1917, 100 ANOS
(MCMXVII – MMXVII)
(1917 – 2017)
E 100 ANOS PASSAR-SE-IAM
-
Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, Seu
Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo. Graciliano Ramos, São
Bernardo
"Façamos
a revolução antes que o povo a faça". Antônio Carlos Ribeiro de Andrada
“Por isso, repito com realce o que escrevi no prefácio de 1967: uma das forças de Raízes do Brasil foi ter mostrado como o estudo do passado, longe de ser operação saudosista, modo de legitimar as estruturas vigentes, ou simples verificação, pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos integrais, isto é, os que contam com a iniciativa do povo trabalhador e não o confinam ao papel de massa de manobra, como é uso.” Antonio Candido São Paulo, agosto de 1986
“Por isso, repito com realce o que escrevi no prefácio de 1967: uma das forças de Raízes do Brasil foi ter mostrado como o estudo do passado, longe de ser operação saudosista, modo de legitimar as estruturas vigentes, ou simples verificação, pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos integrais, isto é, os que contam com a iniciativa do povo trabalhador e não o confinam ao papel de massa de manobra, como é uso.” Antonio Candido São Paulo, agosto de 1986
A Greve Geral de 1917 em São Paulo
CHRONICA
CRÔNICA
Serena
e desinteressante ia correndo a primeira quinzena, sob ambiente comum da paz
social. De repente, a cidade é abalada com a notícia de greve geral do
operariado. “Não era possível!” – exclamavam, com uma pontinha de ceticismo os
conservadores, Mas logo se desiludiram, vendo na rua a legião infinita dos
grevistas. Certamente, devia existir um forte motivo, determinante do
movimento. Mas sem dúvida! O motivo era o sofrimento dessa imensidade de
operários. Desde o principio da guerra, quando os gêneros de primeira
necessidade começaram a encarecer, a situação do operariado foi revelada em
comícios, aqui e ali, e a linguagem dos oradores dava ao quadro todas as tintas
do horrível. Ninguém, todavia, os levou a sério, os quis ouvir, e as queixas e
os sofrimentos jamais voltaram a ultrapassar os domínios do trabalho.
E como tudo, no decorrer dos dias, semanas e meses, preanunciava um perigo social, o Comitê de Defesa Proletária, possuindo um incomparável campo de experiências, resolveu tratar da questão pelo recurso da greve. Sem duvida, a greve é um direito, e a idéia, exposta aos trabalhadores prejudicados, encontrava naturalmente o assentamento de todos. Esvaziadas as fábricas e oficinas, começaram nas ruas a passeata de milhares de obreiros inativos. O espetáculo não era dos mais agradáveis para os nossos créditos de cidade pacata. Mas nada podia impedir, dentro da ordem a manifestação do proletariado. Foi quando a policia, receosa de conflitos, interveio junto dos patrões, na esperança de que eles cedessem. Muitos foram amáveis, conciliadores; outros mostravam-se hesitantes; outros, ainda, inflexíveis, não cederam coisa nenhuma. E, por que ao argumento do salário, os operários juntavam outras exigências, entre as quais a redução dos preços dos gêneros de primeira necessidade, legislação e regulamentação do trabalho, a vesania apoderou-se dos espíritos e os conflitos não se fizeram esperar. Foram sacrificadas algumas vidas e de tal forma se intensificou o espírito de revanche, que a imprensa, receando maiores conseqüências, teve o belo gesto de se constituir mediadora, entre operários e patrões. Não conseguiu tudo, mas conseguiu muito e isto demonstra claramente que, quando ela deu os primeiros passos para harmonizar o capital e o trabalho, já a fortalecia o prestigio da opinião publica, desejosa de ver terminado definitivamente espetáculo intolerável. Deve-se à imprensa, em grande parte, a solução da greve. Ninguém lhe pode negar o grande serviço que ela vem de prestar à paz social do Estado, senão de Indo o país.
Resta agora que o Governo, por todos os recursos ao seu alcance, trabalhe por modificar as condições de vida de uma enorme massa de trabalhadores, cuja rebelião só teve em vista melhorar uma situação que a ameaçava de morte. A preocupação de proibir a federação dos sindicatos de Trabalho, é preferível reconhecer que, uma vez proclamado o direito de greve, pela paz ou pela força o operariado há de conquistar regalias que o ponham a salvo do regime das compressões.
O que se deu em São Paulo não é uma novidade de conquista. Lá fora o operariado tem feito coisa igual. O que em toda o parte se vê é que ele, com as suas lutas, tem conseguido dos governos várias reformas saciais, no interesse superior da coletividade, não sendo por isso justo que o Governo, em nosso país, em vez de aproximar o trabalho e o patronato, os separe e distancie, tornando-os inimigos irreconciliáveis. A legislação pátria necessita ser ampliada com regulamentos para serem observados no que toca ao dia de oito horas, ao trabalho das mulheres e das crianças, à higiene das Fábricas, etc., de maneira a encorajar o labor individual no domicílio e impedir a opressão industrial. Tudo isto demanda de um estudo sério, mercê do qual derive um programa de reformas, capaz de resolver o problema econômico que deu causa à recente greve.
Imitemos a Inglaterra. Em 1802 já o governo daquele liberal país se preocupava com questões operárias, entre as quais o trabalho das crianças. Várias reformas vieram em benefício do proletariado, sem nenhum prejuízo para os industriais. Ao contrário, a elevação de salários trouxe à industria inglesa benefícios incalculáveis. A exportação aumentou espantosamente e os industriais acabaram por se convencer de que, com um pouco de boa vontade, se podem resolver os mais intrincados problemas.
Imitemos a Inglaterra, imitemos a França, imitemos a Itália nas concessões feitas ao operariado, estabelecendo medidas liberais e criando instituições de previdência, tão necessárias no seio das grandes aglomerações operárias.
E como tudo, no decorrer dos dias, semanas e meses, preanunciava um perigo social, o Comitê de Defesa Proletária, possuindo um incomparável campo de experiências, resolveu tratar da questão pelo recurso da greve. Sem duvida, a greve é um direito, e a idéia, exposta aos trabalhadores prejudicados, encontrava naturalmente o assentamento de todos. Esvaziadas as fábricas e oficinas, começaram nas ruas a passeata de milhares de obreiros inativos. O espetáculo não era dos mais agradáveis para os nossos créditos de cidade pacata. Mas nada podia impedir, dentro da ordem a manifestação do proletariado. Foi quando a policia, receosa de conflitos, interveio junto dos patrões, na esperança de que eles cedessem. Muitos foram amáveis, conciliadores; outros mostravam-se hesitantes; outros, ainda, inflexíveis, não cederam coisa nenhuma. E, por que ao argumento do salário, os operários juntavam outras exigências, entre as quais a redução dos preços dos gêneros de primeira necessidade, legislação e regulamentação do trabalho, a vesania apoderou-se dos espíritos e os conflitos não se fizeram esperar. Foram sacrificadas algumas vidas e de tal forma se intensificou o espírito de revanche, que a imprensa, receando maiores conseqüências, teve o belo gesto de se constituir mediadora, entre operários e patrões. Não conseguiu tudo, mas conseguiu muito e isto demonstra claramente que, quando ela deu os primeiros passos para harmonizar o capital e o trabalho, já a fortalecia o prestigio da opinião publica, desejosa de ver terminado definitivamente espetáculo intolerável. Deve-se à imprensa, em grande parte, a solução da greve. Ninguém lhe pode negar o grande serviço que ela vem de prestar à paz social do Estado, senão de Indo o país.
