sábado, 29 de maio de 2021

O eterno guru da Reforma Sanitária

"Eu achei legal essa história de florada, Lígia." *** "(...) O que lembro tenho. (...)" *** "Nós temos cada vez menos coisas porque esquecemos de nos lembrar dessas coisas." *** "Lembrar do que foi a construção do SUS." *** "Eu fui para a clandestinidade na clandestinidade." ***
*** O eterno guru da Reforma Sanitária Publicado em 30/08/2013 11h08 *** O eterno guru da Reforma Sanitária Informe ENSP De 3 a 6 de setembro, a ENSP comemora seus 59 anos com a Semana Sergio Arouca, destacando os 25 anos de criação do Sistema Único de Saúde e os 10 anos sem o sanitarista – um dos principais artífices na formulação e na ação política desse processo. Por conta dessas datas, o Informe ENSP republica a última entrevista dada por Arouca para a edição número 03/outubro de 2002 da revista Radis. Naquela época, o país vinha de uma forte crise econômica, resultado de uma política cambial que marcou o segundo mandato do até então presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), tornou-se presidente da República pela primeira vez, ao mesmo tempo que a seleção brasileira de futebol sagrou-se pentacampeã mundial: dois momentos que deram alento e esperanças à população brasileira. Passados 11 anos, as questões levantadas pelos jornalistas Ana Beatriz de Noronha, Caco Xavier, Daniela Sophia, Katia Machado e Rogério Lannes Rocha da revista Radis para Sergio Arouca seguem mais atuais do que nunca, uma vez que tratam de temas como a implantação do SUS, os rumos da ciência em campos como biotecnologia e transgênicos, a importância de uma política industrial para a saúde no país ou do papel da comunicação na saúde. Confira, a seguir, a íntegra da entrevista. Radis entrevista: Sergio Arouca – O eterno guru da Reforma Sanitária Antonio Sergio da Silva Arouca é paulista de Ribeirão Preto, comunista histórico, médico sanitarista e doutor em saúde pública. Foi presidente da Fiocruz entre 1985 e 1989, presidente da VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986, eleito deputado federal e exerceu ainda as funções de secretário municipal e estadual de Saúde do Rio de Janeiro. A biografia ‘oficial’, no entanto, não é capaz de espelhar a riqueza da vida e do pensamento de Sergio Arouca, lembrando mesmo aquelas frias estatísticas do futebol moderno, que registram quantos minutos uma equipe ficou com a posse da bola, mas deixam de fora os lances geniais e o drama do gol. O melhor a fazer, então, é passar diretamente ao ‘jogo’, mergulhar na leitura desta incisiva entrevista concedida à equipe do Radis e perceber que Arouca, como é bem do seu estilo, não deixa nenhuma bola quicando na entrada da área, mas permanece na ponta de lança do questionamento crítico da saúde brasileira. Entre os companheiros do ‘time da Reforma Sanitária’, Arouca era conhecido pelo carinhoso apelido de Rhalah Rikota, o humaníssimo personagem-guru do cartunista Angeli. O apelido parece ainda hoje mais do que justificado, de ouvi-lo dizer que o SUS precisa ser repensado à luz da Reforma Sanitária e a Saúde, humanizada. Participaram da entrevista Ana Beatriz de Noronha, Caco Xavier, Daniela Sophia, Katia Machado e Rogério Lannes Rocha. Revista Radis: A saúde pública mudou nesses últimos anos, quando muitas questões sociais e estruturais foram adicionadas ao seu contexto. Em relação a essas mudanças, e mais de uma década depois da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), tem sentido ainda falar em Reforma Sanitária? Sergio Arouca: A pergunta tem a ver com a origem do movimento da Reforma Sanitária, com a passagem do pensamento crítico para uma proposta de ação. O movimento da Reforma Sanitária nasceu dentro da perspectiva da luta contra a ditadura, da frente democrática, de realizar trabalhos onde existiam espaços institucionais. Na área da saúde, existia a ideia clara de que não poderíamos fazer disso uma esquizofrenia, ser médico e lutar contra a ditadura. Era preciso integrar essas duas dimensões. O espaço para essa integração era o da Medicina Preventiva, movimento recém-criado no Brasil, que começou na Escola Paulista de Medicina, em Ribeirão Preto, e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A ideia era que o Sistema de Saúde não precisava mudar em nada, que se poderia deixar as clínicas privadas e planos de saúde como estavam e bastava mudar a mentalidade do médico. O movimento da Reforma Sanitária cria outra alternativa, que se abria para uma análise de esquerda marxista da saúde, na qual se rediscute o conceito saúde/doença e o processo de trabalho, em vez de se tratar apenas da relação médico/paciente. Discute-se a determinação social da doença e se introduz a noção de estrutura de sistema. Começamos a fazer projetos de saúde comunitária, como clínica de família e pesquisas comunitárias, e fizemos treinamento do pessoal que fazia política em todo o Brasil. No PCB, havia uma dinâmica para o debate sobre saúde. Quando a ditadura chegou ao seu esgotamento, o movimento já tinha propostas. Não só criou quadros de profissionais, mas também meios de comunicação, espaço acadêmico consolidado, movimento sindical estruturado e muitas práticas. Assim, esse movimento conseguiu se articular em um documento chamado Saúde e Democracia, que foi um grande marco, e enviá-lo para aprovação do Legislativo. Nós queríamos conquistar a democracia para então começar a mudar o sistema de saúde, porque tínhamos muito claro que ditadura e saúde são incompatíveis. Nosso primeiro movimento era, portanto, no sentido de derrubar a ditadura, e não de melhorar a saúde. Tudo isso aconteceu antes da Constituinte. Revista Radis: O panorama, nessa época, parecia favorável a essas mudanças? Sergio Arouca: Nessa época, eu me torno presidente da Fundação Oswaldo Cruz, o Hésio Cordeiro se torna presidente do Inamps, Renato Archer começa a atuar na Ciência e Tecnologia e Waldir Pires assume a Previdência Social. Há um núcleo de pensamento da esquerda em conflito com um núcleo conservador. Carlos Santana, que ideologicamente era considerado conservador, mas que era um radical na área da saúde, se torna ministro da Saúde. Começa aí a discussão em torno do primeiro passo a ser dado. O marco era transferir o Inamps para o Ministério da Saúde, e qualquer reforma deveria começar pela integração. Mas havia um problema: a Saúde estava na mão de um conservador e a Previdência com a oposição. Até que, na calada da noite, o Carlos Santana consegue um decreto que autoriza o Sarney a passar o Inamps para o Ministério da Saúde. Waldir Pires então veta o decreto, dizendo que “o Inamps é um patrimônio dos trabalhadores e que por isso essa decisão deveria ser participada a eles”. Pensamos em fazer isso convocando uma conferência. Mas, na época, as conferências de saúde eram espaços burocráticos, em que os temas e os resultados já estavam pré-definidos. Propusemos então convidar a sociedade para discutir a questão e realizar uma conferência com a participação de 50% de usuários. A VIII Conferência Nacional de Saúde conseguiu reunir, pela primeira vez, mais de 4 mil pessoas que trabalharam durante cinco dias consecutivos, produzindo relatórios diários e participando de uma assembleia final que durou mais de 24 horas. Da conferência, sai o movimento pela Emenda Popular, a única emenda constitucional que nasce do movimento social. Esse foi o maior sucesso da Reforma Sanitária, que enfrentou mudanças de ministros e até de um presidente da República (o ex-presidente Fernando Collor, que era absolutamente contra o SUS). Para ele, segundo o pensamento da reforma neoliberal do Estado, o SUS era uma excrescência. Como presidente da Fiocruz, vivenciei diretamente alguns desses fatos. Apresentei o documento Saúde e Democracia, presidi a VIII Conferência Nacional de Saúde, apresentei a Emenda Popular e, como deputado federal, fui designado como relator da extinção do Inamps. Todos achavam que era um suicídio, pois eu estava propondo a extinção de uma instituição com mais de cem mil funcionários e que iria mobilizar tanto trabalhadores quanto aposentados. De fato, sofri muita pressão. A surpresa é que, na hora da decisão final, as lideranças do Movimento dos Trabalhadores do Inamps eram favoráveis à extinção, em nome de um novo projeto. Revista Radis: Depois da VIII Conferência Nacional de Saúde, do texto da Constituição e do SUS implantado – objeto da Lei Orgânica 8.080 -, qual é o saldo de hoje? Sergio Arouca: Conquistamos a universalização na saúde (o princípio constitucional que estabelece que todo brasileiro tem direito à saúde), definindo com clareza o dever do Estado e a função complementar da saúde privada. Conseguimos estabelecer que a saúde deve ser planejada com base nas Conferências e conseguimos formalizar os Conselhos de Saúde como parte do SUS, tendo 50% de usuários. O último passo desse movimento pela Reforma Sanitária foi a formação da Comissão Nacional da Reforma Sanitária, que transformou o texto da Constituinte na Lei Orgânica 8.080. Dessa forma, todas as propostas reformistas de esquerda viraram lei e isso acabou possibilitando a aprovação de outros projetos da esquerda. Era preciso abrir canais para que o pensamento crítico da área da saúde alcançasse uma expressão própria, dando início à formulação setorial de novas políticas públicas. De um