- Olá! Você
aí embaixo!
Halloa! Below there!.
The Signalman (Charles Dickens)
“Um General na Biblioteca. Foi assim que Ítalo Calvino nomeou seu conto
acerca da aventura de Fedina, militar de alta patente escalado para uma árdua
missão em meio a um enorme acervo de objetos considerados perigosos: os livros.” A INVENÇÃO DA IMAGEM AUTORAL DE CHICO XAVIER: ANDRÉ VICTOR
CAVALCANTI SEAL DA CUNHA
CHARLES
DICKENS (1812-1870 | Inglaterra)
"Cada época sepulta uns tantos autores. E a nossa enterrou Dickens." Foi o que escreveu Nelson Rodrigues numa crônica de 1968, lamentando o esquecimento do romancista de Oliver Twist, David Copperfield, o escritor inglês mais lido no mundo, com a exceção talvez de Sir Walter Scott - aliás, outro esquecido. O Sinaleiro pertence a uma zona nebulosa, ou intermediária, entre o conto de terror, ou sobrenatural, e o conto policial, que mal se iniciava na sua época. Aliás, é possível que Dickens tenha começado a se interessar pelo romance policial pela influência de seu amigo Wilkie Collins (vide conto seu nesta antologia). Tanto que, ao morrer, deixou sua primeira tentativa no gênero inacabada, O Mistério de Edwin Drood. (E a própria vida, talvez confirmando o autor, se encarregou de dar um ar sobrenatural ao futuro deste romance, que teve várias tentativas de finalização via psicografia (!): inclusive por parte de um operário inculto e espírita que teria recebido o "espírito "do próprio Dickens.)
PARTE I
- Olá! Você aí embaixo!
Quando ouviu a voz que o chamava, estava de pé junto à porta da guarita
com sua bandeirola enrolada na mão. Parecia impossível, dada a natureza do
terreno, que houvesse alguma dúvida quanto à origem da voz que o chamava, mas
ao invés de olhar para cima, onde eu estava no alto do corte íngreme do
barranco quase sobre sua cabeça, o homem olhou estrada abaixo pelos trilhos.
Havia naquilo algo de inusitado que me chamou a atenção, embora não
conseguisse, mesmo querendo, determinar o que era. Mas sei que alguma coisa
havia, pois me chamou a atenção, apesar de sua figura pouco visível e
sombreada, lá embaixo no fundo do escavado, e da minha posição sobre ele, tão a
pique no brilho forte do sol poente, que fui obrigado a fazer uma sombra sobre
os olhos com a mão para conseguir vê-lo.
- Olá! Você aí embaixo!
Afinal, deixou de olhar para os trilhos, virou-se e, levantando os olhos, viu minha figura no
alto sobre ele.
- Existe um caminho que eu possa descer para falar com você?
Olhou-me sem responder, e eu o olhei de volta, sem pressioná-lo com uma
imediata repetição da pergunta. Naquele momento, senti uma vaga vibração no ar
e na terra, que logo se transformou numa pulsação violenta, e senti um
deslocamento de ar sob meus pés, que me fez dar um passo atrás, quase com medo
que tivesse força de me sugar. Quando a fumaça, que subira do trem expresso, se
dissipava sobre minha cabeça e desaparecia no horizonte, olhei para baixo outra
vez e vi o homem enrolando de novo a bandei-rinha que acenara à passagem do
trem.
Repeti minha pergunta. Depois de uma pausa, durante a qual parecia me
examinar com atenção, fez um gesto com a bandeira enrolada mostrando um ponto
no alto do barranco a uns duzentos ou trezentos metros de mim. Gritei para ele:
"Tudo bem!"; e fui para o ponto indicado, onde, olhando de perto,
encontrei a picada que descia em ziguezague.
A descida do barranco era muito íngreme, quase em precipício. Era um
corte lamacento na pedra que se tornava cada vez mais molhado à medida que
descia. Isto fez o percurso longo o bastante para que eu tivesse tempo de
pensar no ar de relutância que o homem tivera ao apontar o caminho.
Quando já descera o bastante para tornar a vê-lo, notei que estava
parado entre os trilhos, ali por onde o trem passara minutos atrás, numa
posição de espera para me ver aparecer. Estava com a mão esquerda no queixo e o
cotovelo apoiado no braço direito cruzado no peito. Sua atitude era de tal
atenção e expectativa que me fez parar por um momento, pensativo com a cena.
