendurar na sala. Ele, apesar de
demagogo, fora convidado para ler um episódio das Memórias dum Átomo:
recusara-se, por modéstia, por não encontrar nas Memórias nada tão
suficientemente palerma que agradasse à capital. Mas lembrara o Cruges; e o
maestro ia ribombar ou arrulhar uma das suas Meditações. Além disso havia
uma poesia social pelo Alencar. Enfim, tudo prenunciava uma imensa orgia...
- E a Sr.ª D. Maria, acrescentou ele, devia ir!... É sumamente pitoresco.
Tinha V. Exc.ª ocasião de ver todo o Portugal romântico e liberal, à la besogne,
engravatado de branco, dando tudo que tem na alma!
- Com efeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges
toca, se o Alencar recita, é uma festa nossa...
- Pois está claro! gritou Ega, procurando o monóculo, já excitado. Há
duas coisas que é necessário ver em Lisboa... Uma procissão do Senhor dos
Passos e um sarau poético!
Rolavam então pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que
parasse no começo da rua do Alecrim: eles apeavam-se e tomavam de lá o
Americano para o Ramalhete.
Mas a tipóia estacou antes da calçada, rente ao passeio, em frente duma
loja de alfaiate. E nesse instante achava-se aí parado, calçando as suas luvas
pretas, um velho alto, de longas barbas de apóstolo, todo vestido de luto. Ao
ver Maria, que se inclinara à portinhola, o homem pareceu assombrado;
depois, com uma leve cor na face larga e pálida, fitou gravemente o chapéu,
um imenso chapéu de abas recurvas, à moda de 1830, carregado de crepe.
- Quem é? perguntou Carlos.
- É o tio do Dâmaso, o Guimarães, disse Maria, que corara também. É,
curioso, ele aqui!
Ah, sim! o famoso Mr. Guimarães, o do Rapel, o íntimo de Gambeta!
Carlos recordava-se de ter já encontrado aquele patriarca no Price com o
Alencar. Cumprimentou-o também; o outro ergueu de novo com uma
gravidade maior o seu sombrio chapéu de carbonário. Ega entalara
vivamente o monóculo para examinar esse lendário tio do Dâmaso, que
ajudava a governar a França: e depois de se despedirem de Maria, quando a
caleche já subia a rua do Alecrim e eles atravessavam para o Hotel Central,
ainda se voltou seduzido por aqueles modos, aquelas barbas austeras de
revolucionário...
- Bom tipo! E que magnífico chapéu, hein! Donde diabo o conhece a Sr.ª
D. Maria?
- De Paris... Este Mr. Guimarães era muito da mãe dela. A Maria já me
tinha falado nele. É um pobre diabo. Nem amigo de Gambeta, nem coisa
nenhuma... Traduz noticias dos jornais espanhóis para o Rapel, e morre de
fome...
- Mas então, o Dâmaso?
- O Dâmaso é um trapalhão. Vamos nós ao nosso caso... Essa imundície
que me mandaste, a Corneta Dize lá.
Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a história da imundície. Fora
na véspera à tarde que recebera no Ramalhete a Corneta?. Ele já conhecia o
papelucho, já privara mesmo com o proprietário e redactor - o Palma,
chamado Palma Cavalão para se distinguir de outro benemérito chamado
Palma Cavalinho. Compreendeu logo que se a prosa era do Palma a
inspiração era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da
casa da rua de S. Francisco, nem da Toca... Não era natural que escrevesse por
deleite intelectual um documento que só lhe podia render desgostos e
bengaladas. O artigo, pois, fora-lhe simplesmente encomendado e pago. No
terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por este sólido
principio correra a procurar o Palma Cavalão no seu antro.
- Também lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.
Tanto não... Fui perguntar à secretaria da Justiça a um sujeito que esteve
associado com ele num negócio de Almanaques religiosos...
Fora pois ao antro. E encontrara as coisas dispostas pelas mãos hábeis
duma Providencia amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis
números, a máquina, esfalfada na pratica daquelas maroteiras, desmanchara-
se. Além disso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe
encomendara o artigo, por divergência na seriissima questão de pecúnia. De
sorte que apenas ele propôs comprar a tiragem do jornal - o jornalista
estendeu logo a mão larga, de unhas roídas, tremendo de reconhecimento e
de esperança. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais dez...
- É caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, não
regateei bastante... E enquanto a dizer quem é o cavalheiro que encomendou
o artigo, o Palma, coitado, afirma que tem uma rapariga espanhola a
sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, que Lisboa está
caríssima, que a literatura neste desgraçado país...
- Quanto quer ele?
- Cem mil reis. Mas, ameaçando-o com a polícia, talvez desça a
quarenta.
- Promete os cem, promete tudo, contanto que eu tenha o nome... Quem
te parece que seja?
Ega encolheu os ombros, deu um risco lento no chão com a bengala. E
mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador da Corneta devia
ser alguém familiar com Castro Gomes; alguém frequentador da rua de S.
Francisco; alguém conhecedor da Toca; alguém que tinha, por ciúme ou
vingança, um desejo ferrenho de magoar Carlos; alguém que sabia a história
de Maria; e enfim alguém que era um covarde...
- Estás a descrever o Dâmaso! exclamou Carlos, pálido e parando.
Ega encolheu de novo os ombros, tornou a riscar o chão:
- Talvez não... Quem sabe! Enfim, nós vamos averigua-lo com certeza,
porque, para terminar a negociação, fiquei de me ir encontrar com o Palma ás
três horas no Lisbonense... E o melhor é vires também. Trazes tu dinheiro?
- Se for o Dâmaso, mato-o! murmurou Carlos.
E não trazia suficiente dinheiro. Tomaram uma tipóia para correr ao
escritório do Vilaça. O procurador fora a Mafra, a um baptizado. Carlos teve
de ir pedir cem mil reis ao velho Cortez, alfaiate do avô. Quando perto das
quatro horas se apearam à entrada do Lisbonense, no largo de Santa Justa, o
Palma no portal, com um jaquetão de veludo coçado e calça de casimira clara
colado à coxa, acendia um cigarro. Estendeu logo rasgadamente a mão a
Carlos - que lhe não tocou. E Palma Cavalão, sem se ofender, com a mão
abandonada no ar, declarou que ia justamente sair, cansado já de esperar em
cima diante dum grog frio. De resto sentia que o Sr. Maia se incomodasse em
vir ali...
- Eu arranjava cá o negociosinho com o amigo Ega... Em todo o caso, se
os senhores querem, vamos lá para cima para um gabinete, que se está mais à
vontade, e toma-se outra bebida.
Subindo a escada lôbrega, Carlos recordava-se de ter já visto aquela
luneta de vidros grossos, aquela cara balofa cor de cidra... Sim, fora em
Sintra, com o Euzebiosinho e duas espanholas, nesse dia em que ele farejara
pelas estradas silenciosas, como um cão abandonado, procurando Maria!...
Isto tornou-lhe mais odioso o Sr. Palma. Em cima entraram num cubículo,
com uma janela gradeada por onde resvalava uma luz suja de saguão. Na
toalha da mesa, salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um
galheteiro que tinha moscas no azeite. O Sr. Palma bateu as palmas, mandou
vir genebra. Depois dando um grande puxão ás calças:
- Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu já disse cá
ao amigo Ega, em todo este negócio...
Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da
bengala na borda da mesa.
- Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o Sr. Palma por me dizer
quem lhe encomendou o artigo da Corneta?
- Dizer quem o encomendou, e prova-lo! acudiu o Ega, que examinava
na parede uma gravura onde havia mulheres nuas à beira de água. Não nos
basta o nome... O amigo Palma, está claro, é de toda a confiança... Mas enfim,
que diabo, não é natural que nós acreditássemos se o amigo nos dissesse que
tinha sido o Sr. D. Luís de Bragança!
Palma encolheu os ombros. Está visto que havia de dar provas. Ele
podia ter outros defeitos, trapalhão não! Em negócios era todo franqueza e
lisura... E, se se entendessem, ali as entregava logo, essas provas que lhe
estavam enchendo o bolsinho, pimponas e de escachar! Tinha a carta do
amigo que lhe encomendara a piada: a lista das pessoas a quem se devia
mandar a Corneta: o rascunho do artigo a lápis...
- Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos.
O Palma ficou um momento indeciso, ajeitando as lunetas com os dedos
moles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: e então o redactor da
Corneta ofereceu a «bebida» rasgadamente, puxou mesmo cadeiras para
aqueles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram - Carlos de pé junto da
mesa onde terminara por pousar a bengala, Ega passando a outra gravura
onde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado saiu, Ega
acercou-se, tocou com bonomia no ombro do jornalista:
- Cem mil reis são uma linda soma, Palma amigo! E olhe que se lhe
oferecem por delicadeza consigo. Porque artiguinhos como este da Corneta
apresentados na Boa-Hora, levam à grilheta!... Está claro, este caso é outro,
vossê não teve intenção de ofender; mas levam à grilheta!... Foi assim que o
Severino marchou para a África. Ali no porãosinho dum navio, com ração de
marujo e chibatadas. Desagradável, muito desagradável. Por isso eu quis que
tratássemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.
Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de açúcar dentro do copo de
genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era por ser
entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil reis...
Imediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um punhado de
libras, que começou a deixar cair em silêncio uma a uma dentro dum prato. E
Palma Cavalão, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetão,
sacou uma carteira onde reluzia um pesado monograma de prata sob uma
enorme coroa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou,
estendeu três papéis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o monóculo
sôfrego, teve um brado de triunfo. Reconhecera a letra do Dâmaso!
Carlos examinou os papéis lentamente. Era uma carta do Dâmaso ao
Palma, curta e em calão, remetendo o artigo, recomendando-lhe «que o
apimentasse». Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo
Dâmaso, com entrelinhas. Era a lista, escrita pelo Dâmaso, das pessoas que
deviam receber a Corneta: vinha lá a Gouvarinho, o ministro do Brasil, D.
Maria da Cunha, El-Rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, varias
autoridades, e a Fanceli prima-dona...
Palma no entanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao
prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear
os olhos aos documentos por cima do ombro de Carlos:
- Recolha o bago, amigo Palma! Negócios são negócios, e o baguinho
está aí a arrefecer!