lado, o SUS avança por meio das conferências, dos conselhos, da municipalização, da universalização dos direitos. Por outro, na operação do modelo assistencial, segue a lógica do Inamps. O Ministério da Saúde é organizado segundo esse mesmo modelo do Inamps, segundo a lógica hospitalar, com estrutura medicalizante. A grande vitória é que a Reforma Sanitária cria novos atores na área da saúde. Revista Radis: A Noas (Norma Operacional de Assistência à Saúde) representa progresso ou retrocesso na lei? Sergio Arouca: Nos últimos anos de gestão do José Serra, foram emitidos oito atos normativos por dia. Houve secretarias de Saúde que contrataram assessores para ler e interpretar esses atos, pois não davam conta de seguir essa fúria regulatória, que trata o Amazonas como o Rio Grande do Sul, a Saúde da Família igual para todos, assim como o repasse de recursos. Passamos a ter a regulação como ênfase, com bons ou maus regulamentos. A Noas, por exemplo, é um bom instrumento de regulação que preenche a lacuna de esvaziamento do papel do nível estadual. Quando se perde o papel dos estados, se perde a possibilidade de planejamento regional. A Noas retoma o papel da municipalização, mas dá ênfase à questão da regionalização. A lacuna que ainda resta é que o conceito da Reforma Sanitária foi abandonado. Essa é minha briga atual. Nós temos que retomar o conceito da Reforma Sanitária, para retomar políticas dentro do sistema sem burocratizá-lo. Ele já foi burocratizado o suficiente. Revista Radis: Atualmente, qual é a pauta dessa luta? Sergio Arouca: Retomar os princípios básicos da Reforma Sanitária, que não se resumiam à criação do SUS. O conceito saúde/doença está ligado a trabalho, saneamento, lazer e cultura. Por isso, temos que discutir a saúde não como política do Ministério da Saúde, mas como uma função de Estado permanente. À Saúde cabe o papel de sensor crítico das políticas econômicas em desenvolvimento. O conceito fundamental é o da intersetorialidade. Não basta aprofundarmos cada vez mais o modelo ‘Ministério da Saúde e Secretaria de Assistência à Saúde’, temos que discutir saúde segundo políticas intersetoriais. O modelo assistencial é anti-SUS. Aliás, o SUS como modelo assistencial está falido, não resolve nenhum problema da população. Essa lógica transformou o governo num grande comprador e todas as outras instituições em produtores. A saúde virou um mercado, com produtores, compradores e planilhas de custos. O modelo assistencialista acabou universalizando a privatização. O grande desafio que nós temos, imaginando o campo da oposição a esse modelo assistencial, é conseguir estabelecer um governo que tenha projeto e que não seja simplesmente um somatório de ministérios. Esse tipo de governo, em que sociedade, ministérios e secretarias são fraturados e cada um desses sujeitos compete com os outros, é uma falência. Revista Radis: Qual é o ambiente em que pode se dar essa luta? Sergio Arouca: Primeiro, é preciso repetir que a ‘inampização’ do SUS nunca vai resolver os problemas da população. Eu estou propondo a convocação de uma conferência extraordinária, cujo tema é a mudança do modelo assistencial do SUS, acabando com a Secretaria de Assistência à Saúde (SAS) e com o pagamento por prestação de serviços, que seria substituído por um contrato global com metas de desempenho, qualidade e prioridades definidas pela população. Podemos contratar o setor privado em que não existe o setor público, mas definindo prioridades e metas. O PSF (Programa Saúde da Família), por exemplo, pode ser entendido de duas maneiras. Ele pode ser simplesmente mais um programa paralelo, como no Rio de Janeiro, onde dez equipes de Saúde da Família não representam nada, ou pode ser um modelo reestruturante do sistema de saúde, no qual uma equipe dará atendimento personalizado às famílias segundo o conceito de desenvolvimento local, integral e sustentável. É preciso que os programas de governo ganhem intersetorialidade nos municípios. É preciso trabalhar a questão da humanização da saúde. Um Projeto de Lei sobre os direitos do paciente rolou oito anos na Câmara, e eu não consegui aprovar. O projeto dizia simplesmente que o paciente tem direito aos seus dados e a optar por terapias, devendo ser tratado como cidadão – com nome e sobrenome. Quando discutíamos a Reforma Sanitária e fazíamos crítica à prática da medicalização, já falávamos sobre a abertura às práticas alternativas de saúde, como a fitoterapia, a acupuntura e a homeopatia. O genérico é um avanço, mas só atende a quem já tinha acesso a medicamentos, diminuindo o custo. Cerca de 50 milhões de brasileiros não chegam nem aos genéricos. Por isso, é necessário estabelecer uma política que pense na fitoterapia e em hortas de produção de medicamentos naturais, que trabalhe com práticas de promoção e prevenção da saúde e que participe das discussões sobre cidades saudáveis. Revista Radis: Como você vê os avanços da tecnologia mundial de ponta, como a biotecnologia e os transgênicos? Sergio Arouca: Quando fui candidato a vice-presidente da República, com Roberto Freire, a bandeira da candidatura era a questão da revolução científico-tecnológica. Essa revolução tecnológica tem a característica de transformar grupos humanos em descartáveis e até mesmo uma nação em algo descartável. Para se proteger da globalização, o Estado tem que ser forte e muito mais competente. Nossa pergunta era: “Como entrar na revolução científico-tecnológica? Na nossa área, a resposta para essa pergunta seria a biotecnologia, pois nós temos uma das mais ricas biodiversidades do mundo. Nessa área de pesquisa, poderemos trabalhar pela preservação e na produção de novos medicamentos, reagentes e novos alimentos, sem precisar de grandes aparatos técnicos. Do ato de protesto de José Bové – que é um conservador – destruindo uma plantação de transgênicos no Brasil, só restou uma discussão maniqueísta e equivocada entre os que acreditam que a biotecnologia é solução para tudo e os que, vendo a biotecnologia como um demônio, querem proibir até a pesquisa. A biotecnologia é um enorme avanço, mas apresenta enormes riscos. O único experimento on-line em massa é a alimentação com transgênicos. Milhões de pessoas estão sendo submetidas a experimentos dos quais não se sabe o resultado e que não são controlados. Há também um pensamento ‘producionista’, no campo da genética, querendo explicar que comportamento é determinação genética e esquecendo tudo o que já foi desenvolvido no campo da cultura e da antropologia. A vida é uma rede. Você está em contato permanente com vírus e bactérias que já vivem dentro do seu corpo e que fazem parte do seu DNA. O organismo humano tem a capacidade de produzir mudanças para sobreviver e essas mudanças são geradas segundo as influências do meio em que vive. Quando eu especializo uma planta, jogando sobre ela um único inseticida, qual será o impacto na rede da vida que está embaixo daquele solo? Para que eu possa interferir no DNA, eu utilizo uma bactéria como vetor para fazer a mudança, e as bactérias são seres vivos que também se modificam e se incorporam a seres mais complexos. Dizer que a biotecnologia vai resolver o problema da fome é uma falácia. O problema da fome não está na produção de alimentos, e sim na distribuição deles. A discussão tem que mostrar onde estão os avanços e onde a sociedade civil pode exigir o controle social. A energia nuclear era contida no laboratório, e o risco era de haver uso político ou acidentes. A biotecnologia não tem paredes, ela está na rede da vida e exige, portanto, um controle social que não passa pelos pares da ciência. Está faltando uma Comissão de Bioética que tenha uma representação da sociedade e que não seja só de pesquisadores. Uma comissão que inclua também filósofos, pensadores e usuários. O Estado tem que se capacitar para esse mundo novo que nós estamos vivendo, e a legislação brasileira não está nem chegando perto de começar essa discussão. Ela chegou à Lei de Biossegurança, mas não avançou. É preciso começar a discutir a questão da clonagem. Revista Radis: Hoje em dia, qual seria a política industrial para a saúde? Em relação às vacinas e aos medicamentos, a proposta ainda é ter autonomia na produção? Sergio Arouca: Estamos cada vez mais ligados a uma balança de pagamento em que é preciso ter o dólar, e por isso não podemos nos relacionar com o mundo globalizado sem estabelecer mecanismos de proteção. Precisamos de uma política de substituição de importação, que é possível, apesar da Lei de Patentes. A saúde é uma área privilegiada, pois a grande maioria dos medicamentos não está protegida. Se hoje somos um dos maiores compradores de medicamentos do mundo, o Estado pode utilizar o poder de compra para fazer transferência de tecnologia, como fizemos com a (vacina) Sabin na Fiocruz: “Compramos vacina de sua empresa desde que você me associe, me transfira tecnologia e me capacite para produzir.” Revista Radis: Existem parceiros possíveis de se associar? Sergio Arouca: Existem, sim. Em vez de entrar de uma forma suicida na Alca, nós podemos nos associar a países com tecnologia de medicamentos. Isso significa fortalecer os laboratórios públicos. Eu não posso simplesmente permitir um fluxo de recursos e não atrasar o pagamento das bolsas de estudo se, quando uma pessoa termina o