Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
FUGA
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Viva Decora.
Ponto de fuga: quantos utilizar em um desenho?
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Mateus 2:13-23
Nova Versão Internacional
A Fuga para o Egito
13 Depois que partiram, um anjo do Senhor apareceu a José em sonho e lhe disse: “Levante-se, tome o menino e sua mãe, e fuja para o Egito. Fique lá até que eu lhe diga, pois Herodes vai procurar o menino para matá-lo”.
14 Então ele se levantou, tomou o menino e sua mãe durante a noite, e partiu para o Egito, 15 onde ficou até a morte de Herodes. E assim se cumpriu o que o Senhor tinha dito pelo profeta: “Do Egito chamei o meu filho”[a].
16 Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos. 17 Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias:
18 “Ouviu-se uma voz em Ramá,
choro e grande lamentação;
é Raquel que chora por seus filhos
e recusa ser consolada,
porque já não existem”[b].
A Volta para Israel
19 Depois que Herodes morreu, um anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito, 20 e disse: “Levante-se, tome o menino e sua mãe, e vá para a terra de Israel, pois estão mortos os que procuravam tirar a vida do menino”.
21 Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, e foi para a terra de Israel. 22 Mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judéia em lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Tendo sido avisado em sonho, retirou-se para a região da Galiléia 23 e foi viver numa cidade chamada Nazaré. Assim cumpriu-se o que fora dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno”[c].
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Footnotes
2.15 Os 11.1
2.18 Jr 31.15
2.23 Provável referência a textos como Is 11.1, no hebraico.
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Cultura Genial
Retirantes de Candido Portinari: análise e interpretação do quadro - Cultura Genial
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MASP - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Google Arts & Culture
Os Retirantes
Obra de arte
Retirantes é uma pintura de Candido Portinari, pintada na cidade de Petrópolis no ano de 1944. Esta obra faz parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo. Wikipédia
Artista: Candido Portinari
Conclusão: 1944
Período: Expressionismo
Técnica: tinta a óleo, tela
Dimensões: 190 centímetro x 180 centímetro
Localização: Museu de Arte de São Paulo
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Interior da Bahia
Romance de Graciliano Ramos, 'Vidas Secas' completa 80 anos – Interior da
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Fuga
Avida na fazenda se tornara difícil. Sinha Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas
desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam,
trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham
desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.
Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro
morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar
aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.
Saíram de madrugada. Sinha Vitória meteu o braço pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com a taramela.
Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que
apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, sinha Vitória lembrou-se da
cachorra Baleia, chorou, mas estava invisível e ninguém percebeu o choro.
Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul. Com a fresca da madrugada, andaram bastante, em
silêncio, quatro sombras no caminho estreito coberto de seixos miúdos — os meninos à frente, conduzindo trouxas de roupa,
sinha Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de água, Fabiano atrás, de facão de rasto e faca de ponta, a cuia pendurada
por uma correia amarrada ao cinturão, o aió a tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o saco da matalotagem no
outro. Caminharam bem três léguas antes que a barra do nascente aparecesse.
Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastara-se até ali na
incerteza de que aquilo fosse realmente mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os a
poupar forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela.
Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando estava definitivamente perdido. Podia
continuar a viver num cemitério? Nada o prendia àquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que
Fabiano dizia, pensando em coisas alheias: o chiqueiro e o curral, que precisavam conserto, o cavalo de fábrica, bom
companheiro, a égua alazã, as catingueiras, as panelas de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pés dele
esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuridão. Seria necessário largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho
coberto de seixos.
Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade. Procurou distinguir
qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos grossas, por baixo da
aba curva do chapéu, protegiam-lhe os olhos contra a claridade e tremiam.
Os braços penderam, desanimados. — Acabou-se.
Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul.
Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim.
Desde o aparecimento das arribações vivia desassossegado. Trabalhava demais para não perder o sono. Mas no meio do
serviço um arrepio corria-lhe no espinhaço, à noite acordava agoniado e encolhia-se num canto da cama de varas, mordido
pelas pulgas, conjecturando misérias.
A luz aumentou e espalhou-se na campina. Só aí principiou a viagem. Fabiano atentou na mulher e nos filhos, apanhou a
espingarda e o saco dos mantimentos, ordenou a marcha com uma interjeição áspera.
Afastaram-se rápidos, como se alguém os tangesse, e as alpercatas de Fabiano iam quase tocando os calcanhares dos
meninos. A lembrança da cachorra Baleia picava-o, intolerável. Não podia livrar-se dela. Os mandacarus e os alastrados
vestiam a campina, espinho, só espinho. E Baleia aperreava-o. Precisava fugir daquela vegetação inimiga.
Os meninos corriam. Sinha Vitória procurou com a vista o rosário de contas brancas e azuis arrumado entre os peitos, mas,
com o movimento que fez, o baú de folha pintada ia caindo. Aprumou-se e endireitou o baú, remexeu os beiços numa oração.