Então, ao palpar o ouro, Palma Cavalão comoveu-se. Palavra, caramba,
se soubesse que se tratava dum cavalheiro como o Sr. Maia não tinha aceitado
o artigo! Mas então!... Fora o Euzébio Silveira, rapaz amigo, que lhe viera
falar. Depois o Salcede. E ambos com muitas lérias, e que era uma
brincadeira, e que o Maia não se importava, e isto e aquilo, e muita
promessa... Enfim deixara-se tentar. E tanto o Salcede como o Silveira se
tinham portado pulhamente.
- Foi uma sorte que se escangalhasse a máquina! Senão estava agora
entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba, tinha desgosto! Mas
acabou-se! O mal não foi grande, e sempre se fez alguma coisa pela porca da
vida.
Vivamente, com um olhar, recontara o dinheiro na palma da mão:
depois esvaziou a genebra, dum trago consolado e ruidoso. Carlos guardara
as cartas do Dâmaso, levantava já o fecho da porta. Mas voltou-se ainda,
numa derradeira averiguação:
- Então esse meu amigo Euzébio Silveira também se meteu no
negócio?...
O Sr. Palma, muito lealmente, afiançou que o Euzébio lhe falara apenas
em nome do Dâmaso!
- O Euzébio, coitado, veio só como embaixador... Que o Dâmaso e eu
não vamos muito na mesma bola. Ficámos esquisitos, desde uma pega em
casa da Biscainha. Aqui para nós, eu prometi-lhe dois estalos na cara, e ele
embuchou. Passados tempos tornámos a falar, quando eu fazia o High-life na
Verdade. Ele veio-me pedir com bons modos, em nome do conde de Landim,
para eu dar umas piadas catitas sobre um baile de anos... Depois, quando o
Dâmaso fez também anos, eu dei outra piadita. Ele pagou a ceia, ficámos
mais calhados... Mas é traste... E lá o Euzebiosinho, coitado, veio só de
embaixador.
Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas,
deixou o cubículo. O redactor da Corneta ainda baixou a cabeça para a porta;
depois, sem se ofender, voltou alegremente à genebra, dando outro puxão ás
calças. Ega no entanto acendia devagar o charuto.
- Vossê agora é que redige o jornal todo, Palma?
- O Silvestre, também...
- Que Silvestre?
- O que está com a Pingada. Vossê não conhece, creio eu. Um rapazola
magro, que não é feio... Sensaborão, escreve uma palhada... Mas sabe coisas
da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de Gabelas, que ele chama
a sua cabeluda... Que o Silvestre ás vezes tem graça! E sabe, sabe coisas da
sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices... Vossê nunca
leu nada dele? Chocho. Tenho sempre de lhe arranjar o estilo... Neste número
é que havia um folhetinzito meu, catita, cá à moderna, como eu gosto, ali com
a piadinha realista a bater... Enfim fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe
que lhe agradeço. Quando quiser, eu e a Corneta ás ordens!
Ega estendeu-lhe a mão:
- Obrigado, digno Palma! E adiós!
- Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemérito
homem com infinito salero.
Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.
- E agora? perguntou Ega, à portinhola.
- Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Dâmaso...
Carlos já esboçara sumariamente o plano dessa liquidação. Queria
mandar desafiar o Dâmaso como autor comprovado dum artigo de jornal
que o injuriava. O duelo devia ser à espada ou ao florete, um desses ferros
cujo lampejo, na sala de armas do Ramalhete, fazia empalidecer o Dâmaso. Se
contra toda a verosimilhança ele se batesse, Carlos fazia-lhe algures, entre a
bochecha e o ventre, um furo que o cravasse meses na cama. Senão a única
explicação que Carlos aceitaria do Sr. Salcede seria um documento em que ele
escrevesse esta coisa simples: «Eu abaixo assinado declaro que sou um
infame.» E para estes serviços Carlos contava com o Ega.
- Agradeço! agradeço! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando as
mãos, faiscando de jubilo.
No entanto, dizia ele, a etiqueta fúnebre reclamava outro padrinho; e
lembrou o Cruges, moço passivo e maleável. Mas era impossível encontrar o
maestro, porque invariavelmente a criada afirmava que o menino Victorino
não estava em casa... Decidiram ir ao Grémio, mandar de lá um bilhete
chamando o Cruges - «para um caso urgente de amizade e de arte».
- Com quê, dizia o Ega continuando a esfregar as mãos enquanto a
tipóia trotava para a rua de S. Francisco, com quê, demolir o nosso Dâmaso?
- Sim, é necessário acabar com esta perseguição. Chega a ser ridículo... E
com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por algum
tempo. Eu preferia a estocada. Senão deixo-te a ti arranjar os termos duma
carta forte...
- Hás de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.
No Grémio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar
por ele na sala das Ilustrações. O conde de Gouvarinho e Steinbroken
conversavam de pé, no vão duma janela. E foi uma surpresa. O ministro da
Finlândia abriu os braços para o cher Maia, que ele não vira desde a partida
de Afonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente,
reatando uma certa camaradagem que entre eles se formara nesse verão, em
Sintra: mas o aperto de mão a Carlos foi seco e curto. Já dias antes, tendo-se
encontrado no Loreto, o Gouvarinho murmurara de leve e de passagem «um
como está, Maia?» em que se sentia arrefecimento. Ah! já não eram essas
efusões, essas palmadas enternecidas pelos ombros, dos tempos em que
Carlos e a condessa fumavam cigarretes na cama da titi em Santa Isabel.
Agora que Carlos abandonara a Sr.ª condessa de Gouvarinho, a rua de S.
Marçal e o cómodo sofá em que ela caia com um rumor de saias amarrotadas
- o marido amuava, como abandonado também.
- Tenho tido saudade das nossas belas discussões em Sintra! disse ele,
dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outrora pertencia ao Maia.
Tivemo-las de primeira ordem!
Eram realmente «pegas tremendas» no pátio do Victor sobre literatura,
sobre religião, sobre moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por causa
da divindade de Jesus.
- É verdade! acudiu o Ega. Vossê nessa noite parecia ter ás costas uma
opa de irmão do Senhor dos Passos!
O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos não, graças a Deus!
Ninguém melhor do que ele sabia que nesses sublimes episódios do
Evangelho reinava bastante lenda... Mas enfim eram lendas que serviam para
consolar a alma humana. É o que ele objectara nessa noite ao amigo Ega...
Sentiam-se a filosofia e o racionalismo capazes de consolar a mãe que chora?
Não. Então...
-Em todo o caso, tivemo-las brilhantes! concluiu ele olhando o relógio.
E, eu confesso, uma discussão elevada sobre religião, sobre metafísica,
encanta-me... Se a política me deixasse vagares dedicava-me à filosofia...
Nasci para isso, para aprofundar problemas.
Steinbroken no entanto, esticado na sua sobre-casaca azul, com um
raminho de alecrim ao peito, tomara as mãos de Carlos:
- Mais vous êtes encore devenu plus fort!... Et Afonso da Maia, toujours
dans ses terres?... Est-ce qu’on ne va pas le voir un peu cet hiver?
E imediatamente lamentou não ter visitado Santa Olavia. Mas quê! a
família real instalara-se em Sintra; ele fora forçado a acompanha-la, fazer a
sua corte... Depois necessitara ir de fugida a Inglaterra de onde acabava de
chegar, havia dias.
Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Ilustrada...
- Vous avez lu ça? Oh oui, on a été très aimable, très aimable pour moi à
la Gazete...
Tinham-lhe anunciado a partida, depois a chegada, com palavras de
amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta
afeição sincera que liga Portugal e a Finlândia... «Mais enfin on avait été
charmant, charmant!...»
- Seulement- ajuntou ele, sorrindo com finura e voltando-se também
para o Gouvarinho - on a fait une petite erreur... On a dit que j’étais venu de
Southampton par le Royal Mail... Ce n’est pas vrai, non! Je me suis embarqué
à Bordeaux dans les Messageries. J’ai même pensé à écrire à Mr. Pinto,
redacteur de la Gazete, qui est un charmant garçon... Puis, j’ai reflechi, je me
suis dit: «Mon Dieu, on va croire que je veux doner une leçon de exactitude à
la Gazete c’est très grave...» Alors, voilà, très prudement, j’ai gardé le
silence... Mais enfin c’est une erreur: je me suis embarqué à Bordeaux.
Ega murmurou que a História se encarregaria um dia de rectificar esse
facto. O ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia
desejar, por polidez, que a História se não incomodasse. E então o
Gouvarinho, que acendera o charuto, espreitara outra vez o relógio,
perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do ministério e da crise.
Foi uma surpresa para ambos, que não tinham lido os jornais... Mas,
exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em pleno remanso, com as câmaras
fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo de outono?
O Gouvarinho encolheu os ombros com reserva. Houvera na véspera, à
noitinha, uma reunião de ministros; nessa manhã o presidente do conselho
fora ao paço, fardado, determinado a «largar o poder»... Não sabia mais. Não
conferenciara com os seus amigos, nem mesmo fora ao seu Centro. Como
noutras ocasiões de crise, conservara-se retirado, calado, esperando... Ali
estivera toda a manhã, com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.
Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriótica...
- Porque enfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...
- Exactamente por isso, acudiu o conde com uma cor viva na face, não
desejo pôr-me em evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o
ter... Se a minha experiência, a minha palavra, o meu nome são necessários,
os meus correligionários sabem onde eu estou, venham pedir-mos...
Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante
estas coisas políticas, começou logo a retrair-se para o fundo da janela,
limpando os vidros da luneta, recolhido, já impenetrável, no grande recato
neutral que competia à Finlândia. Ega no entanto não saia do seu espanto.
Mas porque caia, porque caia assim um governo com maioria nas câmaras,
sossego no país, o apoio do exercito, a benção da Igreja, a protecção do
Comptoir d’Escompte?...
O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pêra, e murmurou esta
razão:
- O ministério estava gasto.
- Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo.
O conde hesitou. Como uma vela de sebo não diria... Sebo subentendia
obtusidade... Ora neste ministério sobrava o talento. Incontestavelmente
havia lá talentos pujantes...
- Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao ar. É extraordinário!
