Inspirados já nos ensinamentos de Sófocles, aqui, procurar-se-á a conexão, pelo conhecimento, entre o velho e o novo, com seus conflitos. As pistas perseguidas, de modos específicos, continuarão a ser aquelas pavimentadas pelo grego do período clássico (séculos VI e V a.C).
segunda-feira, 21 de junho de 2021
NACIONALIDADE
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de
nacionalidade2
Machado de Assis : 182 anos de nascimento
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GUTERRES
Luís Onório
1.
António Guterres foi hoje [18 jun.] reconduzido por unanimidade como secretário-geral das Nações Unidas.
Estava comovido.
No que disse, nas palavras que deixou ao mundo ou no modo como nos olhou.
(notava-se)
Talvez passe despercebido, mas hoje foi o dia mais importante da vida pública de um dos melhores portugueses.
Mais do que na manhã em que foi anunciado como sucessor de Ban Ki-Moon. Naquele dia inicial foi reconhecido pela brilhante retórica e pela habilidade diplomática, mas a maioria dos jornalistas internacionais ou líderes políticos definiram-no publicamente e nos bastidores como um líder de transição.
Hoje, dia em que foi reconduzido por unanimidade, subiu ao mais alto lugar a que um homem ou mulher pode chegar. Ao lugar de reconhecimento coletivo, ao lugar que apenas é ocupado pelos que inspiram, pelos que estão acima da espuma dos dias, pelos que são realmente escutados, pelos faróis.
Não houve um único membro das Nações Unidas que se tenha abstido ou votado contra.
Sim, sim, sim…
193 sins.
Todos os 193 países que fazem parte das Nações Unidas afirmaram com o seu voto que aquele português, nascido em Lisboa há 72 anos, é a esperança do mundo num tempo prenhe de sombras, perguntas por responder, desafios por cumprir.
2.
António Guterres é uma pessoa extraordinária.
Que fez questão de dizer hoje que era português.
“Tudo aquilo que aprendi foi forjado juntamente com o povo do meu país”.
Foi isto que António lhes disse no seu discurso de aceitação, foi isso que nos disse.
No instante em que subia ao Olimpo, o lugar em que os deuses se esquecem muitas vezes de onde vieram, António Guterres falou do povo.
Falou de mim.
E de ti que me lês.
Falou de um povo improvável, de um povo único, de um povo generoso e egoísta, de um povo otimista e fatalista, de um povo capaz da grandiosidade e da pequenez.
Nós fomos construídos na falha, na perda, no paradoxo.
Mas é isso que nos faz únicos e imbatíveis na arte da sobrevivência, da tolerância e da construção de compromissos.
3.
Hoje é o dia mais importante da vida de um dos melhores portugueses da história.
Celebremos alguém que soube ser maior do que a vida.
Alguém que respeitou os seus talentos e que os cultivou sem nunca perder o foco de que o essencial é o combate pelo outro, o combate pelos excluídos, o combate por um mundo melhor, por um mundo com menos desigualdade, por um mundo em que seres humanos deixem de ser tratados como animais.
Guterres é um soldado do Bem.
E não há nada melhor que possa ser desejado.
Parabéns, António.
* Publicado originalmente na página Fb do Liceu Camões.
Foto: Reuters/ Mike Segar
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Machado de Assis: “certo instinto de nacionalidade”
Marta de Senna
No mais célebre de seus textos críticos, “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade” (1873), Machado de Assis reflete sobre um tema específico: o que faz de um escritor um escritor de seu país. Com “A nova geração” (1879), está às vésperas de realizar ficcionalmente a sua definitiva maturidade literária, num repúdio aos naturalismos então em voga crescente. Buscarei demonstrar que na narrativa machadiana se revela “certo instinto de nacionalidade” que transcende a cor local; e que ele é capaz de fazê-lo para além e para fora dos parâmetros realista- naturalistas que dominaram a ficção internacional na segunda metade do século XIX. Defendo também a ideia de que o diálogo com a melhor literatura do Ocidente é uma das vias pelas quais o nosso autor se afirma como grande escritor e, por essa via, eleva a produção literária de seu país a um patamar de igualdade com essa literatura.
Palavras-chave: Machado de Assis; intertextualidade; nacionalidade; nacionalidade; localismo; universalismo; dependência cultural.
In the most celebrated of his critical pieces, “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade” (1873), Machado de Assis discusses a specific topic: what makes a writer a writer of his country. With “A nova geração” (1879), Machado is about to reach his fictional apex, rejecting (at times making a parody of) the naturalistic trend which was then increasingly popular. In this article I will try to show that Machado’s fiction revealsa “certain national instinct”, which goes beyond local traits; and that he accomplishes this without making concessions to the realist-naturalist paradigm of the late 19th century. I also claim that the dialogue with the best Western literature is one of the ways through which he attains the qualities of a great writer and elevates his country’s literary production to the level of the best national literatures produced at the time.
Keywords: Machado de Assis; intertextuality; localism; universalism; cultural dependency.
*** *** http://escritos.rb.gov.br/numero03/artigo05.php *** ***
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Crédito: Faculdade Zumbi dos Palmares
Aventuras na História . Biografias .
Machado de Assis (Escritor brasileiro)
Nome Completo Joaquim Maria Machado de Assis
Como/pelo que é mais conhecido Escritor brasileiro
Data Nascimento 21/06/1839
Data Falecimento 29/09/1908
69 anos, 3 meses
Local Nascimento Rio de Janeiro, Brasil
Wikipedia Machado de Assis
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Instinto de nacionalidade
Machado de Assis
ASSIS, Machado de. Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959. p. 28 - 34:
Instinto de nacionalidade. (1ª ed. 1873).
Hipertexto: Alckmar L. dos Santos (UFSC)
NOTÍCIA DA ATUAL LITERATURA BRASILEIRA
INSTINTO DE NACIONALIDADE 1
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de
nacionalidade2
. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país3
, e
1
Artigo publicado em Novo Mundo em 24 de março de 1873.