Retomei minha descida até o nível dos trilhos e, me aproximando dele,
percebi que era um homem magro e moreno com uma barba escura e sobrancelhas
cerradas. Seu posto era no lugar mais deprimente e solitário que eu já vira. De
cada lado, uma parede de pedra úmida e limosa eliminava a possibilidade de
qualquer vista a não ser uma faixa estreita de céu acima; numa direção se via
apenas a prolongação tortuosa deste grande calabouço, a perspectiva mais curta
no outro sentido terminava numa mortiça luz vermelha e no escuro arco de
entrada de um túnel negro, em cuja massiva arquitetura havia um ar bárbaro, de
tristeza inóspita. Era tão pouco o sol que entrava ali, que o lugar cheirava a
terra úmida e a coisa morta; e o vento frio, canalizado entre as paredes,
provocou em mim um arrepio gélido e a sensação de haver abandonado o mundo
real.
Não se moveu até que eu chegasse tão próximo que poderia tocá-lo com a
mão. Sem tirar, nem mesmo então, seus olhos dos meus, deu um passo atrás e
levantou o braço.
Aquele era um posto solitário para ocupar (eu disse), chamara minha
atenção quando olhara lá de cima. Calculara que seria raro que o visitassem. E
minha visita seria uma raridade não de todo mal vinda, eu esperava. Em mim, que
ele visse apenas um homem que passara toda a vida limitado em seus movimentos e
que, livre afinal, tinha seu interesse despertado para a novidade destes
grandes trabalhos. Foi este o teor do que disse, mas não estou seguro dos
termos que usei, porque além de minha dificuldade em iniciar uma conversação,
havia alguma coisa no homem que me intimidava.
Lançou um estranho olhar na direção da luz vermelha diante da entrada do
túnel e a examinou como se faltasse alguma coisa ali, depois olhou para mim.
Aquela luz era uma de suas responsabilidades? Não era assim?
- O senhor já não sabia que era? - respondeu em voz baixa.
Um pensamento monstruoso me veio à mente, enquanto examinava os olhos
fixos naquele rosto saturnal, aquele era um espírito e não um homem. Desde
então, várias vezes especulei se não seria um doente mental.
Foi minha vez de dar um passo atrás, mas enquanto o fazia, detectei em
seus olhos um medo latente de mim. Isto fez com que desaparecessem meus
receios.
- O senhor me olha - eu disse, forçando um sorriso - como se tivesse
medo de mim.
- Estava na dúvida - respondeu-me - se já o vi antes.
- Onde?
Apontou para a luz vermelha que olhara antes.
- Ali? - perguntei.
Intensamente atento a meus movimentos (sem um som), ele respondeu:
- Sim.
- Meu bom homem, o que eu estaria fazendo ali? Seja como for, posso assegurar-lhe que nunca estive ali. Pode estar certo disto.
- Acho que não - respondeu. - Estou certo que não.
Seus modos se aliviaram, assim como os meus. Respondia às minhas
perguntas com mais facilidade e com palavras bem escolhidas. Tinha muito trabalho
ali? Sim, quer dizer, tinha muita responsabilidade; mas precisão e atenção eram
tudo que isto exigia. Em matéria de trabalho mesmo, trabalho com as mãos, não
havia quase nenhum. A respeito daquelas horas, longas e solitárias, que
pareciam me impressionar tanto, tudo que podia dizer era que a rotina de sua
vida se amoldara a elas, e acabara se acostumando. Aproveitara o tempo para
aprender uma outra língua, se é que podia dizer que a aprendera, já que apenas
a lia, tendo formado suas próprias idéias de como se pronunciavam as palavras.
Estudara frações e decimais, tentara também um pouco de álgebra, mas, desde
garoto, nunca fora bom com números. Era sempre necessário que ficasse ali,
naquela corrente de ar úmido. Não podia nas horas livres sair um pouco de entre
aquelas paredes e subir lá em cima para pegar um pouco de sol? Bem, isto
dependia da época e das circunstâncias. Em certas ocasiões, havia menos tráfego
na linha do que em outras, assim como em certas horas do dia ou da noite.
Quando o tempo estava bom, às vezes, escolhia a ocasião para subir um
pouco acima das sombras, mas como tinha de estar sempre atento à chamada da
campainha elétrica, e nestas horas com redobrada atenção, o alívio não chegava
a ser aquele que eu imaginava.
