ALEXANDRE HERCULANO (1810-1877 |
Portugal)
"Justorum autem animae in manu Dei sunt,
et non tanget illos tormentum mortis."
Um dos três grandes nomes do Romantismo
português (com Almeida Garret e Camilo Castelo Branco), Herculano é autor de pelo menos três clássicos, O Monge de Cister, Eurico, o
Presbítero e Lendas e Narrativas, de onde foi extraído A Morte do Lidador. Aqui
é a "instituição" que conta a História e seus crimes, isto é, guerras
e batalhas ligadas a ela. Vale a pena o leitor de hoje vencer a possível
dificuldade do português antigo e insistir em entrar no clima da narrativa que
nos remete ao mundo de hoje: escrito no século XIX, o conto lida com a
linguagem e os acontecimentos da Idade Média na Península Ibérica, a luta entre
cruzados e mouros, ou cristãos e muçulmanos, que até hoje tem seus reflexos no
mundo (fundamentalistas, Jihad, Bin Laden etc).
"Pajens! que arreiem o meu ginete
murzelo; e vós dai-me o meu lorigão de malha de ferro e a minha boa toledana.
Senhores cavaleiros, hoje contam-se noventa e cinco anos que recebi o batismo,
oitenta que visto armas, setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia
fazendo uma entrada por terras da frontaria dos mouros."
Isto dizia na sala de armas do castelo
de Beja Gonçalo Mendes da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelejara e
por seu valor indomável, chamavam o Lidador. Afonso Henriques, depois do
infeliz sucesso de Badajoz, e feitas pazes com el-rei de Leão, o nomeara
fronteiro da cidade de Beja, de pouco tempo conquistada aos mouros. Os quatro
Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam com ele, e outros muitos
cavaleiros afamados, entre os quais dom Ligel de Flandres e Mem Moniz, tio dos
quatro Viegas.
"A la fé - disse Mem Moniz - que
a festa de vossos anos, senhor Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro
que de capitão encanecido e prudente. Deu-nos el-rei esta frontaria de Beja
para bem a haverdes de guardar, e não sei eu se arriscado é sair hoje à
campanha, que dizem os escutas, chegados ao romper de alva, que o famoso
Almoleimar corre por estes arredores com dez vezes mais lanças do que todas as
que estão encostadas nos lanceiros desta sala de armas."
'Voto a Cristo - atalhou o Lidador -
que não cria eu que o senhor rei me houvesse posto nesta torre de Beja para
estar assentado à lareira da chaminé, como velha dona, a espreitar de quando em
quando por uma seteira se cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã, para
lhes cerrar as portas e ladrar-lhes do cimo da torre da menagem, como usam os
vilãos. Quem achar que são duros demais os arneses dos infiéis, pode ficar-se
aqui."
"Bem dito! bem dito!" -
exclamaram, dando grandes risadas, os cavaleiros mancebos. "Por minha boa
espada! - gritou Mem Moniz, atirando o guante ferrado às lájeas do pavimento -
que mente pela gorja quem disser que eu ficarei aqui, haven Jo dentro de dez
léguas em redor lide com mouros. Senhor Gonçalo Mendes, podeis montar em vosso
ginete, e veremos qual das nossas lanças bate primeiro em adarga
mourisca."
"A cavalo! a cavalo!" -
gritou outra vez a chusma, com grande alarida.
Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos
sapatos de ferro de muitos cavaleiros descendo os degraus de mármore da Torre
de Beja, e, passados alguns instantes, soava só o tropear dos cavalos,
atravessando a ponte levadiça das fortificações exteriores que davam para a
banda da campanha por onde costumava aparecer a mourisma.
II
Era um dia do mês de julho, duas horas
depois da alvorada, e tudo estava em grande silêncio dentro da cerca de Beja:
batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e torres que a defendiam: ao
longe, pelas imensas campinas que avizinham o teso sobre que a povoação está
assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos
para seus novos senhores cristãos. Regados por lágrimas de escravos tinham sido
esses campos, quando em formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por
lágrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando no mês de julho, a paveia,
cerceada pela fouce, pendesse sobre a mão do ceifeiro; choro de amargura havia
aí, como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje
de mouros vencidos. A cruz hasteava-se outra vez sobre o crescente quebrado; os
coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do
almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida por
Deus. Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos de África e do
Oriente, que diziam, mostrando os alfanjes: - "é nossa a terra de
Espanha". - O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito
séculos a escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos
cerros das Astúrias; a última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros de
suas bombardas, nos panos das muralhas da formosa Granada: e a esta escritura,
estampada em alcantis de montanhas, em campos de batalha, nos portais e torres
dos templos, nos lanços dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a
mão da Providência - "assim para todo o sempre!"