2
A construção de uma nacionalidade, mais do que a defesa de uma identidade fechada ou auto-suficiente, é resultante de uma
complexa trama de intercâmbios, de que são exemplos as literaturas nacionais latino-americanas no século XIX. Focalizando estas
últimas, podemos ver mais facilmente que toda identidade nacional é sempre uma identidade problemática, pois não se trata de um
processo que possa se estabilizar em uma solução ideal, derradeira ou definitiva. De modo semelhante ao ato de andar, em que é
justamente um desequilíbrio repetido que torna possível o avanço, a identidade que se busca está sempre alicerçada em uma situação
que já é passado (portanto, diferente do que nós somos agora), tentando alcançar (ou construir) um futuro que será certamente
diferente do que pretendemos fazer dele (a partir de uma visão do presente que temos de nós e que será, certamente, abandonada
pelas pessoas que nos observarem a partir do futuro). Aliás, se houvesse essa estabilização em uma identidade definitiva, não teríamos
nada além de uma proposição tautológica ("nós = nós") que eliminaria todo sentido da temporalidade e, ao fazer um só de dois termos
diferentes, suprimiria o sentido mais profundo do sinal = (que é justamente o de eliminar essa igualdade absoluta, estabelecendo uma
cissiparidade entre o que está à esquerda e aquele que está à direita, entre o que queremos ou achamos que somos e aquilo que
efetivamente seremos). Do mesmo modo, um país que tenta estabelecer uma rigorosa identidade interna consigo mesmo (e os casos
do nazismo e do fascismo, presentes até hoje nos campos dos Bálcãs, não deixam de nos lembrar disso), exilando ou afastando
radicalmente o outro, o diferente, não percebem que estão exatamente destruindo o elemento de diferenciação que - só ele - lhes
permitiria ter uma identidade. Ao optarem por esse caminho, fazem com que a equação "nós = nós" tenha seu sentido esfacelado
diante de uma igualdade sem sentido, de uma unidade não mais problemática e, portanto, não mais passível de ser utilizada como
moeda de trocas culturais. É justamente essa exposição ao olhar do outro que nos permite instaurar um ponto de enunciação de onde,
certamente, podemos nos ver sendo vistos, o que nos dá a experiência de nossa própria singularidade, mesmo que provisoriamente,
como dito acima. É o olhar dos outros que nos inaugura como mesmos; que, em suma, nos faz provisória e precariamente idênticos a
nós próprios. Assim, esse instinto de nacionalidade de que fala Machado de Assis talvez possa ser entendido como a mola propulsora
que constitui a fisionomia evidente, externamente visível, de uma literatura, a partir da qual nos olhamos e nos constituímos em
identidade problemática. Em outras palavras, trata-se de uma das condições iniciais para que se desenvolva uma dada literatura
nacional. Todavia, para que isso ocorra, é necessário ainda superar duas posições antagônicas que marcam a infância desse instinto
(mas que não deixam de se manifestar, de quando em quando, como sintomas de fraqueza ou de oscilação do sistema literário). No
caso do Brasil (e de outros países marcados por um passado colonial), temos, de um lado, a adesão incondicional ao modelo
metropolitano, revestido de pretenso cosmopolitismo; de outro, a recusa isolacionista e xenófaba de qualquer elemento estranho,
estrangeiro ou externo. Como exemplo da primeira, podemos citar o parnasianismo de um Alberto de Oliveira, poeta que surgiu para a
literatura pouco depois de Machado de Assis e que entende a construção de uma literatura nacional como um processo civilizatório, em
que a cultura estrangeira (no caso, européia) venha disciplinar, dinamizar e aparar as arestas da incipiente literatura do jovem país.
Quanto à segunda posição, um bom exemplo, entre muitos, encontra-se nos romances de um Plínio Salgado, escritor contemporâneo
da revolução modernista dos anos 1920 e que impôs a sua obra um nacionalismo tão fervente que, não cabendo nos limites do sistema
literário (pois era inseparável de um conteúdo fortemente ideológico, no caso, de direita), encontrou sua expressão natural na
militância fascista e nos libelos políticos. O instinto de nacionalidade deve, em suma, à exemplo da intuição pessoana (que, somente
ela, "pode servir de bússola nos desertos da alma"), funcionar como guia nesse processo provisório e interminável, verdadeiro trabalho
de Sísifo, que é o de nos dar a ver um rosto específico que já não temos, que nunca mais teremos, e que, no fundo, nunca tivemos,
pois que sempre estivemos (e estaremos) expostos à diferença radical com que o outro (o estranho, o estrangeiro) nos observa. Tratase, então, a utilizar essa pragmática fácil e tão na moda atualmente, de uma inutilidade (pois que não chega jamais à conclusão do
processo) necessária (pois que nos permite fazer mover objetos culturais aos quais imprimimos nossas marcas).
3
A partir da visão do paraíso, pintada pelos europeus do início da colonização, as cores do país foram quase sempre matizadas pelo
olhar da metrópole, mesmo depois da independência política em 1822. Com isso, instituía-se um deslocamento no mínimo curioso:
estrangeiro deixava de ser o modo como o europeu olhava nossa terra, para se tornar o modo como nossa paisagem natural e cultural
se dava a ver a esse mesmo europeu. O que para nós teria de ser forçosamente imediato, habitual, freqüente, era descrito como
exótico, diferente, raro, chamativo e, por vezes, escandaloso. Em busca da exploração colonial, o europeu não podia se ver como
estrangeiro, como outro; em decorrência, não conseguia nem mesmo ver o outro, isto é o elemento autóctone, as especificidades da
terra. Na verdade, para chegar ao ouro, era necessário esquecer o outro, bastando, para isso, apagar uma pequena letra (T). Não é àtoa que Pero de Magalhães Gândavo, cronista do século XVI, tenha afirmado não se surpreender que os indígenas não tivessem "nem
fé, nem lei, nem rei', posto que sua língua não tinha F, nem L, nem R. Esse apagamento consciente de letras traduziu-se, em muitas
ocasiões, por um apagamento das próprias Letras brasileiras, reduzidas à condição de imitadoras ou repetidoras das Letras portuguesas
pelo próprio trabalho de escritores que, mesmo depois da independência política (como dito acima), tentavam emprestar a nossa
paisagem cultural a aparência estrangeira que só podia sair do olhar europeu. Assim, mesmo em instantes de euforia nacionalista, de
que resultou o indianismo romântico na primeira metade do século XIX, com José de Alencar e Gonçalves Dias, a descrição da cor local
ainda era embalada pela surpresa do europeu ao expor-se à paisagem do Novo Mundo. Também não é à-toa que Oswald de Andrade,
nos anos 1920, tenha falado de "uma cartola na Senegâmbia", ao referir-se justamente a esse olhar europeu que, artificialmente, ainda
impregnava a literatura brasileira de então, depois de ter ditado a norma do indianismo exótico criado no Romantismo. No caso, era
necessário, claro, não afastar o olhar do outro, do estrangeiro, do europeu, sem o qual nunca poderíamos construir o nosso próprio.
Porém, não se podia, levando ao outro extremo, subordinar nossas próprias perspectivas às do europeu, num apagamento de
Machado de Assis Instinto de Nacionalidade
não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias,
Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles
continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo.
Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e
irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional
4
.
Esta outra independência5
não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas
pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até
perfazê-la de todo.
referências culturais e, conseqüentemente, da própria autonomia, num processo que não ficaria nada a dever às estratégias dos
catequistas jesuítas do século XVI.