Levou-me até a sua guarita, onde havia um fogo, uma mesa para um livro
oficial onde devia fazer certas entradas, um aparelho telegráfico, com seu
mostrador e agulhas, e a pequena campainha elétrica de que falara. Quando pedi
que me perdoasse notar que ele era um homem instruído e talvez (sem nenhuma
ofensa implícita) mais instruído do que seria de se esperar de alguém com seu
cargo, observou que casos assim de aparente incongruência não eram raros em
grandes corporações, que ouvira dizer que era assim nas fábricas, na polícia,
mesmo, naquilo que era para muitos um último e desesperado recurso, no
exército; e que sabia ser assim também entre o pessoal de qualquer grande
ferrovia. Fora quando jovem (Será que eu acreditaria? Era difícil para ele
mesmo acreditar nisto, sentado naquela cabana.) estudante de filosofia e
assistira às aulas, mas fora disperso, desperdiçara sua oportunidade, e caíra
para não mais se levantar. Não tinha queixas, fizera sua própria cama, e agora
se deitava nela. Era muito tarde para fazer outra.
Tudo isto que resumi aqui, ele me disse com seu jeito quieto, com os
olhos escuros e graves divididos entre mim e o fogo. Vez ou outra usava a
palavra "Senhor", especialmente enquanto falava de sua juventude, como
para fazer-me entender que não pretendia ser mais do que aquilo que era. Várias
vezes foi interrompido pela pequena campainha elétrica, e teve de ler mensagens
e enviar respostas. Por uma vez teve que sair da guarita para acenar com a
bandeira para um trem que passava e dizer alguma coisa ao maquinista. No
cumprimento de seus deveres, observei que era muito atento e preciso,
interrompendo seu discurso no meio de uma palavra e só voltando a falar depois
de terminar o que tinha a fazer.
Em uma palavra, diria que este era o mais responsável e seguro dos
homens para a função que exercia, não fosse pela circunstância de que duas
vezes, enquanto falava comigo, empalideceu de repente olhando para a campainha
que não tocara, abrindo a porta da cabana (fechada por causa da umidade) para
olhar na direção da luz vermelha junto à entrada do túnel. Nas duas ocasiões,
voltou para o fogo com aquele ar inexplicável que eu notara sem ser capaz de
definir quando o vira de longe.
Quando me levantei para sair, disse a ele:
- O senhor quase me deixa com a impressão de haver encontrado um homem
satisfeito da vida - confesso que disse isto para fazê-lo falar mais.
- Acredito que já fui - respondeu, naquela mesma voz baixa que usara no
início -, mas estou confuso, senhor, estou confuso.
Engoliria as palavras se pudesse. Já as dissera, porém, e eu fui rápido
em pegá-las.
- Com quê? Qual é seu problema?
- Não é fácil explicar. É muito difícil mesmo falar no assunto. Se o
senhor me fizer outra visita, num outro dia, tentarei contar.
- Mas é claro que pretendo fazer outra visita. Quando poderei vir?
- Largo cedo, de manhã, e estarei de volta ao trabalho às dez da noite,
amanhã.
- Virei às onze.
Ele me agradeceu e me acompanhou na saída.
- Vou iluminar-lhe o caminho com minha lâmpada - disse na sua voz baixa
- até a ladeira no barranco. Quando encontrar o caminho não precisa gritar
avisando. Quando chegar lá em cima não precisa gritar se despedindo.
Seus modos faziam que eu sentisse o lugar ainda mais frio, mas disse
apenas:
- Tudo bem.
- E quando vier amanhã à noite, não precisa me chamar gritando. Deixe
que lhe faça uma última pergunta. Por que gritou para mim: "Olá! Você aí
embaixo!" esta noite?
- Sabe Deus por quê! - disse. - Gritei alguma coisa para chamar sua
atenção.
- Não foi alguma coisa, senhor. Foram estas exatas palavras. Eu as
conheço bem.
- Admitindo que foram estas as palavras que usei, eu as disse
provavelmente porque o vi aqui embaixo.
- Por nenhuma outra razão?
- Que outra razão poderia haver?
- O senhor não tem a impressão que lhe foram ditadas de alguma forma
sobrenatural?
- Não.