Deus Nosso Senhor protegeria os inocentes. Sinha Vitória fraquejou, uma ternura imensa encheu-lhe o coração. Reanimou-se,
tentou libertar-se dos pensamentos tristes e conversar com o marido por monossílabos. Apesar de ter boa ponta de língua,
sentia um aperto na garganta e não poderia explicar-se. Mas achava-se desamparada e miúda na solidão, necessitava um
apoio, alguém que lhe desse coragem. Indispensável ouvir qualquer som. A manhã, sem pássaros, sem folhas e sem vento,
progredia num silêncio de morte. A faixa vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu. Sinha Vitória precisava
falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a
quentura medonha, as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada. Chegou-se a Fabiano,
amparou-o e amparou-se, esqueceu os objetos próximos, os espinhos, as arribações, os urubus que farejavam carniça. Falou
no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido?
Fabiano hesitou, resmungou, como fazia sempre que lhe dirigiam palavras incompreensíveis. Mas achou bom que sinha
Vitória tivesse puxado conversa. Ia num desespero, o saco da comida e o aió começavam a pesar excessivamente. Sinha
Vitória fez a pergunta, Fabiano matutou e andou bem meia légua sem sentir. A princípio quis responder que evidentemente eles
eram o que tinham sido; depois achou que estavam mudados, mais velhos e mais fracos. Eram outros, para bem dizer. Sinha
Vitória insistiu. Não seria bom tornarem a viver como tinham vivido, muito longe? Fabiano agitava a cabeça, vacilando.
Talvez fosse, talvez não fosse. Cochicharam uma conversa longa e entrecortada, cheia de mal-entendidos e repetições. Viver
como tinham vivido, numa casinha protegida pela bolandeira de seu Tomás. Discutiram e acabaram reconhecendo que aquilo
não valeria a pena, porque estariam sempre assustados, pensando na seca. Aproximavam-se agora dos lugares habitados,
haveriam de achar morada. Não andariam sempre à toa, como ciganos. O vaqueiro ensombrava-se com a ideia de que se
dirigia a terras onde talvez não houvesse gado para tratar. Sinha Vitória tentou sossegá-lo dizendo que ele poderia entregar-se
a outras ocupações, e Fabiano estremeceu, voltou-se, estirou os olhos em direção à fazenda abandonada. Recordou-se dos
animais feridos e logo afastou a lembrança. Que fazia ali virado para trás? Os animais estavam mortos. Encarquilhou as
pálpebras contendo as lágrimas, uma grande saudade espremeu-lhe o coração, mas um instante depois vieram-lhe ao espírito
figuras insuportáveis: o patrão, o soldado amarelo, a cachorra Baleia inteiriçada junto às pedras do fim do pátio.
Os meninos sumiam-se numa curva do caminho. Fabiano adiantou-se para alcançá-los. Era preciso aproveitar a disposição
deles, deixar que andassem à vontade. Sinha Vitória acompanhou o marido, chegou-se aos filhos. Dobrando o cotovelo da
estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido alguns anos; o patrão, o soldado amarelo e a
cachorra Baleia esmoreceram no seu espírito.
E a conversa recomeçou. Agora Fabiano estava meio otimista. Endireitou o saco da comida, examinou o rosto carnudo e as
pernas grossas da mulher. Bem. Desejou fumar. Como segurava a boca do saco e a coronha da espingarda, não pôde realizar o
desejo. Temeu arriar, não prosseguir na caminhada. Continuou a tagarelar, agitando a cabeça para afugentar uma nuvem que,
vista de perto, escondia o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia. Os pés calosos, duros como cascos, metidos em
alpercatas novas, caminhariam meses. Ou não caminhariam? Sinha Vitória achou que sim. Fabiano agradeceu a opinião dela e
gabou-lhe as pernas grossas, as nádegas volumosas, os peitos cheios. As bochechas de sinha Vitória avermelharam-se e
Fabiano repetiu com entu-siasmo o elogio. Era. Estava boa, estava taluda, poderia andar muito. Sinha Vitória riu e baixou os
olhos. Não era tanto como ele dizia não. Dentro de pouco tempo estaria magra, de seios bambos. Mas recuperaria carnes. E
talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinha
Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira?
Fabiano franziu a testa: lá vinham os despropósitos. Sinha Vitória insistiu e dominou-o. Por que haveriam de ser sempre
desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos,
como bichos? Fabiano respondeu que não podiam. — O mundo é grande.
Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande — e marchavam, meio confiados, meio inquietos.
Olharam os meninos, que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu sinha
Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas sinha Vitória renovou a
pergunta — e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os
filhos quando crescessem. — Vaquejar, opinou Fabiano.
Sinha Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa
Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que ideia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde
havia montes baixos, cascalho, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais,
resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos? Fixarse-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.
Fabiano ouviu os sonhos da mulher, deslumbrado, relaxou os músculos, e o saco da comida escorregou-lhe no ombro.
