Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
sábado, 11 de dezembro de 2021
Alevantar ou levantar a condição humana
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Edgardigital - UFBA
Pedro Duarte: a condição humana está em perigo | Edgardigital - UFBA
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José de Souza Martins* - As desigualdades sociais ocultas
Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Ainda há quem tenha dúvida sobre o que é a condição humana e sobre quem tem direito a invocá-la como atributo de identidade
Um dos grandes problemas do Brasil de hoje é o do disseminado desconhecimento do que é a humanidade da pessoa, uma referência essencial à vida social. O que acarreta tensões sociais e a dessocialização de muitos indivíduos, condenados à anomia. A questão racial e o preconceito são componentes dessa anomalia. As manifestações frequentes de racismo são dela indícios, os de que esta sociedade está sociologicamente doente. O que põe em perigo pessoas inocentes e desvalidas.
Para muitos, no país inteiro, ainda há quem tenha dúvida sobre o que é a condição humana e sobre quem tem direito a invocá-la como atributo de identidade. São repetidas as evidências dessa característica oculta de nossas desigualdades sociais.
Não se trata apenas de racismo. Resquícios da escravidão ainda persistem, na mesma mentalidade que regulava o relacionamento violento entre o senhor e o escravo. Sendo o escravo uma mercadoria, era ele mero equivalente de coisa. Um item de compra e venda. Nem era considerado propriamente humano. Não apenas o escravo negro, africano ou de origem africana, mas também o pardo, o indígena e até o duvidosamente branco.
A abolição foi feita para libertar o branco do ônus econômico da escravidão, sem libertar de fato pardos e negros do estigma de coisa, de semovente, que era o do tratamento dos cativos. Joaquim Nabuco, em “O mandato da raça negra”, já explicara o quanto a escravidão degradava o próprio senhor de escravos, fazia-o expressão do cativeiro.
Não há um único dia sem uma notícia sobre vítimas dessa coisificação ou porque são negras, ou pardas, ou mesmo mulheres, negras ou brancas. Os nascidos para ser subalternos. A escravidão nos legou mais do que racismo, uma cultura de inferiorização de todos os seres humanos frágeis, independentemente de cor e raça.
A Lei Áurea aboliu juridicamente a escravidão, mas não aboliu nem sequer mencionou as formas de relacionamento decorrentes de desigualdade e de inferioridade sociais por meio das quais ela continuaria. A cultura do cativeiro ainda está na essência do nosso modo de ser e de não reconhecer no outro o humano que nele há, até na própria família.
Um desses casos, em dias recentes, ilustrado por fotografia de jornal, foi o de um rapaz negro, de 18 anos, algemado e sendo puxado pela moto de um PM, na Vila Prudente, em São Paulo. Ele estava de moto quando percebeu uma blitz da polícia, deu meia-volta e retornou na contramão. Foi perseguido e detido. Em sua mochila foram encontrados alguns tabletes de maconha, de uma entrega que ia fazer.
Mesmo em face do ilícito, o tratamento degradante que lhe foi dado é ilícito, abuso de autoridade se praticado por alguém investido na função de manter a lei e a ordem.
O tratamento degradante é violação dos direitos da pessoa. Seu crime, grande ou pequeno, não altera sua condição de humano. O delito não contamina a pessoa inteira nem nela suprime a humanidade de base. Na identidade de quem o comete, a mácula que acarreta é temporária. Por isso, nossa justiça formal é restitutiva. Ela pressupõe que a pessoa é maior do que o crime por ela cometido e que tem o direito de prevalecer sobre ele.
Poucas semanas antes, outro ato, mais violento ainda, consumou um ato degradante contra outro jovem, também negro, do Quilombo do Pêga, um dos quatro quilombos do município de Portalegre, Rio Grande do Norte.
O rapaz pediu pedaços de carne a dois sujeitos que estavam comendo um churrasco. Foi rechaçado e xingado de “drogado e bandido”. Injuriado, atirou pedra no mercadinho do agressor e correu. Foi perseguido, amarrado, arrastado, jogado de bruços na rua, surrado enquanto chorava sua dor e sua humilhação. O espetáculo de prepotência foi filmado por moradores. Uma revivescência do que era o castigo do negro no tronco e no pelourinho.
O agressor justificou-se diante das testemunhas, enquanto dava um pontapé nas costas da vítima: “O que é meu eu tenho o direito de defender”. Ou seja, foi esse o pretexto para justificar a violência cometida. Na forma e na verbalização, o agressor separou seu motivo da causa do conflito, que era a causa do agredido.
Ele já responde a processo, denunciado em junho de 2020 pela promotora de Justiça da comarca, por injúria racial, quando agrediu outro negro, numa discussão, chamando-o de “nego safado”, “você é um nego b...” e ainda “suma do meu comércio que nem de nego eu gosto”, segundo a jornalista Rose Serafim, da “Agência Saiba Mais”.
Os dois casos de discriminação e preconceito indicam que a desigualdade social não é a que se mede por índices econômicos. Eles a mediriam de fato se todos os avaliados fossem jurídica e socialmente iguais e reconhecidos como humanos.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp).
sexta-feira, 10 de dezembro de 2021
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Fernando Gabeira - Tempos de fome e recessão
O Estado de S. Paulo.
