UM FRATRICÍDIO
“Este papel branco, isto não chegará a um fim, queima os olhos e é por isso que se escreve.” (M 45)
Ticiano: Caim e Abel (1570/76),
Santa Maria della Salute, Veneza, Itália.
UM FRATRICÍDIO
(KAFKA, Franz. “Um Fratricídio” IN: Os 100
melhores contos de crime e mistério da Literatura Universal. Org. COSTA, Flávio
Moreira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p.190-1)
As evidências mostram que o crime foi
cometido da seguinte maneira:
Schmar, o assassino, tomou seu lugar
perto das nove horas de uma noite de luar na esquina onde Wese, sua vítima, ia
virar da rua onde ficava seu escritório para a rua onde ele vivia.
O ar da noite espalhava o frio. Mesmo
assim, Schmar vestia apenas uma roupa azul leve; a jaqueta estava desabotoada,
ainda por cima. Ele não sentia frio; além disso, ele se movimentava o tempo
todo. Sua arma, metade uma baioneta e metade uma faca de cozinha, restava firme
na sua mão, quase nua. Ele olhou para a faca contra a luz da lua. A lâmina
brilhou; não tanto para Schmar; ele pressionou-a contra o tijolo da parede e as
faíscas brilharam; talvez tenha se arrependido disso; e para remendar seu gesto
deslizou-a como um arco de violino contra a sola da bota, inclinando-se para
frente, ficando numa perna só, e ouviu tanto o afiar da faca na sua bota quanto
qualquer ruído vindo daquele lado da rua.
Por que Pallas, o cidadão que estava
olhando tudo pela janela próxima do segundo andar, permitiu que aquilo
acontecesse? Enigmáticos são os mistérios do ser humano! Com seu colarinho fora
de lugar, o cinto da camisola em volta do seu corpo arredondado, ficou olhando
para baixo, balançando a cabeça.
E cinco casas além dali, no lado
oposto da rua, a Sra.Wese, com um casaco de pele de raposa por sobre a roupa de
dormir, espichou o pescoço para ver se seu marido chegava, pois ele estava
atrasado naquela noite.
Finalmente soou o apito no escritório
de Wese, alto demais para um apito, sobre a cidade e nos céus, e Wese, o
dedicado trabalhador noturno, saiu do prédio, invisível ainda naquela rua,
apenas anunciado pelo som do apito; de repente o andar registrou seus passos
tranqüilos.
Pallas debruço-se mais para fora; ele
nem pensava em perder um movimento. A Sra.Wese, animada pelo apito, fechou sua
janela com um estrondo. Mas Schmar se ajoelhou; por ter todo o resto do corpo
coberto, pressionou apenas seu rosto e suas mãos contra a parede; enquanto tudo
o mais ficava gelado, Schmar se acendia de calor.
Bem na esquina que dividia as duas
ruas, Wese fazia uma pausa, apenas sua bengala parecia vir da outra rua,
apoiando-o. um frêmito súbito. O céu da noite convidava-o, com sua escuridão
azul e dourada. Sem saber, ele fixou os olhos no céu, sem querer, levantou o
chapéu e mexeu nos cabelos; nada lá em cima uniu-se em algum lugar padrão de
sinalização que interpretasse o futuro para ele; tudo permanecia no seu lugar
inescrutável e sem sentido. Em si mesmo, era uma ação razoável que Wese
continuasse caminhando em direção à faca de Schmar.
“Wese!”, gritou Schmar, ficando na
ponta dos pés, seu braço se mexendo, a faca rispidamente abaixada, “Wese! Você
nunca mais vai ver Júlia!” E o braço direito na garganta e outra vez na
garganta e uma terceira vez enfiando na barriga a faca de Schmar fez sua
trajetória. Liquido jorrou, ferida aberta, originando o som emitido por Wese.
“Feito”, disse Schmar, e esfregou a
faca, agora uma lâmina supérflua e pingando sangue, contra a parede mais
próxima. “A felicidade do assassinato! O alívio, o êxtase que cresce do jorro
do sangue alheio! Wese, velho pássaro noturno, amigo, colega de botequim, você
está se desvanecendo no escuro do chão desta rua. Por que não é você apenas uma
poça de sangue de modo que eu poderia pisar em você e fazer com que você
desaparecesse no vazio? Nem tudo que queremos se transforma em realidade, nem
todos os sonhos que florescem se transformam em frutos, sua solidez paira aqui
já indiferente a um simples chute. Qual o sentido da tola pergunta que você me
faz?”
