“(...) Os sabujos do destino pareciam
ter-se refreado por um breve instante. (...)”
SAKI (1870-1916 | Inglaterra)
Este inglês nascido na Birmânia, Hector Hugh
Munro, com o pseudônimo de Saki, foi o contista e jornalista mais conhecido da
Inglaterra vitoriana. Humorista de costumes, ele também experimentou outros
tipos de histórias curtas, como o fantástico e o policial, caso deste The
Hounds of Fate, que saiu entre nós no número 4 da revista Ficção, e que mostra
sua maestria com o conto, sempre rematado com um final inesperado ou irônico.
À luz crepuscular de uma cinzenta
tarde de outono Martin Stoner trambolhava ao longo de azinhagas lamacentas e
caminhos com profundas cicatrizes de rodas de carroças que o levavam não sabia
exatamente para onde. Em algum lugar à sua frente, sonhava, estava o mar, e era
em direção ao mar que seus passos pareciam dirigir-se com persistência; mal
teria sido capaz de explicar por que se encarniçava pesadamente para esse alvo,
a menos que estivesse possuído pelo mesmo instinto que orienta um veado
acossado rumo ao penhasco no momento extremo.
Em seu caso, os sabujos do destino
estavam por certo pressionando-o com indormida insistência; fome, fadiga e desesperado
desalento tinham-lhe nublado o cérebro, e ele mal podia reunir energia
suficiente para se indagar que impulso subjacente o impelia para diante. Stoner
era um desses infelizes indivíduos que parecem haver tentado de tudo; uma
indolência e improvidência naturais sempre intervinham para arruinar qualquer
oportunidade de êxito mesmo moderado, e agora ele tinha esticado o cabresto até
o fim, e não havia nada mais para tentar. O desespero não acordara nele
qualquer reserva adormecida de energia; pelo contrário, um torpor mental
cresceu acompanhando a crise de seu fado. Com a roupa do corpo, um tostão no
bolso, e sem um único amigo ou conhecido a quem recorrer, sem nenhum plano a
não ser encontrar uma cama para a noite ou uma refeição para o amanhã, Martin
Stoner arrastava-se apático, avançando por entre sebes úmidas e sob árvores
gotejantes, sua mente quase um vazio, exceto a informação subconsciente de que
à sua frente, num ponto qualquer, se estendia o mar. Outra consciência se
introduzia de quando em quando - o conhecimento de que estava miseravelmente
faminto. Após um certo tempo fez alto diante de um portão aberto que conduzia a
um jardim espaçoso e um tanto abandonado; havia pouco sinal de vida em torno, e
a casa da fazenda no extremo do jardim parecia fria e inóspita. Uma chuva
fininha, no entanto, caía insistente, e Stoner calculou que talvez ali pudesse
obter abrigo por alguns minutos e comprar um copo de leite com sua derradeira
moeda. Penetrou lenta e pausadamente no jardim e seguiu um estreito caminho
lajeado, até uma porta lateral. Antes que tivesse tempo de bater, a porta
abriu-se, e um velho curvado e seco postava-se de lado à entrada como se para
deixá-lo passar.
- Posso entrar por causa da chuva? -
Stoner começou, mas o velho o interrompeu.
- Entre, Mestre Tom. Sabia que o
senhor haveria de voltar um dia destes. Stoner ultrapassou aos trancos a
soleira e ficou de pé, fixando o outro sem nada compreender.
- Sente-se enquanto lhe arranjo
qualquer coisa para jantar - disse o velho com ânsia.
As pernas de Stoner cederam a um
extremo esgotamento e ele tombou inerte numa poltrona que fora empurrada até
ele. No minuto seguinte estava devorando carne fria, queijo e pão que tinham
sido colocados a seu lado.
- O senhor mudou um pouco nesses
quatro anos - prosseguiu o velho, numa voz que para Stoner soava como num
sonho, muito longe e inconseqüente -, mas vai nos encontrar um bocado mudados,
vai. Não há mais ninguém por aqui, igual como quando foi embora: ninguém a não
ser eu e sua velha tia. Vou lá contar para ela que o senhor veio; ela não vai
querer ver o senhor, mas vai deixar que fique aqui agora mesmo. Ela sempre
disse que se o senhor voltasse poderia ficar, mas que nunca lhe poria os olhos
em cima ou falaria com o senhor de novo.