Resta agora que o Governo, por todos os recursos ao seu alcance, trabalhe por modificar as condições de vida de uma enorme massa de trabalhadores, cuja rebelião só teve em vista melhorar uma situação que a ameaçava de morte. A preocupação de proibir a federação dos sindicatos de Trabalho, é preferível reconhecer que, uma vez proclamado o direito de greve, pela paz ou pela força o operariado há de conquistar regalias que o ponham a salvo do regime das compressões.
O que se deu em São Paulo não é uma novidade de conquista. Lá fora o operariado tem feito coisa igual. O que em toda o parte se vê é que ele, com as suas lutas, tem conseguido dos governos várias reformas saciais, no interesse superior da coletividade, não sendo por isso justo que o Governo, em nosso país, em vez de aproximar o trabalho e o patronato, os separe e distancie, tornando-os inimigos irreconciliáveis. A legislação pátria necessita ser ampliada com regulamentos para serem observados no que toca ao dia de oito horas, ao trabalho das mulheres e das crianças, à higiene das Fábricas, etc., de maneira a encorajar o labor individual no domicílio e impedir a opressão industrial. Tudo isto demanda de um estudo sério, mercê do qual derive um programa de reformas, capaz de resolver o problema econômico que deu causa à recente greve.
Imitemos a Inglaterra. Em 1802 já o governo daquele liberal país se preocupava com questões operárias, entre as quais o trabalho das crianças. Várias reformas vieram em benefício do proletariado, sem nenhum prejuízo para os industriais. Ao contrário, a elevação de salários trouxe à industria inglesa benefícios incalculáveis. A exportação aumentou espantosamente e os industriais acabaram por se convencer de que, com um pouco de boa vontade, se podem resolver os mais intrincados problemas.
Imitemos a Inglaterra, imitemos a França, imitemos a Itália nas concessões feitas ao operariado, estabelecendo medidas liberais e criando instituições de previdência, tão necessárias no seio das grandes aglomerações operárias.
IMAGENS DA GREVE GERAL DE 1917
Trabalhadores em manifestação no
Praça da Concórdia, no Brás, no dia 16 de julho de 1917
10 DIAS QUE ABALARAM O MUNDO
|
Dez dias que abalaram o mundo
(1967)
ARTIGO Roberto Pompeu de
Toledo
EM 1917
O que se passava no Brasil (e no
mundo) há um século, quando éramos menos de 30 milhões, os políticos vestiam
casaca e a classe operária subiu ao centro do palco
GUERRA, REVOLUÇÕES, GREVES
– 100 anos atrás, pressões externas e internas submeteram o Brasil a conflitos
e inéditos desafios. 1917 é o ano em que a guerra na Europa, no curso do
terceiro para o quarto ano, acabaria por engolfar o Brasil. Na Rússia, a
revolução comandada por Lenin e Trotsky espalharia perplexidade, susto, medo e
esperança para muito além das fronteiras do antigo império dos czares. Tempos
novos se anunciavam, a sacudir a estruturas políticas, econômicas e sociais
mundo afora. “Quando a guerra terminar, quando começar o trabalho de reparação
e reconstrução, Nova York estará ocupando o antigo lugar de Londres e será para
a Wall Street que se voltarão os olhares ansiosos dos homens de negócio, que
até agora viviam preocupados com os movimentos da City”, escreveu, com lucidez,
o Correio da Manhã, do Rio de
Janeiro, na edição de 1.º de janeiro daquele ano. Nas principais cidades
brasileiras, a classe operária entraria em ebulição, e São Paulo conheceria uma
greve Geral de proporções antes nunca vistas.
Era um
tempo em que os governantes do país
ainda se embrulhavam em casacas, ao calor de 40 graus do Rio de Janeiro. O
Brasil chegava aos 28,5 milhões de habitantes com 70% de analfabetos, contra
menos de 40% dos vizinhos Argentina e Chile. Os locais que exibiam filmes,
aliás, films, eram ainda chamados de
cinematógrafos, e o presidente era o mineiro Wenceslau Braz. No primeiro dia do
ano foram apreendidos pela polícia do Rio de Janeiro panfletos que, sob o
título “1917 – Palavras de ano novo”, diziam: “Somos anarquistas e julgamos que
só uma transformação libertária, só uma reorganização sob princípios
anárquicos, poderá assegurar a todos e a cada um o bem-estar possível a que
todos e cada um têm direito”. Era um aperitivo para o que o ano reservava, em
desassossego operário. Em fevereiro morreu Oswaldo Cruz, o vencedor do Aedes aegypti, em sua primeira
encarnação. Deixou por escrito um pedido para que, por considerar a morte “fenômeno
fisiológico naturalíssimo”, a família o poupasse “dos atavios convencionais com
que a sociedade revestiu o ato da nossa retirada do cenário da vida”.
Em 5
de abril o navio brasileiro Paraná, navegando na costa francesa com uma carga de
café e feijão a ser entregue em Le Havre, foi posto a pique por um submarino alemão.
Segundo informaria o comandante, a embarcação foi torpedeada a bombordo, na
casa das máquinas, 1 metro abaixo da linha de flutuação. Em seguida, o submarino
veio à superfície e disparou cinco tiros de canhão. Da tripulação de quarenta
homens, três foguistas sofreram ferimentos, leves. Dois dias depois, uma
passeata de voluntários fardados, no Rio, sob chuva, entoava vivas aos aliados
e brados hostis à Alemanha. A multidão aplaudia. O governo brasileiro, que se
declarara neutro no início das hostilidades, via-se diante de uma nova
realidade.
Os
Estados Unidos, igualmente neutros a princípio, também tiveram navios vitimados
pela guerra submarina desencadeada, em desespero, pelos alemães do cáiser
Guilherme II. Em 6 de abril, o Congresso americano aprovou a declaração de guerra
proposta pelo presidente Woodrow Wilson. O Brasil, no dia 10, rompeu relações
com a Alemanha. Seguiram-se manifestações nacionalistas e guerreiras pelo país.