Neste abençoado país todos os políticos têm imenso talento. A oposição
confessa sempre que os ministros, que ela cobre de injurias, têm, à parte os
disparates que fazem, um talento de primeira ordem! Por outro lado a
maioria admite que a oposição, a quem ela constantemente recrimina pelos
disparates que fez, está cheia de robustíssimos talentos! De resto todo o
mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta portanto este facto
supra-cómico: um país governado com imenso talento, que é de todos na
Europa, segundo o consenso unânime, o mais estupidamente governado! Eu
proponho isto, a ver: que como os talentos sempre falham, se experimentem
uma vez os imbecis!
O conde sorria com bonomia e superioridade a estes exageros de
fantasista. E Carlos, ansioso por ser amável, atalhou, acendendo o charuto no
dele:
- Que pasta preferiria você, Gouvarinho, se os seus amigos subissem? A
dos Estrangeiros, está claro...
O conde fez um largo gesto de abnegação. Era pouco natural que os
seus amigos necessitassem da sua experiência política. Ele tornara-se
sobretudo um homem de estudo e de teoria. Além disso não sabia bem se as
ocupações da sua casa, a sua saúde, os seus hábitos lhe permitiriam tomar o
fardo do governo. Em todo o caso, decerto, a pasta dos Estrangeiros não o
tentava...
- Essa, nunca! prosseguiu ele, muito compenetrado. Para se poder falar
de alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, é necessário ter por traz
um exercito de duzentos mil homens e uma esquadra com torpedos. Nós,
infelizmente, somos fracos... E eu, para papéis subalternos, para que venha
um Bismarck, um Gladstone, dizer-me «há de ser assim», não estou!... Pois
não acha, Steinbroken?
O ministro tossiu, balbuciou:
- Certainement... C’est très grave... C’est excessivement grave...
Ega então afirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interesse
geográfico pela África, faria um ministro da Marinha iniciador, original,
rasgado...
Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.
- Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias todas as
coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos;
deu-se-lhes já uma suficiente noção da moral cristã; organizaram-se já os
serviços aduaneiros... Enfim o melhor está feito. Em todo o caso há ainda
detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto
apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso soa dar. Em
Luanda precisava-se bem um teatro normal como elemento civilizador!
Nesse momento um criado veio anunciar a Carlos - que o Sr. Cruges
estava em baixo, no portal, à espera. Imediatamente os dois amigos
desceram.
- Extraordinário, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada.
- E este, observou Carlos com um imenso desdém de mundano, é um
dos melhores que há na política. Pensando mesmo bem, e metendo a roupa
branca em linha de conta, este é talvez o melhor.
Acharam o Cruges à porta, de jaquetão claro, embrulhando um cigarro.
E Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa vestir uma sobrecasaca preta. O
maestro arregalava os olhos.
- É jantar?
- É enterro.
E rapidamente, sem aludir a Maria, contaram ao maestro que o Dâmaso
publicara num jornal, a Corneta do Diabo (cuja tiragem eles tinham
suprimido, não sendo possível por isso mostrar o número imundo) um artigo
em que a coisa mais doce que se chamava a Carlos era pulha. Portanto Ega e
ele Cruges iam a casa do Dâmaso pedir-lhe a honra ou a vida.
- Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?... Que eu dessas coisas
não entendo.
- Tens, explicou Ega, de ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o
sobrolho. Depois vir comigo; não dizer nada; tratar o Dâmaso por «V. Exc.ª»;
assentar em tudo o que eu propuser; e nunca desfranzir o sobrolho nem
despir a sobrecasaca...
Sem outra observação, Cruges partiu a cobrir-se de cerimónia e de
negro. Mas no meio da rua retrocedeu:
- Ó Carlos, olha que eu falei lá em casa. Os quartos do primeiro andar
estão livres, e forrados de papel novo...
- Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!... O maestro abalara, quando
diante do Grémio estacou a todo o trote uma caleche. De dentro saltou o Teles
da Gama que, ainda com a mão no fecho da portinhola, gritou aos dois
amigos:
- O Gouvarinho? está lá em cima?
- Está... Novidade fresca?
- Os homens caíram. Foi chamado o Sá Nunes!
E enfiou pelo pátio, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar até ao
portão do Cruges. As janelas do primeiro andar estavam abertas, sem
cortinas. Carlos, erguendo para lá os olhos, pensava nessa tarde das corridas
em que ele viera no faeton, de Belém, para ver aquelas janelas: ia então
escurecendo, por traz dos stores fechados surgira uma luz, ele contemplara-a
como uma estrela inacessível... Como tudo passa!
Retrocederam para o Grémio. Justamente o Gouvarinho e Teles
atiravam-se à pressa para dentro da caleche que esperara. Ega parou, deixou
cair os braços:
- Lá vai o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a
Dama das Camélias no sertão! Deus se amerceie de nós!
Mas o Cruges apareceu enfim de chapéu alto, entalado numa
sobrecasaca solene, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na tipóia
estreita e dura. Carlos ia leva-los a casa do Dâmaso. E como queria ainda
jantar nos Olivais, esperaria por eles, para saber o resultado «do chinfrin», no
jardim da Estrela, junto ao coreto.
- Sede rápidos e medonhos!
A casa do Dâmaso, velha e dum andar só tinha um enorme portão
verde, com um arame pendente que fez ressoar dentro uma sineta triste de
convento e os dois amigos esperaram muito antes que aparecesse, arrastando
as chinelas, o galego achavascado que o Dâmaso (agora livre de Carlos e das
suas pompas) já não trazia torturado em botins cruéis de verniz. A um canto
do pátio uma portinha abria sobre a luz dum quintal, que parecia ser um
deposito de caixotes, de garrafas vazias e de lixo.
O galego, que reconhecera o Sr. Ega, conduziu-os logo, por uma
escadinha esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a mofo. Depois,
batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade duma porta
entreaberta. Quasi imediatamente Dâmaso gritou de lá:
- Ó Ega, é você? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Eu estou-me a
vestir...
Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta efusão, Ega ergueu
a voz da sombra do corredor, gravemente:
- Não tem dúvida, nós esperamos...
O Dâmaso insistia, à porta, em mangas de camisa, cruzando os
suspensórios:
- Venha você, homem! Que diabo, eu não tenho vergonha, já estou de
calças!
- Há aqui uma pessoa de cerimónia, gritou o Ega para findar.
A porta ao fundo cerrou-se, o galego veio abrir a sala. O tapete era
exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor
abundavam os vestígios da antiga amizade com o Maia: o retrato de Carlos a
cavalo, num vistoso caixilho de flores em faiança: uma das colchas da Índia
das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano, arranjada por
Carlos com alfinetes: e sobre um contador espanhol, debaixo de redoma, um
sapatinho de cetim de mulher, novo, que o Dâmaso comprara no Serra, por
ter ouvido um dia a Carlos que «em todo o quarto de rapaz deve aparecer,
discretamente disposta, alguma relíquia de amor...»
Sob estes retoques de chic, dados à pressa sob a influência do Maia,
impertigava-se a sólida mobília do pai Salcede, de mogno e veludo azul; a
console de mármore, com um relógio de bronze dourado, onde Diana
acariciava um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no
caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de convites
para soirées. E Cruges ia examinar estes documentos, quando os passos
alegres do Dâmaso soaram no corredor. O maestro correu logo a perfilar-se
ao lado do Ega, diante do canapé de veludo, teso, cómodo, com o seu chapéu
alto na mão.
Ao vê-lo, o bom Dâmaso, que se abotoara todo numa sobrecasaca azul,
florida por um botão de camélia, atirou risonhamente os braços ao ar:
- Então esta é que é a pessoa de cerimónia? Sempre vocês têm coisas! E
eu a pôr sobrecasaca... Por pouco que não lhe afinfo com o habito de Cristo!...
Ega atalhou, muito sério:
- O Cruges não é de cerimónia, mas o motivo que aqui nos traz é
delicado e grave, Dâmaso.
Dâmaso arregalou os olhos, reparando enfim naquele estranho modo
dos seus amigos, ambos de negro, secos, tão solenes. E recuou, todo o sorriso
se lhe apagou na face.
- Que diabo é isso? Sentem-se, sentem-se vocês...
A voz apagava-se-lhe também. Pousado à borda duma poltrona baixa,
junto duma mesa coberta de encadernações ricas, com as mãos nos joelhos,
ficou esperando, numa ansiedade.
- Nós vimos aqui, começou Ega, em nome do nosso amigo Carlos da
Maia...
Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Dâmaso até à
risca do cabelo encaracolado a ferro. E não achou uma palavra, atónito,
sufocado, esfregando estupidamente os joelhos.
Ega prosseguiu, lento, direito no canapé:
- O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Dâmaso publicou,
ou fez publicar, um artigo extremamente injurioso para ele e para uma
senhora das relações dele na Corneta do Diabo...
- Na Corneta, eu? acudiu o Dâmaso, balbuciando. Que Corneta? Nunca
escrevi em jornais, graças a Deus! Ora essa, a Corneta!...
Ega, muito friamente, tirou do bolso um maço de papéis. E veio coloca-
los um por um, ao lado do Dâmaso, na mesa, sobre um magnífico volume da
Bíblia de Doré.
- Aqui está a sua carta remetendo ao Palma Cavalão o rascunho do
artigo... Aqui está, pela sua letra igualmente, a lista das pessoas a quem se
devia mandar a Corneta, desde o Rei até à Fanceli... Além disso nós temos as
declarações do Palma. O Dâmaso é não só o inspirador, mas materialmente o
autor do artigo... O nosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado,
uma reparação pelas armas...
Dâmaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado - que
involuntariamente Ega recuou, no receio duma brutalidade. Mas já o Dâmaso
estava no meio da sala, esgazeado, com os braços trémulos no ar:
- Então o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz eu? Ele a
mim é que me pregou uma partida!... Foi ele, vocês sabem perfeitamente que
foi ele!...
E desabafou, num prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas
ao peito, com os olhos marejados de lágrimas. Fora Carlos, Carlos, que o
desfeitiara a ele, mortalmente! Durante todo o inverno tinha-o perseguido
para que ele o apresentasse a uma senhora brasileira muito chic, que vivia em
Paris, e que lhe fazia olho... E ele, bondoso como era, prometia, dizia: «Deixa
estar, eu te apresento!» Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma ocasião
sagrada, um momento de luto, quando ele Dâmaso fora ao Norte por causa
da morte do tio, e mete-se dentro da casa da brasileira... E tanto intriga, que
leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta, a ele, Dâmaso, que era íntimo
do marido, íntimo de tu! Caramba, ele que devia mandar desafiar Carlos!