Aprumou-se, deu um puxão à carga. A conversa de sinha Vitória servira muito: haviam caminhado léguas quase sem sentir. De
repente veio a fraqueza. Devia ser fome. Fabiano ergueu a cabeça, piscou os olhos por baixo da aba negra e queimada do
chapéu de couro. Meio-dia, pouco mais ou menos. Baixou os olhos encandeados, procurou descobrir na planície uma sombra
ou sinal de água. Estava realmente com um buraco no estômago. Endireitou o saco de novo e, para conservá-lo em equilíbrio,
andou pendido, um ombro alto, outro baixo. O otimismo de sinha Vitória já não lhe fazia mossa. Ela ainda se agarrava a
fantasias. Coitada. Armar semelhantes planos, assim bamba, o peso do baú e da cabaça enterrando-lhe o pescoço no corpo.
Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira, mastigaram punhados de farinha e pedaços de carne, beberam na
cuia uns goles de água. Na testa de Fabiano o suor secava, misturando-se à poeira que enchia as rugas fundas, embebendo-se
na correia do chapéu. A tontura desaparecera, o estômago sossegara. Quando partissem, a cabaça não envergaria o espinhaço
de sinha Vitória. Instintivamente procurou no descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o. Mostrou os dentes
sujos num riso infantil. Como podia ter frio com semelhante calor? Ficou um instante assim besta, olhando os filhos, a mulher
e a bagagem pesada. O menino mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se da cachorra Baleia, outro
arrepio correu-lhe a espinha, o riso besta esmoreceu.
Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto a sinha Vitória
e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro, não era? Sinha Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano afirmou o
que havia perguntado. Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher tivesse concordado,
Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava convicção; como sinha Vitória tinha dúvidas, Fabiano exaltava-se, procurava incutir-lhe
coragem. Inventava o bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo. E sinha Vitória excitava-se, transmitialhe esperanças. Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de Fabiano? Tratar de bichos, explorar os arredores, no
lombo de um cavalo. E ele explorava tudo. Para lá dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para cá,
na planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.
Os meninos deitaram-se e pegaram no sono. Sinha Vitória pediu o binga ao companheiro e acendeu o cachimbo. Fabiano
preparou um cigarro. Por enquanto estavam sossegados. O bebedouro indeciso tornara-se realidade. Voltaram a cochichar
projetos, as fumaças do cigarro e do cachimbo misturaram-se. Fabiano insistiu nos seus conhecimentos topográficos, falou no
cavalo de fábrica. Ia morrer na certa, um animal tão bom. Se tivesse vindo com eles, transportaria a bagagem. Algum tempo
comeria folhas secas, mas além dos montes encontraria alimento verde. Infelizmente pertencia ao fazendeiro — e definhava,
sem ter quem lhe desse a ração. Ia morrer o amigo, lazarento e com esparavões, num canto de cerca, vendo os urubus
chegarem banzeiros, saltando, os bicos ameaçando-lhe os olhos. A lembrança das aves medonhas, que ameaçavam com os
bicos pontudos os olhos de criaturas vivas, horrorizou Fabiano. Se elas tivessem paciência, comeriam tranquilamente a
carniça. Não tinham paciência, aquelas pestes vorazes que voavam lá em cima, fazendo curvas. — Pestes.
Voavam sempre, não se podia saber donde vinha tanto urubu. — Pestes.
Olhou as sombras movediças que enchiam a campina. Talvez estivessem fazendo círculos em redor do pobre cavalo
esmorecido num canto de cerca. Os olhos de Fabiano se umedeceram. Coitado do cavalo. Estava magro, pelado, faminto, e
arredondava uns olhos que pareciam de gente. — Pestes.
O que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que já não se
podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num voo baixo,
fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo, de sinha Vitória e dos meninos.
Sinha Vitória percebeu-lhe a inquietação na cara torturada e levantou-se também, acordou os filhos, arrumou os picuás.
Fabiano retomou o carrego. Sinha Vitória desatou-lhe a correia presa ao cinturão, tirou a cuia e emborcou-a na cabeça do
menino mais velho, sobre uma rodilha de molambos. Em cima pôs uma trouxa. Fabiano aprovou o arranjo, sorriu, esqueceu os
urubus e o cavalo. Sim senhor. Que mulher! Assim ele ficaria com a carga aliviada e o pequeno teria um guarda-sol. O peso da
cuia era uma insignificância, mas Fabiano achou-se leve, pisou rijo e encaminhou-se ao bebedouro. Chegariam lá antes da
noite, beberiam, descansariam, continuariam a viagem com o luar. Tudo isso era duvidoso, mas adquiria consistência. E a
conversa recomeçou, enquanto o sol descambava. — Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou Fabiano desafiando o céu, os espinhos e os urubus. — Não é? murmurou sinha Vitória sem perguntar, apenas confirmando o que ele dizia.
Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a
Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos
frequentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinha Vitória esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as mãos
agarradas à boca do saco e a coronha da espingarda de pederneira.
Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que empestavam o
caminho. As palavras de sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava
contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de sinha
Vitória, as palavras que sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho.
Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois
velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos.
Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão
mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos.
*** *** https://iedamagri.files.wordpress.com/2020/02/vidas-secas-graciliano-ramos.pdf *** ***++
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Artes Visuais Pintura
Retirantes de Candido Portinari: análise e interpretação do quadro
Rebeca Fuks Revisão por Rebeca Fuks Doutora em Estudos da Cultura
Retirantes é um quadro de Candido Portinari, pintado em 1944 em Petrópolis, no Rio de Janeiro.
O painel é um óleo sobre tela e tem 190 X 180 cm, faz parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e retrata uma família de retirantes, pessoas que se retiram de uma região para outra em busca de condições melhores de vida.
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quadro Retirantes de Candido Portinari
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Análise e interpretação
Os principais elementos da tela
O quadro é composto por tons terrosos e cinza. A família de retirantes ao centro toma quase a totalidade da tela. O contorno escuro dos personagens dá um tom pesado à obra. Ao fundo se vê a paisagem do sertão.
Urubus
O chão é duro, com pedras e ossos espalhados, e a única coisa que se vê no horizonte é o contorno quase indistinto de uma montanha. O horizonte é claro, mas o céu é escuro e cheio de aves negras que rodeiam a família como se estivessem esperando pela morte deles.
Ainda se vê um pequeno grupo de aves que desce em direção ao solo, todas muito próximas, como urubus atacando uma carniça.
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urubus
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Crianças
Há cinco crianças na pintura. Duas estão ao colo e as outras três estão em pé. Uma das crianças no colo é grande, porém raquítica. As pinceladas escuras ao longo da figura dão a impressão de que ela é feita apenas de ossos.
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criançaosso
No primeiro plano vemos uma criança em pé, com a barriga saliente e o pescoço muito fino. O tamanho da barriga, desproporcional ao resto do corpo, indica que a criança tem barriga d'água.
Essa doença é muito comum nos lugares marcados pela seca extrema, onde a única fonte de água vem de açudes e não é tratada. A presença dessa criança nos traz a imagem de uma extrema pobreza que também convive com a sede.
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barrigadaua
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Adultos
Enquanto os olhares das crianças são distantes e desolados, os adultos apresentam expressões mais fortes, que beiram o desespero.
O homem que carrega uma trouxa nas costas e conduz uma criança pelas mãos parece estar olhando fixamente para o pintor, o que dá para a pintura um caráter de retrato. Seu olhar também parece um apelo, um pedido de ajuda.
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homemolhar
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Interpretação
O quadro é um retrato da miséria de uma família de retirantes entre tantas outras. Fogem da seca e da fome do Nordeste em busca de uma vida melhor mais ao Sul. O quadro faz parte de uma série composta por mais duas obras: Criança morta e Enterro na Rede.
Todas as peças são compostas pelo mesmo tema e com as mesma tonalidades, dando uma unidade para o conjunto. O tema é a seca, que provocou muitas mortes e uma migração em massa.
As convicções políticas e a consciência social do pintor são essenciais na composição dessa obra. Retratar a miséria, de uma forma tão crua, é um modo de se posicionar contra ela. Ao mesmo tempo em que as cidades brasileiras se desenvolviam, o campo era o palco da fome.
Contexto
Portinari nasceu e cresceu na cidade de Brodowski, que fica no interior de São Paulo, em 1903. Filho de imigrantes italianos que trabalhavam em plantação de café, Portinari teve uma infância simples.
As imagens de quando ele era criança são constantes inspirações para as suas obras. Portinari fala como os retirantes o impressionavam, principalmente na fase da grande seca de 1915, que matou milhares de pessoas e levou à fuga de muitas outras.
A miséria dos retirantes e a esperança de uma vida melhor marcaram o menino que via uma leva de migrantes passando pela sua cidade.
Portinari se muda para o Rio de Janeiro aos quinze anos para estudar pintura. Lá, aprimora as suas técnicas e se dedica a retratos com o objetivo de ganhar a medalha de ouro do Salão da Escola Nacional de Belas Artes (Enba). Ele de fato ganha o Prêmio em 1928, o que lhe dá a oportunidade de morar na França por dois anos, de onde viaja pela Europa.
No velho continente, Portinari entra em contato com diversas obras, tem grande admiração por Rafael e Ticiano, pintores clássicos. O tempo passado na Europa serve para o artista ter uma visão mais afastada da sua infância e da sua cidade natal.
Essa visão possibilita um entendimento melhor de suas origens, que serão abordadas diversas vezes em suas obras. Ele volta ao Brasil em 1931, decidido a retratar as imagens da sua infância e do seu povo.