doutorado, não tem emprego. De que adianta mandar pessoas para o mundo inteiro para fazer mestrado e doutorado se, depois, eles não são absorvidos? Paralelamente à política industrial, é preciso ter uma política agressiva na área da ciência e tecnologia. Em vez de ser um exportador de cérebros, o Brasil tem que ser um importador. Se quero profissionais em Biologia Molecular, preciso saber quem é que está trabalhando com isso no mundo e trazer para o país. A política em Ciência e Tecnologia não pode ser esta que a Capes e o CNPq oferecem. Revista Radis: Independentemente de quem estará no próximo governo, de seus erros e acertos, quais são os principais desafios apresentados à sociedade? Sergio Arouca: Eu tenho participado de debates em que não se tem saída para nada. Mesmo no Conselho Nacional de Saúde, onde estive recentemente, as últimas perguntas que eu respondi manifestavam grande angústia. Este é um período crítico, em que presenciamos instituições internacionais perdendo espaço, e Bush assumindo uniteralidade em tudo, tanto no comércio como na guerra. Você vê uma cultura guerreira. É uma coisa horrível o que está acontecendo nos EUA, é uma redução dos direitos humanos. O que está sendo feito lá é um tremendo retrocesso autoritário, digno de uma boa ditadura. Por outro lado, você tem pessoas que dão boas respostas. Eu acredito que as lutas pela cidadania, expressas na defesa do consumidor, na defesa de necessidades especiais, nas discussões sobre os direitos da mulher e dos novos temas envolvendo violência e saúde pública, estão ganhando força. O Ministério Público também propiciou enorme avanço na questão da cidadania. O desafio é dar conteúdo a essas questões. O momento que estamos vivendo revela a paralisia do pensamento crítico nacional. O movimento sindical está paralisado, e a universidade não tem feito nenhum debate crítico mais avançado. Isso exige que retomemos a Reforma Sanitária, enxergando o SUS a partir dessa reforma, e não vendo o SUS pelo umbigo do SUS. O umbigo do SUS vai apenas tentar regular o que está aí. Outro dia, ouvi um médico dizer com maior orgulho que tinha triplicado o número de amputações de diabéticos. Se o conceito é de produtividade e serviço, então ele amputa mais para ganhar mais. Para mim, isso é a falência. O conceito fundamental dessa última fase do SUS é o faturamento. Foi uma distorção na implantação do SUS. Segundo a lógica de indução de mercado, quando pensamos em assessoria aos municípios, na formação profissional e nas universidades, há uma tendência de se direcionar pesquisas para onde há recursos. De um lado, a universidade tem o papel de Estado, deve estar preocupada com gerações futuras, com conhecimentos novos e que não são privilegiados. Ela, no entanto, deve ter liberdade de atuação. Não pode estar subordinada a políticas de governo. De outro, o governo deve propor pactos à universidade. Nós queremos universidade aberta para vários tipos de curso. Eu posso pactuar com a universidade para o ensino a distância e treinamento dos quadros atuais que estão nos serviços. Se a pública não pactuar, pactue-se com quem faça, estipulando metas de desempenho e recursos. Desta forma, a universidade ganha uma dimensão de parceira do desenvolvimento. O Carlos Lessa [reitor da UFRJ] diz que nós temos que voltar a desenvolver o corporativismo, no sentido de autonomia, permitindo-nos pensar além da política conjuntural de governo. Em relação ao mercado, o governo Fernando Henrique congelou os salários de todo o setor público e começou a dar aumentos indiscriminados (dentro da Reforma Bresser) por áreas de atuação. O governo acabou criando induções, e a maior delas foi a do mercado de projetos públicos, envolvendo cada pesquisador individualmente em interesses personalizados. As instituições não têm mais projeto global, elas foram fragmentadas por baixo. Cada pesquisador precisa ter vários projetos individuais para ter acréscimo salarial e prestígio. Você acha que esse pesquisador vai querer participar de um projeto coletivo? Essa é a distorção máxima: o serviço público vendendo serviços para o próprio setor público. É a privatização do mercado que se fez por baixo, privatizando os desejos e as mentes das pessoas. Ela envolveu os prestadores de serviço, dizendo que o negócio é faturar, e os pesquisadores, dizendo que a coisa é projetar. Revista Radis: Como você analisa sua experiência parlamentar e suas experiências como secretário de Saúde? Sergio Arouca: Eu sou muito mais identificado como sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz do que como militante político ou deputado, e é como eu me sinto bem. Outro dia, brincando com um amigo, eu disse que meu tempo de permanência em alguns cargos executivos nesses conflitos de poder tem diminuído radicalmente. Fui secretário de Saúde do estado do Rio durante nove meses, e meu período como secretário municipal caiu para quatro meses. Como deputado federal, eu era líder de um partido de três. Isso foi um aprendizado fantástico, pois me permitiu atuar não só na área da Saúde. Eu fiz a Lei do Sangue, a Lei de Saúde de Populações Indígenas, participei da extinção do Inamps e da defesa dos direitos do paciente, fui negociador da questão das patentes e das gratificações de desempenho e participei da reforma educacional junto com Darcy Ribeiro, entre outras coisas. Nesse campo, penso que já dei minha contribuição. Vou estar na política sempre, mas não volto a me candidatar. Sou muito mais sanitarista. Revista Radis: Em relação aos meios de comunicação, que caminhos você vê para a sociedade? Sergio Arouca: Eu acho que todas as experiências, em nossa área específica, têm tido sucesso. Nós temos a Radis, o Saúde em Debate, do Cebes, e as revistas da Abrasco, entre outras. Eu só tenho medo que, em algumas delas, o academicismo retire essa dimensão do pensamento crítico e a substitua pela ‘lógica da epidemiologia’ para aceitar artigos. Nós temos espaço, e a questão é como apresentar o debate. A discussão substantiva que o campo do pensamento crítico da oposição deve assumir é a mudança do modelo assistencial, retomando a Reforma Sanitária e reformando o SUS. Esse seria o diferencial e também a nossa grande unidade. A possibilidade de repensar o SUS como Reforma Sanitária pode ser nossa grande unidade. *** *** http://cebes.org.br/2013/08/o-eterno-guru-da-reforma-sanitaria/ *** *** *** Sérgio Arouca em sua tese de doutorado, escrita em 1975, para refletir sobre sua atualização. Na tese, Arouca buscou compreender como foram produzidas as regras da formação discursiva da medicina preventiva e as relações com instâncias não discursivas, estudando as articulações com o modo de produção capitalista. www.scielo.br › sdeb › 0103-1104-sdeb-42-119-0990PDF Do dilema preventivista ao dilema promocionista ... - SciELO ***
*** Determinantes Sociais da Saúde *** ANTÔNIO SÉRGIO DA SILVA AROUCA O DILEMA PREVENTIVISTA CONTRIBUIÇÃO PARA A COMPREENSÃO E CRÍTICA DA MEDICINA PREVENTIVA Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. - 1975 – *** A Anamaria e Pedro A meus pais - II – *** Mais de um, como eu sem dúvida, escreveu para não ter mais fisionomia. Não me pergunte quem eu sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever. (A Arqueologia do Saber, MICHEL FOUCAULT) - III – *** AGRADECIMENTOS Ao Professor Miguel Ignácio Tobar Acosta, orientador desta tese. A minha companheira Anamaria, pelo estímulo, sugestões e, sobretudo, por sua visão crítica, da qual espero ter aprendido alguma coisa. Pelas sugestões e críticas, aos colegas Ricardo Lafetá, Maria Hillegonda, Alberto Pellegrine e Everardo D. Nunes. Pela cuidadosa revisão dos textos, aos amigos Claudinei Nacarato, Maria Aparecida Baccega e Ecilda Nunes. Pelo trabalho de datilografia, a Itacy Andrade e Maria Izalina Ferreira Alves. Às funcionárias da Biblioteca da UNICAMP e, em especial, à Maria Alves de Paula. Aos meus amigos e colegas Simão, Raimundo, Francisco, Célia, Cristina, Marília e em particular à Eleonora, por suas presenças afetivas em todos os momentos do meu trabalho. A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a minha formação, que agradeço nas pessoas do Professor Dr. Guilherme Rodrigues da Silva, Dr. José Romero Teruel, Dr. Luís Benedito Lacerda Orlandi, Dr. Juan César Garcia e Dr. Miguel Marques. A todos os colegas do Departamento de Medicina Preventiva e Social da UNICAMP. - IV – *** CAPÍTULO VIII CONCLUSÕES Nossa tentativa de aproximação entre o projeto arqueológico e a Ciência da História possibilitou-nos estabelecer as relações entre a Prática Discursiva da Medicina Preventiva e a análise em diferentes instâncias de um dado modo de produção. Pretendemos, em última análise, situar o extra-discursivo como sendo o próprio objeto do Materialismo Histórico que serviu como referência geral para situarmos o discurso, que assim abandonou sua liberdade para articular-se com instâncias de uma formação social. Este instrumental teórico permitiu que nos afastássemos das sucessões cronológicas, da determinação das influências dos sujeitos, das análises de conteúdo, para a aproximação da estrutura de um fato social em toda sua especificidade, ou seja, a emergência e constituição do movimento preventivista. Permitiu também, ao final, que levantássemos a suposição de que o movimento preventivista não