Desejou-me boa noite e iluminou o caminho com sua lâmpada.
Caminhei pelos trilhos com a sensação desagradável de um trem vindo por trás de mim, até encontrar a ladeira. Foi mais fácil subir do que descer, e voltei ao meu hotel sem qualquer aventura.
PARTE II
Pontual ao meu encontro, na noite seguinte, comecei a descer a ladeira
enquanto nos relógios ao longe soavam as onze horas. Ele me esperava no fim da
íngreme descida com sua lanterna.
- Não chamei por você, como pediu - disse, quando nos aproximamos. -
Posso falar agora?
- Claro, senhor. Boa noite - disse, estendendo a mão.
- Boa noite, senhor - disse eu, e apertei-lhe a mão.
Caminhamos lado a lado até a sua guarita, entramos, fechamos a porta e
nos sentamos junto ao fogo.
- Tomei uma decisão - começou quase num sussurro, quando nos sentamos -
e o senhor não terá de perguntar outra vez o que é que me perturba. Ontem à
noite eu o confundi com outra pessoa e isto me incomoda.
- Este engano?
- Não, o que me perturba é esta outra pessoa com quem o confundi.
- Quem é ela?
- Não sei.
- Parece comigo?
- Não sei, nunca vi seu rosto. Tem o braço esquerdo cobrindo o rosto
enquanto acena com o direito. Acena com força. Assim.
Meus olhos viram o movimento de seu braço e era o movimento de alguém
gesticulando com veemência: "Pelo amor de Deus, saia do caminho."
- Numa noite de lua - disse o homem - estava sentado aqui quando ouvi
uma voz gritar: "Olá! Você aí embaixo!" Levantei-me, olhei pela porta
e vi esta pessoa de pé junto à luz vermelha, perto do túnel, gesticulando como
lhe mostrei. Sua voz parecia rouca de gritar e dizia: "Cuidado! Cuidado!"
E de novo: "Olá! Você aí embaixo! Cuidado! Cuidado!" Peguei minha
lanterna, coloquei-a em vermelho e corri para a figura, gritando: "Qual é
o problema? Que foi que aconteceu? Onde?" Continuou parado ali, junto à
escuridão do túnel. Cheguei tão perto dele que estranhei que continuasse com o
braço cobrindo os olhos. Corri direto para ele, e tinha a mão estendida para
puxar sua manga, quando ele desapareceu.
- Para dentro do túnel - disse eu.
- Não. Corri para dentro do túnel, quinhentos metros. Parei e levantei a
lâmpada acima de minha cabeça, e vi os números que marcavam a distância, e vi a
umidade descendo pelas paredes e pingando do arco. Corri de volta ainda mais
rápido do que quando entrara (porque sentia um pavor mortal naquele
lugar), e procurei por toda parte, com minha própria lanterna vermelha,
junto à outra luz vermelha. Subi depois pela escada de ferro até a galeria
acima da luz, e corri até aqui para telegrafar para ambas as direções:
"Foi dado um alarme. Qual é o problema?" A resposta veio dos dois
lados: "Tudo bem."
Resistindo ao toque de um dedo gelado que lentamente me corria a
espinha, mostrei a ele como esta figura deveria ser apenas uma ilusão de ótica,
pois se sabia que muitos casos semelhantes eram originados por enfermidades dos
delicados nervos que comandam as funções dos olhos, havendo mesmo pessoas que
chegaram a ter consciência do mal que as afetava, comprovado por experiências a
que elas próprias se submetiam.
- Quanto ao grito imaginário - disse eu -, enquanto falamos baixo, ouça
o vento tocando harpa nos fios do telégrafo, dentro deste vale artificial.
Estava tudo muito bem, respondeu, depois de ouvirmos o vento em silêncio
por algum tempo, embora eu achasse que sabia alguma coisa sobre o ruido do
vento nos fios depois de passar, com freqüência, longas noites de inverno ali,
sozinho e acordado. Mas gostaria de lembrar que não terminara ainda.
Pedi que me perdoasse. Lentamente continuou sua narrativa, tocando meu
braço.
- Seis horas depois da "aparição", aconteceu o famoso acidente
nesta linha, e dez horas depois, os mortos e feridos estavam sendo trazidos
para o lugar exato onde a figura estivera.
