Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
terça-feira, 7 de dezembro de 2021
O Soldado Amarelo E O Juiz
- Qual é o caminho da estrada paisano?
- Governo é governo!
- Por onde?
- No fim da vereda à direita.
***
***
Resumo de Vidas Secas - Capítulo 11 - O soldado amarelo
***
***
53:25
YouTube
Luiz Gonzaga Belluzzo: "Nós precisamos de uma nova Revolução de 30"
Assistir
Enviado por: Marco Antonio Villa, 4 de ago. de 2021
***
terça-feira, 7 de dezembro de 2021
Luiz Gonzaga Belluzzo* - Terrivelmente evangélico
Valor Econômico
Constituição é a fonte das razões que devem ser compartilhadas por crentes e descrentes
Uma coincidência biológica me proporcionou a ventura de frequentar as lições de um juiz ao longo de 60 anos. Escolhi o discurso de 1965 proferido por ocasião de sua aposentadoria. Aposentou-se por temer a invasão de suas prerrogativas de juiz independente por um esbirro fardado das oligarquias golpistas. Nada de heroico, apenas submissão aos valores liberais e republicanos que guiaram sua vida desde os tempos da Faculdade de Direito de São Paulo.
Ele falou aos amigos que o homenageavam: “Preferi a tranquilidade do silêncio ao ruído das propagandas falazes; não suportei afetações; as cortesias rasteiras, sinuosas e insinuantes jamais encontraram agasalho em mim; em lugar algum pretendi subjugar, mas ninguém me viu acorrentado a submissões; dentro de uma humildade que ganhei no berço, abominei a egomania e a idolatria; não me convenceram as aparências, e para as minhas convicções busquei sempre os escaninhos. No exercício das minhas funções de magistrado, diuturnamente, dei o máximo dos meus esforços para bem desempenhá-las, e, ainda que em meio de uma atmosfera serena e compreensiva, em nenhum momento transigi com a nobreza do cargo; escapei de juízos temerários, tomando cautelas para desembaraçar-me das influências e preferências determinantes de uma decisão; e, se alguma vez, inadvertidamente, pequei contra a lei, vai-me a certeza de que o fiz para distribuir bondade e benevolência”.
O novo ministro do STF, André Mendonça, comemorou sua aprovação pelo Senado com Michelle Bolsonaro e proclamou: “Foi um salto para os evangélicos”. Na contramão do magistrado que guardava suas convicções pessoais nos escaninhos da intimidade, André Mendonça imediatamente cuidou de saltar suas convicções pessoais para a esfera pública.
As celebrações do novo ministro me incitaram a cogitar dos riscos acarretados para o Estado Laico, caso a expressão, “foi um salto para os evangélicos”, cumpra seus desígnios. Expressão não menos significativa que a prolatada por Jair Bolsonaro ao anunciar um ministro “Terrivelmente Evangélico” no STF.
Para tanto, recorri a um debate entre dois filósofos que se entregam a questionamentos a respeito das relações entre religião e esfera pública nas sociedades contemporâneas. São eles Jurgen Habermas e Charles Taylor. Entre divergências e convergências, selecionei as considerações de Habermas.
Ele diz que os procedimentos políticos nas sociedades democráticas e constitucionais se baseiam em um consenso entre os cidadãos, por mais abstrato e vago que isso possa parecer. Sem a presunção de tal consenso a respeito dos fundamentos constitucionais, os cidadãos de uma sociedade pluralista não poderiam ir aos tribunais e apelar a direitos específicos ou argumentar referindo-se a cláusulas constitucionais na expectativa de obter uma decisão justa.