Mas não! fora prudente, evitara o escândalo por causa do Sr. Afonso da
Maia... Queixara-se de Carlos, é verdade... Mas no Grémio, na Casa
Havaneza, entre rapaziada amiga... E no fim Carlos prega-lhe uma destas!
- Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!...
Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placidamente
que se desviavam do ponto vivo da questão. O Dâmaso concebera,
rascunhara, pagara o artigo da Corneta. Isso não o negava, nem o podia
negar: as provas estavam ali, abertas sobre a mesa: eles tinham além disso a
declaração do Palma...
- Esse desavergonhado! gritou o Dâmaso, levado noutra rajada de
indignação que o fez redemoinhar, estonteado, tropeçando nos móveis. Esse
descarado do Palma! Com esse é que eu me quero ver!... Lá a questão com o
Carlos não vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com o Palma é
que é! Esse traidor é que eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado
ás meias libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipóias! Um ladrão que pediu o
relógio ao Zeferino para figurar num baptizado, e pô-lo no prego!... E faz-me
uma destas!... Mas hei de escavaca-lo! Onde é que você o viu, Ega? Diga lá,
homem! Que quero ir procura-lo, hoje mesmo, corre-lo a chicotadas...
Traições não, não admito a ninguém!
Ega, com a tranquilidade paciente de quem sente a presa certa, lembrou
de novo a inutilidade daquelas divagações:
- Assim nunca acabamos, Dâmaso... O nosso ponto é este: o Dâmaso
injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente dessa injuria, ou dá uma
reparação pelas armas...
Mas o Dâmaso, sem escutar, apelava desesperadamente para o Cruges,
que se não movera do sofá de veludo, esfregando, um contra o outro, com
um ar arrepiado e de dor, os dois sapatos novos de verniz.
- Aquele Carlos! Um homem que se dizia meu amigo íntimo! Um
homem que fazia de mim tudo! Até lhe copiava coisas... Você bem viu,
Cruges. Diga! Fale, homem! Não sejam vocês todos contra mim!... Até ás
vezes ia à alfândega despachar-lhe caixotes...
O maestro baixava os olhos, vermelho, num infinito mal-estar. E Ega,
por fim, já farto, lançou uma intimação derradeira:
- Em resumo, Dâmaso, desdiz-se ou bate-se?
- Desdizer-me? tartamudeou o outro, empertigando-se, num penoso
esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou lá
homem que me desdiga!
- Perfeitamente, então bate-se...
Dâmaso cambaleou para traz, desvairado:
- Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu cá é a soco. Que
venha para cá, não tenho medo dele, arrombo-o...
Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos
fechados e em riste. E queria Carlos ali para o escavacar! Não lhe faltava mais
senão bater-se... E então duelos em Portugal, que acabavam sempre por troça!
Ega no entanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoara a
sobrecasaca e recolhia os papéis espalhados sobre a Bíblia. Depois,
serenamente, fez a ultima declaração de que fora incumbido. Como o Sr.
Dâmaso Salcede recusava retractar-se e rejeitara também uma reparação
pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o
encontrasse daí por diante, fosse uma rua, fosse um teatro, lhe escarraria na
face...
- Escarrar-me! berrou o outro, lívido, recuando, como se o escarro já
viesse no ar.
E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre
o Ega, agarrando-lhe as mãos, numa agonia:
- Ó João, ó João, tu, que és meu amigo, por quem és, livra-me desta
entaladela!
Ega foi generoso. Desprendeu-se dele, empurrou-o brandamente para a
poltrona, acalmando-o com palmadinhas fraternais pelo ombro. E declarou
que, desde que Dâmaso apelava para a sua amizade, desaparecia o enviado
de Carlos necessariamente exigente, ficava só o camarada, como no tempo
dos Cohens e da vila Balzac. Queria pois o amigo Dâmaso um conselho? Era
assinar uma carta afirmando que tudo o que fizera publicar na Corneta sobre
o Sr. Carlos da Maia e certa senhora fora invenção falsa e gratuita. Só isto o
salvava. Doutro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe
na cara. E, dado esse desastre, Dâmasosinho, a não querer ser apontado em
Lisboa como um incomparável cobarde, tinha de se bater à espada ou à
pistola...
- Ora, em qualquer desses casos, você era um homem morto.
O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de veludo, com a
face emparvecida para o Ega. Alargou molemente os braços, murmurou da
profundidade do seu terror:
- Pois sim, eu assino, João, eu assino...
- É o que lhe convém... Arranje então papel. Você está perturbado, eu
mesmo redijo.
Dâmaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e
vago por sobre os móveis:
- Papel de carta? É para carta?
- Sim, está claro, uma carta ao Carlos!
Os passos do desgraçado perderam-se enfim no corredor, pesados e
sucumbidos.
- Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arrepio, a
mão aos sapatos.
Ega lançou-lhe um chut severo. Dâmaso voltava com o seu sumptuoso
papel de monograma e coroa. Para envolver em silêncio e segredo aquele
transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de veludo, desdobrando-
se, mostrou o brazão de Salcede, onde havia um leão, uma torre, um braço
armado, e por baixo, a letras de ouro, a sua formidável divisa: SOU FORTE!
Imediatamente Ega afastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao
papel a data e a adresse do Dâmaso...
- Eu faço o rascunho, você depois copia...
- Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluído na poltrona, passando o
lenço pelo pescoço e pela face.
Ega no entanto escrevia muito lentamente, com amor. E naquele
silêncio, que o embaraçava, Cruges terminou por se erguer, foi coxeando até
ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho, bilhetes e
fotografias. Eram as glorias sociais do Dâmaso, os documentos do chic a valer
que era a paixão da sua vida: bilhetes com títulos, retratos de cantoras,
convites para bailes, cartas de entrada no Hipódromo, diplomas de membro
do Club Naval, de membro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos:
- até pedaços cortados de jornais anunciando os anos, as partidas, as
chegadas do Sr. Salcede, «um dos nossos mais distintos sportmen».
Desventuroso sportman! Aquela folha de papel, onde o Ega
rascunhava, ia-o enchendo pouco a pouco dum terror angustioso. Santo
Deus! Para que eram tantos apuros numa carta ao Carlos, um rapaz íntimo?
Uma linha bastaria: - «Meu querido carlos, não te zangues, desculpa, foi
brincadeira.» Mas não! Toda uma pagina de letra miúda com entrelinhas! Já
mesmo Ega voltava a folha, molhava a pena, como se dela devessem escorrer
sem cessar coisas humilhadoras! Não se conteve, estendeu a face por sobre a
mesa, até o papel:
- Ó Ega, isso não é para publicar, pois não é verdade?
Ega reflectiu, com a pena no ar:
- Talvez não... Estou certo que não. Naturalmente Carlos, vendo o seu
arrependimento, deixa isto esquecido no fundo duma gaveta.
Dâmaso respirou com alívio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente
entre amigos! Que lá isso, mostrar o seu arrependimento, até ele desejava!
Com efeito o artigo fora uma tolice... Mas então! Em questões de mulheres
era assim, assomado, um leão...
Abanou-se com o lenço, desanuviado, recomeçando a achar sabor à
vida. Findou mesmo por acender um charuto, levantar-se sem rumor acercar-
se do Cruges - que, coxeando através das curiosidades da sala, encalhara
sobre o piano e sobre os livros de música, com o pé dorido no ar.
- Então tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?
Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada.
Dâmaso ficou ali um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando
um olhar inquieto à mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente,
murmurou, sobre o ombro do maestro:
- Uma entaladela assim! Eu é por causa da gente conhecida... Senão não
me importava! Mas veja você também se arranja as coisas e se o Carlos deixa
aquilo na gaveta...
Justamente Ega erguera-se com o papel na mão e caminhava para o
piano, devagar, relendo baixo.
- Ficou óptimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em forma de carta ao
Carlos, é mais correcto. Você depois copia e assina. Ouça lá: «Exc.mo Sr... Está
claro, você dá-lhe excelência, porque é um documento de honra... Exc.mo Sr. -
Tendo-me V. Exc.ª, por intermédio dos seus amigos João da Ega e Victorino
Cruges, manifestado a indignação que lhe causara um certo artigo da
Corneta do Diabo de que eu escrevi o rascunho e de que promovi a
publicação, venho declarar francamente a V. Exc.ª que esse artigo, como
agora reconheço, não continha senão falsidades e incoerências: e a minha
desculpa única está em que o compus e enviei à redacção da Corneta no
momento de me achar no mais completo estado de embriaguez...»
Parou. E nem se voltou para o Dâmaso, que deixara pender os braços,
rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o
monóculo:
- Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a única
maneira de ressalvar a dignidade do nosso Dâmaso.
E desenvolveu a sua ideia, mostrando quanto era generosa e hábil -
enquanto o Dâmaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem ele
queriam que o Dâmaso numa carta (que se podia tornar publica) declarasse
«que caluniara por ser caluniador». Era necessário, pois, dar à calunia uma
dessas causas fortuitas e ingovernáveis que tiram a responsabilidade ás
acções. E que melhor, tratando-se dum rapaz mundano e femeeiro, do que
estar bêbedo?... Não era vergonha para ninguém embebedar-se... O próprio
Carlos, todos eles ali, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado.
Sem remontar aos romanos, onde isso era uma higiene e um luxo, muitos
grandes homens na História bebiam de mais. Em Inglaterra era tão chic, que
Pit, Fox e outros nunca falavam na Câmara dos comuns senão aos bordos.
Musset, por exemplo, que bêbedo! Enfim a História, a Literatura, a Política,
tudo fervilhava de piteiras... Ora, desde que o Dâmaso se declarava borracho,
a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que apanhara uma
carraspana e que cometera uma indiscrição... Nada mais!
- Pois não te parece, Cruges?
- Sim, talvez, que estava bêbedo, murmurou o maestro timidamente.
- Pois não lhe parece a você, francamente, Dâmaso?
- Sim, que estava bêbedo, balbuciou o desgraçado.