Em 23 de maio outro navio brasileiro, o Tijuca, foi torpedeado na costa da França.
No dia seguinte Wenceslau Braz, pobre dele, tão pacato que quando
vice-presidente do marechal Hermes da Fonseca, no mandato anterior, passara boa
parte do tempo a pescar em sua Itajubá, convocou reunião ministerial da qual
saiu uma proposta de rompimento da neutralidade a ser enviada ao Congresso. Os
nervos estavam à flor da pele, os brios nacionais ferviam.
Estamos
numa época de grandes homens. Ou melhor, uma época em que se acreditava na
existência de grandes homens – e o maior deles era Rui Barbosa, o enorme Rui,
então com 67 anos e cumprindo mandato de senador pela Bahia. Rui Comandava, com
seu prestígio, seu fervor e sua eloquência, a campanha ela adesão aos aliados.
Era também uma época em que no Congresso havia astros da oratória, e em que um
frisson percorria a espinha quando se anunciava que um deles ia falar. No dia
31, aguardado com os corações em festa, Rui Barbosa tomou a palavra no Senado. “A
verdade mais verdadeira entre as verdades é que nesta guerra não se trata de
nenhum interesse mercantil; o que se trata é da vida interna de cada uma das
nacionalidades ameaçadas pelo aparecimento de um terror novo, que procura
colocar acima de tudo o pavor da força e do despotismo”, disse. E disse muito
mais, ao longo de quatro horas – ele nunca deixava por menos. Nas galerias,
repletas, havia muitas mulheres e, segundo noticiou O Estado de São Paulo, “personalidades
salientes na política e na diplomacia”. Um dos presentes, o conselheiro Barros
Barreto, velho político do Império, declarou:
“Tenho
92 anos e estou aqui há quatro horas. Saio satisfeito e acho que o dia de hoje
é para nós mais grandioso do que o 25 de março de 1824, quando se procedeu aqui
o juramento da Constituição do Império. O que vi hoje faz-me saudade do tempo
em que votamos a Lei do Ventre Livre. Levantamo-nos para votar e não pudemos
mais sentar porque as cadeiras estavam altas de flores. É a primeira vez que
ouço o Sr. Rui Barbosa. Quis ouvi-lo para não morrer antes de ter esse prazer”.
A
guerra era terrível, mas tinha lá seu charme. Os jornais exibiam anúncios
assim: “A Casa Lebre acaba de receber grande quantidade de bengalas, última
novidade, cujos tipos são usados pelos marechais Joffre e Cadorna e também
usados por Kitchener, as quais acham-se expostas em suas vitrinas” (O Estado de
S. Paulo, 14/07/1917; o francês Joffre, o italiano Cadorna e inglês Kitchener
eram comandantes de tropas aliadas).
Pausa
para os assomos guerreiros, hora de atentar à voz rouca da depauperada classe
operária. Em 10 de junho, o Cotonifício Crespi, no bairro da Mooca, em São
Paulo, parou de trabalhar. Horas antes os operários haviam sido informados de
que o horário do serviço noturno seria prolongado. Era então simples assim. A
direção da fábrica informava. Não pedia a opinião da parte contrária, nem
julgava necessário oferecer-lhe remuneração pelo trabalho extra. As fábricas
eram insalubres e as jornadas podiam chegar a catorze horas. Não tardou para
que outras fábricas aderissem. No dia 9 de julho, um grupo de grevistas do
Cotonifício Crespi saiu em passeata rumo ao vizinho bairro do Brás e armou
piquetes à porta da fábrica Mariângela, do magnata Francisco Matarazzo, para
forçar sua paralisação. A Força Pública (nome da Polícia Militar à época)
interveio e, paus e pedra para cá, tiros para lá, caiu morto o operário José
Martinez, imigrante espanhol de 21 anos.
Os
estrangeiros, italianos em primeiro lugar, constituíam a maioria da classe
operária. O anarquismo era a ideologia dominante. No mesmo dia da morte de
Martinez, a greve chegou a 35 empresas e 15 000 trabalhadores. Além de exigirem
aumentos salariais e melhores condições de trabalho, os grevistas pediam
providências do governo contra a “carestia” (a palavra “inflação” ainda não
entrara em circulação). “A verdade é que a situação do operário em São Paulo
presentemente é, em geral, péssima”, afirmou O Estado de São Paulo. Em 11 de
julho, o cortejo que acompanhou o corpo de Martinez, do Braz ao Cemitério do
Araçá, converteu-se na maior manifestação operária até então ocorrida na
cidade. Nos dias seguintes entrou em ação uma “comissão de jornalistas”, que
reuniu representantes dos principais órgãos de imprensa da cidade, e, ao
aproximar as partes, jogou água na fervura.
A
greve se encerraria, com algumas concessões dos patrões, em 16 de julho, mas os
acontecimentos de São Paulo ainda reverberariam pelo país. No Rio, no dia 18,
em solidariedade aos companheiros de São Paulo, o operário Flávio dos Santos conseguiu
que 180 trabalhadores de uma fábrica de móveis o acompanhassem numa greve. A
iniciativa frutificou. Dos marceneiros o movimento avançou para os
serralheiros, os alfaiates, os sapateiros, os metalúrgicos. O Correio da Manhã
considerou, no dia 21, que “pela primeira vez desde o encerramento da questão
abolicionista” o país era “agitado pelo impulso de forças desconhecidas”. Em
agosto, houve greve geral em Porto Alegre. Em setembro, no Recife.
O ano
de 1917 foi aquele em que a classe operária impôs sua presença. O Brasil, dali
para a frente, haveria de levá-la em conta. Nem por isso os hábitos da alta cúpula
se alteraram. Conchavos semissecretos encaminharam-se já desde o começo do ano
à escolha do ex-presidente Rodrigues Alves como sucessor de Wenceslau Braz. Em
junho sua candidatura foi oficializada. A eleição só seria em março de 1918 e a
posse em 15 de novembro, mas as coisas eram de preferência assim – decididas com
boa antecedência, para evitar impertinências. Na eleição, como também era da
preferência dos caciques, não haveria outra candidatura e o único estorvo seria
a morte de Rodrigues Alves, antes de tomar posse. Não se pode querer tudo.