4
A construção de um pensamento nacional, tomando a perspectiva de um Antonio Candido, passa pela estabilização de um sistema
cultural minimamente autônomo e, importante, em que um projeto de nação seja conscientemente desenvolvido pelos diferentes
sujeitos envolvidos. Todavia, há que se concentrar a atenção na figura de Machado de Assis, pois ela pode dar pistas de como tal
processo se desenrola numa "periferia do capitalismo" (como diz Roberto Schwarz). Ao analisarmos o chamado "pensamento brasileiro"
no século XIX, período de amadurecimento da intelectualidade nacional, veremos que nossos pensadores foram, antes de tudo,
obrigados a assumir uma grande quantidade de funções e de tarefas, desviando-se, sobretudo na primeira metade do século XIX, da
especialização científica ou filosófica que, há muito, já dava o tom no pensamento europeu. Não cabe aqui discutir do acerto ou do erro
de tal procedimento, mas sim entender as conseqüências desse estado de coisas. Assim, quando falamos de um pensamento brasileiro,
devemos entendê-lo dentro de um sistema multifacetado, em que a literatura acabava sendo caudatária de toda sorte de reflexões,
assumindo uma polivalência rara em outros países. Mesmo se pensamos no caso do Romantismo alemão, a situação brasileira é
diferente: aquele assumia uma indistinção fundadora entre poesia (e, por extensão, literatura) e filosofia, enquanto que, nesta última,
as distinções são mantidas, ou seja, não se pretende reduzir literatura e filosofia (ou qualquer outro sistema textual, como a sociologia,
a história etc.) a um só sistema, mas trazer suas diferenças para um mesmo campo de enunciação. Em outras palavras, a história
nacional, a descrição das paisagens geográficas (incluindo aí a fauna e a flora), a reflexão lingüística e filológica sobre o Português do
Brasil, o estudo das questões sociológicas de nosso país, o registro antropológico de manifestações populares, a reflexão filosófica
(mesmo calcada nos movimentos ou nos modismo europeus), tudo isso se fazia, em boa parte, no campo literário. Não é coincidência
que Gonçalves Dias e José de Alencar tenham-se envolvido em questões gramaticais e lingüísticas com os portugueses; que o mesmo
Alencar tenha realizado um mapeamento geográfico do Brasil com seus romances regionalistas ou que tenha utilizada certos
acontecimentos do passado pátrio como matéria ficcional de seus romances históricos; que Manuel Antônio de Almeida tenha se servido
do seu Memórias de um Sargento de Milícias para registrar usos, costumes e tradições populares do Rio de Janeiro da primeiro metade
do século XIX; que, por último, Machado de Assis tenha feito de seu romance uma reflexão sobre o ser humano, a partir das condições
objetivas do homem - e, claro - do intelectual brasileiro. Todavia, no que se refere a Machado, é importante destacar uma diferença
com relação a outros escritores brasileiros. Para o autor de D. Casmurro e de Memórias Póstumas de Brás Cubas, a literatura não serve
apenas de pano-de-fundo para a expressão de idéias filosóficas: ela as modifica, ao introduzi-las no campo literário. De certa maneira,
com Machado, e diferentemente de outros escritores que o precederam, a literatura ganha uma certa supremacia e pode, de forma
autônoma, convocar a filosofia para exercer um papel nesse teatro de idéias que são seus textos em prosa. Em Brás Cubas e em
Quincas Borba, por exemplo, é um positivismo literariamente reformulado que aparece no romance (e, portanto, sem obrigação de
manter vínculos de coerência com a filosofia positivista propriamente dita). Em O Alienista, trata-se do empirismo inglês que se
incorpora à ficção, mas, diferentemente de outros autores, ele não é meramente incorporado ao texto, mas transformado em seus
eixos ideológicos, submetido à lógica interna do literário e não mais à lógica externa da filosofia ou da ciência experimental. Com isso,
aquilo que podemos chamar de pensamento nacional (ou brasileiro) ganha, em Machado, uma fisionomia própria, na medida em que
abre mão da cópia direta, da assimilação imediata, para re-significar, transformar (e transtornar), graças à mediação da literatura, o
esquema filosófico europeu. E onde mais esse processo de incorporação transformadora (de antropofagia, diria mais tarde Oswald de
Andrade) poderia ser empreendido, se não na literatura dele, Machado de Assis (como, mais tarde, o será na poesia de um Augusto dos
Anjos ou na obra do próprio Oswald de Andrade)? Por outro lado, é justamente essa possibilidade de fundar um pensamento nacional
autônomo e autêntico que faz o valor de Machado de Assis praticamente inigualado em todo o século XIX e, quiçá, mesmo em nosso
século. Ao justapor uma prática escravista, autoritária e retrógrada, de fundo colonialista, às raízes européias das ideologias liberais e
dos esquemas de pensamento modernizantes, alardeadas por nosso elite letrada (que era, em larga medida, representativa da própria
elite econômica), Machado não só coloca a nu as contradições dessa elite entre discurso (imagem, aparência) e prática (ação,
essência), mas também faz delas o motor de sua prosa de ficção da maturidade. Aliás, essa disjunção já podia ser vista nas hesitações
de um Padre Vieira com respeito à escravidão do negro, ou ainda nas oscilações de humor de um Gregório de Matos diante da
"mulatização" da cultura brasileira, mas sem que constituíssem, como nos narradores machadianos, o ponto de enunciação de onde se
pode descortinar o que Roberto Schwarz chama freqüentemente de desfaçatez de nossa classe dominante.
5 Foram precisos quase cem anos de independência política para que a autonomia literária fosse além da intenção programática do
Romantismo do início do século XIX. Com efeito, foi a partir das obras de alguns escritores refratários à tradição acadêmico-realista,
como Lima Barreto, entre outros, que se instalou parcialmente aquilo que Mário de Andrade chamaria, anos mais tarde, de
"estabilização de uma consciência criadora nacional", referindo, no caso, às vanguardas modernistas da década de 1920. Todavia, esse
labor de um século era naturalmente mais do que necessário, coisa confirmada pelo vaticínio do próprio Machado de Assis, que via essa
independência como resultado do trabalho de várias gerações. De fato, nenhuma independência literária deriva direta e
necessariamente da independência política. Isso que, atualmente, soa como um truísmo, não era evidente para os escritores das
primeiras décadas do século XIX. Ao buscarem um distanciamento dos modelos estéticos portugueses, não encontraram nada além de
um abrigo na tradição hegemônica do romantismo europeu, o que teve como conseqüência uma hesitação talvez ainda não dialética
entre localismo (quase sempre confundido com o pitoresco da cor local) e universalismo (assimilado ao que então era considerado
como modelo, isto é, a tradição intelectual e artística européia, seguindo o trabalho de universalização já encetado pelos árcades).
Disso resultava, em parte, uma exotização do elemento local, visto, assim, não com os nossos olhos (mesmo necessariamente
imantados pela visão do outro), mas com um olhar incorporado (e não compartilhado) do estrangeiro. Trata-se, então, de um olhar que
não provinha mais do exterior (como seria próprio desse olhar outro que poderíamos apreender - e não apenas aprender - da tradição
européia), mas era carregado com muito cuidado e consideração pela intelectualidade romântica brasileira. Em outras palavras, o olhar
do outro se tornava hegemônico, à medida em que cegava o nosso próprio, deixando, de fato, de ser o outro, para tornar-se o que não
sabíamos ou não podíamos ainda ser. Daí deriva, seguramente, o híbrido índio-europeu dos romances de José de Alencar (como diz o
personagem D. Antônio de Mariz, Peri era "um cavalheiro português no corpo de um selvagem"). Foram, em suma, necessárias
algumas décadas e, pelo menos, duas gerações de escritores para que essa assimilação de padrões europeus, escondida sob a cor
local, passasse pelo crivo de uma maturidade criadora e criativa. A despeito da importância e do talento de um José de Alencar, o
instinto de nacionalidade somente encontra seu leito a partir da geração realista e, sobretudo, com a obra de Machado de Assis. Certo,
a envergadura do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas não deve esconder o fato de que a hesitação não dialética entre
localismo e universalismo continuava a dar mostras de fôlego, como se encontra, por exemplo, na reutilização de L'Assommoir de Emile
Zola n'O Cortiço de Aluízio Azevedo. Por outro lado, a imponência da obra machadiana não pode também esconder outras obras, que
Machado de Assis Instinto de Nacionalidade
Sente-se aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás mal formada ainda, restrita em extremo, pouco
solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia e literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir
principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão
de legítimo amor-próprio. Nem toda ela terá meditado os poemas de Uruguai e Caramuru com aquela atenção que tais
obras estão pedindo; mas os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados e amados, como precursores da poesia
brasileira.
A razão é que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram os primeiros traços de
nossa fisionomia literária, enquanto que outros, Gonzaga por exemplo, respirando aliás os ares da pátria, não
souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas não se lhes
perdoa o cajado e a pastora, e nisto há mais erro que acerto.
Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa do mau gosto dos
poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece,
todavia, justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não haverem
trabalhado para a independência literária, quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que
tudo a metrópole e a colônia criara a história a homogeneidade das tradições, dos costumes e da educação. As
mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a
literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.
