domingo, 23 de maio de 2021

Os Velhos

*** “A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos. A Assembléia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações.” *** Ulysses Guimarães, no célebre discurso de promulgação da atual Constituição, em 1988. *** *** http://tribunadainternet.com.br/dilma-ou-seu-ghost-writer-ressuscitou-ulysses-guimaraes-ao-lembrar-o-velho-do-restelo/ ***
*** Não podemos dividir os velhos entre vencedores e perdedores ***
*** Coube à médica geriatra Karla Giacomin, ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, uma das declarações mais contundentes no V Fórum Internacional da Longevidade, realizado na semana passada. “Não podemos dividir os velhos entre vencedores e perdedores. Todos são vencedores: os que precisam de cuidados e os que correm maratonas. Não vamos esquecer que todos chegaremos à finitude”, afirmou. ***
*** Os Velhos Todos nasceram velhos — desconfio. Em casas mais velhas que a velhice, em ruas que existiram sempre — sempre assim como estão hoje e não deixarão nunca de estar: soturnas e paradas e indeléveis mesmo no desmoronar do Juízo Final. Os mais velhos têm 100, 200 anos e lá se perde a conta. Os mais novos dos novos, não menos de 50 — enorm’idade. Nenhum olha para mim. A velhice o proíbe. Quem autorizou existirem meninos neste largo municipal? Quem infrigiu a lei da eternidade que não permite recomeçar a vida? Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade de ser também um velho desde sempre. Assim conversarão comigo sobre coisas seladas em cofre de subentendidos a conversa infindável de monossílabos, resmungos, tosse conclusiva. Nem me vêem passar. Não me dão confiança. Confiança! Confiança! Dádiva impensável nos semblantes fechados, nos felpudos redingotes, nos chapéus autoritários, nas barbas de milénios. Sigo, seco e só, atravessando a floresta de velhos. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE *** *** https://gilvanmelo.blogspot.com/ *** *** *** Entrevista: Don Bryant e a arte de contar histórias pela música 8, fevereiro, 2021Luiz Mazetto ***
entrevista por Luiz Mazetto Prestes a completar 79 anos de idade, em abril, o cantor Don Bryant vive provavelmente o melhor momento em sua carreira, que teve início ainda nos anos 1960 em Memphis, na lendária gravadora Hi Records, casa de grandes nomes de soul e R&B, como Al Green, Willie Mitchell e Otis Clay. Após lançar seu primeiro disco, “Precious Soul”, em 1969, Don passou a trabalhar mais como compositor, tendo colaborado com diversos artistas do selo. A sua parceria de maior sucesso foi com a cantora Ann Peebles, com quem é casado desde 1974. Juntos, foram responsáveis por grandes hits como “I Can’t Stand the Rain” e “99 Pounds”. Depois de décadas sem gravar, período em que também se dedicou à música gospel, Don decidiu há alguns anos que tinha chegado o momento de voltar. Em 2017, lançou o seu segundo disco, “Don’t Give Up On Love” (Fat Possum), que mostrou que sua voz e sua habilidade como compositor apenas melhoraram com o passar do tempo. Muito bem recebido pelo público e crítica, o álbum abriu caminho para “You Make Me Feel”, lançado em 2020 também pela Fat Possum Records, que repetiu a boa recepção do antecessor e rendeu sua primeira indicação ao Grammy na carreira. Em ambos os discos, o cantor conta com o acompanhamento da ótima banda local The Bo-Keys. Na entrevista abaixo, feita por telefone em uma tarde de sábado no último mês de janeiro, um extremamente simpático Bryant fala sobre a importância da música na sua vida, revisitar músicas do passado, a rotina em meio à pandemia, como é ser indicado ao Grammy pela primeira vez quase aos 80 anos e qual disco mudou a sua vida, entre muitas outras coisas. *** *** Como tem sido esse período com a pandemia, começou a fazer alguma atividade diferente, algum hobby novo, nesse último ano? Não, não comecei. Fiquei com a música. Então qualquer momento em que tenho um tempo livre, basicamente uso para tentar escrever mais material. Porque você nunca sabe quando vai precisar de algumas músicas novas. E isso é uma parte tão grande de mim, é basicamente tudo em que penso (risos). Li uma entrevista sua recente para a rádio norte-americana NPR, em que você dizia que uma das coisas que te ajudaram nesse momento pelo qual estamos passando, com a pandemia, era sentar no piano e tocar algumas das suas músicas favoritas. Você ainda está fazendo isso? Não tanto quanto antes, mas ainda estou fazendo. Como