Em
outubro a guerra voltou a galvanizar o país. No dia 25 mais um navio
brasileiro, o Macau, foi afundado. No dia 26 o Brasil declarava guerra à
Alemanha. Escreveu o Correio da Manhã: “Ao cabo de quase meio século de paz
exterior, quando as idéias de guerra e de aventura se achavam inteiramente
alheias às suas preocupações, a nação brasileira, provocada por uma série de
atos de hostilidade, culminando numa expressão de beligerância que nos obrigou
a entrar resolutamente no grande conflito mundial, declara um estado de guerra,
com um gesto forte, unido e calmo, que vem desmentir todas as opiniões
pessimistas sobre a nossa fraqueza moral e sobre a nossa suposta falta de
espírito nacional”. O espírito guerreiro atingia desde o alto clero (“Unidos às
autoridades legitimamente constituídas, saibamos cumprir o nosso dever”, disse
o arcebispo de Olinda Recife, Sebastião Leme) até os anônimos que, em Ouro
Preto, segundo O Estado de S. Paulo, empenhavam-se em exercícios de tiro nas
montanhas.
Em
novembro a convulsão que desde o início do ano sacudia a Rússia desemboca num
golpe em que os comunistas tomam o poder. “Telegramas de Petrogrado dizem ser
grave a situação no país, em conseqüência da revolução fomentada pelos
maximalistas”, noticiou O Estado de S. Paulo, no dia 8. (“Maximalistas” eram os
que reivindicavam o “máximo” para a classe operária – os comunistas.) Já o
Correio da Manhã do mesmo dia pintava quadro diferente: “As últimas notícias
chegadas de Petrogrado são satisfatórias e fazem esperar que o efêmero reinado
dos maximalistas chega ao fim”. No Estado do dia seguinte, um telegrama de
Paris afirmava: “Embora não querendo fazer juízos antecipados, os jornais
formulam interrogações sobre o futuro. Entendem eles que os idealistas eslavos
se deixaram arrastar por uma minoria de traidores, corrompidos pelos alemães, e
consideram que o momento não é para recriminações, mas para se recorrer a todos
os meios de se conjurar o perigo que ameaça a Rússia livre”.
Com
telegramas que se atropelavam e se contradiziam, o mundo ia despertando para a
triunfal entrada do “agitador Lenin”, como diziam os jornais, na história do
século XX. Um freqüente colaborador do Estado, Mario Pinto Serva, advertiu: “Olhemos
para a Rússia e evitemos que sobre o nosso país recaia o anátema que merecem as
nações corroídas pelas ambições egoísticas e dilaceradas pelos apetites
pessoais”. Já Everardo Dias, um dos articuladores das greves em São Paulo, escreveria:
“1917 foi para nós como um arrebol anunciando uma aurora radiosa de redenção, e
sob nossos olhos estáticos surgiam os rostos dramáticos de homens e mulheres do
povo russo acompanhando seu guia genial”.
No
mesmo mês de novembro a pintora Anita Malfatti escandalizava o olhar dos bons
paulistanos com uma exibição da arte moderna que aprendera na Europa. Em
dezembro, no dia 28, o Correio da Manhã afirmou estar a nação “presa nas mãos
de um sindicato político, com sede na capital da República e sucursais pelos
estados, dispondo de tudo à revelia do povo”. Ficou para 1918 a contribuição
militar brasileira ao esforço de guerra: navios destacados para colaborar no
patrulhamento das rotas transatlânticas, uma dezena de pilotos integrados à
Real Força Aérea Britânica e uma equipe de médicos enviada à França. A que
seria a principal iniciativa, uma frota de oito navios de guerra, teve grande
parte de seus marinheiros dizimada, na escala em Dacar, pelo surto de gripe
espanhola que começava a se espalhar pelo mundo. O que dela restou só chegou à
Europa em 10 de novembro, véspera do armistício que selou o fim do conflito.
Sobre
a inter-relação das vozes no ensaio
Juliana
Tomé Alves
Faculdade
de Ciências e Letras – Universidade Estadual de São Paulo (UNESP)
jutomealves@yahoo.com.br
Abstract. From the reading and analysis of assays of the journalist Roberto Pompeu
de Toledo, published in the magazine Veja, one observes it frequent “citation”
of speeches of others in its composition. With the objective to understand the
paper of the citation in the constitution of these assays, the material
collected, taking as theoretical base the thought of the Circle of Bakhtin,
especially the reflections of the call “enunciation on the enunciation” is
analyzed, that it is not justified as a subjective-psychological consequence, a
time that it considers its social context of production and the reader, with
sights which if articulates - here the readers of the magazine Veja. This work
detaches the interaction between the speech to transmit and that which serves
or motivates to transmit it, since not only is referred to the speeches, but
also reflects on them.
Keywords.
Dialogism; assay; citation.
Resumo.
A partir da leitura e análise de ensaios do colunista Roberto Pompeu de Toledo,
publicados na revista Veja, observa-se a “citação” freqüente de discursos de
outrem na sua composição. Com o objetivo de compreender o papel da citação na
constituição desses ensaios, analisa-se o material coletado, tomando como base
teórica o pensamento do Círculo de Bakhtin, especialmente as reflexões da
chamada “enunciação sobre a enunciação”, que não se explica como um reflexo
subjetivo-psicológico, uma vez que se considera seu contexto social de produção
e o enunciatário, com vistas ao qual se articula – aqui, os leitores da revista
Veja. Este trabalho destaca a interação tramada entre o discurso a transmitir e
o que serve ou motiva a transmiti-lo, já que não apenas se reporta aos
discursos, mas também se reflete sobre eles.
Palavras-chave.
Dialogismo; ensaio; citação.
O discurso citado é o discurso no discurso, a
enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso,
uma enunciação sobre a enunciação. Mikhail Bakhtin
De acordo com Fiorin (2003) “Mikhail M. Bakhtin
(1895-1975) é um dos mais influentes teóricos da linguagem do século XX” (p.
22). Como princípio unificador de toda sua obra e do seu Círculo, trata a
concepção dialógica da linguagem sob seus diversos ângulos e manifestações. De
acordo com sua filosofia, a linguagem é um objeto ideológico por natureza,
veiculando, assim, valores. Esses, por sua vez, são configurados através da
interação social dos sujeitos em um contexto e grupo sociais e são agregados
aos objetos materiais do mundo. Por isso, entende-se que é somente através da
interdiscursividade e da interindividualidade que os signos podem existir e
emergir em uma unidade social.
Para Bakhtin, a relação do “eu” com o “outro” é um
princípio fundador do material sígnico, e também das formações discursivas.
Nesse sentido, a filosofia da linguagem proposta por ele e seu Círculo oferece
procedimentos de análise que privilegiam a identificação e caracterização das
diferentes vozes por meio das quais os textos se constituem, possibilitando o
exame do processo de transmissão/representação do discurso do outro. Nesse
contexto, entende-se que as dinâmicas da inter-relação das vozes representam a
inter-relação social dos sujeitos com a ideologia.
