terça-feira, 7 de maio de 2019

20. A MATILHA DO DESTINO


“(...) Os sabujos do destino pareciam ter-se refreado por um breve instante. (...)”

SAKI (1870-1916 | Inglaterra)

Este inglês nascido na Birmânia, Hector Hugh Munro, com o pseudônimo de Saki, foi o contista e jornalista mais conhecido da Inglaterra vitoriana. Humorista de costumes, ele também experimentou outros tipos de histórias curtas, como o fantástico e o policial, caso deste The Hounds of Fate, que saiu entre nós no número 4 da revista Ficção, e que mostra sua maestria com o conto, sempre rematado com um final inesperado ou irônico.

À luz crepuscular de uma cinzenta tarde de outono Martin Stoner trambolhava ao longo de azinhagas lamacentas e caminhos com profundas cicatrizes de rodas de carroças que o levavam não sabia exatamente para onde. Em algum lugar à sua frente, sonhava, estava o mar, e era em direção ao mar que seus passos pareciam dirigir-se com persistência; mal teria sido capaz de explicar por que se encarniçava pesadamente para esse alvo, a menos que estivesse possuído pelo mesmo instinto que orienta um veado acossado rumo ao penhasco no momento extremo.

Em seu caso, os sabujos do destino estavam por certo pressionando-o com indormida insistência; fome, fadiga e desesperado desalento tinham-lhe nublado o cérebro, e ele mal podia reunir energia suficiente para se indagar que impulso subjacente o impelia para diante. Stoner era um desses infelizes indivíduos que parecem haver tentado de tudo; uma indolência e improvidência naturais sempre intervinham para arruinar qualquer oportunidade de êxito mesmo moderado, e agora ele tinha esticado o cabresto até o fim, e não havia nada mais para tentar. O desespero não acordara nele qualquer reserva adormecida de energia; pelo contrário, um torpor mental cresceu acompanhando a crise de seu fado. Com a roupa do corpo, um tostão no bolso, e sem um único amigo ou conhecido a quem recorrer, sem nenhum plano a não ser encontrar uma cama para a noite ou uma refeição para o amanhã, Martin Stoner arrastava-se apático, avançando por entre sebes úmidas e sob árvores gotejantes, sua mente quase um vazio, exceto a informação subconsciente de que à sua frente, num ponto qualquer, se estendia o mar. Outra consciência se introduzia de quando em quando - o conhecimento de que estava miseravelmente faminto. Após um certo tempo fez alto diante de um portão aberto que conduzia a um jardim espaçoso e um tanto abandonado; havia pouco sinal de vida em torno, e a casa da fazenda no extremo do jardim parecia fria e inóspita. Uma chuva fininha, no entanto, caía insistente, e Stoner calculou que talvez ali pudesse obter abrigo por alguns minutos e comprar um copo de leite com sua derradeira moeda. Penetrou lenta e pausadamente no jardim e seguiu um estreito caminho lajeado, até uma porta lateral. Antes que tivesse tempo de bater, a porta abriu-se, e um velho curvado e seco postava-se de lado à entrada como se para deixá-lo passar.

- Posso entrar por causa da chuva? - Stoner começou, mas o velho o interrompeu.

- Entre, Mestre Tom. Sabia que o senhor haveria de voltar um dia destes. Stoner ultrapassou aos trancos a soleira e ficou de pé, fixando o outro sem nada compreender.

- Sente-se enquanto lhe arranjo qualquer coisa para jantar - disse o velho com ânsia.

As pernas de Stoner cederam a um extremo esgotamento e ele tombou inerte numa poltrona que fora empurrada até ele. No minuto seguinte estava devorando carne fria, queijo e pão que tinham sido colocados a seu lado.

- O senhor mudou um pouco nesses quatro anos - prosseguiu o velho, numa voz que para Stoner soava como num sonho, muito longe e inconseqüente -, mas vai nos encontrar um bocado mudados, vai. Não há mais ninguém por aqui, igual como quando foi embora: ninguém a não ser eu e sua velha tia. Vou lá contar para ela que o senhor veio; ela não vai querer ver o senhor, mas vai deixar que fique aqui agora mesmo. Ela sempre disse que se o senhor voltasse poderia ficar, mas que nunca lhe poria os olhos em cima ou falaria com o senhor de novo.