disse antes, o principal objetivo agora é tentar compor material novo, músicas novas, então basicamente estou mais focado em escrever. Mas eu escuto porque eu tenho músicas, títulos de músicas e frases de letras de músicas que costumam me ajudar a seguir para uma direção diferente com outra música. É assim que eu trabalho, escuto histórias antigas e tento criar coisas novas. Aliás, nos seus dois últimos discos, e também em alguns vídeos ao vivo recentes, você revisita algumas músicas mais antigas de sua autoria/coautoria, como “99 Pounds” e “I Can´t Stand the Rain”, que foram grandes sucessos na voz da sua esposa, Ann Peebles. Por isso, queria saber se há uma importância específica para você em poder revisitar essas músicas após tanto tempo, no sentido de talvez ajudá-lo a olhar para frente? Sim, existe sim. Porque essas são músicas que eu realmente gosto muito. A “99 Pounds” para a Ann, por exemplo, é porque ela pesava 99 libras (nota: unidade de medida de peso usada nos EUA). Eu tento pegar pequenas coisas e pontos que eu posso sentir e escrever algumas linhas sobre isso. Se eu conseguir escrever as primeiras frases, então tenho um bom começo. E quando uma ideia, quando algumas palavras vêm até mim, na maior parte das vezes apenas coloco no papel e depois tento voltar a elas. Mas apenas me divirto tentando criar uma história. É isso o que faz as coisas acontecerem para mim, tentar criar uma história. Agora falando mais especificamente sobre o seu último disco, “You Make Me Feel” (Fat Possum, 2020), que é um disco muito bonito, aliás. Você esperava receber uma resposta tão positiva ao álbum, não apenas do público, mas também da crítica, incluindo a sua primeira indicação ao Grammy (nota: Don concorre na categoria de Melhor Álbum de Blues no Grammy 2021), sendo um disco que foi lançado no meio da pandemia? Foi uma grande surpresa para mim. Mas sempre que estou tentando escrever uma música, tento fazer isso da melhor maneira que posso, para que consiga extrair o máximo possível dela. E isso realmente me surpreendeu, de chegar tão longe. Quero dizer, isso meio que me deixou sem chão. É algo que já vi acontecer tantas vezes com outros, quando fiquei feliz por diferentes pessoas que conheço que receberam indicações ao Grammy ou algo assim. Para mim, era algo para esperar no meu processo de composição, com a possibilidade de isso acontecer algum dia. E esse dia chegou. Demorou bastante tempo, mas eu sabia que a mudança chegaria (risos). E receber essa indicação à essa altura da sua vida lhe parece como algum tipo de reconhecimento pela sua obra como um todo? Eu não… Ficaria hesitante em dizer isso. Diria que mais como algo relacionado à essa música em particular neste momento na indústria da música. São ideias que eu tive, algumas vezes você tem ideias que você sabe que precisam sair, que precisam sair de alguma maneira. Quando algo, quando a gravação chegava, eu precisava voltar ao meu “modo de composição”. Porque pessoalmente eu não estava nesse modo até que essas coisas surgiam. Mas eu voltava a ele, precisava escrever algumas músicas. Não sei, essas ideias vinham até mim. Elas vêm, eu as escrevo, tento colocar melodia nelas, finalizá-las, para sempre ter algo para apresentar quando chegasse a hora. E essas coisas apenas vinham a mim. Uma vez que comecei, foi um sentimento ótimo, porque me levou de volta aos dias em que eu estava no estúdio todos os dias tentando escrever músicas para alguém (risos). E agora, na maior parte do tempo, estou escrevendo para mim. Quando decidiu gravar esses discos de retorno, vamos dizer, imaginava que conseguiria ter um material tão forte em tão pouco tempo? Os discos foram lançados com uma diferença de apenas três anos entre eles. Não imaginava. Quer dizer, eu esperava… eu esperava que fosse uma situação desse tipo. Eu não estava ouvindo música com muita frequência na época. Mas quando a situação se apresentou, todas aquelas coisas começaram a voltar para mim: ideias, letras, músicas, e tudo mais. Elas começaram a voltar porque eu estava fazendo isso por mim (risos). Eu ainda tinha todas essas coisas dentro de mim – e elas começaram a sair. E então eu fiquei tão envolvido…comecei a me divertir. E então as coisas apenas começaram a acontecer, e foram melhorando e melhorando – e eu fui me divertindo cada vez mais. Então foi algo excitante para mim, poder voltar e cantar muitas daquelas músicas que tinha feito e então mais ideias apenas