Portinari define a sua pintura como sendo "de camponês". Seus pais eram camponeses pobres e ele não podia se esquecer deles. Com o final da Segunda Guerra e o começo da abertura política no Brasil, Candido se filia ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Portinari diz não entender de política, mas tem convicções profundas e chegou a elas devido à sua infância pobre, ao seu trabalho e principalmente devido ao seu interesse artístico. Para o pintor não existe obra neutra. Mesmo quando o artista não tem intenção, o quadro sempre indica um sentido social.
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Rebeca Fuks
Revisão por Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).
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*** *** https://www.culturagenial.com/quadro-retirantes-de-candido-portinari/ *** ***
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Fuga | VIDAS SECAS | PROJETO UERJ #16
931 visualizações28 de nov. de 2019
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Do Monteiro
19,4 mil inscritos
E o ciclo recomeça: Fabiano e sua família fogem do destino já conhecido e se lançam na estrada na esperança de achar um futuro melhor para a família. No entanto, a falta de instrução, de perspectivas condenam o destino delas e a única certeza é uma caminhada que levará a outra fazenda, a outra fuga, a um ciclo a que estão condenados.
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HISTÓRIARomance de Graciliano Ramos, ‘Vidas Secas’ completa 80 anos
Posted on 8 de abril de 2018
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“O mulungu de bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo”. O trecho, que abre o capítulo “O Mundo Coberto de Penas”, do clássico “Vidas Secas”, refere-se ao movimento migratório, principalmente de aves. No romance, o fenômeno anuncia a hora de a família de Sinhá Vitória e Fabiano enfrentarem novamente a estrada, rumo à luta pela sobrevivência em um cenário marcado pela precariedade e pela escassez.
Publicada em 1938, a ficção de Graciliano Ramos (1892-1953) chega aos 80 anos com motivos de sobra para ser revisitada. Afinal, deslocamentos humanos forçados, como os abordados na narrativa, nunca deixaram de existir e, nos últimos anos, têm aumentado, atingindo números alarmantes, que extrapolam os índices registrados décadas atrás.
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De acordo com o relatório divulgado no ano passado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, 65,6 milhões de pessoas encontravam-se nessa condição em 2016, em razão de problemas como fome, pobreza, perseguições, guerra e conflitos armados. Tal crise humanitária deixa evidente como os temas abordados em “Vidas Secas” seguem bastante atuais. “A questão dos retirantes continua visível no nossos dias, mas eles aparecem agora com outro nome: refugiados. São pessoas que estão completamente abandonadas, têm que sair de onde estão; eles são os ‘deserdados da terra’, como falava Graciliano”, pontua Wander Melo Miranda, que é professor da faculdade de letras da UFMG e especialista na obra do autor.
A maneira como a narrativa dialoga com o presente, para Ricardo Ramos Filho – que é neto de Graciliano e pesquisador do legado do avô –, demonstra que “o livro nunca foi um escrito regionalista”. “‘Vidas Secas’ é um romance que poderia acontecer em qualquer região do mundo em que houvesse retirantes. Basta visualizarmos países como a Síria ou a Bósnia (e Herzegovina) de não muito tempo atrás. Nesses países, encontramos pessoas em situação de penúria muito semelhante à da família de Fabiano e Sinhá Vitória. Nesse aspecto, não podemos classificar esse título como um romance regionalista. Isso seria reduzir a obra de Graciliano a um determinado espaço geográfico, o que não é justo”, frisa Ramos Filho.
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Tendo em vista a relevância da ficção, haverá uma série de comemorações a serem desenvolvidas ao longo do ano. Uma delas, segundo Ramos Filho, será a publicação de uma nova edição do volume, prevista para sair no segundo semestre, pela editora Record, com algumas novidades. “Nós estamos pensando em fazer uma edição baseada nos manuscritos de ‘Vidas Secas’ que fazem parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Há uma ideia de começar cada capítulo do livro com uma página manuscrita dos originais”, afirma ele.
Contexto
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Ramos Filho também recorda que “Vidas Secas” não foi escrito para ser romance e surgiu a partir de uma série de contos. O primeiro deles é o que retrata a morte da cachorra Baleia. “Depois, Graciliano escreveu os outros textos e reuniu tudo até formar o livro. Por esse motivo, ‘Vidas Secas’ é diferente dos três primeiros romances de Graciliano. Ele lança ‘Caetés’, em 1933; ‘São Bernardo’, em 1936; e ‘Angústia’, em 1936. Todos esses foram escritos com estrutura de romance mesmo e, em comum, trazem um narrador em primeira pessoa – diferentemente de ‘Vidas Secas’, que é fragmentado e narrado em terceira pessoa”, observa ele.
O célebre título veio à luz cerca de um ano após Graciliano deixar a prisão, durante a ditadura do governo de Getúlio Vargas (1882- 1954). Ele foi encarcerado sem passar por um julgamento, tornando-se um preso político, vítima da perseguição ao comunismo, embora só tenha se filiado ao partido em 1945. Ramos Filho sublinha que esse acontecimento teve um impacto direto na trajetória literária do escritor.