O velho colocou uma caneca de cerveja na frente de Stoner e então se foi coxeando por um longo corredor. O chuvisco mudara para um furioso aguaceiro que açoitava violentamente a porta e as janelas. O vagabundo pensou, com um calafrio, em como estaria a praia debaixo desse dilúvio, com a noite avançando por todos os lados. Acabou a comida e a cerveja e ficou sentado calmamente, cabeceando e esperando o retorno de seu estranho hospedeiro. À medida que o pêndulo avoengo tiquetaqueava os minutos lá num canto, uma nova esperança começou a tremeluzir e crescer na mente do homem; era tão só a ânsia por comida e por um descanso de minutos que se expandira num anelo de encontrar abrigo noturno sob este teto aparentemente hospitaleiro. Um ruído de passos no corredor anunciou a volta do velho criado da fazenda.

- A velha Senhora não quer ver o senhor, mestre Tom, mas diz que pode ficar. Isso está certo, já que a fazenda vai ser sua quando ela for para debaixo da terra. Tratei de acender um fogo em seu quarto, Mestre Tom, e a criada pôs lençóis limpos na cama. Não vai encontrar mudanças lá em cima. Acho que está cansado, não quer ir pra lá agora?

Sem uma palavra Martin Stoner pôs-se de pé pesadamente e seguiu seu anjo da guarda pelo corredor, por uma escada rangente acima, através outro corredor, até um quarto espaçoso iluminado por uma lareira de alegre brilho. Não havia mais do que uns poucos móveis, simples, antigos e de boa qualidade; um esquilo empalhado numa redoma e um calendário de quatro anos atrás pendurado na parede eram os únicos sinais de decoração. Mas Stoner nada mais via senão a cama, e quase não aguentou arrancar as roupas antes de rolar numa exaustão deliciada em suas confortáveis profundezas. Os sabujos do destino pareciam ter-se refreado por um breve instante.

Na luz fria da manhã Stoner riu sem júbilo, ao perceber lentamente a posição em que se encontrava. Quem sabe pudesse agarrar- um pouco de comida apoiado em sua parecença com este outro vida-torta ausente, e escapulir-se antes de alguém descobrir a fraude que lhe fora imposta. Na sala do andar térreo encontrou o velho encurvado com um prato de bacon e ovos fritos preparados para o desjejum de "Mestre Tom", enquanto uma velha empregada de feições duras trazia um bule de chá e vertia o líquido numa chávena. Quando sentou-se à mesa um pequeno spaniel apareceu, fazendo-lhe avanços amistosos.

- É o filhote da velha Bowker - explicou o velho, a quem a criada de feições duras se dirigia como George. - Ela era louca pelo senhor. Nunca mais foi a mesma depois que o senhor partiu para a Austrália. Ela morreu há mais ou menos um ano. Esse é o filhote dela.

Stoner não conseguiu lamentar-lhe o passamento; não haveria quem sobrepujasse a cachorra como testemunha de identificação.

- Vai sair a cavalo, Mestre Tom? - foi a seguinte proposição surpreendente do velho. - Temos um belo ruão que aceita bem uma sela. O velho Biddy está ficando cansado, embora ainda dê, mas vou aprontar o ruãozinho e trazer aqui na porta.

- Não tenho roupa de montaria - gaguejou o pária, quase rindo ao contemplar suas roupas no último fio.

- Mestre Tom - retrucou com energia, quase ofendido, o velho -, todas as suas coisas estão como as deixou. É só arejá-las um pouco diante da lareira e estarão bem. Vai ser uma boa distração, galopar um pouco e caçar umas aves de quando em quando. O senhor vai sentir que a gente das redondezas o olha com cara de poucos amigos. Eles não esqueceram nem perdoaram. Ninguém virá procurá-lo, de modo que é melhor se distrair como puder com o cavalo e o cachorro. São boa companhia, também.

O velho George foi-se capengando dar ordens, e Stoner, sentindo-se cada vez mais como num sonho, subiu para inspecionar o guarda-roupa do "Mestre Tom". Cavalgar era um dos prazeres mais caros a seu coração, e o pensamento de que nenhum dos companheiros pregressos de Tom provavelmente o favoreceria com uma inspeção mais de perto representava alguma proteção contra a descoberta imediata. Enquanto o intruso se enfiava numas roupas de montaria que lhe caíam toleravelmente, seu cérebro se perguntava de maneira vaga que tipo de delito o Tom genuíno cometera para colocar contra ele toda a gente das redondezas. O som surdo de patadas rápidas e impacientes na terra lamacenta cortou cerce suas especulações. O cavalo ruão tinha sido trazido para a porta lateral.