continuaram surgindo. Fiquei feliz de poder ter isso de volta à minha vida. E estou feliz, muito feliz com isso. Você mencionou há pouco a importância de contar uma história quando está compondo. Por isso, queria saber se há algum artista ou alguém próximo de você que era um grande contador de histórias e que te influenciou neste sentido? Sim, e esse foi o meu pai. Ele era um cantor gospel e tinha um quarteto gospel. Eu tinha seis irmãos e três irmãs e o meu pai sempre ensaiava… Bom, não sempre, mas muitas vezes ele ensaiava em casa e nós todos ficávamos sentados em volta ouvindo eles cantarem. E eu gostava tanto disso que comecei a tentar imitar o som e tudo mais – e isso pegou. Até mesmo na escola primária, que foi quando comecei a cantar. Isso veio de ouvir o meu pai e o seu quarteto gospel e foi algo que apenas cresceu, cresceu e cresceu. Eu adorava, me divertia, tentando criar histórias, tentando soar como esse ou aquele artista. E foi algo que ficou comigo, nunca me deixou. Durante toda a minha vida, é isso que sempre gostei de fazer: cantar, ficar ouvindo e tentar criar algo. É algo que ficou comigo. Como você disse, a música é algo que sempre esteve presente na sua família. Além do seu pai, você é casado com a grande cantora Ann Peebles. Você acredita que isso te influenciou na sua forma de abordar a música, talvez tornando o processo mais pessoal e natural? Bom, acho que depois de tanto tempo envolvido, cantando e tudo mais… Quando éramos crianças, nós nos reuníamos embaixo dos postes de luz na rua com outras pessoas que estavam cantando. E apenas ficávamos ali nos postes cantando, criando músicas, apenas nos divertindo, sabe? E isso foi se aprofundando mais e mais, uma vez que passei a gravar músicas com a banda do Willie Mitchell – e eu também tive alguns quartetos meus. Mas em um momento eu decidi que deveria tentar fazer isso por conta própria. E uma vez que comecei a fazer isso, acho que fiquei mais e mais envolvido. E sou grato por ter feito isso. Neste último ano, você gravou algumas apresentações ao vivo para diferentes plataformas online e a sua voz está soando realmente muito bem, muito forte. Por isso, queria saber qual o seu segredo para manter a voz assim na sua idade. Você toma ou tomou algum cuidado especial? Não, nenhum cuidado especial. Apenas sempre gostei de harmonizar algumas músicas, cantar algumas das minhas canções antigas favoritas. E ouvir novas músicas e tentar ver se eu conseguia imitar aquele som vindo dos diferentes artistas. Quando ouvia alguém cantar em um disco de sucesso ou algo assim, eu queria ver se conseguiria alcançar aquelas notas, aqueles tons que os artistas estavam fazendo. Apenas saber que podia fazer aquilo fazia eu me sentir melhor. E acho que a música era apenas uma parte de mim. Eu adorava, adorava imitar diferentes artistas. Quando criança, gostava de imitar um artista chamado Frankie Lymon and the Teenagers. Mesmo quando era adolescente, sempre adorei imitar diferentes artistas. Era algo que fazia eu me sentir bem, tentar imitar aquelas pessoas e me aproximar do que elas estavam fazendo. E foi algo que apenas ficou comigo. Você nasceu, foi criado e até hoje vive em Memphis, nos EUA, uma das cidades mais importantes do mundo quando falamos de música (Nota: nesse momento, Don solta uma risada gostosa de satisfação pela minha afirmação). Por isso, queria saber como foi crescer na cidade e qual o papel que ela desempenhou na sua formação? Você acredita que seria o mesmo artista se tivesse vivido em outro lugar? Hmm, isso é algo difícil de dizer. Como eu disse, com seis irmãos e três irmãs, e a vizinhança em que crescemos, você tinha muitas crianças por lá, eu não sei. Isso seria algo difícil para eu falar. Penso que ainda gostaria de música (se tivesse vivido em outra cidade), talvez as coisas teriam acontecido de uma maneira diferente. Mas acho que ainda gostaria de música. Eu gostava na escola primária, gostava no ensino médio, e depois que saí do ensino médio tinha um quarteto com o qual estava trabalhando, nós trabalhamos com a banda do Willie Mitchell por um bom tempo nas casas de shows em que ele tocava. Eu gostava, era algo que significava muito para mim. Por favor, me diga três discos que mudaram a sua vida e por que eles fizeram isso. Bem… (risos). Ahh, vamos ver. Três discos. Isso é difícil, é difícil. Sei que “I Can’t Stand the Rain” (disco de 1974 da Ann Peebles) foi um. Além desse disco, seria difícil apontar