Nesta luta de vinte gerações andavam
lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o
horizonte, onde se enxergavam as serranias do Algarve: de lá esperava ele
salvação, ou, ao menos, vingança; ao menos, um dia de combate e corpos de
cristãos estirados na veiga para pasto dos açores bravios. A vista do sangue
enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas, embora os valentes de África
houvessem de fugir vencidos; embora as aves de rapina tivessem, também,
abundante ceva em cadáveres de seus irmãos! E este ameno dia de julho devia ser
um desses dias por que suspirava o servo ismaelita.
Almoleimar descera com os seus
cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas mortas da noite, viam-se as
almenaras das suas atalaias nos píncaros das serras remotas, semelhantes às
luzinhas que em descampados e tremedais acendem as bruxas em noites de seus
folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas bem perto sentiam os escutas o
resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger das folhas secas, e o tinir a
espaços de alfanje batendo em ferro de caneleira ou de coxote. Ao romper de
alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das
muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só, aqui e ali, as searas
calcadas davam rebate de que por aqueles sítios tinham vagueado almogaures
mouros, como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de modorra, as habitações
dos pastores além das encostas do Atlas.
No dia em que Gonçalo Mendes da Maia,
o velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo
arrebol da manhã, a correr o campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara
Almoleimar; porque uma flecha fora pregada à mão em um grosso sovereiro que
sombreava uma fonte, a pouco mais de tiro de funda dos muros do castelo. Era
que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: o Lidador pedira aos
pajens o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana.
III
Trinta fidalgos, flor da cavalaria,
corriam à rédea solta pelas campinas de Beja: trinta, não mais, eram eles; mas
orçavam por trezentos os homens de armas, escudeiros e pajens que os
acompanhavam. Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador,
cujas barbas brancas lhe ondeavam, como frocos de neve, sobre o peitoral da
cota de armas, e o terrível Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes de
sua espada, chamavam o Espadeiro. Eram formoso espetáculo o esvoaçar dos
balsões e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das
cervilheiras, as cores variegadas das cotas, e as ondas de pó que se
alevantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se alevanta o bulcão de Deus,
varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de verão.
Ao largo, muito ao largo, dos muros de
Beja vai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no horizonte não se vêem
senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto
quanto os cavaleiros caminham. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco
alvejam ao longe sobre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos volteiam na
frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado,
embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais dos
ribeiros, aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro: mas, no meio de tal
lidar, apenas se ouvem o trote compassado dos ginetes e o grito monótono da
cigarra, pousada nos raminhos da giesteira.
A terra que pisam é já dos mouros; é
já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portugueses soubessem olhar para
trás, indo em som de guerra, os que para trás de si os volvessem a custo
enxergariam Beja. Bastos pinhais começavam já a cobrir mais crespo território,
cujos outeirinhos, aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em viço
de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor
em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas de ouro
que os defendiam. A um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessário
repousar, que o sol ia no zênite e abrasava a terra: descavalgaram todos à
sombra de um azinhal e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma
relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho.
Tinha passado meia hora: por mandado
do velho fronteiro de Beja um almogávar montou a cavalo e aproximou-se à rédea
solta de uma selva extensa que corria à mão direita: pouco, porém, correu; uma
flecha despedida dos bosques sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a
flecha tinha-se-lhe embebido no lado: o cavalo parou de repente, e ele,
erguendo os braços ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o
chão, e o ginete partiu desenfreado através das veigas e desapareceu na selva.
O almogávar dormia o último sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros
da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar eterno.
"A cavalo! a cavalo!" -
bradou a uma voz toda a lustrosa companhia do Lidador; e o tinido dos guantes
ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes, soou uníssono, quando
todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo: e os ginetes rincharam de prazer,
como aspirando os combates.
Grita medonha troou ao mesmo tempo,
além do pinhal da direita. - "Alá! Almoleimar!" - era o que dizia a
grita.
Enfileirados em extensa linha, os
cavaleiros árabes saíram à rédea solta de trás da escura selva que os encobria:
o seu número excedia cinco vezes o dos soldados da cruz: as suas armaduras
lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos
por pesadas cervilheiras de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal:
mas as lanças destes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do
que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a força da raça gótico-romana iam,
ainda mais uma vez, provar-se com a destreza e com a perícia árabes.