Pallas, chocado, abriu a porta dupla
de sua casa e ali ficou à espera. “Schmar! Schmar! Eu vi tudo, não perdi nada.”
Pallas e Schmar se examinaram mutuamente com os olhos. O resultado da sondagem
deixou Pallas satisfeito e Schmar não chegou a nenhuma conclusão.
A Sra.Wese, com um bando de gente à
sua volta, apareceu correndo, seu rosto envelheceu consideravelmente com o
choque. Seu casaco de pele aberto balançava, ela desmaiou em cima de Wese, o
corpo jogado na noite que pertencia a Wese, o casaco de pele espalhado por cima
do casal como as macias flores de uma tumba que pertence à multidão.
Schmar, lutando com dificuldade contra
sua própria náusea, pressionou a boca contra o ombro do agente de polícia que,
se desviando levemente dele, deixou-o escapar.
Manuscrito do Mahabharata (ou,
alternativamente, soletrado Maabárata) que procura ilustrar a guerra em
Kurukshetra, onde Karna foi morto por seu irmão Arjuna. Mitologia da Índia.
KAFKA: UMA HABILIDADE NECESSÁRIA
NUNO AMADO
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE
LETRAS PROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA
KAFKA: UMA HABILIDADE NECESSÁRIA Nuno Amado Mestrado em Teoria da
Literatura Dissertação orientada pela Professora Doutora Fernanda Gil Costa
Lisboa 2008
RESUMO
Esta tese parte do pressuposto de que existe
uma relação entre aquilo que a escrita representava para Kafka e as habilidades
esquisitas de algumas das suas personagens. Assim, no primeiro capítulo,
defendo que a escrita era, para Kafka, uma necessidade e não um prazer ou uma
reacção a uma determinada ordem de coisas. Tendo essa necessidade, Kafka tinha
de encontrar um modo de satisfazê-la: o segundo, o terceiro e o quarto capítulo
apresentam diferentes soluções para este problema, sendo que no quarto é
mencionada, pela primeira vez, a noção de habilidade. No quinto e no sexto
capítulo, concentro-me nessa noção de habilidade, bem como nos efeitos e nas
consequências que o seu exercício produz, e procuro relacioná-la com aquilo que
era, para Kafka, a sua escrita. Finalmente, no sétimo capítulo, defendo que
haveria determinados espaços adequados àqueles que exercem uma habilidade e
procuro caracterizar esses espaços.
ABSTRACT
The central idea of this thesis
is that there is some connection between what writing represented for Kafka and
the weird abilities of some of his characters. Thus, in chapter One, I argue
that writing, for Kafka, was a need and not a pleasure or a reaction against
something. Having this need, Kafka had to find a way of accomplish it: chapters
Two, Three and Four present different solutions for this problem, being first
mentioned in chapter Four the notion of ability. In chapters Five and Six, I
focus on that notion of ability, as well as in the effects and consequences the
performance of it produces, and I try to relate it to what writing meant for
Kafka. Finally, in chapter Seven, I suggest that should exist some appropriate
spaces for those who perform an ability and I try to characterise these spaces.
PALAVRAS-CHAVE: KAFKA, ESCRITA,
HABILIDADE, JAULA, LITERATURA
KEYWORDS: KAFKA, WRITING, ABILITY, CAGE, LITERATURE
ÍNDICE
INTRODUÇÃO...............................................................................................................6
LISTA DE
ABREVIATURAS......................................................................................10
I. UM NOVELO EMBRULHADO PARA O LADO DE DENTRO.........................11 II. O
ABISMO DO
CELIBATO...................................................................................22
III. UM COVIL
LABIRÍNTICO.................................................................................41
IV. UMA JAULA
APERTADA....................................................................................57
V. A HABILIDADE DO
DISFARCE..........................................................................69
VI. O PODER DAS HABILIDADES...........................................................................84
VII. A MAIS LONGA DISTÂNCIA ENTRE DOIS PONTOS...............................103
BIBLIOGRAFIA .