Sendo assim, tomando como base metodológica essa
concepção dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin, o trabalho que aqui se
apresenta pretende compreender o papel da citação na constituição dos ensaios
de Roberto Pompeu de Toledo, publicados semanalmente na revista Veja. Isso se
dá, pois, após leitura e análise de ensaios do colunista, observou-se que a
referência e a retomada de discursos de outrem são muito freqüentes na
constituição desses textos. O enunciador, na maioria dos seus ensaios, dialoga
com outras vozes sociais e outros discursos, refletindo sobre eles, realizando
um processo avaliativo. Sendo assim, em consonância com o quadro teórico
utilizado para análise, esse processo não se explica como um reflexo subjetivo-
psicológico – uma vez que se considera o contexto social de produção e o
enunciatário com os quais se articula – mas antes, uma atitude ativa diante de
outros discursos/enunciados. Portanto, é nessa articulação entre contextos
narrativos que esse trabalho pretende destacar e explicar a interação tramada
entre o discurso a transmitir e o que serve ou motiva a transmiti-lo, já que Toledo
não apenas reporta-se aos discursos, mas reflete sobre eles.
Para este trabalho, foi feito um recorte do córpus
geral proposto para análise de dissertação de mestrado – ensaios publicados
entre julho de 2005 e julho de 2006 – analisando-se os nove publicados entre os
meses de julho e agosto de 2005. Os ensaios de Toledo caracterizam-se pela sua
criticidade e avaliação do contexto-político social brasileiro atual. Tal como
outras opiniões, vozes sociais e textos que surgem e circulam na mídia acerca de
temas do contexto brasileiro, os textos em análise revelam posições e, assim,
se particularizam. Para tal, confrontam-se com outras vozes, principalmente
refutando-as e ironizando-as, deixando transparecer seu próprio caráter
julgador e uma modalização de indignação, principalmente. Assim, através de um
confronto com outras vozes sociais e outros discursos, a voz desse enunciador
singulariza-se. Ironias e analogias temporais também caracterizam o estilo
desse gênero, porém, esses mecanismos discursivos não serão nem privilegiados,
nem aprofundados neste trabalho, atendo-se aos processos de apropriação dos
discursos de outrem. Através do embate discursivo travado entre o discurso
citado e o discurso que serve para transmiti-lo, o enunciador expõe seu julgamento
e avaliação do contexto políticosocial brasileiro atual, particularizando,
através da sua voz, assuntos públicos. Por tratar de temas que estão em
circulação na mídia próximos à semana de publicação do ensaio 1 , verificou-se
nos ensaios estudados (publicados entre julho e agosto de 2005, período marcado
pelos escândalos do mensalão e de denúncias políticas envolvendo o governo e o
PT) uma recorrência a certas personalidades e temas, como Lula, José Dirceu,
Marcos Valério, Renilda de Souza (esposa de Marcos Valério), jogador Robinho, o
publicitário Duda Mendonça, o brasileiro morto na Inglaterra Jean Charles de
Menezes, Roberto Jefferson, governo e PT. Dessa maneira, percebe-se a
atualidade temática dos ensaios de Toledo, que, ao tratar de temas públicos
atuais, particulariza sua voz com um estilo próprio, o qual se mostra crítico,
julgador, irônico, mas ao mesmo tempo, não categórico. Isso fica evidente tanto
através do uso de adjetivos, ironias e analogias temporais, como através do
embate discursivo travado entre o discurso do enunciador e os discursos
reportados.
De acordo com Faraco (2003),
No processo de referenciação, realizam-se (...) duas
operações simultâneas nos signos: eles refletem e refratam o mundo. (...) Com
nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos (...)
diversas interpretações (refrações) desse mundo. (FARACO, 2003, p. 52, grifos
do autor).
Sendo assim, há uma dinamicidade no universo das
significações, a qual pode ser percebida nos ensaios de Toledo, em que o enunciador,
ao tratar de temas públicos e atuais, ao mesmo tempo em que reflete sobre eles,
re-significa-os, pois dialoga com eles, avaliando-os. Nos ensaios, essa voz
julgadora se mostra, dentre outros mecanismos, através do recurso da citação. O
enunciador, por meio de uma atitude responsiva diante de assuntos polêmicos e
da atualidade, recupera discursos de personalidades ou dos próprios
“personagens” tratados em seu texto, para confirmá-los ou refutá-los,
dependendo da sua estratégia enunciativa. Ao inseri-los no contexto de produção
do seu enunciado, avaliando-os, atribui-lhes novos índices de valor.
Para melhor caracterizar e pontuar os processos
dialógicos recorrentes nesses ensaios e as formas de apropriação dos discursos
de outrem, tomou-se como objeto de análise específico e exemplificador para
esse trabalho o ensaio publicado em 06 de julho de 2005, intitulado “Glória e
desdita de um dono de butique” 2 . Nele, Toledo trata da integridade e ética
políticas de José Dirceu - uma vez que esse período foi marcado pelos
escândalos do mensalão – argumentando que aquele que um dia fora um “defensor
das políticas de esquerda” via-se agora envolvido em esquemas antes combatidos
severamente pela militância de esquerda. Para provar sua tese de que José
Dirceu possui uma “identidade dupla” e está perdido num “labirinto” político, o
enunciador organiza em se texto relatos de fatos políticos ocorridos com o
ex-ministro que culminaram com a cassação de seus direitos políticos. Traça um
panorama desde a saída da Câmara dos Deputados, à entrega do seu cargo de chefe
da Casa Civil a Dilma Rousseff, lembrando ainda dos tempos da ditadura – em que
Dirceu viveu clandestinamente na cidade de Cruzeiro do Oeste (PR) sob o
pseudônimo de Carlos Henrique Gouveia de Mello. Ao fazer esse percurso de
acontecimentos políticos que envolveram José Dirceu, o enunciador apropria-se
de discursos do próprio ex-deputado para, ora ironizando-os ou rebatendo-os,
ora confirmando-os, garantir sua tese de que “o verdadeiro” José Dirceu de
esquerda não existe, mas foi, na verdade, um personagem criado. No início do
ensaio, ao falar da saída de José Dirceu da Câmara dos Deputados, o enunciador
utiliza-se do discurso do ex-ministro, para, logo em seguida, rebatê-lo. O
enunciador recupera o discurso “Vou mobilizar o PT para dar combate àqueles que
querem interromper o processo político democrático e querem desestabilizar o
governo do presidente Lula”. 3 Em seguida, o enunciador, adotando uma voz
avaliadora e rebatendo a citação, afirma que o que José Dirceu fez, na verdade,
foi desestabilizar o governo em vez de mobilizá-lo, como afirmou. Prosseguindo
seu texto, o enunciador vai recorrendo a outros enunciados do próprio José
Dirceu, ora rebatendo-os, ora confrontando-os e mostrando suas contradições internas,
de modo a marcar a “duplicidade” do caráter político do ex-deputado. É nesse
sentido que se percebe um confronto ideológico refletido nos signos e na
relação entre os discursos que se entrecruzam num constante e intenso processo
dialógico de aceitações, refutações, afirmações, etc. Sendo assim, os ensaios
de Toledo são dialógicos, pois não se constroem sobre si mesmos, mas se
elaboram em vista do outro, o que lhes confere um caráter interdiscursivo. A
interdiscursividade, de acordo com Campos (2003) “faz com que o discurso
torne-se mais convincente, pois ao se referir a outros discursos, o enunciador
recorre a outros saberes, o que lhe dá argumentos para persuadir seu
enunciatário e provocar uma adesão efetiva” (CAMPOS, 2003, p. 19). Nesse
sentido, nesses ensaios o enunciador, ao recorrer a discursos de outrem, dá voz
a um outro, validando o que afirma e deixando transparecer, ao mesmo tempo, sua
posição e avaliação.