Imediatamente Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim
reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que é V. Exc.ª um carácter
absolutamente nobre; e as outras pessoas, que nesse momento de embriaguez
ousei salpicar de lama, são-me só merecedoras de veneração e louvor. Mais
declaro que se por acaso tornasse a suceder soltar eu alguma palavra
ofensiva para V. Exc.ª não lhe devia dar V. Exc.ª, ou aqueles que a escutassem,
mais importância do que a que se dá a uma involuntária baforada de álcool -
pois que, por um habito hereditário que reaparece frequentemente na minha
família, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez... De V. Exc.ª, com
toda a estima etc....» Rodou sobre os tacões, pousou o rascunho na mesa - e
acendendo o charuto ao lume do Dâmaso, explicou com amizade, com
bonomia, o que o determinara àquela confissão de bebedeira incorrigível e
palreira. Fora ainda o desejo de garantir a tranquilidade do «nosso Dâmaso».
Atribuindo todas as imprudências em que pudesse cair a um habito de
intemperança hereditária, de que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e
gordo, o Dâmaso punha-se para sempre ao abrigo das provocações de
Carlos...
- Você, Dâmaso, tem génio, tem língua... Um dia esquece-se, e no
Grémio, sem querer, na cavaqueira depois do teatro, lá lhe escapa uma
palavra contra Carlos... Sem esta precaução, aí recomeça a questão, o escarro,
o duelo... Assim já Carlos não se pode queixar. Lá tem a explicação que tudo
cobre, uma gota de mais, a gota tomada por impulso de borrachice
hereditária... Você alcança deste modo a coisa que mais se apetece neste nosso
século XIX - a irresponsabilidade!... E depois para a sua família não é
vergonha, porque você não tem família. Em resumo, convem-lhe?
O pobre Dâmaso escutava-o, esmagado, enervado, sem compreender
aquelas roncantes frases sobre «a hereditariedade», sobre «o século XIX». E
um único sentimento vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz
pachorrenta, livre de floretes e de escarros. Encolheu os ombros, sem força:
- Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar falatórios.
E abancou, meteu um bico novo na pena, escolheu uma folha de papel
em que o monograma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua
maravilhosa letra, com finos e grossos, duma nitidez de gravura em aço.
Ega no entanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante,
rondava em torno da mesa, seguindo sofregamente as linhas que traçava a
mão aplicada do Dâmaso, ornada dum grosso anel de armas. E durante um
momento atravessou-o um susto... Dâmaso parara, com a pena indecisa.
Diabo! Acordaria enfim, no fundo de toda aquela gordura balofa, um resto
escondido de dignidade, de revolta?... Dâmaso alçou para ele os olhos
embaciados:
- Embriaguez é com n ou com m?
- Com um m, um m só, Dâmaso! acudiu Ega afectuosamente. Vai muito
bem... Que linda letra você tem, caramba!
E o infeliz sorriu à sua própria letra - pondo a cabeça de lado, no
orgulho sincero daquela soberba prenda.
Quando findou a cópia foi Ega que conferiu, pôs a pontuação. Era
necessário que o documento fosse chic e perfeito.
- Quem é o seu tabelião, Dâmaso?
- O Nunes, na rua do Ouro... Porque?
- Oh! nada. É um detalhe que nestes casos se pergunta sempre. Mera
cerimónia... Pois amigos, como papel, como letra, como estilo, está de apetite
a cartinha!
Meteu-a logo num envelope onde rebrilhava a divisa «Sou Forte»,
sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o
chapéu, batendo no ombro do Dâmaso com uma familiaridade folgazã e leve:
- Pois, Dâmaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fora de portas,
numa poça de sangue! Assim é uma delícia. E adeus... Não se incomode você.
Então o grande sarau sempre é na segunda-feira? Vai lá tudo, hein! Não
venha cá, homem... Adeus!
Mas o Dâmaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho,
cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietação que o
assaltara:
- Isso não se mostra a ninguém, não é verdade, Ega?
Ega encolheu os ombros. O documento pertencia a Carlos... Mas enfim
Carlos era tão bom rapaz, tão generoso!
Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Dâmaso:
- E chamei eu àquele homem meu amigo!
- Tudo na vida são desapontamentos, meu Dâmaso! foi a observação do
Ega, saltando alegremente os degraus.
Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrela, Carlos já esperava
ao portão de ferro, numa impaciência, por causa do jantar na Toca. Enfiou
logo para dentro atropelando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse ao
Loreto.
- E então, meus senhores, temos sangue?
- Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o
envelope.
Carlos leu a carta do Dâmaso. E foi um imenso assombro:
- Isto é incrível!... Chega a ser humilhante para a natureza humana!
- O Dâmaso não é o género humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas
tu? Que ele se batesse?
- Não sei, corta o coração... Que se há de fazer a isto?
Segundo o Ega não se devia publicar; seria criar curiosidade e escândalo
em torno do artigo da Corneta que custara trinta libras a sufocar. Mas
convinha conservar aquilo como uma ameaça pairando sobre o Dâmaso,
tornando-o para longos anos nulo e inofensivo.
- Eu estou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: é obra
tua, usa-o como quiseres...
Ega guardou-o com prazer, enquanto Carlos, batendo no joelho do
maestro, queria saber como ele se portara naquele lance de honra...
- Pessimamente! gritou Ega. Com expressões de compaixão; sem linha
nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a mão no sapato...
- Pudera! exclamou Cruges desafogando enfim. Vocês dizem-me que
me ponha de cerimónia, calço uns sapatos novos de verniz, estive toda a
tarde num tormento!
E não se conteve mais, arrancou o sapato, pálido, com um medonho
suspiro de consolação.
No dia seguinte, depois do almoço, enquanto uma chuva grossa
alagava os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no fumoir, enterrado numa
poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do Dâmaso: e pouco a pouco
subiu nele a mágoa de que esse colossal documento de cobardia humana, tão
interessante para a fisiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado
no escuro duma gaveta!... Que efeito, que soberbo efeito se aquela confissão
do «nosso distinto sportman» surgisse um dia na Gazeta Ilustrada ou no
novo jornal A Tarde, nas colunas do High-life, sob este título- PENDENCIA
D’HONRA! E que lição, que meritório acto de justiça social!
Todo esse verão, Ega detestara o Dâmaso, certo, desde Sintra, de que ele
era o amante da Cohen - e de que, por esse imbecil de grossas nádegas,
esquecera ela para sempre a vila Balzac, as manhãs na colcha de cetim preto,
os seus beijos delicados, os versos de Musset que lhe lia, os lunchesinhos de
perdiz, tantos encantos poéticos. Mas o que lhe tornara o Dâmaso intolerável
- fora a sua farófia radiante de homem preferido; o ar de posse com que
passeava ao lado de Rachel pelas estradas de Sintra, vestido de flanela
branca; os segredinhos que tinha sempre a cochichar-lhe sobre o ombro; e o
acenosinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a
ele próprio, Ega... Era odioso! Odiava-o: e através desse ódio ruminara
sempre o desejo duma vingança - pancada, desonra ou ridículo que tornasse
o Sr. Salcede, aos olhos de Rachel, desprezível, grotesco, chato como um
balão furado...
E agora ali tinha essa carta providencial, em que o homem solenemente
se declarava bêbedo. «Sou um bêbedo, estou sempre bêbedo»! Assim o dizia,
no seu papel de monograma de ouro, o Sr. Salcede, num medo vil de cão
gozo, rastejando com o rabo entre as pernas diante de qualquer pau!...
Nenhuma mulher resistiria a isto... E havia de encafuar tão decisivo
documento no fundo dum gavetão?
Publica-lo na Gazeta Ilustrada ou na Tarde não podia, infelizmente, por
interesse de Carlos. Mas porque o não mostraria «em segredo», como uma
curiosidade psicológica, ao Craft, ao marquês, ao Teles, ao Gouvarinho, ao
primo do Cohen? Podia mesmo confiar uma cópia ao Taveira que, ressentido
eternamente da questão com o Dâmaso em casa da Lola Gorda, correria a lê-
la em segredo na Casa Havaneza, no bilhar do Grémio, no Silva, nos
camarins de cantoras... E ao fim de uma semana a Sr.ª D. Rachel saberia
inevitavelmente que o escolhido do seu coração era por confissão própria um
caluniador e um bêbedo!... Delicioso!
Tão delicioso que não hesitou mais, subiu ao quarto para copiar a carta
do Dâmaso. Mas quasi imediatamente um criado trouxe-lhe um telegrama de
Afonso da Maia anunciando que chegava no dia seguinte ao Ramalhete. Ega
teve de sair, telegrafar para os Olivais, avisar Carlos.
Carlos apareceu nessa noite, já tarde, transido de frio, com um monte de
bagagens porque abandonara definitivamente os Olivais. Maria Eduarda
regressava também a Lisboa, para o primeiro andar da rua de S. Francisco,
tomado agora por seis meses, tapetado de novo pela mãe Cruges. E Carlos
vinha muito impressionado, com profundas saudades da Toca. Depois de
cear, ao fogão, acabando o charuto, relembrou infindavelmente esses dias
alegres, a sua casinhola, o banho da manhã tomado dentro duma dorna, a
festa do deus Tchi, as guitarradas do marquês, as longas cavaqueiras ao café
com as janelas abertas e as borboletas voando em torno aos candeeiros... Fora
as cordas de água, sob o vento de inverno, batiam os vidros na mudez da
noite negra. Ambos terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos
no lume.
- Quando esta tarde dei pela ultima vez uma volta na quinta, disse por
fim Carlos, já não havia uma única folha nas árvores... Tu não sentes sempre
uma grande melancolia nestes fins de outono?...
- Imensa! murmurou Ega lugubremente.
Ao outro dia a manhã clareava, limpa e branca, quando Ega e Carlos,
ainda estremunhados e tiritando, se apearam em Santa Apolónia. O comboio
acabava justamente de chegar; e viram logo, entre o rumor de gente que se
escoava das portinholas abertas, Afonso, com o seu velho capote de gola de
veludo, apegado a uma bengala, debatendo-se entre homens de boné
agaloado que lhe ofereciam o Hotel Terreirense e a Pomba de Ouro. Atrás Mr.
Antoine, o chefe francês, grave, de chapéu alto, trazia o cesto em que viajara o
reverendo Bonifácio.
Carlos e Ega acharam Afonso mais acabado, mais pesado. Todavia
gabaram-lhe muito, entre os primeiros abraços, a sua robustez de patriarca.