Vivendo no Palácio da Alvorada, é possível ter uma sensação de riqueza e prosperidade enquanto o País afunda na miséria
Entramos em recessão, e o ministro Paulo Guedes afirmou que a economia brasileira está decolando. Nenhuma novidade. Bolsonaro nega o aquecimento global e a pandemia de covid-19. Mas nem tudo vai no mesmo caminho, pois, em tributo à realidade, a taxa de juros vai subir.
O conceito de negação surgiu no século passado. Para mim, foi numa carta de Freud, em 1935, que apareceu pela primeira vez. Antes disso, a negação era chamada de outro nome mais direto: mentira.
Há cerca de um mês, Paulo Guedes anunciou um grande projeto de captação de investimentos na área do meio ambiente. Não saiu do papel. Em Brasília, muitos deputados já perceberam que ele é o ministro da semana que vem, está sempre anunciando algo que não se consuma.
Tenho a impressão de que Guedes veio do mundo financeiro, onde o verbo tem um grande peso, mas o mundo real da economia, do saneamento básico, da habitação, da inclusão digital, do desenvolvimento sustentável, tudo isso parece distante e intangível em sua gestão.
Ele foi, até agora, incapaz de apresentar um plano de retomada pós-pandemia. Age como se tudo fosse voltar ao normal sem interferência do governo.
Nas ruas do Brasil, sente-se que a população sofre. Há fome e uma insegurança alimentar crescente.
Bolsonaro pretende abordar o tema com o Auxílio Brasil e, para chegar a ele, sacrificou a credibilidade econômica de seu governo, driblando o teto de gastos e dando um calote nos precatórios.
O Congresso foi apaziguado com o orçamento secreto, cerca de R$ 16 bilhões distribuídos sem transparência. O Supremo, depois de meses de denúncia, deteve o processo. Mas o reabriu com a promessa de romper o segredo daqui para a frente.
E o que foi gasto até agora? Parece que ficará para sempre como um segredo. Rodrigo Pacheco prometeu prestar contas daqui a seis meses. É quase tão remoto como os cem anos de segredo que o Exército determinou para divulgar as razões de seu perdão ao general Pazuello.
Não é justo dizer que eles roubaram R$ 16 bilhões. Também não é justo dizer que os gastaram honestamente. O segredo bloqueia qualquer julgamento, apenas estimula suspeitas.
Um deputado do Maranhão, quadro do PL (atual partido de Bolsonaro), investigado pela Polícia Federal, apareceu contando uma grande quantidade de dinheiro. Nada tão impressionante como o apartamento de Geddel Vieira, abarrotado de notas. Apenas um indício de que o processo foi democratizado e cada um maneja sua pequena fortuna.
Bolsonaro precisa ganhar as eleições e vai mover o Tesouro Nacional. Os deputados que o apoiam precisam ganhar a eleição e, certamente, vão usar as emendas de relator para alcançar seu objetivo. Essa relação entre presidente e Congresso não é nova, mas agora ganha uma estrutura mais consistente com as chamadas emendas de relator.
Impossível entender a economia sem levar em conta o mecanismo que move a política nacional. Guedes transformou-se num ministro que precisa viabilizar o dinheiro de campanha, entendido aqui como a tentativa de Bolsonaro de se ligar aos mais pobres. A Caixa Econômica passa a ser, também, um instrumento de captação de votos, despejando R$ 13 bilhões em empréstimos.
Não há dúvida de que tudo isso significa um alívio imediato e parcial para a sofrida população brasileira. Por outro lado, pode ser um obstáculo para soluções estáveis e de longo prazo. Com a baixa credibilidade, mínguam os investimentos, a inflação é acelerada, perdem-se empregos – enfim, perpetua-se a situação precária do País.
Nada disso parece interessar a amplos setores da política. Um governo populista não se importa em administrar a miséria, desde que continue no seu posto. Bolsonaro não dá a mínima para a situação real do País. Na verdade, com salário, transporte e habitação pagos, ele gasta cerca de R$ 1,3 milhão mensal, em média, no seu cartão corporativo. É possível, vivendo no Palácio da Alvorada, ter uma sensação de riqueza e prosperidade enquanto o País afunda na miséria, com pessoas roendo ossos e revolvendo lixo na luta pela sobrevivência.
O interessante é que um governo desse tipo não se importa também com a possibilidade de convulsão social. Na verdade, acha até que revoltas espontâneas jogam a seu favor, pois justificam o endurecimento do regime, a supressão de liberdades, a perseguição aos adversários políticos.
A única esperança é derrotálo nas urnas. O País não acabará com um segundo mandato de Bolsonaro. O desespero social, a perda de esperança, a destruição irreversível de biomas como a Amazônia, a evasão de cérebros, o empobrecimento cultural, tudo isso nos leva a um lugar desolador. Não podemos simplesmente classificar como uma volta ao passado. Antigamente, éramos o país do futuro. Bolsonaro e a extrema-direita detonarão o futuro.
