JACK LONDON (1876-1916 | Estados
Unidos)
"Então as mandíbulas se fecharam, nheco, bem assim."
"Então as mandíbulas se fecharam, nheco, bem assim."
Um dos escritores mais populares do mundo, o
americano da Califórnia Jack London é bem conhecido por seus romances de
aventura (Caninos Brancos, O Chamado do Vento e outros tantos) e por sua vida
aventureira, desde os 15 anos, percorrendo os mares do planeta. Seus contos se
justificam nesta antologia por pertencerem a esta irmã mais velha do romance
policial, que é a tradicional literatura de aventura. Jack London está presente
em várias antologias de mistério pelo mundo afora. Ele morreu aos quarenta
anos.
Ele tinha um olhar sonhador e
distante, e sua voz triste, insistente, cortês como a de uma criada, parecia a
plácida personificação de alguma melancolia arraigada. Ele era o Homem
Leopardo, embora não tivesse essa aparência. Sua ocupação, da qual vivia, era
aparecer em uma jaula de leopardos que se exibiam diante de grandes platéias e
audiências vastas e excitar essas platéias por certas demonstrações de nervos
de aço pelas quais seus empregadores o recompensavam em escala proporcional à
excitação produzida.
Como digo, ele não parecia um
leopardo. Tinha quadris e ombros estreitos e era anêmico, embora não parecesse
tão oprimido pelo desânimo quanto por uma doce e gentil tristeza, cujo peso era
também dócil e gentilmente suportado. Durante uma hora eu tentara tirar dele
uma história, mas parecia faltar-lhe imaginação. Para ele não havia qualquer
romance em sua magnífica carreira, nenhuma ação de ousadia, nenhuma excitação -
nada além de uma monotonia cinzenta e enfado infinito.
Leões? Oh, ele havia lutado com eles.
Não era nada. Tudo o que você tinha que fazer era ficar sóbrio. Qualquer um
poderia bater num leão com uma vareta comum para que ele ficasse parado. Havia
lutado com um por quase meia hora. Era só bater-lhe no focinho a cada vez que
ele avançasse e, quando ele ficava ardiloso e avançava com a cabeça baixa, a
coisa a fazer era esticar a perna. Quando ele fosse agarrar a perna, você a
puxava para trás e batia-lhe novamente no focinho.
Com seu olhar distante e fala
tranqüila, mostrou-me suas cicatrizes. Havia muitas, e uma recente onde uma
tigresa tentara arrancar-lhe o ombro e afundara os dentes até o osso. Eu podia
ver os rasgões cuidadosamente remendados no paletó que ele usava. Seu braço
direito, do cotovelo para baixo, parecia ter passado por uma debulhadora, tal o
estrago feito por garras e caninos. Mas não era nada, disse ele, só as velhas
feridas o incomodavam um pouco quando chegava a época das chuvas.
De repente, seu rosto iluminou-se com
uma lembrança, porque ele estava realmente tão ansioso para me contar uma
história quanto eu para ouvi-la.
- Suponho tenha ouvido falar do
domador de leões que era odiado por outro homem... - disse ele.
Fez uma pausa e olhou pensativo para
um leão doente na jaula em frente.
- Está com dor de dentes - explicou. -
Bem, o grande número do domador de leões para a platéia era botar a cabeça dele
na boca de um leão. O homem que o odiou assistia a todos os espetáculos na
esperança de algum dia ver aquele leão fechar a boca. Ele seguiu o show por
todo o país. Os anos passaram e ele envelheceu, e o domador de leões
envelheceu, e o leão envelheceu. E afinal um dia, sentado na primeira fila, ele
assistiu ao que vinha esperando. O leão fechou a boca, e não houve necessidade
alguma de se chamar um médico.
O Homem Leopardo olhou despreocupadamente
para suas unhas de um modo que teria sido decisivo se não fosse tão triste.
- Agora, isso é o que eu chamo de
paciência - continuou ele -, é meu estilo. Mas não era o estilo de um sujeito
que conheci. Ele era um engolidor de espadas e prestidigitador francês,
baixinho, magro e mirrado. Chamava-se DeVille e tinha uma esposa bonita. Ela
trabalhava no trapézio e costumava mergulhar do telhado numa rede, descendo
rodopiando da maneira mais bonita que puder imaginar
"DeVille tinha reações rápidas,
tão rápidas quanto sua mão, e a mão dele era tão rápida quanto a pata de um
tigre. Um dia, porque o diretor do circo chamou-o de comedor de rãs, ou algo
assim e talvez um pouco pior, ele o empurrou contra a parede de pinho macio que
usava em seu número de atirar facas, tão depressa que o diretor não teve tempo
para pensar, e lá, diante da platéia, DeVille manteve o ar em fogo com suas
facas, afundando-as na madeira em volta do diretor, tão perto que atravessaram
suas roupas e a maioria beliscou-lhe a pele.
"Os palhaços tiveram que arrancar
as facas para soltá-lo, porque ele estava firmemente pregado. Assim, correu a
notícia para que se tomasse cuidado com DeVille, e ninguém ousou ser algo mais do
que ligeiramente cortês com sua mulher. E ela era uma biscateira muito da
sonsa, só que todas as mãos tinham medo de DeVille.