......................................................................................................113
INTRODUÇÃO Quando li, pela primeira
vez, alguma coisa de Kafka, numa altura em que não sabia praticamente nada do
que sei hoje sobre o autor checo, senti uma afinidade esquisita com aquilo que
lia. Essa sensação inescrutável foi dando lugar a uma intuição cada vez mais
refinada que, com o tempo, viria a transformar-se num argumento. Esta tese é o
resultado desse processo.
A ciência jurídica e a tessitura narrativa em
três contos de Kafka
Publicado por Canal Ciências
Criminais
Por Sâmara Augusta Bueno Santos
O presente texto é uma resenha do
artigo da autora Lidiany Caixeta de Lima[1], produzido para a Comissão de
Direito e Literatura do Canal Ciências Criminais, sob a coordenação do Prof.
Me. Paulo Silas Filho.
O referido texto aborda aspectos da
construção narrativa do conto, utilizando para análise os contos “O Veredicto”,
“Um Fratricídio” e “Um novo advogado”, ambos de autoria de Franz Kafka. A
topoanálise[2] (Gaston Bachelard e outros autores) será o suporte
metodológico para análise das representações espaciais da narrativa literária,
bem como os escritos de Ricardo Piglia para o gênero conto.
Conforme Lima (2017, P. 186):
O escritor clássico é aquele que
provoca incômodos necessários, a fim de se repensar o ser humano e a própria
sociedade, conforme a recepção de seu texto em diferentes tempos históricos.
Este é o caso de Kafka, um autor
extremamente atual, o qual despertou o interesse de diversos juristas,
filósofos, linguistas, enfim, vários profissionais das ciências sociais e
humanas.
Neste contexto, diante de sua
relevância, a leitura e interpretação dos textos de Kafka são imprescindíveis
para os profissionais do direito compreenderem a sistemática da realidade
jurídica.
Theodor Adorno e Georgio Agamben, dois
filósofos contemporâneos importantes para diversas áreas das ciências humanas e
sociais, tiveram apreço especial pela literatura kafkaniana e, deste modo,
desenvolveram estudos acerca de sua obra.
Segundo Adorno (1998, p. 240), Kafka
preserva em sua produção a característica da indefinição, da dúvida, da eterna
intenção em gerar reflexão e agitação no leitor, através das agruras
vivenciadas pelos seus personagens. Nas palavras de Adorno, Kafka: “Em nenhuma
obra esclarece o horizonte. Cada frase é literal e cada frase significa” (1998,
p. 240).
Neste diapasão, Agamben disserta
acerca do inexplicável na literatura (e, pode ser aqui estendido, para a arte
no geral): “Sobre o inexplicável correm as mais diversas lendas. A mais
engenhosa explica que, sendo inexplicável, ele permanece como tal em todas as
explicações que dele foram e continuarão a ser dadas nos séculos vindouros”
(1999, p. 135).
Assim, o Conto “O veredicto”, como o
título sugere, aborda a história de um julgamento, da prolação de uma sentença.
Porém, com a utilização do absurdo, a fim de criticar a sociedade e, ao mesmo
tempo, o judiciário: Georg Bendemann, exímio nadador é condenado a pena de
morte por afogamento, pelo próprio pai.
Inicialmente, alguns pontos podem ser
tratados: o autoritarismo ainda presente nos procedimentos processuais
penais[3]: Indubitavelmente, alguns institutos foram revogados com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, marco da redemocratização do
país. Por outro lado, institutos como a condução coercitiva para
interrogatório, permaneceram por muitas décadas dentro do ordenamento jurídico,
sendo amplamente utilizados.
Inclusive, somente no ano de 2018, o
Supremo Tribunal Federal declarou a não recepção pelo atual sistema
constitucional do art. 260 do Código de Processo Penal (o
qual previa o instituto da condução coercitiva), através das Arguições de
Descumprimento de Preceito Constitucional - ADPF nº 395 e 444.
O segundo ponto refere-se a vedação da
pena de morte, a qual Bendemann fora condenado, a qual, junto à tortura, foram
largamente utilizadas durante os períodos ditatoriais brasileiros e, mesmo que
expressamente vedadas pelos arts. 5º, incisos II e XLVII, alínea a, todos da CF/88, infelizmente, ainda estão presentes no
ambiente carcerário e na própria persecução penal brasileira.
O terceiro ponto que choca o leitor: o
filho ser condenado pelo próprio pai. A relação dos dois se deteriorou ao ponto
do genitor querer dar um fim ao sofrimento de ambos. Além disso, a figura do
patriarca pode ser vista como o Pai-Estado-Juiz, em oposição ao
Filho-jurisdicionado.
De forma semelhante do ocorrido em “O
Processo”, “Na colônia penal”, dentre outras narrativas, os personagens de
Kafka não são submetidos ao devido processo legal, são privados de exercer o
seu direito ao contraditório e a ampla defesa, a presunção de inocência ou até
de acesso à justiça, tendo em vista que nenhum deles teve oportunidade de
assistido por um advogado.
Assim como acontece com Joseph K. e
Gregor Samsa, Bendemann, como já dito, exímio nadador e condenado à morte por
afogamento, aceita resignado o seu fim: comete suicídio, executa a própria
sentença insólita e hostil (LIMA apud KAFKA, 2011, p. 24-25:
No portão do prédio deu um pulo,
impelido sobre a pista da rua em direção a água. Já agarrava firme a amurada,
como um faminto a comida. Saltou por cima dela como excelente atleta que tinha
sido nos anos de juventude, para orgulho dos pais. Segurou-se ainda com as mãos
que ficavam cada vez mais fracas, espiou por entre as grades da amurada um
ônibus que iria abafar o barulho da sua queda e exclamou em voz baixa
Ressalta-se que, a conduta do pai de
Georg amolda-se ao crime de “induzimento ao suicídio”, previsto no art. 122 do Código Penal,
assim como estaria sujeito ao aumento do quantum da pena em decorrência da
incidência da agravante genérica de crime praticado contra descendente
(Art. 61, II, “alínea e”, do Código Penal).
Conforme os ensinamentos do
doutrinador Rogério Sanches Cunha (2016, p.82), na ocorrência do crime de
induzimento ao suicídio:
o agente faz nascer na vítima a ideia
e a vontade mórbida. Aqui o sujeito passivo nem sequer cogitava de eliminar a
própria vida, sendo convencido pela ação do agente.
O induzimento trata-se de induzimento
moral à ocorrência do crime, que faz surgir no íntimo da vítima a vontade de
cometer suicídio. Nota-se que a coação fora tão convincente que, conforme
supracitado, o personagem, ao jogar-se da ponte, ressalta o amor pelos pais,
resignado com a sentença de morte.
Prosseguindo a análise, o conto “Um
novo advogado” narra a história do advogado Bucéfalo, um cavalo que já
acompanhou Alexandre, o Grande em suas batalhas. Kafka narra que
o cavalo deixou de ser um soldado para “mergulhar nos livros do direito” e ao
final, ainda descreve que: “Liberto e longe do clamor das batalhas, lê e vira
as páginas dos nossos alfarrábicos”.
De forma concisa e satírica, pode-se
concluir que Kafka criticou a ideia do direito como ferramenta de transformação
social, visto que, para alguns autores[5], o arcabouço jurídico é simplesmente
um legitimador do status quo e do poder da burguesia. Através do
realismo fantástico, o autor demonstra absoluta descrença na justiça.
Também é possível aduzir que Kafka
igualmente critica o formalismo, a burocracia e até o status relacionado aos
profissionais do direito. Bucéfalo representa, também, de forma alegórica,
aqueles juristas que acomodaram-se em suas rotinas e deixaram de lutar por uma
sociedade melhor, esquecendo-se dos ensinamentos de Von Ihering, no clássico “A
luta pelo direito”[6].
As alegorias são constantemente
utilizadas na obra de Kafka. Assim, cumpre mencionar as palavras de Adorno (2001, p. 245):
A prosa de Kafka se alinha com os
proscritos também por buscar antes a alegoria do que o símbolo. Benjamin a
defendeu como parábola. Ela não se define pela expressão, mas pelo repúdio a
expressão, pelo rompimento. É uma arte de parábolas para as quais a chave foi
roubada; e mesmo quem buscasse fazer justamente dessa perda da chave seria
induzido ao erro, na medida em que confundiria a tese abstrata da obra de
Kafka, a obscuridade da existência com o seu teor. Cada frase diz:
interprete-me; e nenhuma frase tolera interpretação.
Por último, o conto “O Fratricídio”,
chama atenção por ser uma das narrativas mais viscerais de Kafka, que utilizou
o realismo descritivo para tecer um relato quase jornalístico da preparação e
da execução de um homicídio. O título faz referência à passagem bíblica do
assassinato de Abel, praticado por seu irmão Caim.
Schmar é o assassino, Wese a vítima. A
narrativa é concisa, focada no inter criminis do assassino que
surpreende a vítima com um golpe fatal. O terceiro elemento chave é Pallas, um
observador passivo, que assiste o crime pela janela, sem intervir[7].
O assassino possui o estereótipo de um
criminoso frio e calculista: “Ar noturno gelado, de fazer qualquer um tremer.
Schmar porém vestia apenas uma roupa azul leve, além disso o paletó estava
desabotoado. Não sentia frio”. A esposa de Wese aguardava-o chegar em casa,
notando à demora de seu retorno para a casa.
A vítima, Wese, não demonstra
suspeitar correr risco de vida e caminha pelas ruas observando o céu noturno,
alisa os cabelos e como adverte Kafka: “Ele caminha para a faca de Schmar”.
O assassino desfere vários golpes na
vítima, para que não reste perigo que o mesmo sobreviva ao atentado. Desse
modo, resta evidenciado o animus necandi do mesmo, que, à primeira
vista, teria sua conduta tipificada como homicídio qualificado pela utilização
de emboscada[13]. Pelos elementos contidos no Conto, não é
possível aduzir a motivação do assassinato, de modo que não é possível cogitar
a incidência de outras circunstâncias majorantes ou atenuantes, ou até mesmo a
incidência de outras qualificadoras do crime de homicídio.
Ao final, Pallas surpreende o leitor
e, concomitantemente, o assassino, dizendo:
Schmar! Schmar! Vi tudo, não me escapou
nada!. Pallas e Schmar medem-se com o olhar.
Ante o exposto, conclui-se com o
pensamento de Adorno (2001, p. 245), o qual afirma que a trajetória épica de
Kafka vem da força da demolição, está contida no sofrimento, no desumano. O
autor não busca suavizar a neurose, o contrassenso, mas justamente busca nele
mesmo a força que cura, ou seja: só a partir do conhecimento da realidade, em
sua aspereza, é possível refletir, transformar e evoluir.
Nota: Na coluna da Comissão de
Estudos Direcionados em Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais,
apresentamos aos leitores um pouco daquilo que vem sendo desenvolvido pela
comissão nessa terceira fase do grupo. Além da obra que será produzida, a
comissão se dedica a pesquisa e ao debate sobre questões presentes na temática
“Direito & Literatura”. Em 2019, passamos a realizar abordagens mais
direcionadas nos estudos. Daí que contamos dois grupos distintos que funcionam
concomitantemente: um focado na literatura de Franz Kafka e outro na de George
Orwell. Assim sendo, alguns artigos foram selecionados e são estudados pelos
membros, propiciando uma salutar discussão entre todos. Disso se resultam as
‘relatorias’ (notas, resumos, resenhas, textos novos e afins), uma vez que cada
membro fica responsável por “relatar” determinado texto por meio de um resumo
com seus comentários, inclusive indo além. É o que aqui apresentamos nessa
coluna, almejando compartilhar com todos um pouco do trabalho da comissão. O
texto da vez, formulado pela colega Sâmara Augusta Bueno Santos, foi feito com
base no texto “Quem conta um conto, aumenta um ponto: a ciência jurídica e a
tessitura narrativa em três contos de Kafka”, de Lidiany Caixeta de Lima -
publicado nos anais do V CIDIL. Vale conferir! (Paulo Silas Filho – Coordenador das Comissões de Estudos
Direcionados de Direito & Literatura – Orwell e Kafka - do Canal Ciências
Criminais)
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor Ludwig Weisengrund. Prismas:
Crítica Cultural e Sociedade. Tradução de A. Wernet e J. Almeida. São Paulo:
Atica, 1998.
KAFKA, Franz. Essencial Franz
Kafka/ seleção, introdução e tradução de Modesto Carone; tradução. — São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
LIMA, Lidiany Caixeta de. Quem
conta um conto aumenta um ponto: a ciência jurídica e a tessitura narrativa em
três contos de Kafka. Anais do V Colóquio Internacional de Direito e Literatura
- Rede Brasileira de Literatura. Volume 01, Páginas 185-197, 2017.
MASCARO, Alysson
Leandro. Filosofia do Direito / Alysson Leandro Mascaro. – 5. ed.
rev., atual e ampl. – São Paulo: Atlas, 2016.
Cunha, Rogério Sanches. Manual de
direito penal: parte especial (arts. 121 ao 361). Rogério Sanches Cunha-
8. ed.rev., ampl. e atual. - Salvador, JusPODIVM, 2016.
NOTAS
[1] Acadêmica do Curso de
Bacharelado em Direito da Universidade de Uberaba, MG. Licenciada em Letras
pela Universidade de Uberlandia, MG (2008).
[2] Segundo lima (2017), a partir
da topoánalise, se analisam as representações especiais do texto literário,
seja ele em verso ou em prosa, buscando inferências sociológicas, filosóficas,
estruturais para o desvelamento da composição narrativa.
[3] Cumpre ressaltar que o texto
base do Código de Processo Penal (Decreto
Lei nº 3.689, de 03 de
Outubro de 1941) fora elaborado e promulgado quando o Brasil encontrava-se sob
o período ditatorial do Estado Novo (1937-1945), dentro do contexto mundial da
Segunda Guerra Mundial.
[4] Para Engels, (MASCARO apud
ENGELS, 2016, p. 268) : “o jurista acredita manejar normas estabelecidas a
priori, sem se dar conta de que essas normas nada mais são que simples reflexos
econômicos: vê assim as coisas sob uma forma invertida. Enquanto não a
percebemos, essa inversão constitui o que chamamos concepção ideológica e
repercute sobre a base econômica, podendo mesmo modificá-la dentro de certos
limites”
[5] Para Rudolf von Ihering, o
direito é construído a partir da luta: dos povos, das nações, do Estado, das
classes e dos indivíduos.
[6] Como acontece em muitos
casos, por exemplo, como em crimes de violência doméstica, onde muitas pessoas
deixam de ajudar a vítima motivados no senso comum de que “em briga de marido e
mulher não se mete a colher”
[7] Nas palavras de Rogério
Sanches (2016, p. 62): “Emboscada pressupõe ocultamento do agente, que ataca a
vítima com surpresa. Denota essa circunstância maior covardia e perversidade
por parte do delinquente”
AUGUST 20, 2009 · 11:13 AM
um dia na (in)justiça brasileira
Quando se “vive” Kafka
New York– Há uns 9 anos eu devo ter
cometido um enorme ERRO: falei a verdade.
E me “pegaram”. Logo eu que posso
dizer absurdos no palco, onde não existem limites verbais ou visuais, fui
“pego” numa entrevista coletiva em Curitiba. Mais especificamente: numa
entrevista ligada ao Festival de Teatro de Curitiba, no ano 2000, quando o mundo
ainda era outro e brincávamos de brincar. Já haviam se passado décadas desde a
minha “Trilogia Kafka” (que viajou o mundo). Já haviam se passado mundos desde
o meu encantamento por esse autor que transcendeu a figura humana logo na
primeira página e, assim, Gregor Samsa, acorda um inseto.
Mas em Curitiba foi assim: cheguei,
como sempre chego, daqui de NY, exausto, depois de baldeações, conexões em
aeroportos e vôos atrasados. “Eu queria subir pro quarto e tomar um banho
rápido, trocar de roupa, já que estou em transito faz umas 16 horas”.