No percurso narrativo traçado por Toledo no ensaio
aqui tratado, através da recorrência e apropriação dos discursos do próprio
“personagem-tema” (José Dirceu), o enunciador recorre à memória do
enunciatário, além de mostrar incoerências internas desses discursos,
provocando um efeito de sentido de constatação – e não de avaliação. Nesse ensaio,
ao tratar da entrega do cargo de chefe da Casa Civil a Dilma Rousseff, o
enunciador faz uma analogia entre esse evento e a publicação de uma entrevista
concedida por Dirceu a Veja em 2002. Naquela ocasião, José Dirceu refere-se à
ministra como uma “camarada de armas” 4 , sua companheira nos movimentos contra
a ditadura militar. Toledo retoma a fala de Dirceu para refutá-la, afirmando
que Dilma Rousseff participara sim da luta armada, já José Dirceu nem ao menos
se envolvera. O enunciador propõe-se a provar essa tese baseado no discurso do
próprio ex-ministro, que, como se observa no texto, afirmou em 2002 “Não
gostava daquilo, não me envolvi” 5 na revista Veja. Desse modo, o enunciador
coloca em choque as duas falas proferidas pelo próprio ex-deputado – aquela em
que se dizia “camarada de armas” 6 e outra em que afirmou que, na verdade não
gostava e nunca se envolvera de fato com a guerrilha. Assim, o enunciador, ao
trazer estrategicamente discursos antagônicos como esses e opô-los entre si,
confirma a tese desejada, provocando um efeito de sentido de constatação. Além
disso, ao realizar esse embate discursivo, o enunciador diz sem assumir
categoricamente o que é dito. Ao recuperar discursos dos próprios
“personagens-tema” ou mesmo de grandes personalidades culturais ou políticas
para elucidar sua posição, desvencilha-se de um dizer absoluto, não
partidarizando seu julgamento, já que dá voz a um outro. Assim, suas críticas e
indignações constroem-se não por meio de uma voz autoral exclusiva, mas também
por meio de discursos de outrem.
Observando o córpus proposto, percebe-se que, além
de refutar ou ironizar os discursos recuperados, Toledo apóia alguns, os quais
vêem corroborar e enfatizar a tese defendida no texto como um todo. No ensaio
aqui discutido (“Glória e desdita de um dono de butique” 7 ) é mote do texto o
enunciado de José Dirceu, transcrito pelo jornal Estado de S. Paulo: “Descobri
que eu sou dois, eu e o personagem Zé Dirceu.” 8 . Como visto, o texto vai
explorar essa direção. Sendo assim, Toledo, ao recuperar esses discursos e
transpô-los no contexto narrativo do seu ensaio, dá-lhes uma nova significação
por meio da oposição com outros discursos, do uso de adjetivos, das ironias e
mesmo pelo percurso histórico que traça, mostrando, assim, as incoerências
internas desses discursos (e, neste caso, das incoerências políticas de
Dirceu). A apropriação e transmissão dessas outras vozes/discursos no interior
dos ensaios têm como marcas lingüísticas o uso das aspas. Conservando a
autonomia primitiva dos discursos reportados, o enunciador marca em seu texto a
diferenciação entre eles e o seu discurso, reafirmando, assim, o seu
distanciamento de uma voz categórica. Isso se dá, pois, ao dar voz a um outro,
desvencilha-se de um dizer absoluto.
O recurso da citação nos ensaios de Toledo,
portanto, recorre à memória do enunciatário, contribui para dar credibilidade
ao que é dito, além de fazer com que não se assuma uma voz autoral peremptória.
Recuperando discursos e adaptando-os de diferentes maneiras ao contexto de
produção do seu discurso, o ensaísta expõe seus valores, suas posições
ideológicas, relativizando-as ao mesmo tempo. Assim, além de ironias e
analogias temporais, que não foram exploradas neste trabalho, o estilo desses
ensaios fica marcado também pelo modo de interação e tratamento dado às vozes e
discursos de outrem. Portanto, o recurso da citação pode ser visto como um
produto da interação viva entre discursos e ideologias, possibilitando a
ressurreição de significados e novas possibilidades de significações deles em
contextos específicos, além de dar maior credibilidade ao que é dito.
Notas
1 A temporalidade dos enunciados é marcada nos
próprios textos pela voz do enunciador, que afirma que está tratando de temas
“da semana passada”, “dos últimos acontecimentos”, etc.
2 Veja, 06 de julho de 2005, p. 114.
3 Idem.
4 Idem.
5 Idem.
6 Idem.
7 Idem.
8 Idem.
Referências
BAKHTIN, M. (V.N. VOLOCHINOV) Marxismo e filosofia
da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec, 2004.
CAMPOS, Ana Lúcia Furquim. Dissertação de mestrado
Da Pausa que Refresca...Ao prazer de Viver! O Discurso Publicitário da
Coca-Cola. Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. 2003. Orientadora
Profª Drª Renata Coelho Marchezan.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo. As idéias
lingüísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.
FIORIN, J.L. Lição de método: Bakhtin e a poesia.
Revista Cult, n. 73, p 22-24, 2003. Disponível em:
www.cristovaotezza.com.br/critica/não_ficcao/f_prosa/p_03cult.html Acesso em:
16 jun. 2006.
MIOTELLO,V. Ideologia. In: BRAIT, B. Bakhtin
conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p. 167-176.
TOLEDO, R.P. Glória e desdita de um dono de butique.
Veja, São Paulo: Abril. edição 1912, ano 38, nº 27, p. 114, 06/07/2005. TOLEDO,
R.P. Nhô Lula e a tentativa do último milagre. Veja, São Paulo: Abril. edição
1913, ano 38, nº 28, p. 134, 13/07/2005.