Senti um desagradável arrepio passar por minha pele, mas esforcei-me o
melhor que pude para lutar contra ele. Não se podia negar - eu respondi - que
se tratava de uma extraordinária coincidência, quase feita de encomenda para
impressioná-lo. Mas era um fato inegável que coincidências extraordinárias
aconteciam continuamente, e isto devia ser levado em consideração, quando
lidamos com casos assim. Embora deva admitir (porque percebi que ele se
preparava para levantar este argumento contra minha linha de raciocinio) que
pessoas de bom senso não costumam acreditar muito em coincidências.
Outra vez pediu licença para dizer que não havia terminado.
Outra vez me desculpei por interrompê-lo.
- Isto - disse ele, outra vez colocando a mão sobre meu braço, e olhando
por sobre o ombro com seus olhos fundos - foi no ano passado. Passados seis ou
sete meses, já me havia recuperado da surpresa e do choque, quando uma manhã,
ao nascer do sol, olhando da porta na direção daquela luz vermelha, vi outra
vez o espectro - disse isto com os olhos fixos em mim.
- Ele gritou?
- Não. Estava em silêncio.
- Acenava com o braço?
- Não, encostava-se no mastro da lâmpada, com as duas mãos sobre o
rosto.
Assim.
Outra vez acompanhei a imitação que fazia. Era a postura de alguém
chorando a morte de um ente querido. Já vi postura assim em imagens de pedra
sobre sepulturas.
- Você foi até onde ele estava.
- Eu entrei e me sentei, em parte para organizar meus pensamentos, em
parte porque a visão me deixara tonto. Quando voltei à porta, a luz do dia
estava alta sobre mim e o fantasma desaparecera.
- E não aconteceu mais nada?
Tocou-me no braço com o indicador, duas ou três vezes, enquanto com a
cabeça acenava que sim.
- Naquele mesmo dia, quando um trem saía do túnel, reparei, através da
janela de um dos vagões, uma confusão de cabeças e de mãos, e alguma coisa
acenava. Vi isto ainda em tempo de sinalizar para o maquinista:
"Pare!" Ele desligou o vapor e freou violentamente, mas o trem
arrastou-se por uns cento e cinqüenta metros ou mais. Corri atrás dele, e, enquanto
corria, ouvi gritos e choros horríveis. Uma linda jovem morrera em um dos
compartimentos. Trouxeram-na para cá e a colocaram deitada neste chão entre
nós.
Num gesto involuntário, afastei a cadeira enquanto olhava as tábuas do
chão que ele apontava, como para si mesmo.
- É verdade, senhor. É verdade. Aconteceu exatamente como estou lhe
contando. Não consegui pensar no que dizer, em qualquer sentido, e senti minha
boca muito seca. A música do vento nos fios do telégrafo acompanhava a
história, como um longo gemido de lamento.
- Agora - ele continuou - preste atenção nisto e julgue o senhor mesmo
se tenho ou não razões para sentir-me assim perturbado. Há uma semana, o
espectro voltou; e desde então, volta e meia aparece ali.
- Na luz?
- Na luz de perigo.
- Que é que ele faz?
- Parece repetir ainda com mais veemência (se isto fosse possível) a
gesticulação com o braço de "Pelo amor de Deus, saia do caminho".
- Não tenho mais paz de espírito - continuou. - Ele me chama por minutos
a fio: "Você aí embaixo! Cuidado! Cuidado!" Fica ali acenando para
mim. Faz soar minha campainha elétrica.
- Ele tocou a campainha, ontem à noite, quando eu estava aqui, e você
foi até à porta?
- Duas vezes.
- Bem, veja - disse eu - como sua imaginação pode enganá-lo. Eu tinha os
olhos na campainha, e meus ouvidos estavam atentos a ela, e, tão certo quanto o
fato de estar vivo, sei que a campainha não tocou naquelas vezes. Nem em
nenhuma outra hora, exceto quando a estação chamou numa comunicação normal e
sem nada de sobrenatural.
- Nunca cometi um engano assim - disse, sacudindo a cabeça. - Nunca
confundi o toque do espectro na campainha com o toque humano. O toque do
fantasma produz uma estranha vibração na campainha que não é provocada por
nenhuma outra coisa, e nem eu disse que podia ser visto por olhos humanos. Não
me espanta que o senhor não o tenha ouvido. Mas eu ouvi.
- E o espectro estava lá quando você olhou?