O ano que começa daqui a algumas semanas é decisivo, acredito que para algumas pessoas, principalmente os jovens. Simboliza um marco, no qual se vai decidir se vale a pena dar murros em ponta de faca num país inviável. O problema é que tudo isso acontece num mundo cada vez mais hostil ao estrangeiro, mundo que a própria extremadireita se esforça por encolher, combatendo a imigração.
sexta-feira, 10 de dezembro de 2021
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Versos Paralelos
Bíblia King James Atualizada
Todo o povo se levantou como se fosse um só homem, e declarou: “Nenhum de nós retornará à sua tenda, nenhum de nós voltará à sua habitação!
Provérbios 21:3
Praticar o que é justo e certo é mais aceitável ao SENHOR do que o oferecimento de sacrifícios.
Eclesiastes 9:10
Sendo assim, tudo quanto vier à mão para realizar, faze-o com o melhor das tuas forças, porquanto para o Sheol, a sepultura, para onde vais, não há atividade, trabalho, reflexão, planos, conhecimento, saber, nem nada.
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Versículos de Ânimo
Quem crê em Cristo Jesus tem todos os motivos para ser verdadeiramente feliz. Por vezes esquecemos de olhar para Jesus, nos distraímos com coisas deste mundo, perdemos o foco e ficamos desanimados.
Mas quando olhamos para Jesus, vemos o Seu amor e fidelidade e isso nos dá ânimo.
Ânimo na Bíblia
Porque sou eu que conheço os planos que tenho para vocês', diz o Senhor, 'planos de fazê-los prosperar e não de causar dano, planos de dar a vocês esperança e um futuro.
Jeremias 29:11
Por isso não desanimamos. Embora exteriormente estejamos a desgastar-nos, interiormente estamos sendo renovados dia após dia,
2 Coríntios 4:16
Estou convencido de que aquele que começou boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus.
Filipenses 1:6
Quando clamei, tu me respondeste;
deste-me força e coragem.
Salmos 138:3
Pois Deus não nos deu espírito de covardia, mas de poder, de amor e de equilíbrio.
2 Timóteo 1:7
O Senhor é a minha luz e a minha salvação;
de quem terei temor?
O Senhor é o meu forte refúgio;
de quem terei medo?
Salmos 27:1
Tudo posso naquele que me fortalece.
Filipenses 4:13
Nisso vocês exultam, ainda que agora, por um pouco de tempo, devam ser entristecidos por todo tipo de provação.
1 Pedro 1:6
Por isso, irmãos, em toda a nossa necessidade e tribulação ficamos animados quando soubemos da sua fé;
1 Tessalonicenses 3:7
Do Senhor vem a salvação dos justos;
ele é a sua fortaleza na hora da adversidade.
Salmos 37:39
Por isso, exortem-se e edifiquem-se uns aos outros, como de fato vocês estão fazendo.
1 Tessalonicenses 5:11
Então o povo respondeu: "Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses! Foi o próprio Senhor, o nosso Deus, que nos tirou, a nós e a nossos pais, do Egito, daquela terra de escravidão, e realizou aquelas grandes maravilhas diante dos nossos olhos. Ele nos protegeu no caminho e entre as nações pelas quais passamos.
Josué 24:16-17
Anseio vê-los, a fim de compartilhar com vocês algum dom espiritual, para fortalecê-los, isto é, para que eu e vocês sejamos mutuamente encorajados pela fé.
Romanos 1:11-12
Veja também o que a Bíblia diz sobre:
Bom Ânimo
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Alevantar ou levantar
Flávia NevesFlávia Neves Professora de Português
As duas palavras estão corretas e existem na língua portuguesa. Podemos utilizar os verbos alevantar e levantar sempre que quisermos referir o ato de se pôr de pé, erguer, elevar, aumentar a altura ou intensidade, altear, arrebitar, hastear, provocar. O verbo levantar é tido como o mais correto e socialmente aceite, sendo o mais utilizado. A palavra alevantar, embora com um uso mais popular, aparece em dicionários como sendo o mesmo que levantar.
Os verbos alevantar e levantar têm sua origem na palavra em latim levantare. A palavra alevantar é ainda formada a partir de derivação prefixal, ou seja, é acrescentado um prefixo a uma palavra já existente. Neste caso temos o prefixo a- mais o verbo levantar.
O prefixo a- significa afastamento ou separação quando de origem grega, mas poderá significar afastamento, separação ou uma aproximação, a realização de um movimento para mais perto, mais junto, quando de origem latina.
Contudo, na palavra alevantar, este prefixo funciona como um elemento protético, ou seja, um elemento com valor expletivo que não provoca qualquer alteração de sentido, não trazendo nenhuma nova ideia ou significado à palavra mãe. É utilizado apenas como apoio fonético sendo, assim, dispensável.
Exemplos:
Tenho que me levantar, mas tenho tanta preguiça!
Tenho que me alevantar, mas tenho tanta preguiça!
Levante sua cabeça e não se sinta derrotada.
Alevante sua cabeça e não se sinta derrotada.
Seu comportamento suspeito levantou dúvidas sobre suas intenções.
Seu comportamento suspeito alevantou dúvidas sobre suas intenções.
Existem, na língua portuguesa, palavras que apresentam mais do que uma grafia correta. A estas palavras chamamos formas gráficas variantes. Embora haja sempre uma forma preferida e mais utilizada pelos falantes, todas as formas são corretas.