Como podemos encaminhar a formação desse consenso fundador, senão em um espaço de razões “neutras” - em um sentido peculiar. As razões devem ser “seculares” em um sentido não cristão de “secularização”. “Deixe-me explicar o adjetivo não-cristão neste contexto. Em seu livro A Secular Age você (Charles Taylor) descreveu convincentemente o que a “secularização” significou dentro da igreja. A secularização teve o significado de derrubar as paredes dos mosteiros e espalhar os comandos do Senhor pelo mundo. Mas o termo secular assumiu um significado diferente no exato momento em que os sujeitos tinham que chegar a um consenso de natureza política além dos limites da comunidade cristã - um consenso constitucional que lhes permita apelar a um tribunal francês ou alemão, a fim de resolver casos a respeito do uso de turbantes por muçulmanas nas empresas. Esses casos devem ser decididos de acordo com procedimentos e princípios que são aceitáveis para cidadãos muçulmanos, cristãos, judeus ou seculares”.
Habermas prossegue afirmando que a Constituição é a fonte das razões que devem ser compartilhadas não apenas por diferentes comunidades religiosas, mas também por crentes e descrentes. A Constituição pode fornecer essa plataforma comum apenas se ela, por sua vez, está amparada em razões “seculares” no sentido moderno. “O termo secularização não se aplica mais à universalização de crenças e práticas em todo o mundo cristão, estendendo-se dos centros monásticos às esferas profanas da vida social cotidiana. Razões seculares não ampliam a perspectiva de sua própria comunidade, mas pressionam por uma perspectiva mútua para que diferentes comunidades possam desenvolver uma perspectiva mais inclusiva, transcendendo seu próprio universo de discurso”.
Hegel, na Filosofia do Direito, ao refletir sobre o Estado moderno, condenou veementemente o indivíduo que proclama a excelência das próprias intenções, mas não está submetido a uma regra objetiva e universal. Em um Estado bem-organizado só valem as leis e não é lícito violar essa universalidade, “nem mesmo em nome do mandamento que ordena o amor ao próximo”. (Imagino que o saber jurídico de André Mendonça tenha incluído entre seus saberes as lições do Filósofo de Jena).
A sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos “livres”. A história dessas sociedades “produziu” o mercado, a sociedade civil, o Estado Moderno, suas liberdades e seus interesses. Essa forma de sociabilidade, reivindicada pelo liberalismo político, rejeita a submissão dos indivíduos livres a transcendências religiosas e moralistas.
A Constituição brasileira promulgada em 1988 consagra já em seu Capítulo I os princípios mencionados:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II - Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
***
***
Capítulo 11: Soldado amarelo
Fabiano no resumo de Vidas Secas do Beduka
O resumo de Vidas Secas de Graciliano Ramos está quase no fim e eis que surge uma reviravolta: O soldado amarelo está perdido na caatinga e se depara com Fabiano com facão na mão.
Eles se olham, o soldado sabe que Fabiano é um cabra macho e que o havia humilhado, sentindo por isso, medo. Pensa que ele pode querer se vingar.
De fato, Fabiano pensa em tudo isso, mas demonstra grandeza de caráter, apenas ensinando ao soldado amarelo o caminho certo.
***
***
O Soldado Amarelo
Fabiano meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca, torrada, coberta de catingueiras e capões de mato. Ia pesado, o
aió cheio a tiracolo, muitos látegos e chocalhos pendurados num braço. O facão batia nos tocos.
Espiava o chão como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da égua ruça e da cria, marcas de cascos grandes e
pequenos. A égua ruça, com certeza. Deixara pelos brancos num tronco de angico. Urinara na areia e o mijo desmanchara as
pegadas, o que não aconteceria se se tratasse de um cavalo.
Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia farejar
o solo — e a catinga deserta animava-se, os bichos que ali tinham passado voltavam, apareciam-lhe diante dos olhos miúdos.
Seguiu a direção que a égua havia tomado. Andara cerca de cem braças quando o cabresto de cabelo que trazia no ombro se
enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que
interrompiam a passagem.
Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se percebendo rumor de garranchos, voltou-se e
deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara à cadeia, onde ele aguentara uma surra e passara a noite.
Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo
teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o
gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário. A
lâmina parou de chofre, junto à cabeça do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o vaqueiro não compreendeu
nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade.
Sentiu um choque violento, deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para outro.
O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os
músculos afrouxavam. Realmente não quisera matar um cristão: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e
espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sela. Alguma coisa o empurrava para a direita ou para a esquerda. Era essa
coisa que ia partindo a cabeça do amarelo. Se ela tivesse demorado um minuto, Fabiano seria um cabra valente. Não
demorara. A certeza do perigo surgira — e ele estava indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um espanto
verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos.
Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe pareceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca vira
uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na cidade? não pisava os pés dos matutos, na feira? não botava gente
na cadeia? Sem-vergonha, mofino.
Irritou-se. Por que seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se? Não
via? Fechou a cara. A ideia do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquilo nem precisava facão, bastavam as unhas.
Agitando os chocalhos e os látegos, chegou a mão esquerda, grossa e cabeluda, à cara do polícia, que recuou e se encostou a
uma catingueira. Se não fosse a catingueira, o infeliz teria caído.
Fabiano pregou nele os olhos ensanguentados, meteu o facão na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra
que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava
certo? O rosto de Fabiano contraía-se medonho, mais feio que um focinho. Hem? estava certo? Bulir com as pessoas que não
fazem mal a ninguém. Por quê? Sufocava-se, as rugas da testa aprofundavam-se, os pequenos olhos azuis abriam-se demais,
numa interrogação dolorosa.
O soldado encolhia-se, escondia-se por detrás da árvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. Desejava ficar
cego outra vez. Impossível readquirir aquele instante de inconsciência. Repetia que a arma era desnecessária, mas tinha a
certeza de que não conseguiria utilizá-la — e apenas queria enganar-se. Durante um minuto a cólera que sentia por se
considerar impotente foi tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo.
A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se — e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo
amolecido.
Grudando-se à catingueira, o soldado apresentava apenas um braço, uma perna e um pedaço da cara, mas esta banda de
homem começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou
afastar a ideia absurda: — Como a gente pensa coisas bestas!
Alguns minutos antes não pensava em nada, mas agora suava frio e tinha lembranças insuportáveis. Era um sujeito violento,
de coração perto da goela. Não, era um cabra que se arreliava algumas vezes — e quando isto acontecia, sempre se dava mal.
Naquela tarde, por exemplo, se não tivesse perdido a paciência e xingado a mãe da autoridade, não teria dormido na cadeia
depois de aguentar zinco no lombo. Dois excomungados tinham-lhe caído em cima, um ferro batera-lhe no peito, outro nas
costas, ele se arrastara tiritando como um frango molhado. Tudo porque se esquentara e dissera uma palavra
inconsideradamente. Falta de criação. Tinha lá culpa? O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os feirantes que se
apertavam em redor: — “Toca pra frente.” Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano, tinha sido
provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reiuna em cima da alpercata. Impacientara-se e largara o palavrão. Natural, xingar a
mãe de uma pessoa não vale nada, porque todo o mundo vê logo que a gente não tem a intenção de maltratar ninguém. Um
ditério sem importância. O amarelo devia saber isso. Não sabia. Saíra-se com quatro pedras na mão, apitara. E Fabiano
comera da banda podre. — “Desafasta.”
Deu um passo para a catingueira. Se ele gritasse agora “Desafasta”, que faria o polícia? Não se afastaria, ficaria colado ao
pé de pau. Uma lazeira, a gente podia xingar a mãe dele. Mas então... Fabiano estirava o beiço e rosnava. Aquela coisa
arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque, estava
certo. Enfim apanhar do governo não é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo...
Soltou uns grunhidos. Por que motivo o governo aproveitava gente assim? Só se ele tinha receio de empregar tipos direitos.
Aquela cambada só servia para morder as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os
pés dos trabalhadores e dar pancada neles? Não iria.