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“A prisão dele faz com que a obra de Graciliano ganhe outra direção. Ele tinha publicado três romances, mas quando se vê solto no Rio de Janeiro, em 1937, desempregado e com a família para criar, ele precisava fazer dinheiro rápido e só sabia fazer isso escrevendo. Então, ele opta por conceber textos mais curtos, como contos, que poderiam ser rapidamente publicados em jornal. ‘Vidas Secas’ foi escrito dentro dessa nova necessidade de subsistência”, relata Ramos Filho.
Além disso, a injustiça sofrida por Graciliano encontra ecos diretos em “Vida Secas”, como pode ser percebido no episódio em que Fabiano é preso pelo Soldado Amarelo sem nenhuma justificativa. “Assim como Fabiano é preso sem motivo, Graciliano é encarcerado sem um processo formal. No livro, ele trata dessa arbitrariedade da lei, que não funciona como deveria e apenas está a serviço de alguns”, afirma Miranda.
Ramos Filho completa que Graciliano buscava intervir nessa realidade a partir de sua literatura. “A arma dele sempre foi a pena. ‘Vidas Secas’ é realmente uma denúncia contra a violência infligida aos mais pobres e contra a incapacidade do governo de fazer algo que minorasse o sofrimento da população frente à seca”, diz.
O compromisso de Graciliano com um projeto que alia ética e estética, para Miranda, também se reflete na maneira como o autor “abriu espaço para a linguagem dos indivíduos que sofrem”. De acordo com ele, não é por acaso que personagens como Fabiano e Sinhá Vitória são apresentados quase desprovidos da capacidade de comunicação. “Isso reforça a dificuldade de eles encontrarem uma linguagem para expressar o sofrimento que é a dor por meio do discurso verbal”, completa Miranda.
Para ele, ao praticar essa abordagem, Graciliano evitou “falar por aqueles que sentem a dor”. “O sofrimento é da ordem do irrepresentável, e Graciliano abre caminho para a reflexão sobre isso. Por isso a obra dele é grande e segue atualíssima”, conclui Miranda. (Informações do jornal O Tempo).
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Pinterest
Modelo de escrita que havia na placa na cruz | Jesus na cruz, Cruz, Imagens do
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Acima do corpo de Jesus, no alto da cruz, aparece uma tabuleta com 4 letras: INRI. Em latim, Iesus Nazarenus Rex Iudeum (Jesus Nazareno, Rei dos Judeus).
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João 19:19-22 NVT
Pilatos colocou no alto da cruz uma placa que dizia: “Jesus, o nazareno, Rei dos judeus”. O lugar onde Jesus foi crucificado ficava perto da cidade, e a placa estava escrita em aramaico, latim e grego, de modo que muitos judeus podiam ler a inscrição. Os principais sacerdotes disseram a Pilatos: “Mude a inscrição de ‘Rei dos judeus’ para ‘Ele disse: Eu sou o rei dos judeus’”. Pilatos respondeu: “O que escrevi, escrevi”.
NVT: Bíblia Sagrada, Nova Versão Transformadora
quod scripsi, scripsi
Significado de quod scripsi, scripsi
O que escrevi, escrevi. Foi como Pilatos respondeu aos sacerdotes que o censuravam por mandar colocar na cruz de Cristo a legenda: Jesus nazareno rei dos judeus (Jo. XIX, 22).
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"O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo." Todos conhecem a história do filho de José e Maria, mas nesta narrativa ela ganha tanta beleza e tanta pungência que é como se estivesse sendo contada pela primeira vez. Nas palavras de José Paulo Paes: "Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão".
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O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO
José Saramago
Digitalização e tratamento do texto por Guilherme Jorge
(esta obra foi digitalizada para uso exclusivo por parte de
deficientes visuais ao abrigo do artigo 80 do CDADC)
Já que muitos empreenderam compor
uma narração dos factos que entre nós
se consumaram, como no-los transmitiram
os que desde o princípio foram testemunhas
oculares e se tornaram servidores
da Palavra, resolvi eu também,
depois de tudo ter investigado cuidadosamente
desde a origem, expor-tos por
escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo,
a fim de que reconheças a solidez da
doutrina em que foste instruído.
LUCAS, 1, 1-4
Quod scripsi, scripsi.
PILATOS
O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo,
o que se encontra à esquerda de quem olha, representando,
o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram
raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma
rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para
onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que
chora, crispado de uma dor que não remite, lançando
pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir,
pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de
nós é papel e tinta, mais nada.
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O EVANGELHO SEGUNDO JOSÉ SARAMAGO
Como o escritor humaniza as concepções sagradas da Bíblia
Trata-se de uma história absolutamente humanizada, com um Cristo cheio de imperfeições e vícios nada divinos, com um Deus consciente do preço que a humanidade terá de pagar para que seu poder se estabeleça entre os homens.