Palavras relacionadas: alevantar, levantar.
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Flávia Neves
Flávia Neves
Professora de português, revisora e lexicógrafa nascida no Rio de Janeiro e licenciada pela Escola Superior de Educação do Porto, em Portugal (2005). Atua nas áreas da Didática e da Pedagogia.
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netmundi.org
a condição humana – netmundi.org
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HANNAH ARENDT
a condição
humana
11 a edição revista
Tradução:
Roberto Raposo
Revisão técnica e apresentação:
Adriano Correia
b
UNIVERSlTA RIA
CAPÍTULO 1
A CONDIÇÃO HUMANA
-1-
A vita activa e a condição humana
com a expressão vila acliva, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: trabalho, obra e ação. São fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra.
O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabo1 ismo e resultante declínio estão ligados às necessidades vitais
produzidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho. A condição hunJna do trabalho é a própria vida.
A obra é a atividade correspondente à não-naturalidade [unnaluralness] da existência humana, que não está engastada no
sempre-recorrente [ ever-recurrent] ciclo vital da espécie e cuja
mortalidade não é compensada por este último. A obra proporciona um mundo "artificial" de coisas, nitidamente diferente de
qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras é abrigada
cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas elas. A condição humana da obra é a
mundanidade [worldliness].
A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à
condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não
o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Embora todos os
aspectos da condição humana tenham alguma relaç:io com a politica, essa pluralidade é especificamente a condição - não apenas
8
a conditio sine qua non, mas a conditio per quam - de toda vida
política. Assim, a língua dos romanos-talvez o povo mais político que conhecemos - empregava como sinônimas as expressões
"viver" e "estar entre os homens" (inter homines esse), ou "morrer" e "deixar de estar entre os homens" (inter homines esse desinere ). Mas, em sua forma mais elementar, a condição humana da
ação está implícita até em Gênesis ("Macho e fêmea Ele os
criou"), se entendermos que esse relato da criação do ho1?~m é
distinto, em princípio, do outro segundo o qual Deus ongmalmente criou o Homem (adam)- "ele", e não "eles", de nodo que
a multidão dos seres humanos vem a ser o resultado da multiplicação.
1 A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência nas leis gerais do comportamento, se os homens fossem repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza ou essência fosse a mesma para todos e _tão
previsível quanto a natureza ou essência de qualquer outra c01sa.
A pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos
1
Na análise do pensamento político pós-clássico, frequentemente é bastante
esclarecedor verificar qual das duas versões bíblicas da criação é citada.
Assim é altamente característico da diferença entre os ensinamentos de Jesus de Nazaré e de Paulo que Jesus, discutindo a relação entre marido e mulher refira-se a Gênesis l, 27: "Não tendes lido que ele que os criou no início
os criou macho e fêmea" (Mt 19, 4), enquanto Paul0, em uma ocasião semelhante, insiste em que a mulher foi criada "do homem" e, portanto, "para o
homem", embora em seguida atenue um pouco a dependência: "nem o ~o- _
mem é sem a mulher, nem a mulher sem o homem" (I Cor 11 , 8-12). A diferença indica muito mais que uma atitude diferente com relação ao papel da
mulher. Para Jesus, a fé era intimamente relacionada com a ação (cf. § 33,
adiante); para Paulo, a fé relacionava-se, antes de tudo; com a salvação.
Especialmente interessante a esse respeito é Agostinho (A cidade de Deus,
xii. 21 ), que não só ignora inteiramente o que é dito em ~ênesis 1, 27, m~ vê
a diferença entre o homem e o animal no fato de ter sido o homem cnado
unum ac singulttm, enquanto foi ordenado aos animais que "passa~sem a
existir vários de uma só vez" (.plura simul iussit existere). Para Agostinho, o
relato da criação oferece uma boa opo1t unidade para salientar o caráter de espécie da vida animal, em oposição à singularidade da existência humana.
9
!guais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é
igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá.
~ _T~das as três atividades e suas condições correspondentes es-
~o ~amamente relacionadas com a condição mais geral da existenc1a humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O trabalho assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. A obra e seu produto, o artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à
futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano.
A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança [remembrance],
ou seja, para a história. O trabalho e a obra, bem como a ação, estão também enraizados na natalidade, na medida em que têm a tarefa de prover e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que nascem no mundo como estranhos além de ' prevê-los e levá-los em conta. Entretanto, das três atividades, a
ação tem a relação mais estreita com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de iniciativa, a todas as atividades humanas é inerente um elemento de
ação e, poi tanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade,
pode ser a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.
A condição humana compreende mais que as condições sob
as quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados, porque tudo aquilo com que eles entram em contato
toma-se imediatamente uma condição de sua existência. O
mundo no qual transcorre a vila activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas as coisas que devem sua
existência exclusivamente aos homens constantemente condicionam, no entanto, os seus produtores humanos. Além das
condições sob as quais a vida é dada ao homem na Terra e, em
10
parte, a partir delas, os homens constantemente criam suas próprias condições, produzidas por eles mesmos, que, a despeito de
sua origem humana e de sua variabilidade, possuem o mesmo
poder condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a
vida humana ou mantenha uma duradoura relação com ela assume imediatamente o caráter de condição da existência humana.