- Conversa de mendigos a cavalo - pensou Stoner de si-para-si, enquanto trotava rápido pelas azinhagas lamacentas por onde trambolhara na véspera como um pária nas últimas; e então deixou de lado indolentemente as reflexões e entregou-se ao prazer de um elegante meio-galope ao longo do relvado que cobria a beira de um trecho de estrada. Junto a um portão aberto deteve a marcha para permitir que duas carroças entrassem num pasto. Os rapazes que conduziam as carroças acharam tempo para olhá-lo demoradamente, e quando passava ouviu uma voz excitada anunciar: "É o Tom Prike! Conheci logo; mostrando-se de novo por aqui, não é?"

Evidentemente a semelhança que se impusera em ambiente fechado a um velho senil era bastante boa para enganar olhos mais jovens a curta distância.

No curso do passeio pôde confirmar com ampla evidência a afirmação de que o povo não esquecera nem perdoara o crime passado que lhe chegava como um legado do Tom ausente. Olhares rancorosos, murmúrios e cotoveladas no parceiro saudavam-no sempre que topava com seres humanos: o "filhote de Bowker", trotando tranqüilo a seu lado, parecia o único elemento de amistosidade num mundo hostil.
Ao desmontar frente à porta lateral viu de relance uma descarnada mulher idosa espiando-o por detrás de uma cortina no andar superior. Sem dúvida era sua tia por adoção.

Enquanto ingeria o farto almoço que esperava por ele, Stoner foi afinal capaz de passar em revista as possibilidades de sua extraordinária situação: o verdadeiro Tom, após quatro anos de ausência, aparecer de repente na fazenda, ou uma carta dele chegar a qualquer momento; ou ainda, na qualidade de herdeiro da fazenda, o falso Tom ser chamado a assinar documentos, o que seria uma exigência embaraçosa; ou a chegada de parente que não imitasse a atitude da tia. Tudo isso significaria desmascaramento ignominioso. Por outro lado, a alternativa era o céu aberto e os caminhos de lodo que levavam ao mar. A fazenda oferecia-lhe, de qualquer forma, um refúgio temporário contra o desamparo; trabalhar na terra era uma das muitas coisas que "tentara", e seria capaz de fazer algum trabalho em troca da hospitalidade a que tinha tão pouco direito.

- O senhor vai querer carne de porco fria para o jantar? - indagou a criada de rosto severo, tirando a mesa. - Ou quer que esquente?

- Quente, com cebolas - disse Stoner.

Foi a primeira vez na vida que tomou uma decisão rápida. E ao dar a ordem percebeu que pretendia ficar.

Stoner mantinha-se rigidamente naquelas partes da casa que pareciam a ele ter-lhe sido destinadas por um tratado tácito de delimitação. Quando tomava parte no trabalho rural era como alguém que recebe ordens, e nunca os iniciava. O velho George, o cavalo ruão e o filhote de Bowker eram seus únicos companheiros num mundo de outro modo geladamente silencioso e hostil. A dona da fazenda ele nunca via. Uma vez, ao saber que ela fora à igreja, fez uma incursão furtiva à sala de visitas da fazenda tentando obter algum conhecimento fragmentário sobre o jovem cujo lugar usurpara, e cuja má reputação pusera nos ombros. Havia muitas fotografias penduradas nas paredes, ou enfiadas em porta-retratos cheios de enfeites, mas a parecença buscada não estava entre eles. Por fim, num álbum meio escondido, encontrou o que queria. Havia uma série completa, rotulada "Tom", uma criança gorducha de três anos, num traje fantástico, um menino desajeitado de seus doze anos empunhando uma raquete de cricket como se relutasse, um jovem muito bonito de dezoito, cabelos macios e bem repartidos, e finalmente um moço com uma expressão atrevida e um tanto brutal. Stoner olhou este último retrato com particular interesse, a semelhança com ele era irrecusável.

Tentou sem descanso saber dos lábios do velho George, que era bastante palrador sobre a maioria dos assuntos, alguma coisa da natureza da ofensa que o marcara como uma criatura a ser evitada e odiada por seus semelhantes.