Ele encolheu os ombros, queixando-se de ter sentido desde o fim do verão
vertigens, um cansaço vago...
- Vocês é que estão excelentes, acrescentou abraçando outra vez Carlos e
sorrindo ao Ega. E que ingratidão foi essa tua, John, metido aqui todo um
verão sem me ir visitar?... Que tens tu feito? Que têm vocês feito?
- Mil coisas! acudiu Ega alegremente. Planos, ideias, títulos... Temos
sobretudo o projecto duma Revista um aparelho de educação superior que
vamos montar com uma força de mil cavalos!... Enfim logo se lhe conta tudo
ao almoço.
E ao almoço, com efeito, para justificarem as suas ocupações em Lisboa,
falaram da Revista como se ela já estivesse organizada e os artigos a imprimir
na oficina - tanta foi a precisão com que lhe descreveram as tendências, a
feição critica, as linhas de pensamento sobre que ela devia rolar... Ega já
preparara um trabalho para o primeiro número - A capital dos portugueses.
Carlos meditava uma série de ensaios à inglesa, sob este título - Porque
falhou entre nós o sistema constitucional. E Afonso escutava, encantado com
aquelas belas ambições de luta, querendo partilhar da grande obra como
sócio capitalista... Mas Ega entendia que o Sr. Afonso da Maia devia descer à
arena, lançar também a palavra do seu saber e da sua experiência. Então o
velho riu. O quê! compor prosa, ele, que hesitava para traçar uma carta ao
feitor? De resto o que teria a dizer ao seu país, como fruto da sua experiência,
reduzia-se pobremente a três conselhos em três frases: aos políticos - «menos
liberalismo e mais carácter»; aos homens de letras - «menos eloquência e mais
ideia»; aos cidadãos em geral - «menos progresso e mais moral».
Isto entusiasmou o Ega! Justamente, aí estavam as verdadeiras feições
da reforma espiritual que a Revista devia pregar! Era necessário toma-las
como moto simbólico, inscreve-las em letras góticas no frontispício - porque
Ega queria que a Revista fosse original logo na capa. E então a conversação
desviou para o exterior da Revista - Carlos pretendendo que fosse azul-claro
com tipo Renascença, Ega exigindo uma cópia exacta da Revista dos Dois
Mundos, numa nuance mais cor de canário. E, levados pela sua imaginação
de meridionais, já não era só para agradar a Afonso da Maia que iam
levantando e dando forma àquele confuso plano.
Carlos exclamava para o Ega, com os olhos já apaixonados:
- Isto agora é sério. Precisamos arranjar imediatamente a casa para a
redacção!
Ega bracejava:
- Pudera! E móveis! E máquinas!
Toda a manhã, no escritório de Afonso, azafamados, com papel e lápis,
se ocuparam em fixar uma lista de colaboradores. Mas já as dificuldades
surgiam. Quasi todos os escritores sugeridos desagradavam ao Ega, por lhes
faltar no estilo aquele requinte plástico e parnasiano de que ele desejava que
a Revista fosse o impecável modelo. E a Carlos alguns homens de letras
pareciam impossíveis... - sem querer confessar que neles lhe repugnava
exclusivamente a falta de linha e o fato mal feito...
Uma coisa porém ficou decidida: a casa da redacção. Devia ser
mobilada luxuosamente, com sofás do consultório de Carlos e algum bric-à-
brac da Toca: e sobre a porta (ornada dum guarda-portão de libré) a tabuleta
de verniz preto, com Revista de Portugal em altas letras a ouro. Carlos sorria,
esfregava as mãos, pensando na alegria de Maria ao saber esta decisão que o
lançava, como era o desejo dela, na actividade, numa luta interessante de
ideias. Ega, esse, via já a brochura cor de canário aos montões nas vitrines dos
livreiros, discutida nas soirées do Gouvarinho, folheada na câmara com
espanto pelos políticos...
- Vai-se remexer Lisboa este inverno, Sr. Afonso da Maia! gritou ele
atirando um gesto imenso até ao tecto.
E o mais contente era o velho.
Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com ele à rua de S.
Francisco (onde Maria se instalara nessa manhã) levarem a nova da grande
obra. Mas encontraram à porta uma carroça descarregando malas; e a
senhora, contou o Domingos que ajudava os carroceiros, esteve ainda
jantando a um canto da mesa e sem toalha. Com tanta confusão na casa, Ega
não quis subir.
- Até logo, disse ele. Vou talvez procurar o Simão Craveiro e falar-lhe da
Revista.
Subiu lentamente o Chiado, leu os telegramas na Casa Havaneza.
Depois à esquina da rua Nova da Trindade, um homem rouco, sumido num
paletó, ofereceu-lhe uma «senhasinha». Outros, em volta, gritavam na
sombra do Hotel Aliança:
- Bilhete para o Ginásio! Mais barato... Bilhete para o Ginásio! Quem
vende?...
Havia um cruzar animado de carruagens com librés. Os bicos de gás do
Ginásio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rosto com o Craft que
atravessava do lado do Loreto, de gravata branca e flor no paletó.
- Que é isto?
- Festa de beneficência, não sei, disse o Craft. Uma coisa promovida por
senhoras, a baronesa de Alvim mandou-me um bilhete... Venha você daí
ajudar-me a levar esta caridade ao Calvário.
E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha.
No peristilo do Ginásio encontraram Taveira passeando e fumando
solitariamente, à espera que findasse a primeira comedia, o Fruto proibido.
Então Craft propôs «botequim e genebra».
- E que há do ministério? perguntou ele, apenas abancaram a um canto.
O Taveira não subiu. Todos esses dois longos dias se intrigara
desesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras Publicas: o Videira
também. E falava-se duma cena terrível por causa de sindicatos, em casa do
presidente do conselho, o Sá Nunes, que terminara por dar um murro na
mesa, gritar: «Irra! que isto não é o pinhal de Azambuja!»
- Canalha! rosnou Ega com ódio.
Depois falaram do Ramalhete, da volta de Afonso, da reaparição do
Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez nesse inverno uma casa com
fogões, onde se passasse uma hora civilizada e inteligente.
Taveira acudiu com o olho brilhante:
- Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na
rua de S. Francisco! Foi o marquês que me disse. Madame Mac-Gren vai
receber.
Craft não sabia mesmo que ela já tivesse recolhido da Toca.
- Voltou hoje, disse o Ega. Você ainda não a conhece?... Encantadora.
- Creio que sim.
O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma beleza. E um ar
tão simpático!
- Encantadora! repetiu Ega.
Mas o Fruto proibido findara, os homens enchiam o peristilo, num
rumor lento, acendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira com a
genebra, correu à plateia para descobrir o camarote da Alvim.
Mal erguera porém a cortina e assestara o monóculo - avistou defronte,
na primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com um grande leque de rendas
brancas; por traz nigrejavam as suissas fortes do marido; e em face dela,
recostado no veludo da grade, de casaca, com a bochecha risonha, uma
grossa pérola no peitilho da camisa, o Dâmaso, o bêbedo!
Ega caiu molemente, ao acaso, na borda duma cadeira: e perturbado, já
esquecido da Alvim, ali ficou a olhar o pano coberto de anúncios, correndo os
dedos trémulos pelo bigode.
No entanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na
plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeçou no joelho do Ega: outro,
de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissão a s. Exc.ª Ele
não escutava, não percebia: os seus olhos, um momento errantes, tinham-se
enfim cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de lá, numa emoção
que o empalidecia.
Não a tornara a encontrar desde Sintra, onde só a via de longe, com
vestidos claros sob o verde das árvores; e agora ali, toda de preto, em cabelo,
com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu colo, ela era
outra vez a sua Rachel, dos tempos divinos da vila Balzac. Era assim que ele,
todas as noites em S. Carlos, a contemplava do fundo da frisa de Carlos, com
a cabeça encostada ao tabique, saturado de felicidade. Lá tinha a sua luneta
de ouro, presa por um fio de ouro. Parecia mais pálida, mais delicada, com o
longo quebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lírio meio
murcho: e como então os seus cabelos magníficos e pesados caiam
habilmente numa massa meia solta sobre as costas, num desalinho de nudez.
Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor das cadeiras Ega revia,
numa onda de recordações que o sufocava, o grande leito da vila Balzac,
certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa à borda do sofá, e a
melancolia deliciosa das tardes, quando ela saia furtivamente, coberta de
véus, e ele ficava, cansado, no crepúsculo poético do quarto, cantarolando a
Traviata...
- V. Exc.ª dá licença, Sr. Ega?
Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira.
Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o Sr. Sonsa Neto. O pano
subira. Á borda da rampa um lacaio, piscando o olho à Plateia, fazia
confidências sobre a patroa, de espanejador debaixo do braço. E Cohen, agora
de pé, enchia o meio do camarote, cofiando as suissas com um correr lento da
mão bem tratada, onde reluzia um diamante.
Ega então, num soberbo alarde de indiferença, cravou o monóculo no
palco. O lacaio abalara espavorido, a um repique furioso de sineta; e uma
megera azeda, de roupão verde e touca à banda, rompera de dentro,
meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha
delambida que batia o tacão, se esganiçava: «Pois hei de ama-lo sempre! hei
de ama-lo sempre!»
Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e
o Dâmaso, com as cabeças chegadas como em Sintra, cochichavam num
sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu num imenso ódio ao Dâmaso!
Colado à ombreira da porta, rilhava os dentes, num desejo de subir, escarrar-
lhe na bochecha gorda.
E não desviava dele os olhos, que dardejavam. Na cena, um velho
general, gotoso e resmungão, sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca. A
Plateia ria, o Cohen ria. E nesse momento Dâmaso, que se debruçara no
camarote com as mãos de fora, calçadas de gris-perle, descobriu o Ega,
sorriu, atirou-lhe como em Sintra um acenosinho petulante, muito de alto, na
ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda na véspera aquele
covarde se lhe agarrara ás mãos, tremendo todo, a gritar «que o salvasse!...»
Subitamente, com uma ideia, apalpou por sobre o bolso a carteira onde
na véspera guardara a carta do Dâmaso... «Eu te arranjo!» murmurou ele. E
abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que
rola, enfiou, ao fundo da praça de Camões, num grande portão que uma
lanterna alumiava. Era a redacção da Tarde.