A obra do escritor porrtuguês José Saramago (1922 - ) é unanimemente reconhecida como uma das melhores produzidas em língua portuguesa nas últimas décadas. O colunista Roberto Pompeu de Toledo, por exemplo, não tem dúvidas quanto a isso. Para ele, "José Saramago é o melhor escritor vivo da língua portuguesa. Desde Guimarães Rosa, não há nada de mais origínal, belo e consistente na ficção em nosso idioma". Ganhador do prêmio Nobel de literatura - o único conquistado por um escritor de língua portuguesa -, Saramago é autor de obras-primas, como o "Memorial do Convento" (1982), festejado, lido e traduzido pelo mundo afora, e "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (1984).
Apesar do respeito consensual que sua obra desperta, um dos seus livros saiu do plano literário e acabou dividindo opiniões no mundo cristão, incendiando debates entre fiéis e ateus. "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", que gerou uma completa incompatibilidade entre Saramago e a Igreja Católica, é um de seus relatos mais belos, pungentes e consistentes.
De acordo com o próprio Saramago, "o romance nasceu de uma ilusão óptica. Se eu tivesse uns olhos bons, o livro nunca teria existido. Em 87, estou eu em Sevilha, junto à Calle Sierpes, e, ao olhar em frente, para um quiosque, vejo o título 'Evangelho segundo Jesus Cristo', em português, coisa completamente impossível. Parei e pensei: não posso ter visto o que vi; resolvi ir verificar. E, de fato, não estava lá nem Evangelho, nem Jesus Cristo ... alguns dias depois já estava a pensar o que é que isto daria, e a arranjar algumas idéias para uma história sobre Jesus. Entretanto, tinha a "História do Cerco de Lisboa" para escrever. Em 89, quando fui a Bolonha com o (primeiro-ministro) Mário Soares, entrei na pinacoteca de Bolonha e, de repente, sem saber como, vieram-me à cabeça os três ou quatro pontos de apoio, sólidos, de que necessitava para começar o livro. Ainda hoje tenho aí essas notas:
Nesse Evangelho segundo Saramago, somos transportados a uma nova versão da história de Jesus na Terra. Uma história absolutamente humanizada, com um Cristo cheio de imperfeições e vícios nada diviinos, com um Deus consciente do preço que a humanidade terá de paagar para que seu poder se estabeleça entre os homens, e com um diabo impotente e aborrecido diante de seu papel, eterno e imposto por Deus, de atuar na história como um contraponto à bondade divina.
Independentemente das crenças religiosas dos leitores, a obra é um dos momentos mais impressionantes do trabalho de Saramago. Há dezenas de passagens memoráveis e literariamente incríveis, mas algumas - como a concepção de Jesus, a fuga de Herodes, os dias passados na casa de Maria Madalena e, principalmente, o diálogo inesquecível entre Deus, Jesus e o Diabo (os três em uma pequena embarcação no meio do mar enevoado) - são suficientes para desestabilizar e pôr em discussão a fé do mais fervoroso dos cristãos. "Este não é um livro canônico respeitador da verdade encontrada pelas igrejas nos Evangelhos, mas antes uma leitura racionalista que, porventura pode chocar a fé de certos crentes sinceros. Escrevi com dignidade e não prevejo, nem desejo, reações da Igreja Católica, pois trata-se apenas de uma obra literária que versa um tema invulgar'; justificou Saramago. "O que quis fazer foi encontrar a vida de Jesus a partir do ponto de vista atual, sem me esquecer do mundo e da época em que vivo", explicou o autor. "Não é uma releitura da Bíblia e muito menos uma reconstituição arqueológica dos fatos."
A ótica de Saramago é a humana e não a divina - sempre distante, intocada. O livro partiu da incapacidade do autor perceber racionalmennte a atitude de José na "Matança dos Inocentes", ordenada por Herodes:
"O meu problema de ateu é entender o que faz José ir-se embora, tendo a confidência de Deus que Herodes vai matar as crianças, sem avisar os vizinhos. José é capital no livro " , declarou. Esse complexo vai acompanhar José até à morte e Jesus recebe-o como herança.
Além disso, no livro, prevalece o social, o coletivo, a solidariedade coma dor, a fome e o sofrimento, a luta pela justiça - o que a nenhum cristão pode incomodar -, ainda que também uma evidente concepção dialética da religião -a coexistência de Deus e o Diabo - da qual Jesus tenta se evadir, mas sem sucesso. A linha que conduz a história é a realidade, não o ideal mítico. Alguns historiadores afirmam, por exemplo, que Jesus não foi o único filho de Maria e José. Saramago faz coro com esta tese e, em seu livro, os pais de Jesus têm mais oito filhos. Jesus é o primogêniito que escapou do anonimato.