TOLEDO, R.P. O futebol nas malhas do
subdesenvolvimento. Veja, São Paulo: Abril. edição 1914, ano 38, nº 29, p. 126,
20/07/2005.
TOLEDO, R.P.Uma furtiva lágrima. Veja, São Paulo:
Abril. edição 1915, ano 38, nº 30, p. 134, 27/07/2005.
TOLEDO, R.P. Leoa de um lado, gata distraída de
outro. Veja, São Paulo: Abril. edição 1916, ano 38, nº 31, p. 134, 03/08/2005.
TOLEDO, R.P. Sapos, desculpas e proxenetas. Veja,
São Paulo: Abril. edição 1917, ano 38, nº 32, p. 142, 10/08/2005.
TOLEDO, R.P. A mesma e triste direita de sempre.
Veja, São Paulo: Abril. edição 1918, ano 38, nº 33, p. 138, 17/08/2005.
TOLEDO, R.P. Um prodígio chamado Duda Mendonça.
Veja, São Paulo: Abril. edição 1919, ano 38, nº 34, p. 130, 24/08/2005.
TOLEDO, R.P. Huummm...Uau!Chi...Eureca!. Veja, São
Paulo: Abril. edição 1920, ano 38, nº 39, p. 126, 31/08/2005.
Revolução Russa
Queda
da monarquia, Revolução de 1917, Bolcheviques no poder, socialismo, comunismo,
Lênin, consolidação da revolução, formação da URSS, economia e administração,
resumo
Introdução
No
começo do século XX, a Rússia era um país de economia atrasada e dependente da
agricultura, pois 80% de sua economia estava concentrada no campo (produção de
gêneros agrícolas).
Rússia Czarista
Os
trabalhadores rurais viviam em extrema miséria e pobreza, pagando altos
impostos para manter a base do sistema czarista de Nicolau II. O czar governava
a Rússia de forma absolutista, ou seja, concentrava poderes em
suas mãos não abrindo espaço para a democracia. Mesmo os trabalhadores
urbanos, que desfrutavam os poucos empregos da fraca indústria russa,
viviam descontentes com os governo do czar.
No
ano de 1905, Nicolau II mostra a cara violenta e repressiva de seu governo. No
conhecido Domingo Sangrento, manda seu exército fuzilar milhares de
manifestantes. Marinheiros do encouraçado Potenkim também foram reprimidos pelo
czar.
Começava
então a formação dos sovietes (organização de trabalhadores russos) sob a
liderança de Lênin. Os bolcheviques começavam a preparar
a revolução socialista na Rússia e a queda da monarquia.
A Rússia na Primeira Guerra Mundial
O czar Nicolau II: absolutismo na
Rússia pré-revolução
Faltava
alimentos na Rússia czarista, empregos para os trabalhadores, salários dignos e
democracia. Mesmo assim, Nicolau II jogou a Rússia numa guerra mundial. Os
gastos com a guerra e os prejuízos fizeram aumentar muito a insatisfação
popular com o czar.
Greves, manifestações e a queda da
monarquia
As
greves de trabalhadores urbanos e rurais espalham-se pelo território russo.
Ocorriam muitas vezes motins dentro do próprio exército russo. As manifestações
populares pediam democracia, mais empregos, melhores salários e o fim da
monarquia czarista. Em 1917, o governo de Nicolau II foi retirado do poder e
assumiria Kerensky (mencheviqui) como governo provisório.
Lênin fala aos revolucionários em
1917
A Revolução Russa de outubro de
1917
Com
Kerenski no poder pouca coisa havia mudado na Rússia. Os bolcheviques,
liderados por Lênin, organizaram uma nova revolução que ocorreu em outubro de
1917. Prometendo paz, terra, pão, liberdade e trabalho, Lênin assumiu o governo
da Rússia e implantou o socialismo.
As terras foram redistribuídas para os trabalhadores do campo, os bancos foram
nacionalizados e as fábricas passaram para as mãos dos trabalhadores. Muitos
integrantes da monarquia, além de seus simpatizantes e opositores ao nascente
regime socialista, foram perseguidos e condenados a morte pelos
revolucionários.
Lênin
também retirou seu país da Primeira Guerra Mundial no ano de 1918. Foi
instalado o partido único: o PC (Partido Comunista).
A formação da URSS
Após
a revolução, foi implantada a URSS (União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas). Seguiu-se um período de grande crescimento econômico,
principalmente após a NEP ( Nova Política Econômica ). A URSS tornou-se uma
grande potência econômica e militar. Mais tarde rivalizaria com os Estados
Unidos na chamada Guerra Fria. Porém, após a revolução a situação da
população geral e dos trabalhadores pouco mudou no que diz respeito à
democracia. O Partido Comunista reprimia qualquer manifestação considerada
contrária aos princípios socialistas. A falta de democracia imperava na URSS.
Milhares de opositores foram perseguidos, presos e assassinados pelo governo.
Triste situação que perdurou durante toda a história da União Soviética.
Os líderes da União Soviética
durante o regime socialista:
-
Vladimir Lenin (8 de novembro de 1917 a 21 de janeiro de 1924)
- Josef Stalin (3 de abril de 1922 a 5 de março de 1953)
- Nikita Khrushchov (7 de setembro de 1953 a 14 de outubro de 1964)
- Leonid Brejnev (14 de outubro de 1964 a 10 de novembro de 1982)
- Iúri Andopov (12 de novembro de 1982 a 9 de fevereiro de 1984)
- Konstantin Chernenko (13 de fevereiro de 1984 a 10 de março de 1985)
- Mikhail Gorbachev (11 de março de 1985 a 24 de agosto de 1991)
REVOLUÇÃO
RUSSA
Temas Relacionados
•
Absolutismo
•
Bolcheviques
•
Czar Nicolau II
•
Filmes sobre a Revolução Russa
•
Lênin
•
Livros sobre a Revolução Russa
•
Questões sobre a Revolução Russa
•
Rússia - Federação Russa
•
Revolução
•
Stalin
Bibliografia Indicada
As
revoluções russas e o socialismo soviético
Autor:
Filho, Daniel Aarão Reis
Editora:
Scielo - Editora Une
Temas
do livro: História Geral, História Contemporânea, Revolução
Capítulo Sete São Bernardo
Graciliano Ramos
Por
esse tempo encontrei em Maceió, chupando uma barata na Gazeta do Brito, um
velho alto, magro, curvado, amarelo, de suíças, chamado Ribeiro. Via-se
perfeitamente que andava com fome. Simpatizei com ele e, como necessitava um
guardalivros, trouxe-o para São Bernardo. Dei-lhe alguma confiança e ouvi a sua
história, que aqui reproduzo pondo os verbos na terceira pessoa e usando quase
a linguagem dele.