Reconhecido o instinto de nacionalidade6
que se manifesta nas obras destes últimos tempos, conviria examinar
se possuímos todas as condições e motivos históricos de uma nacionalidade literária7
, esta investigação (ponto de
não tinham a mesma envergadura, mas que não mostravam menos desempeno nesse diálogo ao mesmo tempo desigual e desafiante
com o cânone europeu, como se pode ver, por exemplo, num Oliveira Paiva e em sua D. Guidinha do Poço. Com efeito, é essa
maturidade assimiladora que permite a superação desse olhar estrangeiro que, uma vez interiorizado na criação estética brasileira,
fazia com que nos víssemos com os olhos do outro, com a perspectiva do estrangeiro, do estrangeiro em sua própria terra, como
parecem dizer, nas entrelinhas, os versos lamentosos de um romântico como Álvares de Azevedo. É a partir da instalação de uma
capacidade de reflexão própria, derivada de uma estabilização do sistema literário nacional, que se pode falar de uma autonomia
literária, a partir das primeiras décadas do século XX, fundada no trabalho de base da geração realista, que reuniu pensadores como
Sílvio Romero e José Veríssimo. E Machado também anuncia tal estado de coisas, ao desfigurar o Realismo europeu e submetê-lo a sua
própria lógica e, mais importante, á lógica histórica de seu próprio país. Com ele, a cor local ganha independência efetiva, e vem a ser
o elemento subjacente ao tecido literário, e não o cenário chamativo com que se adornavam os modelos europeus.
6
Oposto ao nativismo, que é uma celebração da terra - e que talvez tenha sido, nos séculos XVI e XVII, uma tradução do panteísmo
pagão para a mentalidade renascentista européia -, o nacionalismo parte de uma construção prévia que é a de uma imagem de si como
realidade autônoma e específica, justapondo-se ao sentido da própria terra e redefinindo-o, não importando quanto de ficcional essa
imagem possa ter. Aliás, elementos ficcionais (e, num sentido lato, também elementos míticos) participam decisivamente da
construção dessa imagem, ajudam a delimitar uma identidade cujos contornos são, em parte, inventados e sobrepostos às realidades
locais, como máscaras que servem para esconder detalhes indesejáveis ou para ressaltar elementos pretensamente privilegiados. É
claro que tal oposição só pode ser feita a partir da emergência do nacional. Nesse sentido, o nativismo não antecede o nacionalismo,
mas surge como contemporâneo deste: a partir do presente, é um olhar retrospectivo que busca iluminar aquilo que, no passado, foi
feito sem a intenção de ser um ou outro (isto é, nativista ou nacionalista). Dessa maneira, o nativismo é uma atualização de
perspectivas não nacionais com que se falou de uma certa terra, buscando destacar elementos de grandeza sem uma linha de força
que atualizasse seus sentidos e lhes imprimisse a marca da especificidade local, isto é, do nacional. Aí se insere o esforço romântico,
em nosso século XIX (e do qual Machado de Assis é caudatário) de estabelecer uma divisão mais estrita entre nacionalismo e
nativismo, tentando ver neste (através do indianismo de Santa Rita Durão e de Basílio da Gama) um embrião daquele (do indianismo
de Gonçalves Dias e de Alencar). De outro lado, o nativismo também pode surgir como a descrição que faz um observador externo de
elementos que busquem descrever uma terra na qual ele - observador - não se encontra. Apoiado nesse olhar estrangeiro, tal
observador se sentirá capaz de caracterizar como nativista, por exemplo, textos que não compartilhem um pretenso nacionalismo que
(ele crê) poderá se desenvolver nessa terra, em algum momento, em algum local ou em algum segmento social. Todavia, mesmo
nesse caso, o nativismo somente aparece como o pano-de-fundo contra que se recorta o nacionalismo. Entre um e outro, mais do que
oposição, há uma relação de complementaridade ou, para ser mais exato, de dependência daquele com respeito a este.
7 A estabilização de nossa literatura nacional, como aponta corretamente Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira, se dá
a partir dos autores românticos do século XIX, estribados, claro, no grito de independência e de cosmopolitismo encetado pela geração
dos árcades mineiros, na segunda metade do século XVIII. Todavia, esse juízo se refere sobretudo aos aspectos mais externos (ou,
talvez, mais objetiváveis) do sistema literário, deixando de lado toda uma complexa trama de influências evidentes ou sub-reptícias, de
retomadas, de esquecimentos, de modas literárias. O caso da Carta a El Rei D. Manuel, de Pero Vaz de Caminha, relatando a
descoberta e os contatos iniciais com os povos indígenas brasileiros, é bem ilustrativo. Ela é o primeiro documento em língua
portuguesa produzido no Brasil (ou, nas terras que mais tarde viriam a ganhar esse nome), mas sua inserção na série literária é
polêmica, já que seu valor artístico é constantemente colocado em dúvida. Em linhas gerais, trata-se de um texto escrito em língua
européia, adotando uma perspectiva européia (ou seja, mergulhada no Humanismo renascentista), servindo a interesses econômicos e
estratégicos europeus e que, em Portugal, teve, de imediato, repercussão literária praticamente nula. Ora, por outro lado, no que se
refere à produção literária no Brasil, não se pode também esquecer que essa Carta forneceu o estímulo à produção de toda uma série
de escritos nativistas, nos séculos XVI e, sobretudo, XVII. Trata-se de textos de valor literário desigual, mas apontando todos para uma
temática nativista comum, ou seja, a descrição da colônia a partir das visões e dos mitos paradisíacos europeus (como aponta, entre
outros, Sérgio Buarque de Holanda em Visões do Paraíso), servindo, claro, aos interesses mercantilistas da coroa portuguesa. Em
suma, A Carta, mesmo não estando evidentemente inserida nisso que Antonio Candido chama de sistema literário, não deixou de
influenciar a produção literária colonial nos dois séculos seguintes à descoberta. Seria, então, o caso de afirmar claramente que isso a
que chamamos de nacionalidade literária teria já começado a estabelecer suas raízes bem antes da evidente estabilização do sistema
literário brasileiro a partir do final do século XVIII (como o próprio Antonio Candido reconhece no prefácio à segunda edição da
Formação da Literatura Brasileira). A dialética entre localismo e universalismo, proposta pelo mesmo Candido para descrever as
condições de produção de nossa nacionalidade literária, enfatiza o papel preponderante dessas manifestações literárias do Brasilcolônia. Mesmo não ensejando um sistema literário, elas não deixaram de participar dessa nacionalidade literária, ainda que seus
efeitos se tornassem perceptíveis somente a partir do momento em que se associaram independência política e anseio (ou, como diz
Machado de Assis Instinto de Nacionalidade
divergência entre literatos), além de superior às minhas forças, daria em resultado levar-me longe dos limites deste
escrito. Meu principal objeto é atestar o fato atual; ora, o fato é o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma
literatura mais independente.
A aparição de Gonçalves Dias chamou a atenção das musas brasileiras para a história e os costumes indianos.
Os Timbiras, I-Juca Pirama, Tabira e outros poemas do egrégio poeta acenderam as imaginações; a vida das tribos,
vencidas há muito pela civilização, foi estudada nas memórias que nos deixaram os cronistas, e interrogadas dos
poetas, tirando-lhes todos alguma coisa, qual um idílio, qual um canto épico.
Houve depois uma espécie de reação. Entrou a prevalecer a opinião de que não estava toda a poesia nos
costumes semibárbaros anteriores à nossa civilização, o que era verdade, - e não tardou o conceito de que nada tinha a
poesia com a existência da raça extinta, tão diferente da raça triunfante, - o que parece um erro.
É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto
basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não
é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se
compõe. Os que, como o Sr. Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste país, esses podem logicamente excluílos da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que, depois das memórias que a este respeito escreveram os
Srs. Magalhães e Gonçalves Dias, não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro seria
constitui-lo um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta exclusão. As tribos
indígenas, cujos usos e costumes João Francisco Lisboa cotejava com o livro de Tácito e os achava tão semelhantes
aos dos antigos germanos, desapareceram, é certo, da região que por tanto tempo fora sua; mas a raça dominadora
que as freqüentou colheu informações preciosas e no-las transmitiu como verdadeiros elementos poéticos. A piedade, a
minguarem outros argumentos de maior valia, devera ao menos inclinar a imaginação dos poetas para os povos que
primeiro beberam os ares destas regiões, consorciando na literatura os que a fatalidade da história divorciou.