- Sim, estava lá.
- Nas duas vezes?
- Nas duas vezes - repetiu com firmeza.
- Você viria comigo até a porta, para ver se está lá?
Mordeu seu lábio inferior, como se não quisesse ir, mas levantou-se e
veio. Abri a porta e fiquei ali no degrau com ele a meu lado. Viam-se as duas
paredes de pedra úmida. Viam-se as estrelas por sobre elas.
- Você o vê? - perguntei, observando com atenção seu rosto. Seus olhos
estavam arregalados e assustados, mas não muito mais, talvez, que meus próprios
olhos deviam estar quando olharam naquela direção.
- Não - respondeu. - Não está ali.
- Também não vejo nada - concordei.
Entramos de novo e retomamos nossos assentos. Foi enquanto pensava na
melhor maneira de ampliar esta vantagem (se podemos chamar assim), considerando
que não poderia haver dúvidas entre nós quanto aos
fatos, que me senti na mais fraca das posições.
- Agora - disse ele - o senhor pode entender bem que a questão que me
perturba mais profundamente é a de entender o que o espectro quer dizer.
Disse-lhe que não estava seguro de entender o que queria dizer com isto.
- O que ele estará querendo avisar? - disse, ruminando, com os olhos
perdidos no fogo, e apenas às vezes os voltando para mim. - Qual é o perigo?
Qual é o perigo? Algum perigo paira sobre a linha, e em algum lugar alguma
terrível calamidade vai acontecer. Não há como duvidar depois do que já
aconteceu. É a terceira vez. Mas é cruel a dúvida que me assombra e persegue.
Que é que eu posso fazer?
Tirou o lenço e limpou o suor da testa quente.
- Se telegrafar um aviso de perigo, para qualquer lado, não poderia
justificá-lo -continuou, enxugando as palmas de suas mãos no lenço. - Só
criaria problemas, e não seria de ajuda a ninguém. Pensariam que enlouqueci.
Imagine como seria: Mensagem: "Perigo! Cuidado!" Resposta: "Que
Perigo? Onde?" Mensagem: "Não sei. Mas, pelo amor de Deus, tomem
cuidado!" Eu seria despedido. Que mais poderiam fazer?
Seu sofrimento mental fazia pena. Era uma tortura para alguém de
consciência como aquele homem, oprimido pelo peso insuportável de uma
responsabilidade absurda que envolvia a vida e a morte.
- Quando estive pela primeira sob a luz de perigo - continuou, tirando
seu cabelo negro da testa e passando a mão na têmpora num desespero febril -
por que não me avisou onde aconteceria o acidente? Por que não me disse como
evitá-lo, se podia ser evitado? Quando, na segunda vez, escondeu seu rosto, por
que não me contou: "Ela vai morrer, faça com que fique em casa?" Se
veio, nas duas ocasiões, apenas para me provar que seus avisos eram verdadeiros
e me preparar para o terceiro, por que não me explica agora o que vai
acontecer? E depois, Deus do céu, sou apenas um pobre sinaleiro perdido neste
posto solitário! Por que não ir até alguém em posição de ser acreditado, e com
poder para agir?
Vendo-o neste estado, entendi que tanto para o bem do pobre homem,
quanto para a segurança pública, o que tinha a fazer naquele momento era
acalmar sua mente. Assim, deixando de lado qualquer questão entre nós, quanto à
realidade ou não de tudo aquilo, tentei mostrar-lhe que quem quer que seja
atento às suas responsabilidades não pode ter culpa; que ele era consciente das
suas, ainda que fosse impossível entender as atormentadoras aparições. Neste
sentido, tive melhores resultados do que antes na tentativa de convencê-lo a
abandonar suas convicções. Acalmou-se, as tarefas ocasionais de seu trabalho
começaram a exigir mais de sua atenção, e eu o deixei às duas da manhã.
Ofereci-me para ficar com ele por toda a noite, mas ele não quis aceitar.
Que por mais de uma vez voltei-me para olhar aquela luz vermelha enquanto
subia a ladeira, que aquela luz não me agradava, e que na certa eu dormiria mal
se tivesse que viver junto dela, são coisas que não vejo motivos para negar. Da
mesma forma, não posso negar que a coincidência dos dois acidentes e da jovem
morta não me agradava.