existe em uma singularidade única, mas, sim, que faz parte de um movimento mais geral de institucionalização de relações específicas da Ciência e do Saber, por via disciplinar, que tem como função fundamentar as relações que estas ciências mantêm com necessidades geradas no interior de uma formação social e não resolvidas. Nosso projeto sofreu duas limitações importantes. A primeira relativa à ausência de uma análise do próprio conhecimento médico reorganizado pelo discurso preventivista, o que suporá o desenvolvimento de uma Epistemologia da Medicina, e a segunda relativa a um estudo do conjunto das Práticas Empíricas Experimentais desenvolvidas pelos Departamentos de Medicina Preventiva, o que suporia um vasto trabalho de campo, no momento fora de nossas possibilidades. Em síntese, esperamos que nosso trabalho possa ter contribuído em algo para a constituição de uma Teoria Social da Medicina, que a situe como uma entre as outras Práticas Sociais, dotada de uma historicidade própria. Em relação ao estudo específico da Medicina Preventiva, seguem nossas principais conclusões: - A Medicina Preventiva, como disciplina do ensino médico, fez seu aparecimento na Inglaterra e logo foi transplantada para os Estados Unidos e Canadá, onde se configurou como um movimento ideológico que tinha como projeto a mudança da prática médica através de um profissional médico que fosse imbuído de uma nova atitude formada nas Faculdades de Medicina. - A Medicina Preventiva ocupou o espaço deixado pela Higiene Privada, invertendo a normalização das atitudes dos indivíduos para a normalização da conduta profissional, ou seja, incorporou a cultura higiênica, que devia ser difusa no espaço social, ao cuidado médico. - Como um projeto de mudança da prática médica, a Medicina Preventiva representou uma leitura liberal e civil dos problemas do crescente custo da atenção médica nos Estados Unidos e uma proposta alternativa à intervenção estatal, mantendo a organização liberal da prática médica e o poder médico. - O fundamento da proposta preventivista baseou-se em uma redefinição dos contornos do profissional médico que deveria ser imbuído de um novo conjunto de atitudes que o relacionassem com a comunidade, com os serviços públicos de saúde, com a promoção e a proteção da saúde do indivíduo e de sua família. Como base para esta redefinição das funções médicas, introduziu-se o conceito ecológico de saúde e doença e uma visão da história da Medicina que caminhava inexoravelmente para a Medicina Preventiva. - Para encontrar a sua especificidade, a Medicina Preventiva realizou um trabalho de delimitação com a Medicina Social e a Saúde Pública, afirmando a sua própria identidade com a Medicina Clínica. O fundamento da delimitação baseava-se em que a Medicina Preventiva era simplesmente uma nova forma da Medicina privada, enquanto as outras duas representavam uma participação estatal. - O discurso preventivista, após o seu desenvolvimento nos países centrais, ganhou, depois da Segunda Guerra Mundial, uma expansão para a América Latina, através de Seminários patrocinados por agências internacionais. Desta forma, o discurso preventivista representou uma construção teórico-ideológica do real nos países dependentes, criando não só seus intelectuais orgânicos, como também uma forma de pensar estas novas realidades, transplantando não só a problemática como também a forma de pensá-la e de resolvê-la. - Os conceitos básicos do discurso preventivista referem-se à História Natural das Doenças, à própria saúde e doença e à causalidade. O conceito ecológico de saúde e doença realiza uma síntese entre a concepção dinâmica e a ontológica, representando uma leitura duplamente otimista do fenômeno em que os dois estados são simultaneamente idênticos e diversos, existindo entre os dois uma continuidade quantitativa dos valores biológicos e qualitativa dos estados fisiopatológicos. - A História Natural das Doenças opera como um modelo reorganizador do conhecimento médico, permitindo uma Taxonomia e uma “Mathesis”, e compondo o conhecimento fisiopatológico e epidemiológico em um mesmo espaço envolvido pelo social mistificado, cujo conhecimento é deteriorizado. A Medicina Preventiva assume a multicausalidade, que representa uma simplificação do real e um afastamento das determinações. - Os conceitos estratégicos: A Integração representa um conceito político do movimento, em relação à escola médica, procurando a formação de uma consciência difusa que, levando a um consenso, determinasse a transformação da própria escola. A Inculcação, operando através da noção de contato que pretende vencer a resistência estudantil ao modelo preventivista, realiza uma redução do espaço social a uma leitura clínica e cria um espaço para um discurso pedagógico e tecnológico da aprendizagem. O conceito de Mudança introduz a noção de que a história é feita pelos sujeitos em particular e procura demonstrar uma autonomia política do setor saúde, neutralizando o conjunto das relações sociais que determinam o setor e o próprio sujeito em suas ações, tratando-se de uma mudança que só existe na materialidade do discurso. - A análise da viabilidade do projeto preventivista em um modo de produção capitalista, dada a articulação da Medicina com o mesmo, revelou que: a) enquanto projeto da sociedade civil, a introdução das medidas preventivistas ao cuidado médico dependem de que estas medidas adquiram valor de troca, ou sejam impostas pela lógica da produção. A introdução das atitudes sociais, epidemiológicas e educativas estão em antítese com esta forma de organização do cuidado médico. Diante disto, a viabilidade de transformação da escola médica é limitada, neste modelo, a projetos experimentais; b) enquanto projeto do Estado, pode levar a uma introdução dos objetivos preventivistas, desde que exista uma reorganização da prática médica com uma redefinição das relações sociais existentes e uma posterior mudança do ensino que refletisse esta prática modificada. c) o impacto das concepções preventivistas sobre as condições de saúde da população fica limitado, nos dois modelos, à não solução da contradição fundamental existente, isto é, ao uso atribuído à vida humana nas diferentes formações sociais. - O movimento preventivista, em síntese, possui uma baixa densidade política ao não realizar modificações nas relações sociais concretas e uma alta densidade ideológica ao constituir, através do seu discurso, uma construção teórico-ideológica daquelas relações. - Ao introduzir nas escolas médicas uma discussão sobre a Teoria da Medicina, a Medicina Preventiva tem possibilitado o aparecimento de núcleos de reflexão sobre esta teoria, que poderão se constituir em um novo campo da Prática Teórica, delimitando o ideológico no interior da Medicina. - Finalmente, na América Latina, o movimento preventivista como tendência vem se deslocando no sentido de projetos racionalizadores da atenção médica, constituindo-se no solo para a introdução da racionalidade da produção no interior da prática médica. Fonte: Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. - 1975 – *** *** https://teses.icict.fiocruz.br/pdf/aroucaass.pdf *** *** ***
*** O que lembro, tenho. Guimarães Rosa ***
*** *** O PCB, o movimento sanitarista e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) *** Fonte: Fundação Astrojildo Pereira *** *** https://www.youtube.com/watch?v=sZSxDDPzGUI *** *** ***
*** Do dilema preventivista ao dilema promocionista: retomando a contribuição de Sérgio Arouca From preventivist dilemma to promotionist dilemma: resuming the contribution of Sérgio Arouca Rodrigo Prado da Costa1, Maria Ceci Misoczky2, Paulo Ricardo Zilio Abdala3 ____________________________ DOI: 10.1590/0103-1104201811916 RESUMO O objetivo deste trabalho é retomar a categoria ‘dilema preventivista’, cunhada por Sérgio Arouca em sua tese de doutorado, escrita em 1975, para refletir sobre sua atualização. Na tese, Arouca buscou compreender como foram produzidas as regras da formação discursiva da medicina preventiva e as relações com instâncias não discursivas, estudando as articulações com o modo de produção capitalista. A análise dessas articulações possibilitou a Arouca evidenciar que a medicina preventiva não fugiu à contradição fundamental da medicina que transforma a saúde – um valor de uso – em valor de troca, através do cuidado médico. Portanto, a busca que se faz ao resgatar essa categoria se orienta para uma pergunta própria: como aconteceu a atualização do discurso da medicina preventiva para o da promoção da saúde? A categoria cunhada por Arouca permitiu evidenciar que a promoção da saúde não foge à contradição fundamental da medicina e, ao invés de ser uma inovação para o campo da saúde, é uma atualização do discurso preventivista, configurando, assim, o dilema promocionista. PALAVRAS-CHAVE Medicina preventiva. Promoção da saúde. Atenção Primária à Saúde. ABSTRACT The aim of this study is to resume the category ‘preventivist dilemma’, coined by Sérgio Arouca in his doctoral thesis, written in 1975, to reflect on its updating. In his thesis, Arouca sought to understand how the rules of discursive formation of preventive medicine and relations with non-discursive instances were produced, studying the articulations with the capitalist mode of production. The