Por isso os homens, independentemente do que façam , são sempre seres condicionados. Tudo o que adentra o mundo humano
por si próprio, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana . O impacto da realidade do
mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como
força condicionante. A objetividade do mundo - seu caráter-de-objeto [objec1-charac1er] ou seu caráter-de-coisa
[thing-character] - e a condição humana complementam-se
uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência
humana seria impossível sem coisas, e estas seriam um amontoado de artigos desconectados, um não-mundo, se não fossem os
condicionantes da existência humana.
Para evitar mal-entendidos: a condição humana não é o
mesmo que a natureza humana. e a soma total das atividades e
capacidades humanas que correspondem à condição humana
não constitui algo equivale nte à natureza humana. Pois nem
aquelas que discutimos neste livro nem as que deixamos ~e
mencionar, como o pensamento e a razão, e nem mesmo i:i mais
meticulosa enumeração de todas elas, constituem características essenciais da existência humana no sentido de que, sem
elas, essa existênci a deixaria de ser humana. A mudança mais
radical da condição humana que podemos imaginar seria uma
emigração dos homens da Terra para algum outro planeta. Tal
evento, já não inteiramente impossível, implicaria que o homem teria de viver sob condições produzidas por ele mesmo, radicalmente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece. O trabalho, a obra, a ação e, na verdade, mesmo o pensamento, como o
conhecemos, deixariam de ter sentido. No entanto, até esses hi11
1
' 1
' j 1
1.
1
patéticos viajares da Terra ainda seriam humanos; mas a única
afinnativa que poderíamos fazer quanto à sua "natureza" é que
são ainda seres condicionados, embora sua condição seja agora,
em grande parte, produzida por eles mesmos.
O problema da natureza humana, a quaestio mihifactus sum
("a questão que me tornei para mim mesmo") de Agostinho, parece insolúvel, tanto em seu sentido psicológico individual
como em seu sentido filosófico geral. É altamente improvável
que nós, que podemos conhecer, detem1inar e definir as essências naturais de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos, sejamos capazes de fazer o mesmo a nosso próprio respeito: seria como pular sobre nossas próprias sombras. Além disso,
nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza
ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas têm. Em
outras palavras, se temos uma natureza ou essência, ent~.o certamente só um deus poderia conhecê-la e defini-la, e a primeira
precondição é que ele pudesse falar de um "quem" como se fosse um "quê". 2 A perplexidade decorre do fato de as formas de
2 Agostinho, geraLnente ccnsiderado o primeiro a levantar a chamada questão antropológica na filosofia, sabia disso muito bem. Estabelece uma distinção entre as questões "Quem sou·>·· e "O que sou'1" : a primeira é feita pelo
horr.em a si próprio ("E dirigi-me a mim mesmo e disse-me: Tu, quem és tu?
E respondi: Um homem" - tu. quis es7 [ Confissões, x. 6)), e a segunda é dirigida a Deus ("O que sou então, meu Deus? Qual é a minha natureza?" - Quid
ergo sum, Deus meus7 Quae 1wtura .rnm ~ [x.17]). Pois no "grande mistério",
no grande pro/i111du111 que é o homem [iv. 14), há "algo do homem [aliquid
huminis] que o espírito do homem que nele está não sabe. Mas tu, Senhor,
que o fizeste [fecisti e11111], tudo sabes a seu respeito [eius omnia]" [x. 5)).
Assim, a mais conhecida dessas frases que citei no texto, a quaestio mihifaclus s11111 , é uma questão levantada na presença de Deus. "ante cujos olhos tornei-me uma questão para mim mesmo" (x. 33). Em resumo, a resposta á
questão "Quem sou?" é simplesmente: "És um homem - s•!ja isso o que for";
e a resposta à questão "O que sou?" só pode ser dada por Deus, que fez o homem. A questão da natureza do homem é uma questão teológica tanto quanto a questão da natureza de Deus: ambas só podem ser resolvidas dentro da
estrutura de uma resposta divinamente revelada.
12
r
cognição humana ap:icáveis às coisas dotadas de qualidades
"naturais" - inclusive nós mesmos, na medida limitada em que
somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente
desenvolvida - de nada nos valerem quando levantamos a pergunta: e quem somos nós? É por isso que as tentativas de definir
natureza humana resultam quase invariavelmente na construção de alguma deidade, isto é, no deus dos filósofos que, desde
Platão, revela-se, em um exame mais acurado, como uma espécie de ideia platônica do homem. Naturalmente, desm,:scarar
tais conceitos filosóficos do divino como conceitualizações das
capacidades e qualidades humanas não é uma demonstração da
não-existl!ncia de Deus, e nem mesmo constitui argumento nesse sentido; mas o fato de que as tentativas de definir a natureza
do homem levam tão facilmente a uma ideia que nos parece definitivamente "sobre-humana" [superhuman], e é, portanto,
identificada com o divino, pode lançar suspeitas sobre o próprio
conceito de "natureza humana".