Mas o que mais ocupava meus pensamentos era a indagação de como deveria
agir, depois daquela revelação. Confirmara com meus olhos que aquele homem era
inteligente, vigilante, esforçado e preciso; mas por quanto tempo continuaria
assim, com os nervos naquele estado? Embora numa posição subalterna, seu cargo
era de extrema responsabilidade; será que eu mesmo seria capaz de apostar minha
vida na probabilidade de que ele continuaria a exercê-lo com a precisão
necessária?
Ao mesmo tempo não conseguia me livrar da idéia de que havia algo de
traiçoeiro e desleal em levar a seus superiores na companhia o que ele me confidenciara,
sem antes falar com ele mesmo e propor-lhe uma solução de meio-termo. Resolvi,
assim, sugerir (mantendo enquanto isto em segredo o que me contara) que
fôssemos juntos consultar o melhor médico que houvesse na região, para ouvir
sua opinião. Uma mudança no seu horário de trabalho aconteceria na noite
seguinte, e ele deixaria o serviço uma hora ou duas depois do amanhecer, para
voltar só depois de o sol se pôr. Tinha marcado com ele de voltar a visitá-lo
em função deste novo horário.
O anoitecer do dia seguinte foi lindo, e comecei minha caminhada cedo
para aproveitá-lo ao máximo. O sol não caíra ainda totalmente, quando
atravessei o prado perto do corte da linha. Alongaria meu passeio em uma hora,
disse a mim mesmo, meia hora para ir e meia hora para voltar, e estaria ali
pontual ao encontro na guarita do sinaleiro.
Antes de prosseguir a caminhada, cheguei junto à borda e mecanicamente
olhei para baixo do ponto onde o vira pela primeira vez. Não posso descrever o
terror de que fui tomado, quando vi, próxima à entrada do túnel, a aparição de
um homem, com a manga do braço esquerdo cobrindo os olhos e acenando com
energia o direito.
O inominável horror que me oprimia passou em um momento, porque, num
instante, notei que esta aparição era na verdade um homem, e que havia um
pequeno grupo de outros homens, não muito distante, para quem ele parecia estar
ensaiando aquela gesticulação. A luz de perigo ainda não fora acesa. Contra seu
poste havia uma pequena cabana baixa, completamente nova para mim, feita de
suportes de madeira e lona. Não parecia maior que uma cama.
Com uma forte sensação de que algo estava errado, com um misto de medo e
recriminação, imaginando que algum acidente fatal resultara de haver deixado
aquele homem ali, sem ninguém para supervisionar e corrigir o que fizesse,
desci a ladeira o mais rápido que pude.
- Que foi que aconteceu? - perguntei aos homens.
- Um sinaleiro foi morto esta manhã, senhor.
- Não o homem daquela guarita?
- Sim, senhor.
- Não o homem que conheci?
- O senhor o reconhecerá, se o conheceu - disse o homem que falava pelos
outros, solene, descobrindo a cabeça e levantando uma ponta da lona. - Seu
rosto está bastante decomposto.
- Como aconteceu? Oh! Como aconteceu? - perguntei, virando-me para um e
para outro, enquanto a lona se fechava outra vez.
- Foi atropelado por uma locomotiva, senhor. Ninguém na Inglaterra
conhecia seu trabalho melhor do que ele. Mas de algum jeito ele estava junto
aos trilhos. Era dia claro. Atingira a lanterna e tinha a lâmpada na mão.
Quando a locomotiva saiu do túnel, ele estava de costas para ela. Aquele homem
era o maquinista e estava mostrando como aconteceu. Mostre a este senhor, Tom.
O homem, vestido com uma roupa escura e grosseira, voltou para o lugar
onde estava antes, na entrada do túnel.
- No fim da curva, dentro do túnel, eu o vi de longe como por uma
luneta. Não havia tempo para diminuir a velocidade, e sabia que ele era um
homem cuidadoso. Como ele parecia não ouvir o apito, quando já estávamos quase
sobre ele, eu o deixei de tocar e gritei o mais alto que pude.
- Gritou o quê?
- Disse: "Você aí embaixo! Cuidado! Cuidado! Pelo amor de Deus,
saia do caminho!" Eu estava mudo.
- Ah! Foi uma coisa horrível, senhor! Não parei de gritar com ele.
Coloquei um braço diante dos olhos para não ver e com o outro acenei para ele
até o final.