Dentro do pátio desse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem
luz, cruzou um sujeito encatarroado que lhe disse que o Neves estava em
cima ao cavaco. O Neves, deputado, político, director da Tarde, fora, havia
anos, numas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e desde esse
verão alegre em que o Neves lhe ficara sempre devendo três moedas, os dois
tratavam-se por tu.
Foi encontra-lo numa vasta sala alumiada por bicos de gás sem globo,
sentado na borda numa mesa atulhada de jornais, com o chapéu para a nuca,
discursando a alguns cavalheiros de província que o escutavam de pé, num
respeito de crentes. Num vão de janela, com dois homens de idade, um rapaz
esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabeleira crespa que parecia
erguida numa rajada de vento, bracejava como um moinho na crista dum
monte. E, abancado, outro sujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma
tira de papel.
Ao ver o Ega (um íntimo do Gouvarinho) ali na redacção, naquela noite
de intriga e de crise, Neves cravou nele os olhos tão curiosos, tão inquietos,
que o Ega apressou-se a dizer:
- Nada de política, negócio particular... Não te interrompas. Depois
falaremos.
O outro findou a injuria que estava lançando ao José Bento, «essa
grande besta que fora meter tudo no bico da amiga do Sousa e Sá, o par do
reino» - e na sua impaciência saltou da mesa, travou do braço do Ega
arrastando-o para um canto:
- Então que é?
- É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi ofendido aí por um
sujeito muito conhecido. Nada de interessante. Um parágrafo imundo na
Corneta do Diabo, por uma questão de cavalos... O Maia pediu-lhe
explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, numa carta que quero que
vocês publiquem.
A curiosidade do Neves flamejou:
- Quem é?
- O Dâmaso.
O Neves recuou de assombro:
- O Dâmaso!? Ora essa! Isso é extraordinário! Ainda esta tarde jantei
com ele! Que diz a carta?
- Tudo. Pede perdão, declara que estava bêbedo, que é de profissão um
bêbedo...
O Neves agitou as mãos com indignação:
- E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Dâmaso, nosso amigo
político!... E que não fosse, não é questão de partido, é de decência! Eu faço lá
isso!... Se fosse uma acta de duelo, uma coisa honrosa, explicações dignas...
Mas uma carta em que um homem se declara bêbedo! Tu estás a mangar!
Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face,
teve ainda uma revolta àquela ideia do Dâmaso se declarar bêbedo.
- Isso não pode ser! É absurdo! Aí há história... Deixa ver a carta.
E, mal relanceara os olhos ao papel, à larga assinatura floreada, rompeu
num alarido:
- Isto não é o Dâmaso nem é letra do Dâmaso!... «Salcede»! Quem diabo
é «Salcede»? Nunca foi o meu Dâmaso!
- É o meu Dâmaso, disse o Ega. O Dâmaso Salcede, um gordo...
O outro atirou os braços ao ar:
- O meu é o Guedes, homem, o Dâmaso Guedes! Não há outro! Que
diabo, quando se diz o Dâmaso é o Guedes!...
Respirou com grande alívio:
- Irra, que me assustaste! Olha agora neste momento, com estas coisas
de ministério, uma carta dessas escrita pelo Guedes... Se é o Salcede, bem,
acabou-se! Espera lá... Não é um gordalhufo, um janota que tem uma
propriedade em Sintra? Isso! Um maganão que nos entalou na eleição
passada, fez gastar ao Silvério mais de trezentos mil reis... Perfeitamente, ás
ordens... Ó Pereirinha, olhe aqui o Sr. Ega. Tem aí uma carta para sair
amanhã, na primeira pagina, tipo largo...
O Sr. Pereirinha lembrou o artigo do Sr. Vieira da Costa sobre a
«Reforma das Pautas».
- Vai depois! gritou o Neves. As questões de honra antes de tudo!
E voltou ao seu grupo onde agora se falava do conde de Gouvarinho,
saltou para a borda da mesa, lançou logo o seu vozeirão de chefe, afirmando
no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!
Ega acendeu o charuto, ficou um momento considerando aqueles
sujeitos que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que
a crise arrastara a Lisboa, arrancara à quietação das vilas e das quintas. O
mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face a
estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de porco.
Outro, esguio, com o paletó solto sobre as costas em arco, tinha um queixo
duro e maciço de cavalo: e dois padres muito rapados, muito morenos,
fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar, conjunctamente
apagado e desconfiado, que marca os homens de província, perdidos entre as
tipóias e as intrigas da Capital. Vinham ali ás noites, àquele jornal do partido,
saber as novas, beber do fino, uns com esperanças de empregos, outros por
interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos o Neves era um
«robusto talento»; admiravam-lhe a verbosidade e a táctica; decerto
gostavam de citar nas lojas das suas vilas o amigo Neves, o jornalista, o da
Tarde... Mas, através dessa admiração e do prazer de roçar por ele, percebia-
se-lhes um vago medo que aquele «robusto talento» lhes pedisse, num vão de
janela, duas ou três moedas. O Neves no entanto celebrava o Gouvarinho
como orador. Não que tivesse os rasgos, a pureza, as belas sínteses históricas
do José Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas não havia outro para as
piadas que ferem e que ficam cravadas, ali a arder, na pele do touro! E era a
grande coisa na Câmara - ter a farpa, sabe-la ferrar!
- Ó Gonçalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do trapézio?
gritou ele virando-se para a janela, para o rapaz de jaquetão claro.
O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e malícia,
estendeu o pescoço magro num colarinho muito decotado, lançou de lá:
- A do trapézio? Divina! Conta à rapaziada!
A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, à espera da «do trapézio».
Fora na Câmara dos Pares, na reforma da instrução. Estava falando o Torres
Valente, esse maluco que defendia a ginástica dos colégios e queria as
meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue-se e atira-lhe esta:
«Sr. presidente, direi uma palavra só. Portugal sairá para sempre da
senda do progresso, em que tanto se tem ilustrado, no dia em que nós formos
ao ensino, com mão ímpia, substituir a cruz pelo trapézio!»
- Muito bem! rosnou um dos padres profundamente satisfeito.
E no murmúrio de admiração que se ergueu destacou um ganido - o do
rapaz mais grosso que um pote, que mexia os ombros, chasqueava com uma
risota na bochecha cor de tomate:
- Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sai é um
grandissimo carola!
E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de província, liberais
e finórios, que achavam aquele fidalgo excessivamente apegado à cruz. Mas
já o Neves, de pé, bravejava:
- Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!... O Gouvarinho
carola! Está claro que tem toda a orientação mental do século, é um
racionalista, um positivista... Mas a questão aqui é a réplica, a táctica
parlamentar! Desde que o tipo da maioria vem de lá com a descoberta do
trapézio, Gouvarinho amigo, ainda que fosse tão ateu como Renan, zás! atira-
lhe logo para cima com a cruz!... Isto é que é a estratégia parlamentar! Pois
não é assim, Ega?
Ega murmurou, através do fumo do charuto:
- Sim, com efeito a cruz para isso ainda serve...
Mas nesse momento o sujeito calvo, que repelira a tira de papel e se
espreguiçava, caído para as costas da cadeira, exausto, pediu ao Sr. João da
Ega - que falasse à gente e guardasse o seu dinheiro...
Ega acercou-se logo daquele simpático homem, tão engraçado, tão
querido de todos:
- Então, na grande faina, Melchior?
- Estou aqui a ver se faço uma coisa sobre o livro do Craveiro, os Cantos
da Serra, e não me sai nada em termos... Não sei o que hei de dizer!
Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito camarada com
o Melchior:
- Nada! Vocês aqui são simples localistas, noticiaristas, anunciadores.
dum livro como o do Craveiro têm só respeitosamente a dizer onde se vende
e quanto custa.
O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz
da nuca:
- Então onde queria você que se falasse dos livros?... Nos reportórios?
Não, nas Revistas Criticas: ou então nos jornais - que fossem jornais, não
papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de política em estilo
mazorro ou em estilo fadista, um romance mal traduzido do francês por
baixo e o resto cheio com «anos», despachos, parte de polícia e loteria da
Misericórdia. E como em Portugal não havia nem jornais sérios nem Revistas
Criticas - que se não falasse em parte nenhuma.
- Com efeito, murmurou Melchior, ninguém fala de nada, ninguém
parece pensar em nada...
E com toda a razão, afirmou Ega. Certamente muito desse silêncio
provinha do natural desejo que têm os que são medíocres de que se não
aluda muito aos que são grandes. É a invejasinha reles e rastejante! Mas em
geral o silêncio dos jornais para com os livros provém sobretudo deles terem
abdicado todas as funções elevadas de estudo e de critica, de se terem
tornado folhas rasteiras de informação caseira, e de sentirem por isso a sua
incompetência...
- Está claro, não falo por você, Melchior, que é dos nossos e de primeira
ordem! Mas os seus colegas, menino, calam-se por se saberem
incompetentes...
O Melchior ergueu os ombros com um ar cansado e descrente:
- Calam-se também porque o publico não se importa, ninguém se
importa...
Ega protestou, já excitado. O Publico não se importava!? Essa era
curiosa! O Publico então não se importa que lhe falem de livros que ele
compra aos três mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada a população de
Portugal, caramba, é igual aos grandes sucessos de Paris e de Londres... Não,
Melchiorzinho amigo, não! Esse silêncio diz ainda mais claramente e
retumbantemente que as palavras: «Nós somos incompetentes. Nós estamos
bestialisados pela noticia do Sr. conselheiro que chegou ou do Sr. conselheiro
que partiu, pelos High-lifes, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo
de fundo em descompostura e calão, por toda esta prosa chula em que nos
atolamos... Nós não sabemos, não podemos já falar duma obra de arte ou
duma obra de história, deste belo livro de versos ou deste belo livro de
viagens. Não temos nem frases nem ideias. Não somos talvez cretinos - mas
estamos cretinisados. A obra de literatura passa muito alto - nós chafurdamos
aqui muito em baixo...»
- E aqui tem você, Melchior, o que diz, através do silêncio dos jornais, o
coro dos jornalistas!
Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para traz, como quem
goza uma bela ária. Depois com uma palmada na mesa:
- Caramba, ó Ega, muito bem fala você!... Você nunca pensou em ser
deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: «O Ega! O Ega é que era, para
atirar ali na câmara a piadinha à Rochefort. Ardia Troia!»