analysis of these articulations enabled Arouca to evidence that preventive medicine did not escape the fundamental contradiction of medicine that transforms health – a usevalue into exchange-value through medical care. Therefore, the research that is done by rescuing that category is directed to a specific question: how did the update of the discourse of preventive medicine for health promotion happened? The category coined by Arouca has made it possible to highlight that health promotion does not escape the fundamental contradiction of medicine, and, instead of being an innovation for the field of health, it is an update of the preventivist discourse, setting, thus, the promotionist dilemma. KEYWORDS Preventive medicine. Health promotion. Primary Health Care. Introdução Na sua tese de doutorado, Sérgio Arouca examinou como foram produzidas as regras da formação discursiva da medicina preventiva e as relações com instâncias não discursivas, estudando as articulações com o modo de produção capitalista, a fim de compreender a simultaneidade e a contradição medicina preventiva-medicina curativa. Sobretudo, partiu do princípio de que o modo de exercer a medicina decorre de uma determinação histórico-social e, se a medicina preventiva tinha por projeto uma nova determinação, o estudo desse projeto corresponderia a conhecer as contradições da própria sociedade expressas em um campo específico de sua análise, a medicina. Para tanto, Arouca1 estudou o discurso preventivista através da metodologia arqueológica proposta por Foucault2, para uma aproximação com o materialismo histórico e a teoria do valor em Marx3. Para o entendimento dessas contradições, Arouca1 abordou a estrutura social de emergência da medicina preventiva, defendendo que ela não se constituiu em um novo conhecimento a partir da higiene, mas como crítica à prática médica centrada na medicina curativa, correspondendo à singularidade de um determinado contexto histórico. O projeto da medicina preventiva definiu uma nova organização do conhecimento médico, que incluiu reformas nos currículos das faculdades de medicina e a criação de departamentos e cátedras de medicina preventiva. Esse processo teve como princípios as proposições de Leavell e Clark4, e o paradigma da História Natural das Doenças (HND). Articulando cuidado médico e modo de produção capitalista, Arouca1 chegou à centralidade de sua tese, evidenciando a contradição fundamental da medicina: ter como objeto valores vitais – que, para os seres humanos, são valores de uso – transformados em valores de troca pela dinâmica do modo de produção capitalista. Essa apreensão possibilitou ao autor a construção da categoria ‘dilema preventivista’, evidenciando que a medicina preventiva não escapou à contradição da própria medicina. Portanto, mesmo apresentando-se como um projeto de mudança da prática médica, a introdução das medidas preventivistas ao cuidado médico ficou limitada a uma leitura liberal da medicina, constituindo-se, então, em um espaço conservador e funcional ao capitalismo. A compreensão do dilema preventivista permite discutir a promoção da saúde, difundida contemporaneamente como uma importante estratégia para melhorar as condições de saúde da população por intermédio de um conjunto de prescrições normativas a respeito de ‘hábitos saudáveis’. Ao analisar a promoção da saúde, denota-se que, como formação discursiva, ela surgiu no momento de ascensão do neoliberalismo. O conjunto das premissas neoliberais, somado aos custos da atenção médica e do enfoque clínico sob a responsabilidade dos profissionais médicos, fez com que a promoção da saúde aparecesse no cenário internacional como uma inovação para o campo da saúde. Tendo início no Canadá, na década de 1970, a partir do documento intitulado ‘Informe Lalonde’, a promoção da saúde logo foi incorporada à Atenção Primária à Saúde (APS) como principal estratégia da saúde, a partir da Conferência de Alma-Ata, na década de 1980. Em 1986, com a Carta de Ottawa, foram estabelecidas as principais estratégias da promoção da saúde, momento em que foram definidos seus conceitos estratégicos: determinantes sociais da saúde, fatores de risco e empowerment. Este conjunto de conceitos é até hoje amplamente divulgado, seja no espaço privado ou no espaço público. Entretanto, ao retomar a tese de Arouca1, percebe-se que o conceito de promoção da saúde não é novo, visto que já aparecia no esquema desenvolvido por Leavell e Clark4, na década de 1940, compondo um dos níveis de prevenção da medicina preventiva. Diante disso, a partir da compreensão da especificidade do trabalho de Arouca1, este artigo objetiva questionar o movimento da promoção da saúde em relação à sua articulação com a medicina e a sociedade. Sobretudo, a recuperação da categoria ‘dilema preventivista’ apoia a pergunta na qual se originou este trabalho: como aconteceu a atualização do discurso da medicina preventiva para o da promoção da saúde? Esse resgate permite evidenciar que a promoção da saúde, embora seja apresentada como uma inovação para o campo da saúde, na década de 1970, não é uma inovação em relação ao ‘dilema preventivista’, mas uma atualização de seu discurso, não escapando à contradição fundamental da medicina. Portanto, o dilema persiste, agora, sob uma nova roupagem, configurada sob o dilema promocionista. Métodos A compreensão do dilema preventivista desenvolvido na obra de Arouca1 levou a um questionamento sobre o movimento da promoção da saúde por compreender que ela ocupa um espaço análogo ao da medicina preventiva: o da prevenção das doenças, respeitadas suas singularidades. Ao analisar a promoção da saúde, denota-se que, como formação discursiva, ela surgiu em um contexto muito semelhante ao da medicina preventiva, conforme apontado por Arouca1 e caracterizado, principalmente, pela ascensão do neoliberalismo. Para concretizar este entendimento, adotou-se a lógica da interdiscursividade. Segundo Bakhtin5, o enunciado constitui um todo de sentido e, por isto, permite encontrar respostas. Qualquer texto tem um intertexto, parte de um contexto mais amplo e se constitui em um elo, em uma cadeia contínua e inesgotável de sentidos. Sendo assim, o sentido de um discurso só pode ser buscado no interdiscurso. Tendo esse entendimento, tomou-se a tese de Arouca1 como um elo que propicia entender os sentidos contemporâneos do movimento da promoção da saúde. Resultados O dilema preventivista na tese de Sérgio Arouca Na introdução de sua tese, Arouca1 deixou claro que, para compreender o significado da medicina preventiva, era necessário determinar a que tipo de racionalidade o conceito pertencia em um dado contexto social. Assim, tem-se sua pergunta central: O que representa a emergência do discurso preventivista privilegiando uma ‘nova atitude’, reintroduzindo a quantificação e a formalização no saber clínico, colocando em questão a experiência pedagógica do hospital e relibertando a enfermidade para o espaço social? E, enfim, qual a novidade da institucionalização de um espaço que coloca em questão a própria medicina, ao mesmo tempo que se oferece como projeto alternativo?1(15). Como formação discursiva, a medicina preventiva emergiu em um campo formado por três vertentes: 1) a higiene, surgida no século XIX, ligada ao desenvolvimento do capitalismo e da ideologia liberal; 2) a discussão dos custos da atenção médica nos Estados Unidos, no período de 1930 a 1940, diante de uma crise internacional e da ameaça de uma intervenção estatal com a respectiva reação das organizações médicas; e 3) a redefinição das responsabilidades médicas surgidas no interior da educação médica. Diante disso, Arouca1 apontou que entre 1950 e 1953 houve um marco importante na redefinição dos objetivos do ensino médico, realizados pelo Comitê de Educação Médica da Associação Americana de Medicina em conjunto com a Associação Americana de Colégios Médicos, que elaboraram uma declaração que introduziu alguns dos principais preceitos da medicina preventiva, servindo como base à Conferência de Colorado Springs (1953), local de emergência do discurso preventivista. Conforme Arouca1, o campo teórico das conceituações a respeito da medicina preventiva definiu, pelas regularidades discursivas, três principais premissas da nova conduta: 1) enfoque no indivíduo e na família; 2) incorporação na prática diária do médico, independentemente de sua especialidade; e 3) nova atitude por parte do profissional médico. Arouca1 definiu esse processo como um movimento que, em um primeiro momento, faz a crítica da medicina curativa, para, em um segundo momento, defender seu próprio projeto. A medicina curativa era uma prática médica que se esgotava no diagnóstico e na intervenção terapêutica, privilegiando a doença; a prevenção e a reabilitação eram secundárias. Ou seja, tratou de demonstrar a ineficiência dessa prática, devido ao enfoque médico predominantemente biológico, da especialização crescente da medicina e da desvinculação dos reais problemas de saúde da população. Os princípios teóricos da medicina preventiva foram introduzidos, principalmente, por Leavell e Clark4, que tiveram influência na divulgação das ideias e na implantação dos departamentos de medicina preventiva nos Estados Unidos, que mais tarde seriam expandidos para todos os países. Os