O velho colocou uma caneca de cerveja
na frente de Stoner e então se foi coxeando por um longo corredor. O chuvisco
mudara para um furioso aguaceiro que açoitava violentamente a porta e as
janelas. O vagabundo pensou, com um calafrio, em como estaria a praia debaixo
desse dilúvio, com a noite avançando por todos os lados. Acabou a comida e a
cerveja e ficou sentado calmamente, cabeceando e esperando o retorno de seu
estranho hospedeiro. À medida que o pêndulo avoengo tiquetaqueava os minutos lá
num canto, uma nova esperança começou a tremeluzir e crescer na mente do homem;
era tão só a ânsia por comida e por um descanso de minutos que se expandira num
anelo de encontrar abrigo noturno sob este teto aparentemente hospitaleiro. Um
ruído de passos no corredor anunciou a volta do velho criado da fazenda.
- A velha Senhora não quer ver o
senhor, mestre Tom, mas diz que pode ficar. Isso está certo, já que a fazenda
vai ser sua quando ela for para debaixo da terra. Tratei de acender um fogo em
seu quarto, Mestre Tom, e a criada pôs lençóis limpos na cama. Não vai
encontrar mudanças lá em cima. Acho que está cansado, não quer ir pra lá agora?
Sem uma palavra Martin Stoner pôs-se
de pé pesadamente e seguiu seu anjo da guarda pelo corredor, por uma escada
rangente acima, através outro corredor, até um quarto espaçoso iluminado por
uma lareira de alegre brilho. Não havia mais do que uns poucos móveis, simples,
antigos e de boa qualidade; um esquilo empalhado numa redoma e um calendário de
quatro anos atrás pendurado na parede eram os únicos sinais de decoração. Mas
Stoner nada mais via senão a cama, e quase não aguentou arrancar as roupas
antes de rolar numa exaustão deliciada em suas confortáveis profundezas. Os
sabujos do destino pareciam ter-se refreado por um breve instante.
Na luz fria da manhã Stoner riu sem
júbilo, ao perceber lentamente a posição em que se encontrava. Quem sabe pudesse
agarrar- um pouco de comida apoiado em sua parecença com este outro vida-torta
ausente, e escapulir-se antes de alguém descobrir a fraude que lhe fora
imposta. Na sala do andar térreo encontrou o velho encurvado com um prato de
bacon e ovos fritos preparados para o desjejum de "Mestre Tom",
enquanto uma velha empregada de feições duras trazia um bule de chá e vertia o
líquido numa chávena. Quando sentou-se à mesa um pequeno spaniel apareceu,
fazendo-lhe avanços amistosos.
- É o filhote da velha Bowker -
explicou o velho, a quem a criada de feições duras se dirigia como George. -
Ela era louca pelo senhor. Nunca mais foi a mesma depois que o senhor partiu
para a Austrália. Ela morreu há mais ou menos um ano. Esse é o filhote dela.
Stoner não conseguiu lamentar-lhe o
passamento; não haveria quem sobrepujasse a cachorra como testemunha de
identificação.
- Vai sair a cavalo, Mestre Tom? - foi
a seguinte proposição surpreendente do velho. - Temos um belo ruão que aceita
bem uma sela. O velho Biddy está ficando cansado, embora ainda dê, mas vou
aprontar o ruãozinho e trazer aqui na porta.
- Não tenho roupa de montaria -
gaguejou o pária, quase rindo ao contemplar suas roupas no último fio.
- Mestre Tom - retrucou com energia,
quase ofendido, o velho -, todas as suas coisas estão como as deixou. É só
arejá-las um pouco diante da lareira e estarão bem. Vai ser uma boa distração,
galopar um pouco e caçar umas aves de quando em quando. O senhor vai sentir que
a gente das redondezas o olha com cara de poucos amigos. Eles não esqueceram
nem perdoaram. Ninguém virá procurá-lo, de modo que é melhor se distrair como
puder com o cavalo e o cachorro. São boa companhia, também.
O velho George foi-se capengando dar
ordens, e Stoner, sentindo-se cada vez mais como num sonho, subiu para
inspecionar o guarda-roupa do "Mestre Tom". Cavalgar era um dos
prazeres mais caros a seu coração, e o pensamento de que nenhum dos
companheiros pregressos de Tom provavelmente o favoreceria com uma inspeção
mais de perto representava alguma proteção contra a descoberta imediata.
Enquanto o intruso se enfiava numas roupas de montaria que lhe caíam
toleravelmente, seu cérebro se perguntava de maneira vaga que tipo de delito o
Tom genuíno cometera para colocar contra ele toda a gente das redondezas. O som
surdo de patadas rápidas e impacientes na terra lamacenta cortou cerce suas
especulações. O cavalo ruão tinha sido trazido para a porta lateral.