Por outro lado, as condições da existência humana - a vida,
a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e a
Terra - -jamais podem "explicar" o que somos ou responder à
pergunta sobre quem somos, pela simples razão de que jamais
nos condicionam de modo absoluto. Essa sempre foi a opinião
da filosofia, em contraposição às ciências (antropologia, psicologia, biologia etc.) que também se ocupam do homem. Mas
hoje podemos quase dizer que já demonstramos, me~mo cientificamente, que, embora vivamos agora sob condições terrenas,
e provavelmente viveremos sempre, não somos meras criaturas
terrenas. A moderna ciência natural deve os seus maiores triunfos ao fato de ter considerado e tratado a natureza terrena de um
ponto de vista verdadeiramente universal, isto é, de um ponto de
vista arquimediano escolhido, voluntária e explicitamente, fora
da Terra.
13
-2-
O termo vita activa
Q ~e~o vita activa é carregado~ ~obrecarregado de tradição.
E _tao v~lho quanto nossa trad1çao de pensamento político,
mas n~o m_a1s velho que ela. E essa tradição, longe de abranger e
conce1tuah2ar todas as experiências políticas da humanidade
?cidental, é produto de urna constel:ição histórica específica: o
.JU!g~mento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e apó/is. Ela
~hmmou muitas experiências de um passado próximo que eram
trrelevantes para suas fir1alidades políticas e prosseguiu até seu
fim, na obra de Karl Marx, de modo altamente seletivo. O próprio
termo que, na filosofia medieval, é a tradução consagrada do bios
politikos de Aristóteles,já ocorre em Agostinho, c nde, como vita
negoti?sa ou _actuosa, reflete ainda o seu significado original:
uma vida dedicada aos assuntos público-políticos.3
Aristó_teles distinguia três modos de vida (bioi) que os ho-
°:en~ podiam esc?lber livremente, isto é, em inteira independencia das necessidades da vida e das relações delas decorrentes. ~ssa c~ndição prévia de liberdade excluía qualquer modo
de vida dedicado sobretudo à preservação da vida - não apenas
o tra_balho, que era o modo de vida do escravo, coagido pela necess1dadt: de permanecer vivo e pelo mando do seu senhor, mas
t~mbém a vida de fabricação dos artesãos livres e a vida aquisitiva do mercador. Em suma, excluía todos aqueles que, involuntária ou voluntariamente, por toda a vida ou temporariamente,
já não podiam dispor em liberdade dos seus movimentos e atividades.4 Os três modos de vida restantes têm em comum o fato
3
Cf. Agostinho, A cidade de Deus, xix. 2, 19. 4
William L. Westennann ("Between slavery and freedom", American historica/ revie"H-, v. L [ 19451) afirma que "a declaração de Aristóteles( ... ) de que
14
de se ocuparem do " belo", isto é, de coisas que não eram necessárias nem meramente úteis: a vida de deleite dos prazeres do
corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da pó/is, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada ú investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada
pela interferência produtiva do homem nem alterada pelo consumo humano.
5
A principal diferença entre o emprego aristotélico e o posterior emprego medieval do termo é que o hios politikos denotava
explicitamente somente o domínio dos assuntos humanos, com
ênfase na ação, práxis, necessária para estabelecê-lo e mantê-lo. Nem o trabalho nem a obra eram tidos como suficientemente dignos para constituir um hios, um modo ele vida autônomo e autenticamente humano; uma vez que serviam e produziam o que era necessário e útil, não podiam ser livres e independentes das necessidades e carências humanas.
6 Se o modo de
os fabricantes vivem em uma condição de escravidão limitada signitica que
o artesão, ao fazer um contrato de trabalho, abria mão de dois dos quatro elementos de seu status de homem livre (a saber. liberdade de atividade econômica e direito de movimentação irrestrita), mas por vontade própria e temporariamente"; evidências citadas por Westermann demonstram que. na época.
compreendia-se que a liberdade CClnsistia cm ··s1a111s, inviolabilidade pessoal,
liberdade de atividade econômica e direito de movimcntaç,1o irrestrita", e
que, consequentemente, a escravidão ··era a ausência destes (!Uatro atributos". Aristóteles, ao enumerar os •·modos de vida" na Ética a Nicômaco (i. S)
e na Ética a Eudemo ( l 2 l 5a35ss.). nem chega a mencionar um moào de vida
do fabricante; para ele, é óbvio que um banal/Sos não é livre (cf. Política.
1337b5). Menciona, porém. o modo de vida do "ganhador de dinheiro" para
rejeitá-lo, uma vez que também é " adotado sob compulsão" (i:::tica a Nicômaco, 1096a5). Na Ética a Eudemo, fica salientado que o critério é a liberda-
? e: ele enumera somente aqueles modos de vida escolhidos ep 'exousian.
)Para a oposição entre o belo. o necessário e o útil, cf. Polític-a, l 333a30ss.,
1332b32. 6
Para a oposição entre o que é livre e o que é necessário e útil, cf. Política,
l332b2.