princípios e condutas da nova disciplina deveriam dar conta do desdobramento do conhecimento em diversas áreas, especialidades e subespecialidades, tendo como proposta de reorganização e síntese desse movimento a HND. Para esses autores4(25), a medicina preventiva é a ciência e a arte de prevenir a doença, prolongar a vida e promover a saúde física, mental e a eficiência, para interceptar a história natural da doença em qualquer estágio de sua evolução. A HND é a inter-relação entre agente, hospedeiro e ambiente, e está dividida em dois períodos: o primeiro, a pré-patogênese; e o segundo, a patogênese. Na pré-patogênese, momento em que a doença não se iniciou, devem ser estabelecidas medidas de prevenção primária contra os agentes patológicos, através da promoção da saúde, a fim de estabelecer como ótima a saúde nos seres humanos. Na patogênese, quando a doença está manifestada, são aplicadas medidas de prevenção secundária e terciária, através do diagnóstico clínico, tratamento e reabilitação. Nessa proposição, a relação médico-paciente deixaria de ser ocasional, cabendo às condutas preventivas a manutenção do equilíbrio da vida. Assim, o cuidado à saúde se transforma em prática cotidiana, em ponto de articulação da totalidade criada com o campo médico. Portanto, como projeto, a medicina preventiva promoveu uma reorganização do discurso médico, proclamando uma nova atitude na prática médica, que deveria ser implantada através da educação médica. Para analisar o projeto da medicina preventiva, Arouca1 retomou seus conceitos estratégicos: integração; inculcação e resistência; mudança; e esquema evolutivo. Em seguida, analisou suas regras da formação discursiva, a fim de compreender as condições concretas da existência dos elementos que compõe o discurso preventivista em sua singularidade, constatando que este construiu, diante da medicina, um projeto que lhe era, simultaneamente, igual e diferente. Ou seja, tratava-se de um discurso que falava de uma medicina adjetivada que se tornaria o próprio futuro da medicina, aparecendo como projeto e como processo de transformação. Ao assumir essa relação de identidade e de mudança da medicina, o discurso preventivista tomou como seus objetos a saúde e a doença, a prática e a educação médica. Dessa forma, tornou-se, ao mesmo tempo, alternativo e afirmativo. Instaurou-se através da institucionalização de espaços discursivos, através dos departamentos de medicina preventiva, das associações nacionais de escolas médicas e de diferentes instituições internacionais. Após estudar as condições de emergência e as regras de formação discursiva da medicina preventiva, Arouca1 analisou a articulação da medicina com a sociedade, a fim de apanhar, em sua totalidade, a especificidade da medicina preventiva, momento em que faz uma aproximação teórica com a teoria de valor de Marx3. Ao analisar a articulação da medicina com a sociedade, Arouca1 partiu da unidade mais simples: o cuidado médico. O cuidado é o próprio processo de trabalho de agentes investidos e legitimados socialmente nesta função, monopolizando o exercício e o conhecimento de tal atividade. O cuidado é composto pela corporificação de instrumentos e condutas técnicas em uma relação social específica, satisfazendo necessidades humanas nos modos de andar a vida. Ele apresenta uma dupla característica: é um processo de trabalho, tendo como objetivo a intervenção sobre valores vitais (biológicos e psicológicos); é unidade de troca por atender necessidades humanas, tendo atribuído, social e historicamente, um valor. Neste processo, o que se consome é o próprio cuidado, ou seja, o próprio trabalho e não o produto deste trabalho, em outras palavras, o resultado do cuidado é a intervenção (normativa ou transformadora) sobre valores vitais, cujo consumo é realizado na própria vida, no seu uso e no consumo da força de trabalho no processo produtivo, sendo, portanto, consumido no cuidado o trabalho de seus agentes e seus instrumentos, e não o seu resultado1(205). Dessa relação, Arouca1 evidenciou as características básicas do cuidado médico: é uma unidade de produção e consumo; implica em três valores: seu próprio valor como unidade de troca, os valores vitais que toma como objetos, e os valores de uso e de troca atribuídos socialmente aos valores vitais; é um processo de trabalho que envolve conhecimentos, técnicas, relações sociais e necessidades a serem satisfeitas; é determinado pelas necessidades vitais nos mais variados modos de andar a vida e determina socialmente as necessidades e seu espaço de coberturas. Essas características definem o espaço no qual se encontra a contradição fundamental da medicina1. Ela atua nas margens entre o vital e o social, uma vez que define como seu objeto o vital, que é influenciado pelo social, encontrando, nesse lugar, seus limites e suas possibilidades. O produto da prática médica, o cuidado, refere-se a valores que, para seus possuidores, existem como valores de uso, ou seja, refere-se à própria vida dos seres humanos. Quando uma pessoa, por exemplo, está com um problema de saúde, ela procura o cuidado médico para retomar sua condição de saúde e seguir seu modo de andar a vida. Então, na relação entre essa pessoa e o médico, há uma dependência entre a necessidade do cuidado e o saber que somente o médico possui para proporcionar àquela as condições necessárias de sua recuperação. Nesta relação, o valor de uso aparece como a própria recuperação da saúde, para que a pessoa possa deixar a condição de estar doente. Todavia, sanar o problema dessa pessoa implica para ela não só uma melhora de sua condição de saúde, mas, também, a possibilidade de retomar as condições necessárias para exercer sua força de trabalho, pois, como trabalhador, depende disso para sua sobrevivência no modo de produção capitalista. Porém, no momento em que a saúde, como valor biológico, passa a ser considerada também como um atributo da força de trabalho, para que melhor seja consumida no processo produtivo, ela, como valor de uso para seu detentor, passa a ser um valor de troca, a partir da venda de sua força de trabalho no mercado. Portanto, se inicialmente a saúde tem como significado um valor de uso para seu detentor, imediatamente ela é transformada em valor de troca para a sua própria sobrevivência. Essa é a contradição fundamental da medicina: ter como objeto valores vitais que, para os seres humanos, são valores de uso no processo da vida, transformados em valores de troca pela dinâmica do modo de produção capitalista. A vida, então, é tratada como mercadoria, tendo no cuidado médico a forma para que sejam mantidas as condições necessárias de manutenção da saúde utilizada como valor de troca no mercado. O uso atribuído a valores vitais determina, também, quais deles devem ser tomados prioritariamente como objetos de trabalho da medicina, fazendo com que se crie uma normatividade destes valores em termos de doenças e cabendo a ela o cuidado dessas alterações1. Entretanto, segundo Arouca1, a mesma atividade médica que faz a manutenção e recuperação do valor de uso de uma pessoa, que, ao vender sua força de trabalho passa a significar a manutenção de valor de troca, funciona, para as classes hegemônicas, como um valor de uso, que é colocado como corporificação do capital no processo de extração de mais-valia. Conforme Arouca1, o cuidado médico contribui para o aumento da produtividade quando os trabalhadores são mantidos em boas condições de saúde, direta ou indiretamente, devido à diminuição do absenteísmo e de acidentes de trabalho. Pode, também, contribuir para a mais-valia absoluta, quando mantém o trabalhador em condições boas de saúde, possibilitando, desta forma, a realização de jornadas extraordinárias de trabalho. Em síntese, podemos dizer que a saúde, como valor biológico, pode ser considerada como um atributo da força de trabalho para que ela melhor possa ser consumida no processo produtivo. Porém, paradoxalmente, a força de trabalho como mercadoria incorpora para a sua manutenção um quantum de trabalho cujo efeito não é aumentar o seu valor, mas, sim, possibilitar o aumento da sua exploração1(219). A articulação da medicina está referida à manutenção, à recuperação e à reprodução da força de trabalho tomada como um valor de troca para o proletário, funcionando como um valor de uso para as classes hegemônicas, a partir da exploração do trabalhador. O trabalho médico se tornou funcional a essa reprodução dentro da lógica capitalista, sendo diretamente produtivo quando possibilita um acréscimo na mais-valia. A medicina preventiva aparece nesse campo de tensões da medicina como um projeto que se apresenta como alternativa de solução ao conjunto de problemas das formações sociais relativas à incidência de doenças e abrangência dos cuidados médicos, centralizando no profissional médico um novo comportamento. Contudo, o fez a partir de uma leitura liberal, mantendo a natureza do cuidado médico, sem que escapasse à contradição da medicina. Assim, a incorporação das atitudes preventivistas ficou diretamente ligada ao aumento da produtividade do trabalho. Não foi por mero acaso que as chamadas empresas médicas adotaram rapidamente, após a sua criação, o discurso preventivista na justificativa de sua validade1(213). Na política estatal, também foram