IV
Como longa fita de muitas cores,
recamada de fios de ouro e refletindo mil acidentes de luz, a extensa e
profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre as searas
pálidas que cobriam o campo. Defronte deles os trinta cavaleiros portugueses,
com trezentos homens de armas, pajens e escudeiros, cobertos dos seus escuros
envoltórios, e lanças em riste, esperavam o brado de acometer. Quem visse
aquele punhado de cristãos, diante da cópia de infiéis que os esperavam, diria
que, não com brios de cavaleiros, mas com fervor de mártires, se ofereciam a
desesperado transe. Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os seus soldados,
que bem conheciam a tempera das espadas e lanças portuguesas e a rijeza dos
braços que as meneavam. De um contra dez devia ser o iminente combate; mas, se
havia aí algum coração que batesse descompassado, algumas faces descoradas, não
era entre os companheiros do Lidador que tal coração batia ou que tais faces
descoravam.
Pouco a pouco, a planura que separava
as duas hostes tinha-se embebido debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo
se embebe a folha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa
primorosa. As lanças iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Alá
soara em um só grito por toda a fileira mourisca.
Encontraram-se! Duas muralhas
fronteiras, balouçadas por violento terremoto, desabando, não fariam mais
ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra, do que este recontro de infiéis
e cristãos. As lanças, topando em cheio nos escudos, tiravam deles um som
profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despedaçadas.
Do primeiro encontro muitos cavaleiros
vieram ao chão: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as
armas e traspassou o peito com o ferro de sua grossa lança. Deixando-a depois
cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador, que perto dele estava:
"Senhor Gonçalo Mendes, ali
tendes, no peito daquele perro, aberta a seteira por onde eu, velha dona
assentada à lareira, costumo vigiar a chegada de inimigos, para lhes ladrar,
como alcatéia de vilãos, do cimo da torre de menagem."
O Lidador não lhe pôde responder.
Quando Mem Moniz proferia as últimas palavras, ele topara em cheio com o
terrível Almoleimar. As lanças dos dois contendores haviam-se feito pedaços, e
o alfanje do mouro cruzou-se com a boa toledana do fronteiro de Beja.
Como duas torres de sete séculos, cujo
cimento o tempo petrificou, os dois capitães inimigos estavam um defronte do
outro, firmes em seus possantes cavalos: as faces pálidas e enrugadas do
Lidador tinham ganhado a imobilidade que dá, nos grandes perigos, o hábito de
os afrontar: mas no rosto de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um
valor colérico e impetuoso. Cerrando os dentes com força, descarregou um golpe
tremendo sobre o seu adversário: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje
se embebeu inteiro, e procurou ferir AI moleimar entre o fraldão e a couraça;
mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo coxote do mouro, que
já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação dos dois cavaleiros
inimigos.
"Brando é o teu escudo, velho
infiel; mais bem temperado é o metal do meu arnês. Veremos agora se na tua
touca de ferro se embotam os fios deste alfanje."
Isto disse Almoleimar, dando uma
risada, e a cimitarra bateu em cima da cervilheira do Lidador, com a mesma
violência com que bate no fundo do vale penedo desconforme desprendido do
píncaro da montanha.
O fronteiro vacilou, deu um gemido, e
os braços ficaram-lhe pendentes: a espada ter-lhe-ia caído no chão, se não
estivesse presa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete,
sentindo as rédeas frouxas, fugiu um bom pedaço pela campanha, a todo o galope.
Mas o Lidador tornou a si: uma forte
sofreada avisou o ginete de que o senhor não morrera. À rédea solta, lá volta o
fronteiro de Beja: escore-lhe o sangue, envolto em escuma, pelos cantos da
boca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar!
Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo
Mendes da Maia passou por entre os cristãos e mouros: os dois contendores
viram-se, e, como o leão e o tigre, correram um para o outro. As espadas
reluziram no ar, mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro, mudando de
movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à
violenta estocada; e o sangue, saindo às golfadas, cortou a última maldição do
agareno.
Mas a espada deste também não errara o
golpe: vibrada com ânsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e,
rompendo a grossa malha do lorigão, penetrara na carne até o osso. Ainda mais
uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue godo misturado com sangue árabe.
"Perro maldito! Sabe lá no
inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cerviir ra."