Sem prolongar a narrativa para lidar com uma de suas curiosas
circunstâncias mais do que com qualquer outra, me permito apenas, ao
terminá-Ia, notar que as coincidências no aviso do maquinista incluíam não
apenas as palavras que assombravam o desafortunado sinaleiro como ele as
repetiu para mim, mas também a expressão que apenas em minha mente eu associara
àquele gesto de braço acenando que ele imitara.
Tradução de Octávio Marcondes
Os 100 Melhores Contos de Crime e Mistério da
Literatura Universal
The
Signalman (Charles Dickens)
Publicado em 25 de abril de 2011por Clarisse
Halloa! Below
there!. Estas são as primeiras palavras deste conto de
Dickens, e elas permeiam toda a narrativa a seguir. The Signalman é a história de um sinaleiro, um
funcionário de uma ferrovia, encarregado de avisar os trens de perigos e passar
outros recados através de um sistema telegráfico. A primeira frase é gritada do
alto de um promontório pelo narrador do conto. Este, libertado de uma vida
entre muros, garante possuir uma curiosidade nova sobre os “grandes trabalhos”.
A primeira reação do sinaleiro não é das melhores.
Ele avista o narrador como uma assombração, e leva algum tempo esboçar uma
reação amistosa. Os dois personagens passam então a conversar. Sobre o trabalho
de sinaleiro, suas responsabilidades, sua educação. O sinaleiro então lhe conta
sua história e confessa estar se sentindo atordoado. No dia seguinte este
confessa ao narrador seus medos. Fala-lhe sobre a aparição que lhe dá sinais de
perigo os quais não consegue decifrar corretamente, e que parecem vir sempre
antes de grandes tragédias. É uma história arrepiante e para lá de ambígua.
Dickens é especialista em ambientar suas
narrativas, e consegue instigar no leitor, em pouquíssimas palavras, o
sentimento de solidão e morte que emana da estação do sinaleiro. Desde o
primeiro momento o leitor é levado a duvidar de cada palavra da narrativa. Dada
a reação do sinaleiro, seus medos, o espectro que o assombra (fisicamente
parecido com o narrador), cada detalhe pode ser interpretado de várias
maneiras.
Sem saber em que confiar, o leitor é levado ao
assombro pela história do funcionário, inquirido pelo narrador, que procura
sempre racionalizar quaisquer indícios sobrenaturais, usando os argumentos
bastante conhecidos dos céticos: É uma alucinação passageira, foi o vento, é
pelo fato de ficar sozinho à noite. Mas o sinaleiro parece um homem razoável,
cioso de suas responsabilidades, são. Sua angústia vem menos do fantasma e mais
pelo fato de não poder evitar o mal causado. Sem querer, o narrador acaba por
se sentir também receoso da aparição, a ponto de perder o sono.
É difícil descrever minha reação ao ler o conto, o
sentimento de frio na espinha, a sensação de solidão passada pela história do
sinaleiro, a aparente falta de motivo do narrador estar lá e passar tanto tempo
com ele. Mil teorias passaram pela minha cabeça, e cada uma foi revista e
negada para ser substituída por outra. O final é um gigante ponto de
interrogação, algo sempre interessante quando tratamos de histórias
fantásticas. Dickens delegou ao leitor a explicação dos acontecimentos, ou se
eles de fato ocorreram, ou quem estava vivo ou morto no final desta história.
É daqueles contos que nos acompanham muito tempo
depois de lidos, nos faz buscar um motivo, uma explicação razoável – científica
ou sobrenatural – para o acontecimento. Uma bela história de fantasmas
The Signalman - Charles Dickens BBC GHOST
STORY FOR CHRISTMAS 1976
Classic BBC adaptation of The
Signalman by Charles Dickens. Starring Denholm Elliott. 1976.
Dr. Guido Palomba - PÂNICO - 29/01/2020 - AO
VIVO
Referências
https://ichef.bbci.co.uk/images/ic/640x360/p01gmbf0.jpg
http://aneste.org/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=27
https://construindovictoria.wordpress.com/2011/04/25/the-signalman-charles-dickens/
https://youtu.be/XL_4VHxdXng
https://www.youtube.com/watch?v=XL_4VHxdXng
https://youtu.be/AXNuV-SH_yU
https://www.youtube.com/watch?v=AXNuV-SH_yU
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