incorporadas, por meio de organismos da saúde pública, as atitudes preventivistas, visando, principalmente, cobrir a atenção das populações ditas marginais. Portanto, a apreensão da contradição fundamental da medicina possibilitou à Arouca1 a construção da categoria ‘dilema preventivista’, pois, mesmo a medicina preventiva tendo se apresentado como um novo projeto, como um movimento de mudança, ela manteve a mesma lógica do cuidado médico, constituindo-se em um espaço conservador e funcional ao capitalismo. Na dimensão do ensino, a medicina preventiva é mais uma disciplina-tampão, entre as tantas que criticam a disciplina dentro da qual nascem, centram suas estratégias de modificação da prática no ensino, possuem organização institucional legitimada e se constituem em discursos e práticas concretas que contribuem para a estabilização ideológica de propósitos mais gerais e idealistas1. Feita essa breve apresentação, podem ser tratadas as mudanças sociais e práticas de saúde que possibilitaram à medicina preventiva, como uma medicina de orientação liberal e individualista, se transformar na promoção da saúde, hoje amplamente divulgada e defendida no âmbito nacional e internacional. A promoção da saúde A promoção da saúde, como formação discursiva, emergiu em um contexto muito semelhante ao apontado na análise de Arouca1, em relação à medicina preventiva: um momento de crise econômica. Dessa vez, com o neoliberalismo como estratégia ofensiva do capital. O neoliberalismo é um projeto econômico- -político de classe (capitalista) expresso através de uma estratégia de acumulação do capital, que se baseia especificamente na subordinação e sujeição absoluta ao mercado como dispositivo de produção e reprodução social em sentido amplo6. Um dos conceitos mais significativos do ideário neoliberal é a mudança de enfoque do homo economicus (homem econômico) – tido como princípio antropológico da corrente anglo-americana – para o de homo redemptoris (homem empresário/empreendedor), da corrente austríaca7. Conforme Puello-Socarrás7, o conceito de homem empresário/empreendedor, antes de ser uma premissa dos tempos atuais, é uma ideia historicamente arraigada no pensamento liberal, na qual o conceito de homem econômico era uma categoria que interpretava dedutivamente o ser humano como um agente econômico racional e um indivíduo eminentemente calculador. Entretanto, a partir do século XX, esse conceito passa a fazer parte de uma reivindicação do empreendedorismo como exigência para a compreensão do ser humano diante das condições econômicas do mercado, ou seja, frente ao capital financeiro e à governança corporativa, entre outros. Neste contexto, o homem empreendedor é um homem econômico, mas não no sentido puro como defendia o neoclassicismo anglo- -americano, pois ele é um empresário de si mesmo, aprofundando o individualismo típico do neoliberalismo. A consolidação da doutrina neoliberal, em nível global, foi caracterizada pelo ‘Consenso de Washington’ em sua versão original, de 1989 (CW-89), e de suas adaptações posteriores (Consenso Revisado, Ampliado e PósWashington), realizadas pelos organismos multilaterais de crédito subordinados aos interesses de Washington (Estados Unidos), como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Essas adaptações ao consenso original emergiram quase uma década depois como resposta das agências internacionais a um conjunto de progressivas resistências sociais antineoliberais e constantes políticas contra-hegemônicas, principalmente na América Latina e no Caribe, no plano sociopolítico e eleitoral, motivados pela catástrofe da hegemonia liberal, especificamente em termos sociais8. Sem abrir mão dos postulados macroeconômicos, o neoliberalismo se viu obrigado a adaptar, às suas práticas políticas, a inclusão de temas sociais para manter sua posição central de poder e seus postulados. Temas como pobreza e inclusão social, bem como a presença estatal (reguladora) e o reconhecimento de falhas do mercado, passaram a fazer parte das diretrizes sistematicamente incorporadas na agenda neoliberal das agências multilaterais, sem abrir mão da essência do projeto de sujeição e subordinação ao mercado. Além disso, temas como justiça social, equidade e empoderamento, entre outros, passaram a fazer parte das prescrições da agenda neoliberal no conjunto de políticas sociais8. Obviamente, a atenção à saúde não poderia ficar fora desse processo. Incorporando as premissas do ideário neoliberal, a APS surge como resposta, em um primeiro momento, à crise dos anos 1970 e à discussão dos elevados custos da atenção médica, para firmar-se como uma nova perspectiva, tendo a promoção da saúde como sua principal estratégia. Conforme Vasconcelos e Schmaller9, os elevados custos da saúde estavam relacionados à dependência ao modelo biomédico, centrado em uma abordagem fisiopatológica individual de diagnóstico e terapêutica. Nesse modelo de atenção à saúde, o núcleo central preconizava a unidade hospitalar para tratamento, bem como elevados aparatos tecnológicos e o suporte de especialistas. A discussão em torno da necessidade de uma nova abordagem para o campo da saúde, somada à crise econômica da década de 1970 e ao consequente avanço do neoliberalismo, fez com que o processo de mudança ocorresse de forma acelerada. Isso deu início a uma série de encontros de países do centro capitalista e de organizações internacionais para a formulação de uma nova perspectiva que correspondesse às exigências do campo econômico, ou seja, da contenção dos elevados custos sociais. Devido à crise fiscal, ao elevado custo em tecnologias médicas e ao modelo biomédico, o Canadá foi um dos países que, naquele momento, fez uma forte crítica ao seu sistema de saúde, resultando na apresentação, em maio de 1974, do documento ‘A new perspective on the health of Canadians’10, também conhecido como ‘Informe Lalonde’. Foi a primeira vez que o termo promoção da saúde apareceu oficialmente em um documento como parte de um pensamento estratégico para reorganizar a atenção à saúde. As premissas do ‘Informe Lalonde’ foram definidas no item denominado ‘campo da saúde’, reunindo os ‘determinantes da saúde’, conceito que contempla os quatro componentes que influenciam a saúde10: biologia humana, ambiente, estilo de vida e organização da assistência à saúde. Destes componentes, decorrem cinco estratégias: promoção da saúde, regulação, eficiência da assistência médica, pesquisa e fixação de objetivos. No documento, a promoção da saúde teve como definição “informar, influenciar e assistir pessoas e organizações, para que assumam maiores responsabilidades e sejam mais ativos em matéria de saúde”10(66). O enfoque da estratégia da promoção da saúde foi, essencialmente, voltado aos estilos de vida, englobando, por exemplo, a alimentação, o tabaco, o álcool, as condutas sexuais e o uso de drogas, e evidenciando, para tanto, a necessidade de responsabilização individual sobre a própria saúde. Assim, ao propor a retirada do enfoque da assistência médica sob os cuidados exclusivos do profissional médico, Lalonde10 introduziu a concepção de que as pessoas deveriam se responsabilizar sobre seu próprio cuidado com a saúde, pois suas atitudes resultariam na expressão de sua saúde. Paralelamente à reestruturação que vinha ocorrendo no Canadá em torno da promoção da saúde, a Organização Mundial da Saúde (OMS) fomentou, na década de 1970, um amplo debate em torno de alternativas viáveis para a extensão dos cuidados à saúde nos países, de forma a atender as expectativas do cenário econômico. O ponto culminante foi a Conferência Internacional de APS, realizada em 1978, em Alma-Ata, no Cazaquistão, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef )11. Dois documentos resultaram da conferência. Na Declaração12, a promoção da saúde apareceu como um conceito essencial, acompanhada dos conceitos de prevenção, tratamento e reabilitação. Analisando os documentos da conferência e as declarações posteriores sobre a APS, denota-se que o conjunto de afirmações e recomendações demonstrou uma preocupação com a necessidade de implantar uma reforma estrutural de cunho socioeconômico nos países – principalmente, nos subdesenvolvidos – como perspectiva de superação das barreiras econômicas presentes naquele momento. A proposta da APS, para além da implantação de um conjunto de diretrizes em saúde, fez parte do conjunto de reformas do aparelho de Estado ao indicar a necessidade de reestruturação interna dos países, conforme preconizado pelo neoliberalismo. Essa postura, presente na conferência, é reafirmada nas Recomendações de Alma-Ata, quando se dá a publicação do documento intitulado ‘Saúde para Todos no Ano 2000’, que propunha ajustes no campo da saúde em longo prazo, além do acompanhamento constante das reformas preconizadas em Alma-Ata13. Em novembro de 1986, em Ottawa, ocorreu a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Tendo a participação de 35 países, e resultando na Carta de Ottawa, ainda é considerada a principal conferência sobre promoção da saúde por ter se tornado uma referência para o campo, em todo o mundo13. Segundo Labonte14, a Carta de Ottawa afirmou, sobretudo, que a promoção da saúde demarcou uma inovação, ao introduzir um conjunto de preceitos que antes não eram trabalhados no cuidado