A lei que dá um passo à frente já
não pode botar um pé atrás. Está proibida de retrocesso
ESTADÃO
OPINIÃO
ESPAÇO
ABERTO
*Carlos Ayres Britto
27
Novembro 2016 | 05h00
Tenho
por inconstitucional essa rumorosa emenda parlamentar que visa a impedir
punição para quem praticou o chamado caixa 2. Caixa 2, lógico, em linguagem
coloquial ou popular. A se traduzir no recebimento de doação de “bens, valores
ou serviços” não declarados à Justiça Eleitoral nem contabilizados pelas
respectivas agremiações partidárias. Não “declarada” nem “contabilizada” tal
“doação” e até mesmo “omitida ou “ocultada” (palavras da emenda em foco), mesmo
tendo por finalidade “financiamento de atividade político-partidária ou
eleitoral”. Com uma primeira e inusitada peculiaridade: ela, a emenda
parlamentar, não se limita a transitar pelos domínios do Direito Eleitoral. Bem
mais ambiciosa, estende o seu comando de não punição às esferas penal e civil
da ordem jurídica brasileira. Com o que veicula um tipo de anistia praticamente
geral e irrestrita que expõe os seus flancos a muitos questionamentos no plano
da validade.
Com
efeito, o primeiro questionamento em torno dessa mal disfarçada anistia decorre
da consideração de que ela, emenda, propõe a despunibilização de um
tipo omissivo de conduta que a cabeça do artigo 350 do Código Eleitoral
expressamente veda: omitir, em documento público ou então particular,
declaração que deles devia constar (a exemplo da aceitação de doações para o
financiamento de campanha eleitoral). Conduta tipificada pelo parágrafo único
desse mesmo artigo 350 como “falsidade documental” ou ideológica. Sancionada,
além do mais, com “reclusão até 5 anos e pagamento de (...) multa (...)”. Logo,
é de anistia mesmo que se trata, até porque ainda recai sobre as agremiações
partidárias o dever de “prestação de contas à Justiça Eleitoral” (inciso III do
artigo 17).
Ora,
nesta última hipótese de um dever imposto aos partidos políticos, óbvio que a
Constituição está a se referir a uma completa prestação de contas. Cheia.
Íntegra ou incorporante de todas as doações que a eles sejam feitas. Sem a
menor possibilidade de omissão contábil ou de falta de registro daqueles “bens,
valores ou serviços”. Matéria interditada, por definição, a qualquer tipo de
condescendência ou relativização por lei. Como também resulta claro que o
artigo 350 do Código Eleitoral faz um tipo de exigência perfeitamente rimada
com o jogo da verdade que a Constituição impõe a todo candidato a cargo público
em eleição popular. O jogo da verdade democrática, a fazer de cada pleito
eleitoral um heterodoxo concurso público. Uma disputa ou um certame de
investidura eletiva que só pode pressupor, como todo concurso público,
igualdade entre os concorrentes e total eliminação de fraude. Tudo a legitimar
a conclusão técnica de que, nesse entrecruzar de depuração ético-representativa
do regime democrático brasileiro, a lei que dá um passo à frente já não pode
botar um pé atrás. Está proibida de incorrer em qualquer forma de retrocesso.
Quanto mais se vem a descambar para um tipo de anistia que nivela por baixo
quem honrou e quem deixou de honrar os seus jurídicos deveres.
Há
mais o que dizer em desfavor da mal inspirada emenda. Muito mais, pois o que
ela termina por fazer é anistiar o inanistiável. Explico. Primeiro, ela faz um
estranho (pra não dizer temerário) corte radical entre doação e sua matriz
subjetiva. Ou entre doador e donatário, se se prefere dizer, para assim poder despunibilizar os
dois. Mesmo que o doador esteja a abrir a mão para o donatário depois de
enchê-la com o produto de crime (peculato, corrupção, conluio em licitações,
superfaturamento de obras e serviços públicos, tráfico de drogas, administração
fraudulenta de instituição financeira, etc.). Com o que assume o risco de
perdoar, de uma só cajadada, o crime atual e o antecedente. Explosiva mistura
de malfeitorias de vários ramos ou disciplinas jurídicas que pode ter por
efeito o ampliado favorecimento do número dos malfeitores.
Depois
disso, uma nova e indevida mescla. É que a anistia é instituto jurídico de
exceção. Não pode ser usual, pois se traduz no perdão legal de quem infringiu
essa ou aquela regra igualmente legal (se a moda pega...). Razão pela qual a
lei que a institui só pode ser específica. Específica ou monotemática. Lei de
um só conteúdo ou “que regule exclusivamente” uma dada matéria, como, didática
ou expletivamente, diz a Constituição pelo parágrafo 6.º do seu artigo 150.
Logo, lei de máxima concentração material dos seus elaboradores e da mais
centrada atenção da cidadania. Nada obstante, o que se deu com a malsinada
emenda parlamentar de que estou a comentar? Forçou a mais não poder sua inserção
num projeto de lei que nada tem que ver com postura condescendente do Estado
para com o tema centralmente constitucional e complementarmente legal da
prestação de contas à Justiça Eleitoral.
Bem,
de mais alguns pontos de fragilidade constitucional ainda padece a emenda em
xeque (a figuração do “diabo a quatro” passa por aí). Por limitação de espaço
neste artigo, porém, aponto apenas dois.
O
primeiro, residente na falta da percepção de que só é anistiável o ilícito cujo
regime normativo for centralmente legal. Não aquele envolto em registro
diretamente constitucional da gravidade de determinadas condutas.
O
segundo está em que o seu dilatadíssimo âmbito pessoal de incidência não tem
como deixar de favorecer membros do poder. Do Poder Legislativo federal,
designadamente. E o certo é que membro do poder é a face visível do Estado. A
humana personalização dele. O Estado encarnado e insculpido. O Estado em
ação. Por isso que insuscetível de anistiar a si mesmo. De bancar minimamente
que seja um projeto de autoanistia, pena de estilhaçar a própria e mais
elementar noção de Estado de Direito: aquele Estado que respeita o Direito por
ele mesmo criado. Tanto quanto, e principalmente, o Direito para ele
criado pela Constituição originária.
*EX-PRESIDENTE
DO STF
http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-caixa-2-e-o-diabo-a-quatro,10000090813
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