- Conversa de mendigos a cavalo -
pensou Stoner de si-para-si, enquanto trotava rápido pelas azinhagas lamacentas
por onde trambolhara na véspera como um pária nas últimas; e então deixou de
lado indolentemente as reflexões e entregou-se ao prazer de um elegante
meio-galope ao longo do relvado que cobria a beira de um trecho de estrada.
Junto a um portão aberto deteve a marcha para permitir que duas carroças
entrassem num pasto. Os rapazes que conduziam as carroças acharam tempo para
olhá-lo demoradamente, e quando passava ouviu uma voz excitada anunciar:
"É o Tom Prike! Conheci logo; mostrando-se de novo por aqui, não é?"
Evidentemente a semelhança que se
impusera em ambiente fechado a um velho senil era bastante boa para enganar
olhos mais jovens a curta distância.
No curso do passeio pôde confirmar com
ampla evidência a afirmação de que o povo não esquecera nem perdoara o crime
passado que lhe chegava como um legado do Tom ausente. Olhares rancorosos,
murmúrios e cotoveladas no parceiro saudavam-no sempre que topava com seres
humanos: o "filhote de Bowker", trotando tranqüilo a seu lado,
parecia o único elemento de amistosidade num mundo hostil.
Ao desmontar frente à porta lateral
viu de relance uma descarnada mulher idosa espiando-o por detrás de uma cortina
no andar superior. Sem dúvida era sua tia por adoção.
Enquanto ingeria o farto almoço que
esperava por ele, Stoner foi afinal capaz de passar em revista as
possibilidades de sua extraordinária situação: o verdadeiro Tom, após quatro
anos de ausência, aparecer de repente na fazenda, ou uma carta dele chegar a qualquer
momento; ou ainda, na qualidade de herdeiro da fazenda, o falso Tom ser chamado
a assinar documentos, o que seria uma exigência embaraçosa; ou a chegada de
parente que não imitasse a atitude da tia. Tudo isso significaria
desmascaramento ignominioso. Por outro lado, a alternativa era o céu aberto e
os caminhos de lodo que levavam ao mar. A fazenda oferecia-lhe, de qualquer
forma, um refúgio temporário contra o desamparo; trabalhar na terra era uma das
muitas coisas que "tentara", e seria capaz de fazer algum trabalho em
troca da hospitalidade a que tinha tão pouco direito.
- O senhor vai querer carne de porco
fria para o jantar? - indagou a criada de rosto severo, tirando a mesa. - Ou
quer que esquente?
- Quente, com cebolas - disse Stoner.
Foi a primeira vez na vida que tomou
uma decisão rápida. E ao dar a ordem percebeu que pretendia ficar.
Stoner mantinha-se rigidamente
naquelas partes da casa que pareciam a ele ter-lhe sido destinadas por um
tratado tácito de delimitação. Quando tomava parte no trabalho rural era como
alguém que recebe ordens, e nunca os iniciava. O velho George, o cavalo ruão e
o filhote de Bowker eram seus únicos companheiros num mundo de outro modo
geladamente silencioso e hostil. A dona da fazenda ele nunca via. Uma vez, ao
saber que ela fora à igreja, fez uma incursão furtiva à sala de visitas da
fazenda tentando obter algum conhecimento fragmentário sobre o jovem cujo lugar
usurpara, e cuja má reputação pusera nos ombros. Havia muitas fotografias
penduradas nas paredes, ou enfiadas em porta-retratos cheios de enfeites, mas a
parecença buscada não estava entre eles. Por fim, num álbum meio escondido,
encontrou o que queria. Havia uma série completa, rotulada "Tom", uma
criança gorducha de três anos, num traje fantástico, um menino desajeitado de
seus doze anos empunhando uma raquete de cricket como se relutasse, um jovem
muito bonito de dezoito, cabelos macios e bem repartidos, e finalmente um moço
com uma expressão atrevida e um tanto brutal. Stoner olhou este último retrato
com particular interesse, a semelhança com ele era irrecusável.
Tentou sem descanso saber dos lábios
do velho George, que era bastante palrador sobre a maioria dos assuntos, alguma
coisa da natureza da ofensa que o marcara como uma criatura a ser evitada e
odiada por seus semelhantes.
- O que é que o pessoal daqui diz a
meu respeito? - perguntou um dia ao se dirigirem para casa, tendo trabalhado
num campo mais distante.
O velho abanou a cabeça.