à saúde. A promoção da saúde deveria, então, dar conta de um conjunto de valores: solidariedade, equidade, democracia, cidadania, desenvolvimento, participação e ação conjunta. Daí decorrem as principais estratégias: políticas públicas saudáveis; ambientes favoráveis à saúde; reorientação dos serviços de saúde; reforço da ação comunitária; e desenvolvimento de habilidades pessoais15. Além de seus conceitos estratégicos: os determinantes sociais da saúde, os fatores de risco e o empowerment. Segundo Zioni e Westphal16, os determinantes sociais estão condicionados ao contexto estrutural socioeconômico e político da sociedade, que, por sua vez, pode ser traduzido como uma estratificação social, definida em termos de excedente econômico. Esta estratificação leva ao que seriam os determinantes sociais da saúde expressos pela distribuição desigual de três tipos de fatores: materiais, como habitação, alimentação, trabalho etc.; psicossociais e comportamentais; e biológicos. Estes fatores representam os níveis de saúde em cada sociedade, conforme seu desenvolvimento. Entretanto, nesta concepção, os fatores causais dos problemas de saúde aparecem puramente no plano empírico e, para minimizar a determinação social, defende-se a necessidade de uma maior atuação sobre os fatores de risco, sem que se transformem efetivamente as condições sociais9. A epidemiologia trata o risco como a probabilidade de um conjunto de membros de uma população desenvolver uma doença ou algum evento relacionado à saúde, surgindo, então, a noção correlata de fator de risco, que pode ser definido como o atributo de um grupo de pessoas que apresentam uma determinada patologia com maior incidência do que os demais grupos populacionais, oferecendo, assim, um forte risco à saúde de todos17. Desta forma, prever os fatores de risco significa minimizar problemas futuros. Na promoção da saúde, esta concepção é utilizada na estruturação de ações e estratégias como as Políticas Públicas Saudáveis, que têm como concepção contribuir para a escolha de hábitos de vida saudáveis16. O controle sobre os determinantes sociais e os fatores de risco no processo saúde-doença, por parte dos indivíduos, encontra-se na principal estratégia da promoção da saúde, através do conceito de empoderamento e suas variantes: o psicológico e a comunidade. O empoderamento psicológico enfatiza uma perspectiva filosófica individualista, que tende a ignorar a influência dos fatores sociais e estruturais, desconectando o comportamento dos seres humanos do contexto sociopolítico em que estão inseridos. A centralidade desta perspectiva consiste na regulação da vida por parte de políticas e práticas macrossociais, fazendo com que as pessoas se responsabilizem cada vez mais por sua condição de vida18. A perspectiva centrada na comunidade compreende que existem níveis diferenciados de poder distribuídos de forma desigual na sociedade, o que justificaria as disparidades sociais. A responsabilização individual não é criticada, mas ampliada para as comunidades, de forma que a responsabilização coletiva é apontada como alternativa de fortalecimento da crítica à macroestrutura. Assim, o discurso do fortalecimento das comunidades e dos indivíduos através do empoderamento retira a responsabilidade do Estado de prover um sistema de saúde adequado, por meio da transferência de responsabilidades, a cada indivíduo, sobre sua condição de vida. Nesse sentido, embora haja problemas macroestruturais reconhecidos, os indivíduos é que são os responsáveis por mudá-los. Essa estratégia centrada no empoderamento nada mais é do que a prescrição neoliberal do enfoque no indivíduo, que se justifica na concepção de que todo ser humano é um empresário/empreendedor, conforme apontado por Puello-Socarrás7. Logo, o conjunto normativo de prescrições da promoção da saúde se apresenta como sendo o próprio espaço de oportunidades preconizado pelo neoliberalismo, no qual os indivíduos encontram as oportunidades de melhorar sua condição de saúde, bastando, para isto, que se tornem agentes ativos por meio da responsabilização de cada aspecto de sua vida no que diz respeito a hábitos saudáveis. Ao prescrever o que é bom ou mau para a saúde de cada um, a promoção da saúde se estabelece como autoridade suprema sobre a própria existência humana, tendo na noção de fatores de risco o epicentro das normas de conduta que prescreve. Considerações finais: o dilema promocionista O conceito de promoção da saúde já havia aparecido na década de 1940, quando Leavell e Clark4 o introduziram ao desenvolverem o modelo da HND, no período da pré-patogênese. O que o movimento da promoção da saúde iniciado na década de 1970 fez foi se ater ao nível da prevenção primária do modelo preconizado por Leavell e Clark4, negligenciando todo o resto, tratando de apresentar um esquema pedagógico baseado na causalidade de fatores simples e até mesmo em uma redução monocausal, centrado, exclusivamente nos fatores de risco, em cada aspecto da vida19. Isso porque, nos demais níveis preconizados por Leavell e Clark4, o trabalho do médico era indispensável. Assim, como forma de contenção de custos da atenção médica, a promoção da saúde desloca a centralidade do trabalho médico para o nível da prevenção primária e, complementarmente, delega as responsabilidades de cuidado aos indivíduos. Segundo Nogueira19(179), a pregação de “hábitos saudáveis” sob a responsabilidade do indivíduo em cada aspecto de sua vida é um retorno à normalização imposta pela higiene no final do século XIX e começo do século XX, que deu origem à medicina preventiva e às suas normas. Desta forma, não deixa de ser um projeto similar de medicalização da totalidade da existência humana e não só da dimensão da doença; medicalização que dispensa a figura do médico, pois molda a cultura cientificista a seus propósitos, afetando diretamente o modo como as pessoas cuidam de sua saúde19 e, na expressão de Arouca1, seus modos de andar a vida. Daí, compreende-se que a promoção da saúde não se separou da medicina preventiva. De fato, o que se tem é uma atualização do discurso da medicina preventiva, dado o contexto histórico que exigiu essa reconfiguração. Devido à crise econômica e ao aumento dos custos da atenção médica, foi imposta uma reestruturação que correspondesse às exigências do ideário neoliberal. Além disto, importa destacar que não é mera coincidência que temas da agenda neoliberal como justiça social, equidade e empoderamento, entre outros, sejam os mesmos preconizados pela promoção da saúde. Diante do exposto até aqui, se na medicina preventiva ficou evidente a existência do dilema preventivista1, a promoção da saúde não escapa ao dilema promocionista. Aqui reside a centralidade da tese de Arouca1 para este trabalho. Como a promoção da saúde é uma atualização do discurso da medicina preventiva, não há rompimento com a contradição fundamental da medicina, conforme foi demonstrado por Arouca1. Ao contrário, a articulação da medicina com o modo de produção capitalista é fortalecida. A análise de Arouca1 demonstrou que, na relação centrada no médico-paciente, o cuidado médico contribui para a recuperação e manutenção da força de trabalho e, ao fazer isto, contribui para a perpetuação de tal relação de troca, sendo funcional ao modo de produção capitalista. Na promoção da saúde, o enfoque dos cuidados sob a responsabilidade do indivíduo não diminui essa contradição, ao contrário, ela a aprofunda, na medida em que as pessoas são convertidas em empresárias de si mesmas. O cuidado não depende, na promoção da saúde, apenas da figura médica, mas essencialmente, do indivíduo, sendo ele o responsável por sua saúde e, ao mesmo tempo, por sua condição social. Sob o discurso da promoção da saúde, a medicalização é ampliada ao prescrever um conjunto de hábitos saudáveis aos indivíduos, mantendo, assim, a reprodução e manutenção da força de trabalho a ser consumida no processo produtivo. Em última análise, a promoção da saúde é uma atualização da medicina preventiva, mantendo os preceitos que transformam um valor de uso, que é a saúde, em valor de troca, mediado por relações sociais subordinadas à lógica do mercado. Ao fazer isto, reforça a articulação da medicina com o modo de produção capitalista. Colaboradores Misoczky MC contribuiu para a concepção do estudo, elaboração de versão preliminar e aprovação final da versão a ser publicada. Abdala PRZ contribuiu para a concepção do trabalho, avaliação crítica da primeira versão do trabalho em termos da resolução de problemas de precisão e integridade do texto, revisão criteriosa do conteúdo intelectual do artigo, aprovação e revisão da versão final para publicação. Costa RP contribuiu para a concepção do trabalho, coleta dos dados bibliográficos para a elaboração do texto, interpretação dos dados e redação, aprovação e revisão da versão final do artigo. s 1. Arouca SAS. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 1975. 261 p. 2. Foucault M. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008. 3. Marx K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; 2013. 4. Leavell HEG, Clark G. Medicina Preventiva. Rio de Janeiro: Mcgraw-Hill; 1976. 5. Bakhtin M. La poétique de Dostoievski. Paris: Seul; 1970. 6. Puello-Socarrás JF. 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