E, dizendo isto, o Lidador caiu
amortecido: um dos seus homens de armas voou a socorrê-lo; mas o último golpe
de Almoleimar fora o brado da sepultura para o fronteiro de Beja: os ossos do
ombro do bom velho estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe
para um e para outro lado envoltas nas malhas descosidas do lorigão.
V
Entretanto os mouros iam de vencida:
Mem Moniz, dom Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros
daquela lustrosa companhia tinham praticado maravilhosas façanhas. Mas, entre
todos, tornava-se notável o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos, coberto
de pó, suor e sangue, pelejava a pé; que o seu agigantado ginete caíra morto de
muitos tiros de frechas e lançadas. De roda dele não se viam senão cadáveres e
membros destroncados, por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou
baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros árabes. Como um promontório de
escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel e sobranceiro no meio do
embate daquelas vagas de pelejadores, que vinham desfazer-se contra o terrível
montante do filho de Egas Moniz.
Quando o fronteiro caiu, o grosso dos
mouros fugia já para além do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda à
roda do seu capitão moribundo. O Lidador, esse tinha sido posto em cima de umas
andas, feitas de troncos e franças de árvores, e quatro escudeiros, que
restavam vivos dos dez que consigo trouxera, o haviam transportado para a saga
da cavalgada. O tinir dos golpes era já muito frouxo e sumia-se no som dos
gemidos, pragas e lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga
ensangüentada. Se os mouros, porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a
vitória não saíra barata aos portugueses. Viam perigosamente ferido o seu velho
capitão, e tinham perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte dos homens
de armas, escudeiros e pajens.
Foi neste ponto que, ao longe, se viu
erguer uma nuvem de pó, que voava rápida para o lugar da peleja. Mais perto,
aquele turbilhão rareou, vomitando do seio um basto esquadrão de árabes. Os
mouros que fugiam deram volta e gritaram:
"Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus,
e Maomé o seu profeta!" Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que
estava com seu exército sobre Mértola e que viera com mil cavaleiros em socorro
de Almoleimar.
VI
Cansados do largo combater, reduzidos
a menos de metade em número e cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo
invocaram o seu nome e fizeram o sinal-da-cruz. O Lidador perguntou com voz
fraca a um pajem que estava ao pé das andas, que nova revolta era aquela.
"Os mouros foram socorridos por
um grosso esquadrão - respondeu tristemente o pajem. - A Virgem Maria nos
acuda, que os senhores cavaleiros parece recuarem já."
O Lidador cerrou os dentes com força e
levou a mão à cinta. Buscava a sua boa toledana.
"Pajem, quero um cavalo. Onde
está a minha espada?" "Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão quebrado
de forças!... "
"Silêncio! A espada, e um bom
ginete."
O pajem deu-lhe a espada e foi pelo
campo buscar um ginete, dos muitos que andavam já sem dono. Quando voltou com
ele, o Lidador, pálido e coberto de sangue, estava em pé e dizia, falando
consigo:
"Por Santiago, que não morrerei
como vilão de beetria onde entrou cavalgada de mouros!"
E o pajem ajudou-o a montar a cavalo.
Ei-lo vai o velho fronteiro de Beja!
Semelhava um espectro erguido de pouco em campo de finados: debaixo dos muitos
panos que lhe envolviam o braço e o ombro esquerdo levava a própria morte; nos
fios da espada, que a mão direita mal sustinha, levava, porventura, ainda a
morte de muitos outros!
VII
Para onde mais travada e acesa andava
a peleja se encaminhou o Lidador. Os cristãos afrouxavam diante daquela
multidão de infiéis, entre os quais mal se enxergavam as cruzes vermelhas
pintadas nas cimeiras dos portugueses. Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz,
os olhos turvados de cólera, e as armaduras crivadas de golpes, sustinham todo
o peso da batalha: eram estes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o fronteiro assim
os viu oferecidos a certa morte, algumas lágrimas lhe caíram pelas faces, e,
esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e
cristãos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante nas mãos, faziam
larga praça no meio dos inimigos.
"Bem-vindo, Gonçalo Mendes! -
disse Mem Moniz. - Quiseste assistir conosco a esta festa de morte? Vergonha
era, de feito, que estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso,
deitado lá na saga, enquanto eu, velha dona, espreito os mouros com meu
sobrinho junto desta lareira ... "
"Implacáveis sois vós outros,
cavaleiros de Riba-Douro - respondeu o Lidador em voz sumida - que não perdoais
uma palavra sem malícia. Lembra-te, Mem Moniz, de que bem depressa estaremos
todos diante do justo juiz."