- O que é que o pessoal daqui diz a meu respeito? - perguntou um dia ao se dirigirem para casa, tendo trabalhado num campo mais distante.

O velho abanou a cabeça.

- Estão contra o senhor, mortalmente contra. Ai, isto é um negócio muito triste, muito triste.

E nunca conseguiu que dissesse algo mais esclarecedor.

Numa tarde clara e gelada, poucos dias antes das festas de Natal, Stoner estava de pé a um canto do pomar, de onde alcançava uma vista ampla dos campos. Aqui e ali podia perceber os pontos faiscantes do brilho de um candeeiro ou vela que lhe falavam de lares humanos onde a boa vontade e o regozijo da época se faziam sentir. Através dele estava a casa da fazenda, severa e silente, onde ninguém jamais ria, onde mesmo uma discussão teria parecido alegre. Stoner ouviu seu nome adotado dito num tom de extrema ansiedade. Instintivamente soube que algo funesto acontecera, e numa rápida revulsão de ponto de vista, seu santuário tornou-se a seus olhos um lugar de paz e contentamento, do qual temia ser expulso.

- Mestre Tom - disse o velho num cochicho áspero -, o senhor tem de escapulir quietinho daqui, por uns dias. Michael Ley está de novo na vila e jura que lhe dá um tiro se cruzar com o senhor. E dá mesmo, há morte em seu olhar. Desapareça acobertado pela noite, só por uma semana ou pouco mais, ele não vai ficar mais tempo aqui.

- Mas para onde é que vou? - gaguejou Stoner, que fora infectado pelo óbvio terror do velho.

- Siga pela costa até Punchford e fique escondido lá. Quando Michael se tiver ido na certa, vou montado no ruão para Punchford, ao Dragão Verde; quando o senhor vir o cavalo no estábulo do Dragão Verde, é sinal de que pode voltar.

- Mas... - começou Stoner hesitante.

- Dinheiro não é problema - disse o outro; - a velha Senhora concorda que é melhor fazer como eu digo, e me deu isto.

Stoner sentiu-se mais embusteiro do que nunca quando, naquela noite, esgueirou-se pelo portão dos fundos da fazenda tendo no bolso o dinheiro da velha. O velho George e o filhote de Bowker, de pé no portão, olhavam-no num silencioso adeus. Mal conseguiu sonhar com o retorno, e sentiu um nó na garganta ao pensar nos dois humildes amigos que esperariam ansiosos sua volta. Algum dia, quem sabe, o verdadeiro Tom voltaria, e haveria um terrível assombro entre aquela gente simples da roça buscando a identidade do hóspede nebuloso que tinham abrigado sob seu teto. Por seu próprio destino não sentia ansiedade imediata; três libras dão para pouca coisa nesse mundo, mas para um homem que contara seus haveres em tostões parecem um bom ponto de partida. A fortuna manhosa se alterara gentilmente quando de sua última caminhada por essas azinhagas como um aventureiro desesperado, e ainda podia haver oportunidade de encontrar trabalho e começar outra vez; à medida que se afastava da fazenda ia ficando mais animado. Havia uma sensação de alívio em reconquistar a identidade perdida e cessar de ser o fantasma inquieto de outro. Mal se deu ao trabalho de especular sobre o inimigo implacável que surgira de nenhures em sua vida; já que essa vida era agora atrás dele um item irreal, o resto pouca diferença fazia. Pela primeira vez em muitos meses começou a cantarolar um refrão descuidado e alegre. Então, eis que surge da sombra de um frondoso carvalho um homem com uma espingarda. Não houve necessidade de se perguntar quem poderia ser; o luar caindo-lhe sobre o rosto branco revelou um brilho de ódio humano como Stoner, nos altos e baixos de suas andanças, nunca vira antes. Ele pulou para o lado num esforço desesperado de atravessar a cerca que bordeava o caminho, mas os galhos grossos o impediram. A matilha do destino esperara por ele naquelas azinhagas estreitas, e desta vez não seria em vão.

Tradução de Eglê Malheiros




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Story title: The Hounds of Fate
Author: Saki



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Referências

https://www.youtube.com/watch?v=jnrPMTrAuMU
https://youtu.be/jnrPMTrAuMU
https://www.youtube.com/watch?v=h5FcGd4luz4
https://youtu.be/h5FcGd4luz4

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