Mas Saramago não pára ai. Ele desmonta, uma a uma, teses sagradas da Bíblia. Dessa forma, o "anjo da anunciação" aparece para Maria na pele de um mendigo. Os três Reis Magos transformam-se em pastores e, em vez de ofertarem ao recém-nascido ouro, incenso e mirra, dão a seus pais leite, queijo e pão presentes mais "humanamente necessários" para quem chega ao mundo numa manjedoura. Até o envolvimento de Jesus com "Maria Madalena é dessacralizado no livro. Mas nessa história de um homem dolorosamente consciente da sua própria origem divina, está um sopro de impetuosa, de autêntica religiosidade, caapaz de subverter qualquer visão racional. O Jesus de Saramago é um homem só e sofredor nesta Terra, com a sua insustentável humanidade, seus temores e as suas perguntas sem respostas.
Como o próprio Saramago afirmou, ele não pretendeu o escândalo. Sua proposta é que crentes e não-crentes voltem a se fazer muitas daquelas perguntas que ficaram sem respostas. O Cristianismo, quase desde as suas origens, foi uma religião de dogmas, uma religião que se foi convertendo em algo repetitivo. A proposta que Saramago faz é a de voltar a repensar, a refletir. E faz isso precisamente num tempo de crise espiritual como nunca houve no mundo. Um mundo ao qual já nem mesmo as heresias interessam.
CRÍTICAS
A liberdade que Saramago usou para escrever acabou deixando os católicos mais fervorosos assustados. O Vaticano nunca viu com bons olhos qualquer tipo de trabalho que, de uma forma ou outra, fosse contra a "história oficial" de Jesus relatada na Bíblia. Até o livro "A última Tentação de Cristo'; do grego Nikos Kazantizakis, que, mesmo trabalhando sobre um possível delírio "mundano" de Jesus, não deixa de ser respeitoso, foi olhado de forma torta pela Igreja. Outro exemplo foi a versão livre feita pelo cineasta francês Jeann Luc Gordad, na década de 1980, em Je vaus salue Marie, que foi execrada por católicos de todo o mundo.
Quando o livro foi lançado em Portugal, país mais conservador que o Brasil, a imprensa não poupou críticas. "Os "desvios" relativamente à iconografia oficial de Cristo podem servir para entrevistas, comentários escandalizados ou laudatórios na mídia, mas têm pouco a ver com literatura. Talvez façam vender o livro, mas pouco contribuirão para a sua fruição como obra artística. E é pena", escreveu a crítica Linda Sanntos Costa. A jornalista Clara Ferreira Alves foi ainda mais dura: "o livro contém uma história que todos conhecemos. E contém cenas e afirmações que há alguns anos atrás teriam lançado o autor na fogueira, sem direito a sepulcro:'
Entretanto, o maior golpe que o livro de Saramago sofreu em seu país não veio da imprensa, e sim do governo de Portugal. Numa decisão aplaudida por uns e criticada por outros, a obra foi cortada da lista dos concorrentes ao Prêmio Literário Europeu, pelo Subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara. Ao explicar o porquê da sua decisão, Lara foi lacônico: "o livro não representa Portugal". Depois afirmou: "esta minha atitude nada tem a ver com estratégias de venda, nem sequer com opções literárias. E muito menos com as escolhas políticas de Saramago. Não entrou em linha de conta o fato de ele ser comunista ou pertencer à Frente Nacional para a Defesa da Cultura. A obra atacou princípios que têm a ver com o patrimônio religioso dos portugueses. Longe de os unir, dividiu-os".
Saramago foi pego de surpresa pela decisão do subsecretário. Indignado com a visão estreita do governo no julgamento do seu romance, o escritor declarou: "a Inquisição regressou a Portugal. Sousa Lara tem na cabeça o Tribunal do Santo Ofício. Ele não condena o autor à morte, mas reduz a possibilidade de vida do próprio livro, o que é também um ato inquisitorial. Se eu tivesse vivido no século 17 não escapava da fogueira".
No final, venceu a arte. O livro já foi traduzido para cerca de 20 países, inspirando leitores do mundo a repensar a humanidade de Jesus. Mais ainda, Saramago convida o leitor a perceber o quanto essa humanidade é divina. O livro é belo e inquietante, uma obra antidogmática, que não só coloca dúvidas sobre as fontes, mas que é, ao mesmo tempo, um poço profundo de perguntas sem respostas.
Revista Vida & Religião
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"Bolsonaro pedinchou ao centrão dinheiro para dar reajuste de salário a policial. Sempre Nero, Bolsonero, agora também é Herodes. Faz campanha para prejudicar a vacinação das crianças."
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há 14 horas
Blog do Paulinho
Bolsonero, agora Herodes, nem finge mais que governa e ruínas se acumulam – Blog do Paulinho
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Ponto de Fuga. Feliz Natal! 🎁
http://www.acasadoespiritismo.com.br/reflexoes/reflexoes2008/o%20evangelho%20segundo%20jose%20saramago.htm
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