E imediatamente, enquanto Ega ria, contente, tornando a acender o
charuto - Melchior arrebatou a pena:
- Você está em veia! Diga lá, dicte lá... Que hei de eu aqui pôr sobre o
livro do Craveiro?
Ega quis saber o que escrevera já, o amigo Melchior. Apenas três linhas:
«Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta Simão Craveiro. O precioso
volume, onde cintilam em caprichosos relevos todas as jóias deste prestigioso
escritor, é publicado pelos activos editores...» E aqui o Melchior emperrara.
Melchior não gostava daquele frouxo termo - activos. Ega então sugeriu -
empreendedores. Melchior emendou, leu:
- «...publicado pelos empreendedores editores...» Ora sebo, rima!
Arrojou a pena, descorçoado. Acabou-se! Não estava em verve. E além
disso era tarde, tinha a rapariga à espera...
- Fica para amanhã... O pior é que já ando nisto há cinco dias! Irra! Você
tem razão, a gente bestialisa-se. E faz-me raiva! Não é lá pelo livro, não me
importa o livro... É pelo Craveiro, que é bom rapaz, e demais a mais pertence
cá ao partido!
Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com
desespero. E Ega ia ajuda-lo, limpar-lhe as costas cheias de cal - quando entre
eles surgiu a face chupada e nervosa do Gonçalo, com a sua gaforinha
perpetuamente erguida como por uma rajada de vento.
- Que está o Egasinho a fazer neste covil da noticia?
- Aqui a escovar o Sampaio... Estive também a ouvir o Neves, a grande
frase do Gouvarinho...
O Gonçalo pulou, com uma faisca de malícia no olhos negros de
algarvio esperto.
- A da cruz? Espantosa! Mas há melhor, há melhor!
Travou do braço do Ega, puxou-o para um canto da janela:
- É necessário falar baixo por causa da rapaziada de província... Há
outra deliciosa. Eu não me lembro bem, o Neves é que sabe! É uma coisa da
Liberdade conduzindo à mão o corcel do Progresso... O quer que seja assim,
uma imagem equestre! A Liberdade com calções de jockey, o Progresso com
um grande freio... Espantoso! Que besta, aquele Gouvarinho! E os outros,
menino, os outros! Você não foi à câmara quando se discutiu a questão de
Tondela? Extraordinário! O que se disse! Foi de morrer! E eu morro! Esta
política, este S. Bento, esta eloquência, estes bacharéis matam-me. Querem
dizer agora aí que isto por fim não é pior que a Bulgária. Histórias! Nunca
houve uma choldra assim no universo!
- Choldra em que você chafurda! observou o Ega rindo.
O outro recuou com um grande gesto:
- Distingamos! Chafurdo por necessidade, como político: e troço por
gosto, como artista!
Mas Ega justamente achava uma desgraça incomparável para o país -
esse imoral desacordo entre a inteligência e o carácter. Assim, ali estava o
amigo Gonçalo, como homem de inteligência, considerando o Gouvarinho
um imbecil...
- Uma cavalgadura, corrigiu o outro.
- Perfeitamente! E todavia, como político, você quer essa cavalgadura
para ministro, e vai apoia-la com votos e com discursos sempre que ela rinche
ou escoucinhe.
Gonçalo correu lentamente a mão pela gaforinha, com a face franzida:
- É necessário, homem! Razões de disciplina e de solidariedade
partidária... Há uns compromissos... O paço quer, gosta dele...
Espreitou em roda, murmurou, colado ao Ega:
- a aí umas questões de sindicatos, de banqueiros, de concessões em
Moçambique... Dinheiro, menino, o omnipotente dinheiro!
E como Ega se curvava, vencido, cheio só de respeito - o outro,
faiscando todo de finura e cinismo, atirou-lhe uma palmada ao ombro:
- Meu caro, a política hoje é uma coisa muito diferente! Nós fizemos
como vocês os literatos. Antigamente a literatura era a imaginação, a fantasia,
o ideal... Hoje é a realidade, a experiência, o facto positivo, o documento. Pois
cá a política em Portugal também se lançou na corrente realista. No tempo da
Regeneração e dos Históricos a política era o progresso, a viação, a liberdade,
o palavrório... Nós mudamos tudo isso. Hoje é o facto positivo, - o dinheiro, o
dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossa alma, menino! O divino
dinheiro!
E de repente emudeceu, sentindo na sala um silêncio - onde o seu grito
de «dinheiro! dinheiro!» parecera ficar vibrando, no ar quente do gás, com a
prolongação de um toque de rebate acordando as cobiças, chamando ao
longe e ao largo todos os hábeis para o saque da Pátria inerte!...
O Neves desaparecera. Os cavalheiros de província dispersavam, uns
enfiando o paletó, outros sem pressa dando um olhar amortecido aos jornais
sobre a mesa. E o Gonçalo bruscamente disse adeus ao Ega, rodou nos tacões,
desapareceu também, abraçando ao passar um dos padres a quem tratou de
«malandro!»
Era meia noite, Ega saiu. E na tipóia que o levava ao Ramalhete, já mais
calmo, começou logo a reflectir que o resultado da publicação da carta seria
despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A «questão de cavalos»
com que o Neves se contentara prontamente, distraído e absorvido nessa
noite pela crise, - ninguém mais a acreditaria... O Dâmaso decerto,
interrogado, para se desculpar, contaria horrores de Maria e de Carlos: e uma
intolerável luz de escândalo ia bater coisas que deviam permanecer na
sombra. Eram talvez apoquentações, desesperos que ele assim estivera
preparando a Carlos - por causa dum ódiosinho ao Dâmaso. Nada mais
egoísta e pequeno!... E subindo para o quarto Ega decidia correr depois de
almoço à redacção da Tarde, suster a publicação da carta.
Mas toda essa noite sonhou com Rachel e com Dâmaso. Via-os rolando
por uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados numa carroça
de bois, sobre um enxergão onde se desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha
de cetim preto da vila Balzac: os dois beijavam-se, enroscados, sem pudor,
sob a fresca sombra que caia dos ramos, ao chiar lento das rodas. E por um
requinte do sonho cruel, ele Ega, sem perder a consciência e o orgulho de
homem, era um dos bois que puxava ao carro! Os moscardos picavam-no, a
canga pesava-lhe; e, a cada beijo mais cantado que atrás soava no carro, ele
erguia o focinho a escorrer de baba, sacudia os cornos, mugia
lamentavelmente para os céus!
Acordou nestes urros de agonia: e a sua cólera contra o Dâmaso
ressurgiu, mais nutrida pelas incoerências do sonho. Além disso chovia. E
decidiu não voltar à Tarde, deixar imprimir a carta. Que importava, de resto,
o que dissesse o Dâmaso? O artigo da Corneta estava extinto, o Palma bem
pago. - E quem jamais acreditaria num homem que nos jornais se declara
caluniador e bêbedo?
E Carlos assim pensou também - quando, depois do almoço, Ega lhe
contou a sua resolução da véspera ao ver o Dâmaso no camarote, de olho
trocista posto nele, a segredar com os Cohens...
- Percebi claramente, sem erro possível, que estava a falar de ti, da Sr.ª
D. Maria, de nós todos, contando horrores... E então acabou-se, não hesitei
mais. Era necessário deixar passar a justiça de Deus! Não tiníamos paz
enquanto o não aniquilássemos!
Sim, concordou Carlos, talvez. Somente receava que o avô, sabendo o
escândalo, se desgostasse de ver o seu nome misturado a toda aquela
sordidez de Corneta e de bebedeira...
- Ele não lê a Tarde, acudiu Ega. O rumor, se lhe chegar, é já vago e
desfigurado.
Com efeito Afonso soube apenas confusamente que o Dâmaso soltara
no Grémio algumas palavras desagradáveis para Carlos, e declarara depois
num jornal que, nesse momento, estava bêbedo. E a opinião do velho foi -
que se o Dâmaso estava embriagado (e de outro modo como teria injuriado
Carlos, seu antigo amigo?) a sua declaração revelava extrema lealdade e um
amor quasi heróico da verdade!
- Por esta não esperávamos nós! exclamou depois Ega no quarto de
Carlos. O Dâmaso torna-se um justo!
De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da Corneta
aprovavam a aniquilação do Dâmaso. Só o Craft sustentou que Carlos lhe
devia ter antes dado «bengaladas secretas»; e o Taveira achou cruel que se
dissesse ao desgraçado, com um florete ao peito - «ou a dignidade ou a vida!»
Mas dias depois não se falava mais nesse escândalo. Outras coisas
interessavam o Chiado e a Casa Havaneza. O ministério fora formado,
finalmente! Gouvarinho entrava na Marinha - Neves no Tribunal de Contas.
Já os jornais do governo caído começavam, segundo a pratica constitucional,
a achar o país irremediavelmente perdido, e a aludir ao rei com azedume... E
o derradeiro, esvaído eco da carta do Dâmaso foi, na véspera do sarau da
Trindade, um parágrafo da própria Tarde onde ela fora publicada, nestas
amáveis palavras:
- «O nosso amigo e distinto sportman Dâmaso Salcede parte
brevemente para uma viagem de recreio a Itália. Desejamos ao elegante
touriste todas as prosperidades na sua bela excursão ao país do canto e das
artes.»
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https://sites.google.com/site/ecadequeirozosmaias/home/obra-completa---os-maias/capitulo-15
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https://www.dicio.com.br/remido/#:~:text=Significado%20de%20Remido&text=Que%20est%C3%A1%20desobrigado%20do%20pag
amento,culpa%3B%20que%20recebeu%20o%20perd%C3%A3o.
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/04/18/entrevista-ciro-gomes.htm
https://www.vortexmag.net/cultura-portuguesa-o-mais-especial-e-unico-de-portugal/
https://www.youtube.com/watch?v=Y1lNF6UvyaE
https://www.youtube.com/watch?v=FCEzSdQIU7M
https://www.vagalume.com.br/edith-piaf/non-je-ne-regrette-rien-traducao.html
https://www.youtube.com/watch?v=ZHwIf69NCrQ
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2015/11/14/interna_diversao_arte,506411/filme-os-maias-chega-as-telas-brasileiras.shtml
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