IS
·1
vida político escapou a esse veredicto, isso se deveu à compreensão grega da vida na pó/is, que, para eles, denotava uma forma de organização política muito especial e livremente escolhida, e de modo algum apenas uma forma de ação necessária para
manter os homens juntos de um modo ordeiro. Não que os gregos ou Aristótdes ignorassem o fato de que a vida humana sempre exige alguma forma de organização política, e que o governo dos súditos pode constituir um modo de vida à parte; mas o
modo de vida do déspota, pelo fato de ser "meramente" uma necessidade, não podia ser considerado livre e nada tinha a ver
com o bios politikos.
7
Com o desaparecimento da antiga cidade-Estado - e Agostinho parece ter sido o último a saber pelo menos o que outrora
significava ser um cidadão - , a expressão vila activa perdeu o
seu significado especificamente político e passou a denotar
todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. É claro
que isso não queria dizer que a obra e o trabalho tinham ascendido na hierarquia das atividades humanas e eram agora tão dignos quanto a vida dedicada à política.
8 De fato, o oposto era verdadeiro: a ação passara a ser vista como uma das necessidades
da vida terrena, de modo que a contemplação ( o bios theôrçtikos, traduzido como vila contemplativa) era agora o único
modo de ,,ida realmente livre.
9
7
Cf. Pnlítirn. 1277hX. para a dislin~·;fo rnln: governo dcspótiw e política.
()uanto ao argu111c1110 de que a vida do Jéspota não é igual à vida de um homem livre, uma vez que o primeiro está preocupado com "coisas necessârias",
conferir, l 325a24.
xQuanto à opinião generalizaua de que a moderna avaliação do trabalho é Jc
origem cristã, conforir adiante, ~ 44.
"Cf. Tomás de Aquino, S11111u teoltígirn, ii. 2. 179, especialmente art. 2, onde a
vira activa resulta da necessita.1· vitae prnese11tis, e Expositio in Psa/1110s, 45. 3,
onde se a1ribui ao corpo político a tarefo de proporcionar tudo o que é necessário â vida: in civitate oportet im•l.'nire 011111ia 11ecessaria ad 11ita111 .
16
Contudo, a enorme superioridade da contemplação sobre
qualquer outro tipo de atividade, inclusive a ação, não é de origem cristã. Encontramo-la na filosofia política de Platão, em
que toda a reorganização utópica da vida na pó/is é não apenas
dirigida pelo superior discernimento do filósofo, mas não tem
outra finalidade senão tomar possível o modo de vida filosófico. A articulação aristotélica dos diferentes modos de vida, em
cuja ordem a vida de prazer tem papel secundário, é orientada
claramente pelo ideal da contemplação (theõria ). À antiga liberdade em relação às necessidades da vida e à coerção de outros, os filósofos acrescentaram a liberdade e a cessação de toda
atividade política (skhole),
10 de sorte que a posterior pretensão
dos cristãos de serem livres de envolvimento em assuntos mundanos, de todos os negócios deste mundo, foi precP-dida pela
apolitia filosófica da Antiguidade tardia, e dela se originou. O
que até então havia sido exigido somente por alguns poucos era
agora visto como direito de todos.
A expressão vita activa, compreendendo todas as atividades humanas e definida do ponto de vista da absoluta quietude
da contemplação, corresponde, portanto, mais estritamente à
askholia grega ("inquietude"), com a qual Aristóteles designava toda atividade, que ao bios politikos grego. Já desde Aristóteles, a distinção entre quietude e inquietude, entre uma abs10 A palavra grega skhole, como a latina otium, significa basicamente isenção
de atividade política e não simplesmente lazer, embora ambas sejam também
usadas para indicar isenção do trabalho e das necessidades da vida. De qualquer modo, indicam sempre uma condição de liberação de preocupações e cuidados. Uma ell.celente descrição da vida cotidiana de um cidadão ateniense comum, que goza de completa isenção de trabalho e de obra, pode ser encontrada
em Fustel de Coulanges, A cidadP. antiga (Archor, 1956), p. 334-336; qualquer um se convencerá de como a atividade política era absoivente nas condições da cidade-E.;tado. Pode-se facilmente imaginar como essa vida política
comum era cheia de preocupações quando se recorda que a lei ateniense não
permitia que se permanecesse neutro, e punia com perda de cidadania aqueles
que não quise~sem tomar partido em disputas faccionárias.
17
t~nção quase estática de movimento físico externo e qualquer
tipo de atividade, é mais decisiva que a distinção entre os modos de vida político e teórico, porque afinal pode ocorrer em
qualquer um dos três modos de vida. É como a diferença er,tre
a guerra e a paz: tal como a guerra ocorre em vista da paz, também todo tipo de atividade, mesmo o processo do mero pensamento, deve culminar na absoluta quietude da contempl~ - 11 T d . çao. o o movimento, os movimentos do corpo e da alma,
bem como do discurso e do raciocínio devem cessar diante da
verdade. Esta, seja a antiga verdade do Ser ou a verdade cristã
do Deus vivo, só pode r~velar-se em meio à completa tranquilidade humana.
12
Tradicionalmente, e até o início da era moderna, a expressão vita activa jamais perdeu sua conotação negativa de
"in-quietude", nec-otium, 1.1-skholia. Como tal, permaneceu intimamente ligada à distinção grega, ainda mais fundamental,
entre as coisas que são por si o que são e as coisas que devem ao
homem a sua existência, entre as coisas que são physei e as coisas que são nomõ. O primado da contemplação sobre a atividade
baseia-se n I convicção de que nenhuma obra de mãos humanas
pode igualar em beleza e verdade o kosmos físico, que revolve
em tomo de si mesmo, em imutável eternidade, sem qualquer
interferência ou assistência externa, seja humana, seja divina.
Essa eternidade só se revela a olhos mortais quando todos os
movimentos L: atividades humanas estão em completo repouso.
Comparadas a esse estado de quietude, todas as diferenças e articulações no âmbito da vita activa desaparecem. Do ponto de
vista da contemplação, não importa o que perturba a necessária
quietude, mas que ela seja perturbada.
11Cf. Aristóteles, Política, l 333a30-33. Tomas de Aquino define a contemplação como quies ab exterioribus motibus (Suma teológica, ii. 2. 179. 1 ). 12Tomás de Aquino ressalta a tranquilidade da alma, e recomenda a vita acriva porque ela extenua e, portanto, "aquieta as paixões interiores" e prepara
para a contemplação (Suma teológica, ii. 2. 182. 3).
18
Tradic..ionalmente, portanto. a expressão vila activa recebe
seu significado da vita contemplativa; a dignidade que lhe é
conferida é muito limitada porque ela serve às necessidades e
carências da contemplação em um corpo vivo. 13 O cristianismo.
com a sua crença em um outro mundo cujas alegrias se prenunciam nos deleites da contemplação, i-1 conferiu sanção religi0sa
ao rebaixamento da vita activa à sua posição derivada, secundária; mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com
a descoberta da contemplação (theõria) como uma faculdade
humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que ocorreu na escola socrática e que, desde então, dominou o pensamento metafísico e pol ítico durante toda a nossa tradição. 15 Para a~ finalidades deste livro, parece-me desnecessário discutir as razões dessa tradição. Obviamente, são mais profundas que o momento histórico que engendrou o conflito entre
a pó/is e o filósofo, e que, com isso, levou também, quase por
acaso, à descoberta da contemplação como o modo de vida do
filósofo . Essas razões devem residir em um aspecto inteiramente diferente da condição humana, cuja diversidade não é esgota-
!.'Tomás de Aquino é bastante cxpl íci to quanto à conexão entre a vita actiFa
e as carências e necessidades do corpo humano. que os homens e os animais
têm cm comum (Suma teolrigica. ii. 2. 1 X2 . 1 ). 14Agostinho fala do ··õnus·· (sarcina) da vida ativa imposto pelo dever da caridade, que seria insupo11ável sem a "doçura" (suavitas) e o .. dele ite da verdade" obtido na contemplação (A cidade de Deus, xix. 19).
150 consagrado ressentimento do filósofo contra a condição humana de possuir um corpo não é a mesma coisa que o antigo desprezo pelas necessidades
da vida; a sujeição à necessidade era apenas um dos aspectos da existência
corpórea, e uma vez libertado dessa necessidade o corpo era capaz daquela
aparência pura que os gregos chamavam de beleza. Desde Platão, os fi lósofos acrescentaram ao ressentimento de serem forçados por carências corporais o ressentimento contra qualquer tipo de movimentação. Porque o filósofo vive em completa quietude, somente o seu corpo habita a cidade, segundo
Platão. É essa também a origem da acusação de bisbilhotice (polypragmosynê) dirigida àqm:les que passam a vida a cuidar da política.
19
da pelas vária~ mani f~staçàcs da vila acliva e, podemos presumir, não seria esgotada mesmo se incluíssemos nela o pensamento e o movimento do raciocínio.
Portanto, se o uso da expressão vita activa, como aqui o proponho. está em manifesta contradição com a tradição, é que duvido não da validade da experiência subjacente à distinção, mas
antes da ordem hierárquica inerente a ela desde o início. Isso
não significa que eu deseje contestar ou mesmo discutir o conceito tradicional de verdade como revelação e, portanto, como
algo essencialmente dado ao homem, ou que prefira a asserção
pragmática da era moderna de que o homem só pode conhecer
aquilo que ele mesmo faz. Sustento simplesmente que o enorme
valor da contemplação na hierarquia tradicional embaçou as diferenças e articulações no âmbito da própria vila activa e que, a
despeito das aparências, essa condição não foi essencialmente
alterada pelo moderno rompimento com a tradição nem pela inversão final da sua ordem hierárquica, em Marx e Nietzsche. A
estrutura conceituai permanece mais ou menos intacta, e isso se
deve à própria natureza do ato de "virar de cabeça para baixo"
os sistemas filosóficos ou os valores atualmente aceitos, isto é, à
natureza da própria operação.
A inversão moderna tem em comum com a tradicional hierarquia a premissa de que a mesma preocupação humana central
deve prevalecer em todas as atividades dos homens, posto que,
sem um princípio abrangente único, nenhuma ordem poderia
ser estabelecida. Tal premissa não é evidente, e meu emprego
da expressão vila acliva pressupõe que a preocupação subjacente a todas as suas atividades não é a mesma preocupação central
da vila contemplativa, como não lhe é superior nem inferior.
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