Esta é hoje a opinião triunfante. Ou já nos costumes puramente indianos, tais quais os vemos n'Os Timbiras, de
Gonçalves Dias, ou já na luta do elemento bárbaro com o civilizado, tem a imaginação literária do nosso tempo ido
buscar alguns quadros de singular efeito dos quais citarei, por exemplo, a lracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras
obras desse fecundo e brilhante escritor.
Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado,
tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes
civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de
estudo. Não menos que eles, os convida a natureza americana cuja magnificência e esplendor naturalmente desafiam a
poetas e prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de invenção, a que devemos,
entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimarães, que brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da região em
que nasceu, J. de Alencar, Macedo, Sílvio Dinarte Escragnolle Taunay), Franklin Távora, e alguns mais. Devo
acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito
nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa
literatura. Gonçalves Dias por exemplo, com poesias próprias, seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os
Timbiras, os outros poemas americanos e certo número de composições, pertencem os seus versos pelo assunto a
toda a mais humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; e excluo daí as belas
Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta
extraiu dos historiadores lusitanos, mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado.
O mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria longe se tivesse de citar
outros exemplos de casa, e não acabaria se fosse necessário recorrer aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser
Machado, instinto) de nacionalidade. É nesse contexto que se pode entender a polêmica por trás do que Haroldo de Campos chamou o
"seqüestro do Barroco na literatura brasileira", referindo-se especificamente a Gregório de Matos. Na visão de Candido, nem o Barroco
e, em decorrência, nem Gregório de Matos, tiveram participação decisiva na formação do sistema literário nacional. Todavia, isso não
significa que Gregório, assim como todo o Barroco colonial brasileiro, tenham sido chamados a participar da nacionalidade literária
brasileira (assim como a Carta de Caminha, sem ambição literária evidente, sem estar inserida no sistema literário de sua época, mas
que não deixou de apontar sugestões temáticas e perspectivas ideológicas para os séculos XVI e XVII). A dificuldade em se reconhecer
os antecedentes reside, talvez, no fato de que se trata de uma operação que, no mais das vezes, abre mão de boa parte das veleidades
objetivistas. A nacionalidade literária, como já dito em outra parte desses comentários, é um equilíbrio instável, é um trabalho
incessantemente retomado, uma imagem constantemente retramada, e, como tal, relê, a cada momento e de acordo com suas
necessidades momentâneas, o percurso histórico de sua formação. Assim, o Gregório de Matos esquecido do século XVIII é retomado
como prenunciador de uma brasilidade literária a partir do século XIX, quando os críticos literários querem ver nele um distanciamento
possível da língua literária lusitana. Mais tarde, na segunda metade do século XX, o mesmo Gregório de Matos vai servir agora de
modelo a uma visão antropofágica da cultura brasileira. Em outras palavras, a faceta brasileira de Gregório de Matos, sendo discutida
segundo duas perspectivas diferentes do instinto de nacionalidade, é apresentada, num primeiro momento, como alicerce de uma
língua literária autônoma; num segundo, é vista como mecanismo de assimilação destrutivo-criativa da influência européia.
Machado de Assis Instinto de Nacionalidade
impresso em terra americana e inglesa, perguntarei simplesmente se o autor do Song of Hiawatha não é o mesmo autor
da Golden Legend, que nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor admirável é; e perguntarei mais se o
Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território
britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês. Não há
dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe
oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam.
O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do
seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há
tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar
sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que
havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial. Estes e outros pontos cumpria à
crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros
países. Não a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a influência
quotidiana e profunda que deveram exercer.
A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é mister que a análise
corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se estudem, que os
senões se apontem, que o gosto se apure e eduque, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a esperam.
O ROMANCE
De todas as formas várias as mais cultivadas atualmente no Brasil são o romance e a poesia lírica; a mais
apreciada é o romance, como aliás acontece em toda a parte, creio eu. São fáceis de perceber as causas desta
preferência da opinião, e por isso não me demoro em apontá-las. Não se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros
de filosofia, de lingüística, de crítica histórica, de alta política, e outros assim, que em alheios países acham fácil
acolhimento e boa extração; raras são aqui essas obras e escasso o mercado delas. O romance pode-se dizer que
domina quase exclusivamente. Não há nisto motivo de admiração nem de censura, tratando-se de um país que apenas
entra na primeira mocidade, e esta ainda não nutrida de sólidos estudos. Isto não é desmerecer o romance, obra d'arte
como qualquer outra, e que exige da parte do escritor qualidades de boa nota.
Aqui o romance, como tive ocasião de dizer busca sempre a cor local. A substância, não menos que os
acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações. Naturalmente os
costumes do interior são os que conservam melhor a tradição nacional; os da capital do país, e em parte, os de
algumas cidades, muito mais chegados à influência européia, trazem já uma feição mista e ademanes diferentes. Por
outro lado, penetrando no tempo colonial, vamos achar uma sociedade diferente, e dos livros em que ela é tratada,
alguns há de mérito real.
Não faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e de análise, e um estrangeiro não
familiar com os nossos costumes achará muita página instrutiva. Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar
temos, ou porque a nossa índole não nos chame para aí, ou porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a
nossa adolescência literária.
O romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento, quadros da natureza e de
costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espírito do nosso povo. Há em verdade ocasiões em que essas
qualidades parecem sair da sua medida natural, mas em regra conservam-se estremes de censura, vindo a sair muita
coisa interessante, muita realmente bela. O espetáculo da natureza, quando o assunto o pede, ocupa notável lugar no
romance, e dá páginas animadas e pitorescas, e não as cito por me não divertir do objeto exclusivo deste escrito, que é
indicar as excelências e os defeitos do conjunto, sem me demorar em pormenores. Há boas páginas, como digo, e creio
até que um grande amor a este recurso da descrição, excelente, sem dúvida, mas (como dizem os mestres) de
mediano efeito, se não avultam no escritor outras qualidades essenciais.
Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os exemplos que podem
satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável.
Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores.
Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas,
não andam a rodo nem são a partilha do maior número.
As tendências morais do romance brasileiro são geralmente boas. Nem todos eles serão de princípio a fim
irrepreensíveis; alguma coisa haverá que uma crítica austera poderia apontar e corrigir. Mas o tom geral é bom. Os
Machado de Assis Instinto de Nacionalidade
livros de certa escola francesa, ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a literatura brasileira, nem sinto nela
tendências para adotar as suas doutrinas, o que é já notável mérito. As obras de que falo, foram aqui bem-vindas e
festejadas, como hóspedes, mas não se aliaram à família nem tomaram o governo da casa. Os nomes que
principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico, os escritores que se vão buscar para fazer
comparações com os nossos, - porque há aqui muito amor a essas comparações - são ainda aqueles com que o nosso
espírito se educou, os Vítor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os Nervals.
Isento por esse lado o romance brasileiro, não menos o está de tendências políticas, e geralmente de todas as
questões sociais, - o que não digo por fazer elogio, nem ainda censura, mas unicamente para atestar o fato. Esta casta
de obras, conserva-se aqui no puro domínio de imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia
às crises sociais e filosóficas. Seus principais elementos são, como disse, a pintura dos costumes, e luta das paixões,
os quadros da natureza, alguma vez o estudo dos sentimentos e dos caracteres; com esses elementos, que são
fecundíssimos, possuímos já uma galeria numerosa e a muitos respeitos notável.