"Velhos sois; bem o mostrais! -
acudiu o Espadeiro. - Não cureis de vãs porfias, mas de morrer como valentes.
Demos nestes perros, que não ousam chegar-se a nós. Avante, e Santiago!"
"Avante, e Santiago!" -
responderam Gonçalo Mendes e Mem Moniz: e os três cavaleiros deram rijamente
nos mouros.
VIII
Quem hoje ouvir recontar os bravos
golpes que no mês de julho de 1170 se deram na veiga da frontaria de Beja,
notá-Ios-á de fábulas sonhadas; porque nós, homens corruptos e enfraquecidos
por ócios e prazeres de vida afeminada, medimos por nosso ânimo e forças as
forças e o ânimo dos bons cavaleiros portugueses do século XII; e todavia,
esses golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crônicas, tanto
cristãs como agarenas.
Depois de deixar assinadas muitas
armaduras mouriscas, o Lidador vibrara pela última vez a espada e abrira o elmo
e o crânio de um cavaleiro árabe.
O violento abalo que experimentou
fez-lhe rebentar em torrentes o sangue da ferida que recebera das mãos de
Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e
de Afonso Hermigues de Bay ão, que com eles se ajuntara. Repousou, finalmente,
Gonçalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!
Já a este tempo cristãos e mouros se
haviam descido dos cavalos e pelejavam a pé. Traziam-se assim à vontade, e
recrescia a crueza da batalha. Entre os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a
nova da morte do seu capitão, e não houve ali olhos que ficassem enxutos. O
despeito do próprio Mem Moniz deu lugar à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou
entre soluços:
"Gonçalo Mendes, és morto! Nós
todos quantos aqui somos, não tardará que te sigamos; mas ao menos, nem tu, nem
nós ficaremos sem vingança!"
"Vingança!" - bradou o
Espadeiro, com voz rouca, e rangendo os dentes. Deu alguns passos, e viu-se o
seu montante reluzir, como uma centelha em céu proceloso. Era Ali-Abu-Hassan:
Lourenço Viegas o conhecera pelo timbre real do morrião.
IX
Se já vivestes vida de combates em
cidade sitiada, tereis visto muitas vezes um vulto negro que em linha diagonal
corta os ares, sussurrando e gemendo. Rápido, como um pensamento criminoso em
alma honesta, ele chegou das nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do seu
nome. Se encontrou na passagem ângulo de torre secular, o mármore converte-se
em pó; se atravessou, pelas ramas de árvore basta e frondosa, a folha mais
virente e frágil, o raminho mais tenro é dividido, como se, com cutelo
sutilíssimo, mão de homem lhe houvera cerceado atentamente uma parte; e,
todavia, não é um ferro açacalado: é um globo de ferro; é a bomba, que passa,
como a maldição de Deus. Depois, debaixo dela, o chão achata-se, e a terra
espadana aos ares; e, como agitada, despedaçada por cem mil demônios, aquela
máquina do inferno estoura, e de roda dela há um zumbir sinistro: são mil
fragmentos; são mil mortes que se derramam ao longe. Então faz-se um grande
silêncio, e após o silêncio vêem-se corpos destroncados, poças de sangue,
arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos feridos e o estertor dos
moribundos.
Tal desceu o montante do Espadeiro,
boto já dos milhares de golpes que o cavaleiro tinha descarregado. O elmo de
Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em pedaços pelos ares, e o ferro cristão,
esmigalhando o crânio do infiel, abriu-o até os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.
"Lidador!
Lidador!" - disse Lourenço
Viegas, com voz comprimida. As lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor,
com o pó e com o sangue do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais
nada.
Tão espantoso golpe aterrou os mouros.
Os portugueses seriam já apenas sessenta, entre cavaleiros e homens de armas:
mas pelejavam como desesperados e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos
juncavam o campo, de envolta com os cristãos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o
sinal da fugida.
Os portugueses, senhores do campo,
celebravam com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos;
nenhum que não tivesse as armas falsadas e rotas. O Lidador e os demais
cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em
cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja. Após aquele tristíssimo préstito,
iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fora na
cavalgada, com a espada cheia de sangue metida na bainha salmeava em voz baixa
aquelas palavras do livro da Sabedoria:
"Justorum autem animae in manu Dei sunt,
et non tanget illos tormentum mortis."
Nenhum comentário:
Postar um comentário