- Estão contra o senhor, mortalmente
contra. Ai, isto é um negócio muito triste, muito triste.
E nunca conseguiu que dissesse algo
mais esclarecedor.
Numa tarde clara e gelada, poucos dias
antes das festas de Natal, Stoner estava de pé a um canto do pomar, de onde
alcançava uma vista ampla dos campos. Aqui e ali podia perceber os pontos
faiscantes do brilho de um candeeiro ou vela que lhe falavam de lares humanos
onde a boa vontade e o regozijo da época se faziam sentir. Através dele estava
a casa da fazenda, severa e silente, onde ninguém jamais ria, onde mesmo uma
discussão teria parecido alegre. Stoner ouviu seu nome adotado dito num tom de
extrema ansiedade. Instintivamente soube que algo funesto acontecera, e numa
rápida revulsão de ponto de vista, seu santuário tornou-se a seus olhos um
lugar de paz e contentamento, do qual temia ser expulso.
- Mestre Tom - disse o velho num
cochicho áspero -, o senhor tem de escapulir quietinho daqui, por uns dias.
Michael Ley está de novo na vila e jura que lhe dá um tiro se cruzar com o
senhor. E dá mesmo, há morte em seu olhar. Desapareça acobertado pela noite, só
por uma semana ou pouco mais, ele não vai ficar mais tempo aqui.
- Mas para onde é que vou? - gaguejou
Stoner, que fora infectado pelo óbvio terror do velho.
- Siga pela costa até Punchford e
fique escondido lá. Quando Michael se tiver ido na certa, vou montado no ruão
para Punchford, ao Dragão Verde; quando o senhor vir o cavalo no estábulo do
Dragão Verde, é sinal de que pode voltar.
- Mas... - começou Stoner hesitante.
- Dinheiro não é problema - disse o
outro; - a velha Senhora concorda que é melhor fazer como eu digo, e me deu
isto.
Stoner sentiu-se mais embusteiro do
que nunca quando, naquela noite, esgueirou-se pelo portão dos fundos da fazenda
tendo no bolso o dinheiro da velha. O velho George e o filhote de Bowker, de pé
no portão, olhavam-no num silencioso adeus. Mal conseguiu sonhar com o retorno,
e sentiu um nó na garganta ao pensar nos dois humildes amigos que esperariam
ansiosos sua volta. Algum dia, quem sabe, o verdadeiro Tom voltaria, e haveria
um terrível assombro entre aquela gente simples da roça buscando a identidade
do hóspede nebuloso que tinham abrigado sob seu teto. Por seu próprio destino
não sentia ansiedade imediata; três libras dão para pouca coisa nesse mundo,
mas para um homem que contara seus haveres em tostões parecem um bom ponto de
partida. A fortuna manhosa se alterara gentilmente quando de sua última
caminhada por essas azinhagas como um aventureiro desesperado, e ainda podia
haver oportunidade de encontrar trabalho e começar outra vez; à medida que se
afastava da fazenda ia ficando mais animado. Havia uma sensação de alívio em
reconquistar a identidade perdida e cessar de ser o fantasma inquieto de outro.
Mal se deu ao trabalho de especular sobre o inimigo implacável que surgira de
nenhures em sua vida; já que essa vida era agora atrás dele um item irreal, o
resto pouca diferença fazia. Pela primeira vez em muitos meses começou a
cantarolar um refrão descuidado e alegre. Então, eis que surge da sombra de um
frondoso carvalho um homem com uma espingarda. Não houve necessidade de se
perguntar quem poderia ser; o luar caindo-lhe sobre o rosto branco revelou um
brilho de ódio humano como Stoner, nos altos e baixos de suas andanças, nunca
vira antes. Ele pulou para o lado num esforço desesperado de atravessar a cerca
que bordeava o caminho, mas os galhos grossos o impediram. A matilha do destino
esperara por ele naquelas azinhagas estreitas, e desta vez não seria em vão.
Tradução de Eglê Malheiros
Learn English Through Story - The
Hounds of Fate by Saki
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English Through Story - The Hounds of Fate by Saki By: English With Stories
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Story title:
The Hounds of Fate
Author: Saki
The Open Window By Saki
A Nice Story
of a Niece Pranking A Guest with Stories.I only edited and made It short so I
am not responsible for anything shown or seen in the Video.This is for Educational
Purposes Only
Referências
https://www.youtube.com/watch?v=jnrPMTrAuMU
https://youtu.be/jnrPMTrAuMU
https://www.youtube.com/watch?v=h5FcGd4luz4
https://youtu.be/h5FcGd4luz4
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