outros. Mas sei que esse foi um em especial. Quando esse álbum foi lançado… porque era uma situação, sabe, você está escrevendo músicas e nunca sabe qual delas vai conseguir o que você espera, que é conseguir um grande sucesso. E acho que esse foi o maior (sucesso) que tive até então, para comparar com outras músicas que eu escrevi. E me diverti escrevendo-a. Mas acho que essa música em especial fez uma grande diferença em mim, no sentido de perceber “Ei, você pode fazer isso, é possível fazer isso”. E então comecei a ter muitas pessoas vindo, buscando por músicas, …tive que começar a criar músicas. Por isso, tirando esse álbum, é difícil apontar outros discos. Do que você tem mais orgulho na sua carreira? Eu tenho orgulho de continuar a me divertir, amar e me engajar com todos os estilos de música – seja gospel, country, western, ou qualquer outra coisa. Eu gosto de ver se consigo cantar, então canto todos os tipos de músicas. E acho que isso é o mais importante, apenas continuar aberto. Se uma música era um hit numa época, eu tentava fazer o meu melhor para imitar o que estavam fazendo. Eu tinha um quarteto, com outros cantores, e nós nos juntávamos e tentávamos imitar outros artistas. E acho que foi isso que me fez continuar: tentar fazer o que outras pessoas faziam e esperar que talvez algum dia pudesse gravar algo que eu fiz. E sou grato por isso ter acontecido. ***
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*** *** Fonte: Luiz Mazetto é autor dos livros “Nós Somos a Tempestade – Conversas Sobre o Metal Alternativo dos EUA” e “Nós Somos a Tempestade, Vol 2 – Conversas Sobre o Metal Alternativo pelo Mundo”, ambos pela Edições Ideal. Também colabora coma a Vice Brasil, o CVLT Nation e a Loud! *** *** http://screamyell.com.br/site/2021/02/08/entrevista-don-bryant-e-a-arte-de-contar-historias-pela-musica/ *** ***
*** O então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, ao promulgar a nova Constituição Federal, em vigor até hoje. A Câmara dos Deputados fez sessão em homenagem aos 100 anos do políticoArquivo/Agência Brasil Câmara homenageia 100 anos de Ulysses, símbolo das Diretas e da Constituinte Integrantes do governo destacaram frases históricas de Ulysses, como *** Publicado em 06/10/2016 - 11:49 Por Carolina Gonçalves – Repórter da Agência Brasil - Brasília *** DISCURSO DO DEPUTADO ULYSSES GUIMARÃES, PRESIDENTE DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE, EM 05 DE OUTUBRO DE 1988, POR OCASIÃO DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL Ulysses Guimarães “ Exmo. Sr. Presidente da República, José Sarney; Exmo. Sr. Presidente do Senado Federal, Humberto Lucena; Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Rafael Mayer; Srs. membros da Mesa da Assembléia Nacional Constituinte; eminente Relator Bernardo Cabral; preclaros Chefes do Poder Legislativo de nações amigas; insignes Embaixadores, saudados no decano D. Carlo Furno; Exmos. Srs. Ministros de Estado; Exmos. Srs. Governadores de Estado; Exmos. Srs. Presidentes de Assembléias Legislativas; dignos Líderes partidários; autoridades civis, militares e religiosas, registrando o comparecimento do Cardeal D. José Freire Falcão, Arcebispo de Brasília, e de D. Luciano Mendes de Almeida, Presidente da CNBB; prestigiosos Srs. Presidentes de confederações, Sras. e Srs. Constituintes; minhas senhoras e meus senhores: Estatuto do Homem, da Liberdade, da Democracia. Dois de fevereiro de 1987: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.” São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembléia Nacional Constituinte. Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho. Alguns a fatalidade derrubou: Virgílio Távora, Alair Ferreira, Fábio Lucena,Antonio Farias e Norberto Schwantes. Pronunciamos seus nomes queridos com saudade e orgulho: cumpriram com o seu dever. A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina. Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação. A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos. A Assembléia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações. Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final. A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio. A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria. Tipograficamente é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem, colocando-o no umbral da Constituição e catalogando-lhe o número não superado, só no art. 5º., de 77 incisos e 104 dispositivos. Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção. Tem substância popular e cristã o título que a consagra: “a Constituição cidadã”. Vivenciados e originários dos Estados e Municípios, os Constituintes haveriam de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram. No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: o Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, portanto, do Estado. É elementar: não existe Estado sem país, nem país sem geografia. Esta antinomia é fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social, econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha. A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não centrípetas. Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca mas exata de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para a História, na conquista de um continente. Foi também indômita vocação federativa que inspirou o gênio do Presidente Juscelino Kubitschek, que plantou Brasília longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração. A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das províncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a secessão. É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União Estado forte, pois fraco é o Brasil. As necessidades básicas do homem estão nos Estados e nos Municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las. A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela governabilidade dos Estados e dos Municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto. A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às unidades regionais e locais, bem como ao arbitrar competência tributária para lastrear-lhes a independência financeira. Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios. Se a democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são governo o Executivo e o Legislativo. O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos Parlamentos contemporâneos. É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de governabilidade: a co-participação e a co-responsabilidade. Cabe a indagação: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortaleceu-se o unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuições cometidas ao Congresso Nacional? A resposta virá pela boca do tempo. Faço votos para que essa regência trina prove bem. Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária, astante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 ordinárias. Não esqueçamos que, na ausência de lei complementar, os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção. A confiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem pertinência, o slogan: “Vamos votar, vamos votar”, que integra o folclore de nossa prática constituinte, reproduzido até em horas de diversão e em programas humorísticos. Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar, pelo referendo, projetos aprovados pelo Parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador. A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da fiscalização, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber informações dos órgãos públicos, da prerrogativa de petição aos poderes públicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos Municípios por parte do contribuinte; podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas junto às comissões das Casas do Congresso Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União, do Estado ou do Município.A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização. A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação permite conceituá-la, sinoticamente, como a Constituição coragem, a Constituição cidadã, a Constituição federativa, a Constituição representativa e participativa, a Constituição do Governo síntese Executivo-Legislativo, a Constituição fiscalizadora. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de 5 anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos. É consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que a que vamos promulgar. Sr. Presidente José Sarney: V.Exa. cumpriu exemplarmente o compromisso do saudoso, do grande Tancredo Neves, de V.Exa. e da Aliança Democrática ao convocar a Assembléia Nacional Constituinte. A Emenda Constitucional nº26 teve origem em mensagem do Governo, de V.Exa., vinculando V.Exa. à efemeridade que hoje a Nação celebra. Nossa homenagem ao Presidente do Senado, Humberto Lucena, atuante na Constituinte pelo seu trabalho, seu talento e pela colaboração fraterna da Casa que representa. Sr. Ministro Rafael Mayer, Presidente do Supremo Tribunal Federal, saúdo o Poder Judiciário na pessoa austera e modelar de V.Exa. O imperativo de “Muda Brasil”, desafio de nossa geração, não se processará sem o conseqüente “Muda Justiça”, que se instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuição do poder chefiado por V.Exa. Cumprimento o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves, que, em histórica sessão, instalou em 1o de fevereiro de 1987 a Assembléia Nacional Constituinte. Registro a homogeneidade e o desempenho admirável e solidário de seus altos deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, condôminos imprescindíveis de minha Presidência. O Relator Bernardo Cabral foi capaz, flexível para o entendimento, mas irremovível nas posições de defesa dos interesses do País. O louvor da Nação aplaudirá sua vida pública. Os Relatores Adjuntos, José Fogaça, Konder Reis e Adolfo Oliveira, prestaram colaboração unanimemente enaltecida. Nossa palavra de sincero e profundo louvor ao mestre da língua portuguesa Prof. Celso Cunha, por sua colaboração para a escorreita redação do texto. O Brasil agradece pela minha voz a honrosa presença dos prestigiosos dignitários do Poder Legislativo do continente americano, de Portugal, da Espanha, de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Príncipe e Cabo Verde. As nossas saudações. Os Srs. Governadores de Estado e Presidentes das Assembléias Legislativas dão realce singular a esta solenidade histórica. Os Líderes foram o vestibular da Constituinte. Suas reuniões pela manhã e pela madrugada, com autores de emendas e interessados, disciplinaram, agilizaram e qualificaram as decisões do Plenário. Os Anais guardarão seus nomes e sua benemérita faina. Cumprimento as autoridades civis, eclesiásticas e militares, integrados estes com seus chefes, na missão, que cumprem com decisão, de prestigiar a estabilidade democrática. Nossas congratulações à imprensa, ao rádio e à televisão. Viram tudo, ouviram o que quiseram, tiveram acesso desimpedido às dependências e documentos da Constituinte. Nosso reconhecimento, tanto pela divulgação como pelas críticas, que documentam a absoluta liberdade de imprensa neste País. Testemunho a coadjuvação diuturna e esclarecida dos funcionários e assessores, abraçando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e Adelmar Sabino. Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros constituintes. A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor, que, pela edificante força do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições. Agradeço a colaboração dos funcionários do Senado – da Gráfica e do Prodasen. Agradeço aos Constituintes a eleição como seu Presidente e agradeço o convívio alegre, civilizado e motivador. Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer. Todos os dias, meus amigos constituintes, quando divisava, na chegada ao Congresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu, e a convexa do Senado ouvindo as súplicas da terra, a alegria inundava meu coração. Ver o Congresso era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos. Sentei-me ininterruptamente 9 mil horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não-saída para lugares biologicamente exigíveis. Somadas as das sessões, foram 17 horas diárias de labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados. Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço.Que o bem que os Constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles. Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno. Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembléia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa. Autoridades, Constituintes, senhoras e senhores, A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado. O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo. O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: “Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei”. O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os achados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros. O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: – Mudar para vencer! Muda, Brasil!” *** *** http://contee.org.br/muda-brasil-o-marcante-discurso-de-ulysses-guimaraes-na-promulgacao-da-constituicao-de-1988/ *** ***

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