Aproximou-se lento, fez uma volta, achou-se em frente do polícia, que embasbacou, apoiado ao tronco, a pistola e o punhal
inúteis. Esperou que ele se mexesse. Era uma lazeira, certamente, mas vestia farda e não ia ficar assim, os olhos arregalados,
os beiços brancos, os dentes chocalhando como bilros. Ia bater o pé, gritar, levantar a espinha, plantar-lhe o salto da reiuna
em cima da alpercata. Desejava que ele fizesse isso. A ideia de ter sido insultado, preso, moído por uma criatura mofina era
insuportável. Mirava-se naquela covardia, via-se mais lastimoso e miserável que o outro.
Baixou a cabeça, coçou os pelos ruivos do queixo. Se o soldado não puxasse o facão, não gritasse, ele, Fabiano, seria um
vivente muito desgraçado.
Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um bicho resistente, calejado. Tinha nervo, queria brigar, meterase em espalhafatos e saíra de crista levantada. Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmea e cachaça. Uma vez, de
lambedeira em punho, espalhara a negrada. Aí sinha Vitória começara a gostar dele. Sempre fora reimoso. Iria esfriando com
a idade? Quantos anos teria? Ignorava, mas certamente envelhecia e fraquejava. Se possuísse espelhos, veria rugas e cabelos
brancos. Arruinado, um caco. Não sentira a transformação, mas estava-se acabando.
O suor umedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo de uma peste que se escondia tremendo? Não era uma
infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim
mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo, muito diferente do Fabiano que levantava poeira
nas salas de dança. Um Fabiano bom para aguentar facão no lombo e dormir na cadeia.
Virou a cara, enxergou o facão de rasto. Aquilo nem era facão, não servia para nada.
Ora não servia! — Quem disse que não servia?
Era um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando palmas de quipá. E estivera a pique de rachar o
quengo de um sem-vergonha. Agora dormia na bainha rota, era um troço inútil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa
tivesse durado mais um segundo, o polícia estaria morto. Imaginou-o assim, caído, as pernas abertas, os bugalhos apavorados,
um fio de sangue empastando-lhe os cabelos, formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia arrastá-lo para
dentro da catinga, entregá-lo aos urubus. E não sentiria remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na cama de varas. Depois
gritaria aos meninos, que precisavam criação. Era um homem, evidentemente.
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto
da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo?
Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a
pena inutilizar-se. Guardava a sua força.
Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho.
E Fabiano tirou o chapéu de couro. — Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.
*** *** https://iedamagri.files.wordpress.com/2020/02/vidas-secas-graciliano-ramos.pdf *** ***
***
***
Twitter
Carlos Andreazza (@andreazzaeditor) / Twitter
***
terça-feira, 7 de dezembro de 2021
Carlos Andreazza - Como se faz um Mendonça
O Globo
André Mendonça é ministro do Supremo. Pode-se afirmar que tinha, no momento da sabatina, saber jurídico maior que o de Dias Toffoli quando de sua inquirição no Senado; ambos, um como ministro da Justiça, o outro, como guarda da Constituição, tendo usado a autocrática Lei de Segurança Nacional — que confunde a defesa impessoal de Poderes com a proteção personalista do poderoso de turno — contra o que consideraram ameaças institucionais à República, o primeiro para intimidar críticos de Jair Bolsonaro, o segundo com censura a uma revista, a Crusoé, cuja investigação lhe fora desagradável.
Aos que já reagem dizendo que não se podem comparar atos discricionários de Toffoli/Moraes, porque centrados em bandidos bolsonaristas, com os de Mendonça, cujo ministério abrigou dossiê contra servidores, pergunto se não terá sido essa relativização do bem, pela causa virtuosa, uma das máquinas a asfaltar a estrada por meio da qual sectários (também) reivindicam o direito de interpretar a Constituição enviesadamente desde o Supremo. Hein?