"Mas havia um homem, Wallace, que
tinha medo de nada. Ele era o domador de leões e fazia o mesmo número de pôr a
cabeça na boca do leão. Ele a punha na boca de qualquer um deles, embora
preferisse Augustus, um animal grande e de boa índole, no qual sempre se podia
confiar.
"Como eu estava dizendo, Wallace
- nós o chamávamos "Rei" Wallace - não tinha medo de coisa alguma,
viva ou morta. Ele era um rei e ninguém tinha dúvidas. Eu o vi, bêbado, numa
aposta, entrar na jaula de um leão que tinha ficado perigoso e, sem uma vara,
dar fim nele. Fez isso simplesmente dando-lhe um soco no focinho.
"A Sra. DeVille. .. "
Por causa de um alvoroço atrás de nós,
o Homem Leopardo se virou. Era uma jaula dividida, e um macaco, metendo a mão
pelas barras e ao redor da divisória, tivera sua pata presa por um grande lobo
cinza que estava tentando arrancá-Ia com toda a força. O braço parecia ir-se
esticando mais e mais, como um elástico grosso, e os companheiros do infeliz
faziam uma algazarra terrível. Não havia um zelador por ali, então o Homem
Leopardo deu alguns passos, bateu no lobo com um golpe certeiro no focinho com
a pequena bengala que carregava e voltou com um sorriso tristemente apologético
para completar sua frase inacabada como se não tivesse havido qualquer
interrupção.
- ... olhou para o Rei Wallace e o Rei
Wallace olhou para ela, enquanto DeVille os olhava feio. Nós prevenimos
Wallace, mas foi em vão. Ele riu de nós, como riu de DeVille um dia quando
enfiou a cabeça dele num balde de cola porque ele queria lutar.
"DeVille ficou num estado
lamentável - eu ajudei a limpá-lo, mas ele estava frio como gelo e não fez
qualquer tipo de ameaça. Mas eu vi em seus olhos um brilho que tinha visto
muitas vezes nos olhos de animais selvagens, e saí de meus cuidados para dar a
Wallace um último aviso... Ele riu, mas não olhou tanto na direção da Senhora
DeVille depois disso.
"Vários meses se passaram. Nada
havia acontecido e eu estava começando a pensar que tudo não passara de um
susto. Estávamos no Oeste naquela época, apresentando-nos em Frisco. Era o
espetáculo da tarde, e a grande tenda estava cheia de mulheres e crianças,
quando fui atrás de Denny Vermelho, o encarregado-chefe que tinha saído com meu
canivete.
"Passando por uma das barracas
que serviam de camarim, dei uma olhada por um buraco na lona para ver se o
localizava. Ele não estava lá, mas bem na minha frente estava o Rei Wallace, de
ceroulas, esperando sua vez de ir para a jaula dos leões amestrados. Ele
assistia e se divertia muito com uma discussão entre um casal de trapezistas.
Todas as outras pessoas na barraca do camarim assistiam à mesma coisa, com a
exceção de DeVille, que percebi estar encarando Wallace com indisfarçável ódio.
Wallace e os outros estavam ocupados demais para perceber isto ou o que se
seguiu.
"Mas eu vi pelo buraco na lona.
DeVille tirou o lenço do bolso, fez como se secasse com ele o suor do rosto (o
dia estava quente) e, ao mesmo tempo, caminhou para trás de Wallace. Ele não
parou, mas com um volteio do lenço deteve-se bem na soleira da porta, de onde
virou a cabeça ao passar, e deu uma rápida olhada para trás. O olhar me
perturbou na ocasião, porque não vi nele apenas ódio, vi também triunfo.
"DeVille vai ficar à espreita, eu
disse a mim mesmo, e eu realmente respirei aliviado quando o vi sair pela
entrada do circo e subir a bordo de um trem elétrico para o centro da cidade.
Alguns minutos depois eu estava na grande lona, onde revistava o Denny
Vermelho. O Rei Wallace fazia seu número e dominava a platéia enfeitiçada. Ele
tinha um ar especialmente perverso e manteve os leões agitados até que
estivessem todos rosnando, quer dizer, todos menos o velho Augustus, que era
simplesmente gordo, preguiçoso e velho demais para ficar excitado com o que
quer que fosse.
"Finalmente Wallace fez estalarem
os joelhos do leão velho com seu chicote e colocou-o em posição. O velho
Augustus, piscando com benevolência, abriu a boca e para lá foi a cabeça de
Wallace. Então as mandíbulas se fecharam, nheco,
bem assim."
O Homem Leopardo sorriu de um modo
gentilmente melancólico e o olhar distante voltou a seus olhos.
- E este foi o fim do Rei Wallace -
continuou ele em sua voz triste e baixa. - Depois que a excitação baixou,
esperei minha oportunidade, abaixei-me e cheirei a cabeça de Wallace. Então
espirrei.
- E... e era... ? - indaguei com uma
avidez hesitante.
- Rapé - que DeVille derrubou no
cabelo dele na barraca do camarim. O velho Augustus nunca pretendeu fazer
aquilo. Ele só espirrou.
Tradução de Celina Portocarrero
Nenhum comentário:
Postar um comentário