No gênero dos contos, à maneira de Henri Murger, ou à de Trueba, ou à de Ch. Dickens, que tão diversos são
entre si, têm havido tentativas mais ou menos felizes, porém raras, cumprindo citar, entre outros, o nome do Sr. Luís
Guimarães Júnior, igualmente folhetinista elegante e jovial. É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e
creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público
toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.
Em resumo, o romance, forma extremamente apreciada e já cultivada com alguma extensão, é um dos títulos da
presente geração literária. Nem todos os livros, repito, deixam de se prestar a uma crítica minuciosa e severa, e se a
houvéssemos em condições regulares creio que os defeitos se corrigiriam, e as boas qualidades adquiririam maior
realce. Há geralmente viva imaginação, instinto do belo, ingênua admiração da natureza, amor às coisas pátrias e além
de tudo isto agudeza e observação. Boa e fecunda terra, já deu frutos excelentes e os há de dar em muito maior escala.
A POESIA
A ação de crítica seria sobretudo eficaz em relação à poesia. Dos poetas que apareceram no decênio de 1850 a
1860, uns levou-os a morte ainda na flor dos anos, como Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu,
cujos nomes excitam na nossa mocidade legítimo e sincero entusiasmo, e bem assim outros de não menor porte. Os
que sobreviveram calaram as liras; e se uns voltaram as suas atenções para outro gênero literário, como Bernardo
Guimarães, outros vivem dos louros colhidos, se é que não preparam obras de maior tomo, como se diz de Varela,
poeta que já pertence ao decênio de 1860 a 1870. Neste último prazo outras vocações apareceram e numerosas, e
basta citar um Crespo, um Serra, um Trajano, um Gentil-Homem de Almeida Braga, um Castro Alves, um Luís
Guimarães, um Rosendo Moniz, um Carlos Ferreira, um Lúcio de Mendonça, e tantos mais, para mostrar que a poesia
contemporânea pode dar muita coisa; se algum destes, como Castro Alves, pertence à eternidade, seus versos podem
servir e servem de incentivo às vocações nascentes.
Competindo-me dizer o que acho da atual poesia, atenho-me só aos poetas de recentíssima data, melhor direi a
uma escola agora dominante, cujos defeitos me parecem graves, cujos dotes - valiosos e que poderá dar muito de si,
no caso de adotar a necessária emenda.
Não faltam à nossa atual poesia fogo nem estro. Os versos publicados são geralmente ardentes e trazem o
cunho da inspiração. Não insisto na cor local; como acima disse, todas as formas a revelam com mais ou menos
brilhante resultado, bastando-me citar neste caso as outras duas recentes obras, as Miniaturas de Gonçalves Crespo e
os Quadros de J. Serra, versos estremados dos defeitos que vou assinalar. Acrescentarei que também não falta à
poesia atual o sentimento da harmonia exterior. Que precisa ela então? Em que peca a geração presente? Falta-lhe um
pouco mais de correção e gosto, peca na intrepidez às vezes da expressão, na impropriedade das imagens na
obscuridade do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvaira e se perde, chegando à obscuridade, à
hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. Isto na alta poesia lírica, - na ode, diria eu, se ainda
subsistisse a antiga poética; na poesia íntima e elegíaca encontram-se os mesmos defeitos, e mais um amaneirado no
dizer e no sentir, o que tudo mostra na poesia contemporânea grave doença, que é força combater.
Bem sei que as cenas majestosas da natureza americana exigem do poeta imagens e expressões adequadas. O
condor que rompe dos Andes, o pampeiro que varre os campos do Sul, os grandes rios, a mata virgem com todas as
suas magnificências de vegetação, - não há dúvida que são painéis que desafiam o estro, mas, por isso mesmo que
são grandes, devem ser trazidos com oportunidade e expressos com simplicidade.
Machado de Assis Instinto de Nacionalidade
Ambas essas condições faltam à poesia contemporânea, e não é que escasseiem modelos, que aí estão, para
só citar três nomes, os versos de Bernardo Guimarães, Varela e Álvares de Azevedo. Um único exemplo bastará para
mostrar que a oportunidade e a simplicidade são cabais para reproduzir uma grande imagem ou exprimir uma grande
idéia. N'Os Timbiras, há uma passagem em que o velho Ogib ouve censurarem-lhe o filho, porque se afasta dos outros
guerreiros e vive só. A fala do ancião começa com estes primorosos versos:
São torpes os anuns, que em bandos folgam.
São maus os caititus que em varas pascem:
Somente o sabiá geme sozinho,
E sozinho o condor aos céus remonta.
Nada mais oportuno nem mais singelo do que isto. A escola a que aludo não exprimiria a idéia com tão simples
meios, e faria mal, porque o sublime é simples. Fora para desejar que ela versasse e meditasse longamente estes e
outros modelos que a literatura brasileira lhe oferece. Certo, não lhe falta, como disse, imaginação; mas esta tem suas
regras, o estro leis, e se há casos em que eles rompem as leis e as regras, é porque as fazem novas, é porque se
chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões.
Indiquei os traços gerais. Há alguns defeitos peculiares a alguns livros, como por exemplo, a antítese, creio que
por imitação de Vítor Hugo. Nem por isso acho menos condenável o abuso de uma figura que, se nas mãos do grande
poeta produz grandes efeitos, não pode constituir objeto de imitação, nem sobretudo elementos de escola.
Há também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai muitas vezes numa funesta
ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode
dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os
seus toques, e que estes sejam naturais, não de acarreto. Os defeitos que resumidamente aponto não os tenho por
incorrigíveis; a crítica os emendaria; na falta dela, o tempo se incumbirá de trazer às vocações as melhores leis. Com as
boas qualidades que cada um pode reconhecer na recente escola de que falo, basta a ação do tempo, e se entretanto
aparecesse uma grande vocação poética, que se fizesse reformadora, é fora de dúvida que os bons elementos
entrariam em melhor caminho, e à poesia nacional restariam as tradições do período romântico.
O TEATRO
Esta parte pode reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça
nacional se escreve, raríssima peça nacional se representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções,
o que não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional quando aparecia. Hoje, que o gosto público tocou o
último grau da decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras
severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa,
tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?
E todavia a continuar o teatro, teriam as vocações novas alguns exemplos não remotos, que muito as haviam de
animar. Não falo das comédias do Pena, talento sincero e original, a quem só faltou viver mais para aperfeiçoar-se e
empreender obras de maior vulto; nem também das tragédias de Magalhães e dos dramas de Gonçalves Dias, Porto
Alegre e Agrário. Mais recentemente, nestes últimos doze ou quatorze anos, houve tal ou qual movimento. Apareceram
então os dramas e comédias do Sr. J. de Alencar, que ocupou o primeiro lugar na nossa escola realista e cujas obras
Demônio Familiar e Mãe são de notável merecimento. Logo em seguida apareceram várias outras composições dignas
do aplauso que tiveram tais como os dramas dos Srs. Pinheiro Guimarães, Quintino Bocaiúva e alguns mais, mas nada
disso foi adiante. Os autores cedo se enfastiaram da cena que a pouco e pouco foi decaindo até chegar ao que temos
hoje, que é nada.
A província ainda não foi de todo invadida pelos espetáculos de feira; ainda lá se representa o drama e a
comédia - mas não aparece, que me conste, nenhuma obra nova e original. E com estas poucas linhas fica liquidado
este ponto.
A LÍNGUA
Entre os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura o da pureza da linguagem. Não é raro ver
intercalados em bom estilo os solecismos da linguagem comum, defeito grave, a que se junta o da excessiva influência
da língua francesa. Este ponto é objeto de divergência entre os nossos escritores. Divergência digo, porque, se alguns
Machado de Assis Instinto de Nacionalidade
caem naqueles defeitos por ignorância ou preguiça, outros há que os adotam por princípio, ou antes por uma
exageração de princípio.
Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes.
Querer que a nossa pare no século de quinhentos, é um erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a
América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de
dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito de cidade.
Mas se isto é um fato incontestável, e se é verdadeiro o princípio que dele se deduz, não me parece aceitável a
opinião que admite todas as alterações da linguagem, ainda aquelas que destroem as leis da sintaxe e a essencial
pureza do idioma. A influência popular tem um limite, e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que
o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de
influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão.
Feitas as exceções devidas não se lêem muito os clássicos no Brasil. Entre as exceções poderia eu citar até
alguns escritores cuja opinião é diversa da minha neste ponto, mas que sabem perfeitamente os clássicos. Em geral,
porém, não se lêem, o que é um mal. Escrever como Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo
insuportável. Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar
deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os
antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.
Outra coisa de que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos seus
escritos. Há um prurido de escrever muito e depressa; tira-se disso glória, e não posso negar que é caminho de
aplausos. Há intenção de igualar as criações do espírito com as da matéria, como se elas não fossem neste caso
inconciliáveis. Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias; para uma obra-prima do espírito são
precisos alguns mais.
Aqui termino esta notícia. Viva imaginação, delicadeza e força de sentimentos, graças de estilo, dotes de
observação e análise, ausência às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor
local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo
futuro.
*** *** https://www.ufrgs.br/cdrom/assis/massis.pdf *** ***
***
***
Antõnio de Alcântara Machado : 120 anos de nascimento
***
Nascido no dia 25 de maio de 1901 na cidade de São Paulo, Antônio Castilho de Alcântara Machado d’Oliveira, mais conhecido como Alcântara Machado, foi um escritor, jornalista e político brasileiro.
***
Além da carreira como jornalista e escritor, Alcântara Machado atuou na política a partir do ano de 1934, quando se candidatou e foi eleito à cadeira de deputado federal. Apesar de conseguir se eleger, não conseguiu atuar como deputado, pois faleceu com apenas 34 anos, deixando incompleto um romance intitulado como Mana Maria, de 1936.
***
NACIONALIDADE
O barbeiro Tranquillo Zampinetti da Rua do Gasômetro n.º
224-B entre um cabelo e uma barba lia sempre os comunicados
de guerra do Fafulla. Muitas vezes em voz alta até. De puro
entusiasmo. La fulminante investita dei nostri bravi bersaglieri
ha ridotto le posizione nemiche in un vero amazzo di rovine.
Nel campo di battaglia sono restati circa cento e novanta
nemici. Dalla nostra parte abbiamo perduto due cavalli ed è
rimasto ferito un bravo soldato, vero eroe che si è avventurato
troppo nella conquista fatta da solo di una batteria nemica.1
Comunicava ao Giacomo engraxate (SALÃO MUNDIAL)
a nova vitória e entoava:
Tripoli sarà italiana,
Sarà italiana a rombo di cannone!2
Nesses dias memoráveis diante dos fregueses assustados
brandia3
a navalha como uma espada:
***
1 La fulminante...: A fulminante investida dos nossos bravos atiradores reduziu
as posições inimigas a um verdadeiro amontoado de ruínas. No campo de
batalha ficaram cerca de cento e noventa inimigos. Do nosso lado perdemos
dois cavalos e ficou ferido um bravo soldado, verdadeiro herói que se
aventurou demasiadamente na conquista solitária de uma bateria inimiga.
2 Tripoli...: Trípoli será italiana / Será italiana a tiro de canhão.
3 Brandir: agitar, erguer a arma antes do ataque.
***
— Caramba, come dicono gli spagnuoli!4
Mas tinha um desgosto. Desgosto patriótico e doméstico.
Tanto o Lorenzo como o Bruno (Russinho para a saparia5
do
Brás) não queriam saber de falar italiano. Nem brincando. O
Lorenzo era até irritante.
— Lorenzo! Tua madre ti chiama!6
Nada.
— Tua madre ti chiama, ti dico!
Inútil.
— Per l’ultima volta, Lorenzo! Tua madre ti chiama, hai
capito?7
Que o quê.
— Stai attento que ti rompo la faccia, figlio d’un cane
sozzaglione, che non sei altro!8
— Pode ofender que eu não entendo! Mamãe! MAMÃE!
MAMÃE!
Cada surra que só vendo.
***
4 Caramba... (pronúncia: carámba, cóme dícono lhi spanhuoli): Caramba,
como dizem os espanhóis.
5 Saparia: turma, “patota”.
6 Lorenzo! Tua madre ti chiama! (pronúncia: lorentso, tua madre ti kiáma):
Lorenzo, tua mãe te chama.
7 Per l’ultima volta... hai capito?: pela última vez... compreendeu?
8 Stai attento... (pronúncia: fatcha - filho - sotsalhone): atenção que eu te
quebro a cara, filho de um cachorro imundo, que não és outra coisa.
***
Depois de jantar Tranquillo punha duas cadeiras na calçada
e chamava a mulher. Ficavam gozando a fresca uma porção de
tempo. Tranquillo cachimbando. Dona Emília fazendo meias
roxas, verdes, amarelas. Às vezes o Giacomo vinha também
carregando a sua cadeira de palha grossa.
Raramente abriam a boca. Quase que para cumprimentar
só:
— Buona sera, Crispino.9
— Tanti saluti a casa, sora Clementina.10
Mas quando dava na telha do Carlino Pantaleoni, proprietário da QUITANDA BELLA TOSCANA, de vir também se
reunir ao grupo era uma vez o silêncio. Falava tanto que nem
parava na cadeira. Andava de um lado para outro. Com grandes
gestos. E era um desgraçado: citava Dante Alighieri11 e Leonardo da Vinci.12 Só esses. Mas também sem titubear. E vinte
vezes cada dez minutos. Desgraçado.
O assunto já sabe: Itália. Itália e mais Itália. Porque a Itália
isto, porque a Itália aquilo. E a Itália quer, a Itália faz, a Itália
é, a Itália manda.
Giacomo era menos jacobino. Tranquillo era muito. Ficava
quieto porém.
***
9 Bona sera: boa noite.
10 Tanti saluti...: muitas saudações para sua família, senhora Clementina.
11 Dante Alighieri (pronúncia: aliguiêri) (1265-1321): poeta italiano cuja obraprima, A Divina Comédia, constitui-se no relato de uma viagem visionária
através do Inferno, do Purgatório e do Paraíso.
12 Leonardo da Vinci (pronúncia vintchi) (1452-1519): pintor, engenheiro,
músico, cientista e inventor italiano, o mais versátil gênio do Renascimento.
***
É. Ficava quieto. Mas ia dormir com aquela idéia na
cabeça: voltar para a pátria.
Dona Emília sacudia os ombros.
Um dia o Ferrucio candidato do Governo a terceiro juiz de
paz do distrito veio cabalar13 o voto do Tranquillo. Falou.
Falou. Falou. Tranquillo escanhoando o rosto do político só
escutava.
— Siamo intesi?14
— No. Non sono elettore.
— Non è elettore? Ma perchè?
— Perchè sono italiano, mio caro signore.
— Ma che c’entra la nazionalità, Dio Santo? Pure io sono
italiano e farò il giudice!15
— Stà bene, stà bene. Penserò.16
E votou com outra caderneta.17
Depois gostou. Alistou-se eleitor. E deu até para cabalar.
***
13 Cabalar voto: procurar conseguir o voto com promessas ou ardis.
14 Siamo intesi?: estamos entendidos?
15 Ma che c’entra...: Mas o que importa a nacionalidade, santo Deus? Mesmo
sendo italiano, serei juiz!