Um Toffoli, advogado de partido, sempre chama um fundamentalista advogado de capitão.
Isso para desde logo dizer que a dilapidação do STF não começou ontem e não deriva exclusivamente de despreparo; mas da compreensão da Corte como arena político-partidária, palco para pelejas ideológicas, logo terreno para a representação de grupos de interesse.
Antes o problema fosse o debate sobre se Mendonça seria — será — garantista ou lavajatista, contenda que ainda vai contida no terreno do Direito e que, afinal, somente indica que alguém terá sido enganado. Nenhuma novidade. Mendonça falou o que quis e mentiu no Congresso porque a sabatina foi convescote. De novo: nenhuma novidade.
Não temos garantistas e lavajatistas. Temos, com exceções, garantistas e lavajatistas de ocasião, que modulam seus rigores — como facções políticas — segundo os ventos das circunstâncias. Um convite ao oportunismo e, pois, aos vendilhões. Daí se chega a um Mendonça no Supremo, produto do espírito justiceiro de nosso tempo, ao que se soma a forma patrimonialista como o populista Bolsonaro entende o tribunal constitucional.
Desde há muito especulo sobre o que alguém como Mendonça, tendo feito o que fez como ministro da Justiça, faria com os instrumentos de que dispõe Alexandre de Moraes e a partir da picada aberta para o inquérito das fake news. Cancha livre para a briga de rua — para a forra — por meio de atos de ofício. É muito atraente, para a mentalidade fundamentalista, a forma como ministros do Supremo exercem o poder monocrático.
Fala-se que a confirmação de Mendonça no Supremo não seria uma vitória de Bolsonaro, em função de o presidente não ter se empenhado. Não se empenhou? Ora. Ele disse que o próximo ministro seria “terrivelmente evangélico”. Seu critério se impôs. A porteira está aberta. O presidente transferiu a campanha por seu indicado para uma federação de empresas religiosas. Fortaleceu vínculos. Levou o fundamentalismo religioso a se articular — e a se estabelecer — dentro do Senado da República, enfraquecendo ao mesmo tempo STF e Senado. Usou uma cadeira no tribunal constitucional para fazer política com sua base de apoio fundamental. E ainda aprofundou, materialmente, a noção que tem sobre o que seja um assento na Corte: Bolsonaro era, com Nunes Marques, 10%. Terá agora 20% do tribunal. (Contas dele, por favor.)
Não há problema algum em Mendonça ser evangélico. Não há qualquer problema em que ministro do STF seja evangélico. O problema está na fé religiosa como razão para alguém ser ministro da Corte. O problema está em ministro do Supremo se apresentar como representante de segmento da sociedade. A ideia de grupos de pressão serem espelhados no Supremo é uma barbaridade antirrepublicana. O STF não é o Parlamento, espaço em que bancadas se organizam e grupos sociais têm seus agentes.
Ministros do Supremo que são articuladores políticos, a cujos arranjos adaptam o entendimento das leis, e que se jactam de deter um poder moderador não previsto na Carta, afastam-se dos marcos constitucionais, afrouxam as estacas das jurisprudências, tornam o tribunal incerto como uma biruta ao vento — e não tardam a atrair os que também se querem parte atuante-influente nessa disfunção.
Quando o Supremo invade o âmbito do Parlamento para deliberar sobre matérias que caberiam apenas a deputados e senadores, e sob o argumento de que o Congresso, atrasado, não se moveria, faz-se o convite à pretensão-ascensão de novos legisladores togados dispostos a fazer avançar, via STF, pautas sectárias que grupos específicos também avaliam não andar no Legislativo.
André Mendonça no Supremo é reação a um Supremo ativista. É reação fundamentalista de grupo de pressão que se quer ativo num tribunal percebido como ativista. Mendonça é reação — reação por meio de infiltração consciente — de um partido político, o evangélico, a um Supremo cujo comportamento informa que ali também se pode formar bancada.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário