KAREL CAPEK (1890-1938 | Checoslováquia)
Escritor de histórias fantásticas, e pioneiro da ficção científica com A Guerra das Salamandras e a peça R.U.R. - que teve a força de incluir a palavra robô, inventada literariamente por ele, em todas as línguas do mundo -, Karel Capek também esteve (está) presente em Os Cem Melhores Contos de Humor... Aqui ele lida com a culpa judaico-cristã (tema central de outro tcheco, Kafka em tom de parábola/alegoria de fundo crime-e-castigo.)
O notório multimatador Kugler, perseguido por vários mandatos e todo um
exército de policiais e detetives, jurou que jamais seria pego. E não o foi por
eles - pelo menos enquanto vivo. A última das suas nove façanhas assassinas foi
atirar num policial que tentou prendê-lo. O policial na realidade morreu, porém
não antes de enfiar um total de sete balas em Kugler. Dessas sete, três foram
fatais. A morte de Kugler chegou tão rapidamente que ele não sentiu dor. E
assim pareceu que Kugler escapara da justiça terrena.
Quando a sua alma abandonou o corpo, deveria se ter surpreendido com a visão do próximo mundo - um mundo além do espaço, cinza e infinitamente desolado - mas isso não aconteceu. Um homem que estivera preso em dois continentes olha para a próxima vida meramente com um novo ambiente. Kugler esperava lutar nele, equipado apenas com um pouco de coragem, como fizera no mundo anterior.
No seu tempo, o inevitável Último Julgamento acercou-se de Kugler.
Estando o céu eternamente em estado de emergência, Kugler foi levado
diante de uma corte especial de três juízes, e não, como sua conduta prévia
teria normalmente merecido, diante de um júri. A sala da corte era mobiliada
com simplicidade, quase como as salas de corte na Terra, com apenas uma
exceção: não havia espaço para testemunhas juramentadas. No seu devido tempo,
contudo, o motivo disso se tornará aparente.
Os juizes eram velhos e valorosos jurisconsultos, com faces austeras e
enfastiadas. Kugler cumpriu com as usuais e tediosas formalidades: Ferdinand
Kugler, desempregado, nascido em tal e tal data, morto... neste ponto
ficou demonstrado que Kugler não sabia a data da sua própria morte.
Imediatamente ele concluiu que esta parecia uma omissão prejudicial aos olhos
dos juízes; seu espirito de cooperação esmoreceu.
- O senhor se declara culpado ou inocente? - perguntou o
juiz-presidente.
- Inocente - disse Kugler obstinadamente.
- Tragam a primeira testemunha - suspirou o juiz.
Na direção oposta a Kugler apareceu um cavalheiro extraordinário, de
porte majestoso, de barba, e vestido com um manto azul salpicado de estrelas
douradas.
À sua entrada os juízes se ergueram. Até Kugler levantou-se, relutante
mas fascinado. Apenas quando o velho cavalheiro sentou-se é que os juízes
novamente se acomodaram.
- Testemunha - iniciou o juiz-presidente -, Deus Onisciente, esta corte
O convocou a fim de ouvir o Seu testemunho no caso contra Kugler, Ferdinand.
Como o Senhor é a Verdade Suprema, o Senhor não precisa prestar juramento.
Contudo, no interesse do processo, nós Lhe pedimos que se atenha ao
assunto em questão, mais do que dispersar-Se em detalhes - a não ser que tenham
relação com o caso.
- E você, Kugler, não interrompa a Testemunha. Ela sabe tudo, portanto
não adianta negar nada. E agora, Testemunha, por favor queira começar.
Dito isso, o juiz-presidente tirou os óculos e inclinou-se
confortavelmente sobre o balcão à sua frente, evidentemente preparando-se para
um longo discurso da Testemunha. O mais velho dos três juízes aninhou-se,
dormindo. O anjo escrivão abriu o Livro da Vida.
Deus, a Testemunha, tossiu levemente e iniciou:
- Sim. Kugler, Ferdinand. Ferdinand Kugler, filho de um operário de
fábrica, foi uma criança má, intratável, desde os seus primeiros dias. Amava à
sua mãe ternamente, mas era incapaz de demonstrá-lo; isto o tornou rebelde e
hostil. Jovem, você brigava com todo mundo. Lembra-se de como você segurou seu
pai na marra quando ele tentou espancá-lo? Você havia roubado uma rosa do
jardim do tabelião.
- A rosa era para Irma, a filha do coletor de impostos - disse Kugler.
- Eu sei - disse Deus. - Irma tinha sete anos de idade naquela época.
Soube alguma coisa do que aconteceu com ela?
- Não, não soube.
- Ela se casou com Oscar, o filho do dono da fábrica. Mas ela
contraiu uma doença venérea dele e morreu de um aborto. Você se lembra de Rudy
Zaruba?
- O que aconteceu com ele?
- Ora, ele entrou para a Marinha e morreu acidentalmente em Bombaim.
Vocês dois eram os piores meninos de toda a cidade. Kugler, Ferdinand,
tornou-se um ladrão antes dos seus dez anos de idade e um inveterado mentiroso.
Andava em má companhia, também: o velho Gribble, por exemplo, um beberrão e um
vadio, que vivia de esmolas. Entretanto, Kugler partilhou muitas de suas
próprias refeições com Gribble.
O juiz-presidente acenou com a mão, como se muito daquilo fosse talvez
desnecessário, mas o próprio Kugler perguntou, hesitantemente:
- E... o que aconteceu com a filha dele?
- Mary? - perguntou Deus. - Ela decaiu consideravelmente. Aos seus
catorze anos, ela se casou. No seu vigésimo ano ela morreu, lembrando-se
de você na sua agonia. Por volta dos seus catorze anos, você mesmo era quase um
beberrão e fugia freqüentemente de casa. A morte de seu pai veio por tristeza e
preocupação; os olhos de sua mãe se esvaíram de tanto chorar. Você trouxe
desonra para o seu lar e sua irmã, sua bonita irmã Martha, nunca se casou.
Nenhum jovem iria chegar-se à casa de um ladrão. Ela ainda vive sozinha, na
pobreza, costurando até tarde, toda a noite. A mesquinhez a exauriu, e os
clientes condescendentes feriram o seu orgulho.
- O que ela está fazendo neste momento?
- Neste exato minuto ela está comprando linha no Wolfe. Lembra dessa
loja? Certa vez, quando você tinha seis anos, você comprou lá uma bola de gude
de vidro, colorida. Naquele mesmo dia você a perdeu e nunca, nunca a encontrou.
Lembra como você chorou de raiva?
- O que aconteceu com ela? - Kugler perguntou com ansiedade.
- Bem, ela rolou pela vala e sob o bueiro. Na realidade, ela ainda
está lá, após trinta anos. Neste momento está chovendo na terra e a sua bola de
gude está estremecendo na corrente de água fria.
Kugler curvou a cabeça, surpreendido com esta revelação.
Mas o juiz-presidente ajustou os óculos no nariz e disse suavemente:
- Testemunha, somos obrigados a continuar com o caso. O acusado cometeu
assassinato?
Aqui a Testemunha acenou que sim com a cabeça.
- Assassinou nove pessoas. A primeira ele matou numa briga, e foi
durante o período de prisão por este crime que ele foi totalmente corrompido. A
segunda vítima foi sua infiel namorada. Por isto ele foi sentenciado à morte,
mas fugiu. A terceira foi um velho a quem roubou. A quarta foi um vigia
noturno.
- Então ele morreu? - perguntou Kugler.
- Morreu após três dias em dores terríveis - disse Deus. - E deixou
atrás dele seis crianças. A quinta e a sexta vítima foram um velho casal. Ele
os matou com um machado e achou apenas dezesseis dólares, embora eles tivessem
vinte mil escondidos.
Kugler pulou.
- Aonde?
- No colchão de palha - disse Deus. - Em um saco de linho dentro do colchão. Foi lá que esconderam todo o dinheiro obtido da avareza e da mesquinhez. O sétimo homem ele matou na América; um seu conterrâneo, um imigrante desnorteado e sem amigos.
- Então estava no colchão - sussurrou Kugler com espanto.
- Sim - continuou Deus. - O oitavo homem foi meramente um passante que
calhou estar no caminho de Kugler quando este estava tentando escapar da
polícia. Naquela época Kugler tinha inflamação óssea e andava em delírio por
causa da dor. Jovem, você sofreu terrivelmente. O nono e último foi o policial
que matou Kugler exatamente quando Kugler atirou nele.
- E por que o acusado cometeu assassinato? - perguntou o
juiz-presidente.
- Pelas mesmas razões que outros o fizeram - responde Deus. - Por raiva
ou por desejo de dinheiro; tanto deliberadamente quanto acidentalmente - alguns
com prazer, outros por necessidade. Contudo, ele era generoso e freqüentemente
ajudava. Era bom com as mulheres, gentil com os animais e mantinha a sua
palavra. Devo Eu mencionar suas boas ações?
- Obrigado - disse o juiz-presidente -, mas não é necessário. O acusado
tem algo a dizer em sua própria defesa?
- Não - replicou Kugler com honesta indiferença.
- Os juízes desta corte vão agora levar a questão à deliberação -
declarou o juiz-presidente, e os três juízes se retiraram.
Apenas Deus e Kugler permaneceram na sala da corte.
- Quem são eles? - perguntou Kugler, indicando com a cabeça os
homens que haviam saído.
- Gente como você - respondeu Deus. - Eles foram juízes na terra, então
são juízes também aqui.
Kugler mordiscava as pontas dos dedos.
- Eu esperava... quero dizer, eu nunca realmente pensei sobre isto. Mas
eu achava que o Senhor julgaria, uma vez que...
- Uma vez que sou Deus - completou o Imponente Cavalheiro. - Mas é
exatamente isto, percebe? Como eu sei tudo, eu não posso julgar. Não resolveria
de maneira nenhuma. A propósito, você sabe quem o entregou desta vez?
- Não, não sei - disse Kugler, surpreso.
- Lucky, a garçonete. Ela o fez por ciúme.
- Desculpe - ousou Kugler -, mas o Senhor esqueceu daquele imprestável
do Teddy, que baleei em Chicago.
- De forma alguma - disse Deus. - Ele se recuperou e está vivo neste
mesmo minuto. Eu sei que ele é um informante, mas não fosse isso ele seria
um homem muito bom e que gosta muitíssimo de crianças. Você não deveria pensar
que há alguma pessoa completamente sem valor.
- Mas eu ainda não entendo por que não é o Senhor o juiz - disse Kugler
pensativamente.
- Porque o meu conhecimento é infinito. Se os juízes soubessem tudo,
absolutamente tudo, então também compreenderiam tudo. Seus corações iriam doer.
Não poderiam sentar para julgar - e nem poderia Eu. Assim como é, eles sabem
apenas sobre os seus crimes. Eu sei tudo sobre você. O Kugler por inteiro. E é
por isso que não posso julgar.
- Mas por que estão eles julgando. .. as mesmas pessoas que eram juízes
na terra?
- Porque o homem pertence ao homem. Como vê, Eu sou apenas a testemunha.
Mas o veredicto é determinado pelo homem, mesmo no céu. Acredite-me, Kugler,
esta é a maneira que deveria ser. O homem não é merecedor do julgamento divino.
Ele merece ser julgado apenas por outros homens.
Naquele momento os três retornaram da sua deliberação. Num tom pesado o
juiz-presidente anunciou:
- Por repetidos crimes de assassinato em primeiro grau, homicídio
culposo, roubo, desrespeito à lei, porte ilegal de armas, e pelo roubo de uma
rosa: Kugler, Ferdinand, é sentenciado à punição por toda a vida no inferno. A
sentença começa imediatamente.
"Próximo caso, por favor: Torrance, Frank. O acusado está presente
na corte?"
Tradução de Fani Baratz
Os 100 Melhores Contos de Crime e Mistério da
Literatura Universal
Jeanne Eagels - A Carta (The Letter, 1929 )
A atriz Jeanne Eagles em um trecho do filme A
Carta (The Letter, 1929), que lhe valeu uma indicação ao Oscar (a primeira
indicação póstuma do prêmio).
1929 The Letter
1929. One of the first talking English films. Gripping
courtroom romance - Joseph Oliver
Referências
http://aneste.org/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=26
https://youtu.be/cQcv1HT4OfI
https://www.youtube.com/watch?v=cQcv1HT4OfI
https://youtu.be/mlAVz2kk41s
https://www.youtube.com/watch?v=mlAVz2kk41s
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