16 Penseró: pensarei.
17 Caderneta: aqui, título de eleitor.
***
A guerra européia18 encontrou Tranquillo Zampinetti
proprietário de quatro prédios na Rua do Gasômetro, dois na
Rua Piratininga, cabo influente do Partido Republicano Paulista
e dileto compadre do primeiro subdelegado do Brás; o Lorenzo
interessado19 da firma Vanzinello & Cia. e noivo da filha mais
velha do Major Antônio Del Piccolo, membro do diretório
governista do Bom Retiro; o Bruno vice-presidente da Associação Atlética Pingue-Pongue e primeiranista do Ginásio do
Estado.
Tranquillo agitou-se todo. Comprou um mapa das operações com as respectivas bandeirinhas. Colocou no salão o
retrato da família real.20 Enfeitou o lustre com papel de seda
tricolor.
— Questa volta Guglielmone avrà il suo!21
Lorenzo noivava. Bruno caçoava.
Dona Clementina pouco ligava. Mas no dia em que o
marido resolveu influenciado pelo Carlino subscrever22 para o
empréstimo de guerra protestou indignada. Tranquillo deu dois
gritos patrióticos. Dona Emília deu três econômicos. Tranquillo
cedeu. E mostrou ao Carlino como explicação a sua caderneta de eleitor.
***
18 Guerra européia: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
19 Interessado: associado.
20 Família real: era rei da Itália, entre 1900 e 1946, Vitório Emanuel III (1869-
1947).
21 Questa volta... (pronúncia: qüesta - gulhelmone): desta vez o Guilhermão vai
levar a sua, isto é, vai dar-se mal. — Guglielmone: aumentativo jocoso de
Guglielmo, forma italiana de Guilherme (Wilhelm) II (1859-1941),
imperador da Alemanha e rei da Prússia.
22 Subscrever: subentenda-se uma lista de doações para ajudar a Itália na
guerra.
***
Aos poucos mesmo foi-se desinteressando da guerra. E
chegou à perfeição de ficar quieto na tarde em que o Bruno
entrou pela casa adentro berrando como um possesso:
II General Cadorna
scrisse alla Regina:
Si vuol vedere Trieste
t'la mando in cartolina...23
E o Bruno só para moer24 não cantou outra cousa durante
três dias.
Proprietário de mais dois prédios à Rua Santa Cruz da
Figueira, Tranquillo Zampinetti fechou o salão (a mão já lhe
tremia um pouquinho) e entrou para sócio comanditário da
Perfumaria Santos Dumont.
Então já dizia em conversa no Centro Político do Brás:
— Do que a gente bisogna25 no Brasil, bisogna mesmo, é
d'un buono governo, mais nada!
***
23 Il General...: O general Cadorna / escreveu para a Rainha: / Se desejas ver
Trieste / eu a mando num cartão postal. — O General Cadorna era o chefe
do Estado-maior italiano; a cidade de Trieste, então integrada ao Império
Austro-húngaro, era reivindicada pela Itália — o que constituiu uma razão
importante para o envolvimento da Itália na I Guerra Mundial. A canção de
zombaria e protesto era cantada pelos soldados italianos, esgotados depois
de dois anos de esforço inútil por Trieste.
24 Moer: perturbar, chatear.
25 Bisogna (pronúncia: bisonha): necessita.
***
E o único trabalho que tinha era fiscalizar todos os dias a
construção da capela da família no cemitério do Araçá.
Quando o Bruno bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais
pela Faculdade de Direito de São Paulo ao sair do salão nobre
no dia da formatura caiu nos seus braços Tranquillo Zampinetti
chorou como uma criança.
No pátio a banda da Força Pública (gentilmente cedida
pelo doutor secretário da Justiça) terminava o hino acadêmico.
A estudantada gritava para os visitantes:
— Chapéu! Chapéu-péu-péu!
E maxixava sob as arcadas.
Tranquillo empurrou o filho com fraque e tudo para dentro
do automóvel no Largo de São Francisco e mandou tocar a toda
para casa.
Dona Emília estava mexendo na cozinha quando o filho do
Lorenzo gritou no corredor:
— Vovó! Vovó! Venha ver o Tio Bruno de cartola!
Tremeu inteirinha. E veio ao encontro do filho amparada
pelo Lorenzo e pela nora.
— Benedetto pupo mio!26
Vendo os cinco chorando abraçados o filho do Lorenzo
abriu também a boca.
O primeiro serviço profissional do Bruno foi requerer ao
Ex.mo Sr. Dr. Ministro da Justiça e Negócios Interiores do Brasil
a naturalização de Tranquillo Zampinetti, cidadão italiano
residente em São Paulo.
***
26 Benedetto...: bendito meu filhinho (literalmente: meu boneco).
*** *** https://www.objetivo.br/arquivos/livros/bras_bexiga_e_barra_funda.pdf *** ***
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Artigo 12 da Constituição Federal de 1988
Constituição Federal de 1988
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 12. São brasileiros:
I - natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;
c)
os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente, ou venham a residir na República Federativa do Brasil antes da maioridade e, alcançada esta, optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira ;
c ) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira; (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
(Revogado)
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 54, de 2007)
II - naturalizados:
a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;
b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de trinta anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.
(Revogado)
b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
§ 1º - Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro nato, salvo os casos previstos nesta Constituição .
(Revogado)
§ 1º Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
§ 2º A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição.
§ 3º São privativos de brasileiro nato os cargos:
I - de Presidente e Vice-Presidente da República;
II - de Presidente da Câmara dos Deputados;
III - de Presidente do Senado Federal;
IV - de Ministro do Supremo Tribunal Federal;
V - da carreira diplomática;
VI - de oficial das Forças Armadas.
VII - de Ministro de Estado da Defesa. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999)
§ 4º - Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que:
I - tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional;
II - adquirir outra nacionalidade por naturalização voluntária.
(Revogado)
II - adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos: (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira; (Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis; (Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994)
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Lero Lero
Edu Lobo
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Ouvir Lero Lero
Sou brasileiro de estatura mediana
Gosto muito de fulana mas sicrana é quem me quer
Porque no amor quem perde quase sempre ganha
Veja só que coisa estranha, saia dessa se puder
Não guardo mágoa, não blasfemo, não pondero
Não tolero lero-lero, devo nada pra ninguém
Sou descansado, minha vida eu levo a muque
Do batente pro batuque faço como me convém
Eu sou poeta e não nego a minha raça
Faço versos por pirraça e também por precisão
De pé quebrado, verso branco, rima rica
Negaceio, dou a dica, tenho a minha solução
Sou brasileiro, tatu-peba taturana
Bom de bola, ruim de grana, tabuada sei de cor
Quatro vez sete vinte e oito nove´s fora
Ou a onça me devora ou no fim vou rir melhor
Não entro em rifa, não adoço, não tempero
Não remarco, marco zero, se falei não volto atrás
Por onde passo deixo rastro, deito fama
Desarrumo toda a trama, desacato satanás
Brasileiro de estatura mediana
Gosto muito de fulana mas sicrana é quem me quer
Porque no amor quem perde quase sempre ganha
Veja só que coisa estranha, saia dessa se puder
Diz um ditado natural da minha terra
Bom cabrito é o que mais berra onde canta o sabiá
Desacredito no azar da minha sina
Tico-tico de rapina, ninguém leva o meu fubá
Composição: Edú Lobo / Cacaso.
*** *** https://www.letras.mus.br/edu-lobo/45625/ *** ***
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Edu Lobo - "Lero lero" (Fantástico 1979)
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*** *** https://www.youtube.com/watch?v=Vz73zZriafQ *** ***
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