Cheguei lá em cima e não tinha água
quente. A cidade estava fria. A janela não fechava. E não tinha papel
higiênico. Deixei a água do chuveiro (na verdade, uma jacuzzi), correr por
algum tempo… e nada. Caguei, literalmente, sem papel, e fui me lavar na água
gélida do tal hotel. Morri de frio, especialmente ao sair. Batendo os dentes,
percebi que as antigas janelas não fechavam.
Bem, desci pra coletiva (uns 20 ou 25
jornalistas me esperavam) e alguém passava o aspirador de pó bem ao lado dessa
sala. Além do mais, as janelas dessa sala também não fechavam.
Bem, eu não estava de bom humor.
Um jornal local noticiou passo a passo
do meu mau humor e relatou as minhas reclamações, uma a uma.
Meses depois, no Rio, uma oficial de
Justiça veio ao Sesc- Copacabana entregar uma intimação, ou sei lá como chama
isso.
Liguei pra amigos (já que, na época,
eu não tinha advogado no Brasil), e me indicaram alguém. Bem, relaxei.
Anos se passam e nada ouço. Nada.
Assim como no Processo de Kafka, durmo
um sono tranquilo do Joseph K. quando sou acordado, em 2007, por uma voz
alarmante dizendo que “minha conta havia sido bloqueada pela JUSTIÇA
BRASILEIRA”.
Como?
Fomos falar com o gerente do banco,
que, mexendo no seu computador, descobriu se tratar de um processo que “perdi”
em Curitiba. Um hotel havia me processado. E havia processado o jornal que
havia publicado que “não havia papel higiênico, as janelas não fechavam e não
havia água quente”. Tudo isso num caderno cultural e não turístico, ou seja:
ninguém iria deixar de ir ao maldito hotel por causa das minhas declarações.
Ah sim. O tal advogado que me
indicaram. Um alcoólatra que perdeu todas as datas. Não foi a audiência nos
dias certos e não isso e aquilo e.. portanto, perdi.
O resultado por me expressar? Algo em
torno de 83 mil reais. Como não tenho esse dinheiro, coloquei um outro advogado
atrás do erro do primeiro. Dias atrás, descobri que em TODAS as instâncias, não
tem jeito mesmo. Nao poderei pagar e jamais poderei ter conta no Brasil.
Surreal? Kafkiano?
Tenham todos um bom dia Sarney
Brasileiro!
Gerald Thomas
VI. O PODER DAS HABILIDADES
“Não é necessário que saias de casa.
Permanece à mesa e escuta. Nem sequer escutes, aguarda apenas. Nem sequer
aguardes, sê absolutamente silencioso e solitário. O mundo apresentar-se-á
perante ti para ser desmascarado, não poderá fazer outra coisa, contorcer-se-á,
em êxtase, aos teus pés.” (CA 27)
V. A HABILIDADE DO DISFARCE
“A ocultação tem sido a vocação da
minha vida” (L 387)
IV. UMA JAULA APERTADA
“Ter o sentimento de estar preso e ao
mesmo tempo o outro, o de que, se estivesse solto, seria pior.” (D 32)
III. UM COVIL LABIRÍNTICO
“Todo o homem é, na verdade, um
labirinto.” (J 97)
II. O ABISMO DO CELIBATO
“O desejo de renunciar à maior
felicidade humana por causa da escrita continua a cortar todos os músculos do
meu corpo.” (F 355)
I. UM NOVELO EMBRULHADO PARA O LADO DE
DENTRO “A minha felicidade, as minhas capacidades e todas as possibilidades de
ser útil de alguma maneira residiram sempre no campo literário.” (D 48)
Referências
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/2/2d/Cain_kills_Abel.png/330px-Cain_kills_Abel.png
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fratric%C3%ADdio
http://ultimas-ideias.blogspot.com/2008/05/um-fratricdio.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fratric%C3%ADdio
https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/448/1/17421_Kafkaumahabildade.pdf
https://thumbs.jusbr.com/filters:format(webp)/imgs.jusbr.com/publications/images/993b0f9cb2dd87c0abf60931a6f1cdee
https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/710145646/a-ciencia-juridica-e-a-tessitura-narrativa-em-tres-contos-de-kafka
https://geraldthomasblog.wordpress.com/2009/08/20/um-dia-na-injustica-brasileira/
https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/448/1/17421_Kafkaumahabildade.pdf
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