Seu
Ribeiro tinha setenta anos e era infeliz, mas havia sido moço e feliz. Na
povoação onde ele morava os homens descobriam-se ao avistá-lo e as mulheres
baixavam a cabeça e diziam:
-
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Major.
Quando
alguém recebia cartas, ia pedir-lhe a tradução delas. Seu Ribeiro lia as
cartas, conhecia os segredos, era considerado e major.
Se
dois vizinhos brigavam por terra, Seu Ribeiro chamava-os, estudava o caso,
traçava as fronteiras e impedia que os contendores se grudassem.
Todos
acreditavam na sabedoria do Major. Com efeito, Seu Ribeiro não era inocente:
decorava leis, antigas, relia jornais, antigos, e, à luz da candeia de azeite,
queimava as pestanas sobre livros que encerravam palavras misteriosas de
pronúncia difícil. Se se divulgava uma dessas palavras esquisitas, Seu Ribeiro
explicava a significação dela e aumentava o vocabulário da povoação.
Os
outros homens, sim, eram inocentes. Acontecia às vezes que uma dessas criaturas
inocentes aparecia morta a cacete ou a faca. Seu Ribeiro, que era justo,
procurava o matador, amarrava-o, levava-o para a cadeia da cidade. E a família do
defunto ficava sob a proteção do Major. Também acontecia que uma sujeitinha
começava a chorar e acabava confessando que estava pejada. Seu Ribeiro
descobria o sedutor, chamava o padre, e o casamento se realizava na capela da
povoação. Nascia um menino e Seu Ribeiro era o padrinho. O Major decidia,
ninguém apelava. A decisão do Major era um prego.
Não
havia soldados no lugar, nem havia juiz. E como o vigário residia longe, a
mulher de Seu Ribeiro rezava o terço e contava histórias de santos às crianças.
É possível que nem todas as histórias fossem verdadeiras, mas as crianças
daquele tempo não se preocupavam com a verdade.
Seu
Ribeiro tinha família pequena e casa grande. A casa estava sempre cheia. Os
algodoais do Major eram grandes também. Nas colheitas a população corria para
eles.
E
os pretos não sabiam que eram pretos, e os brancos não sabiam que eram brancos.
Na
verdade Seu Ribeiro infundia respeito. Se havia barulho na feira, levantava o
braço e gritava: - Quem for meu me acompanhe.
E
a feira se desmanchava, o barulho findava, todo o mundo seguia o Major porque
todo o mundo era do Major.
Nas
noites de São João uma fogueira enorme iluminava a casa de Seu Ribeiro. Havia
fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do Major tinha muitas
carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam em redor dela, de braço dado.
Assava-se milho verde nas brasas e davam-se tiros medonhos de bacamarte. O
Major possuía um bacamarte, mas o bacamarte só se desenferrujava pelos festejos
de São João.
Ora,
essas coisas se passaram antigamente. Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu,
os afilhados do Major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de
ferro.
O
povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe
político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia.
Trouxeram
máquinas e a bolandeira parou.
Veio
o vigário, que fechou uma igreja bonita. As histórias na memória das crianças.
Chegou o médico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu Ribeiro
entristeceu, emagreceu e finou-se.
O
advogado abriu consultório, a sabedoria do Major encolheu-se e surgiram no foro
numerosas questões.
Efetivamente
a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens adotaram gravatas e profissões
desconhecidas. Os carros de bois deixaram de chiar nos caminhos estreitos.
O
automóvel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E impostos.
As
moças e os rapazes não rodeavam, de braço dado, as fogueiras de São João:
dançavam o tango, o frevo.
Um
dia Seu Ribeiro reconheceu que vivia numa casa grande demais. Vendeu-a e adquiriu
outra, pequena. Como havia agora liberdade excessiva, a autoridade dele foi
minguando, até desaparecer.
Seu
Ribeiro tinha um filho, que jogava futebol, e uma filha, que usava fitas,
muitas fitas. Acharam o lugar atrasado e fugiram.
Seu
Ribeiro escondeu-se, cheio de vergonha. Amofinou-se uma semana, desfez-se dos
cacarecos e foi procurar os filhos. Não os encontrou: andavam por aí, ela pelas
fábricas, ele no Exército. Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu
enfermarias de indigentes, dormiu nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de
loterias, tornou-se bicheiro e agente de sociedades ratoeiras. Ao cabo de dez
anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cento e cinqüenta mil-réis de
ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.
Quando
o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:
-
Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, Seu
Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo.
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada
nasceu em Barbacena (MG) em 1870. Pertencia a uma das famílias de maior
tradição na política brasileira, cujo membro mais ilustre foi seu tio-avô José
Bonifácio de Andrada e Silva, o "Patriarca da Independência".
Aluno
da Faculdade de Direito de São Paulo, participou do movimento republicano antes
de se formar em 1891. Iniciou a carreira política ainda no final do século XIX,
como vereador em Juiz de Fora, e em 1902 foi nomeado secretário de Finanças de
Minas Gerais. Nesse cargo, participou das negociações que levaram à assinatura
do Convênio de Taubaté, pelo qual os estados de Minas, São Paulo e Rio de
Janeiro instituíram a política de valorização do café, garantindo um preço
mínimo para o produto através da compra dos estoques excedentes pelos três
governos. Em 1906 assumiu a prefeitura de Belo Horizonte por um breve período e
no ano seguinte foi eleito senador estadual e novamente vereador em Juiz de
Fora. Escolhido presidente da Câmara Municipal, passou a exercer as funções de
prefeito da cidade.
Em
1911, elegeu-se deputado federal na legenda do Partido Republicano Mineiro
(PRM). Sucessivamente reeleito, permaneceu na Câmara dos Deputados até setembro
de 1917, quando, a convite do presidente Venceslau Brás, assumiu o Ministério
da Fazenda. Deixou o ministério em novembro de 1918, voltou à Câmara em maio do
ano seguinte e em 1925 foi eleito senador da República.
Eleito
presidente de Minas em março de 1926, tomou posse em setembro. Sua gestão foi
marcada por inovações, como a instituição do voto secreto nas eleições
estaduais e municipais, a reforma do ensino primário e normal, dirigida por
Francisco Campos e inspirada no movimento da Escola Nova, e a criação da
Universidade de Minas Gerais. Suas preocupações reformistas foram sintetizadas
na frase "Façamos a revolução antes que o povo a faça".
Por
sua condição de presidente de Minas, era o candidato natural à presidência da
República na sucessão de Washington Luís em 1930. No entanto, o acordo tácito
que vinha garantindo a alternância de São Paulo e Minas no governo federal foi
rompido quando Washington Luís, representante de São Paulo, preferiu indicar
outro paulista para sucessor. Preterido, Antônio Carlos passou a articular a
candidatura do gaúcho Getúlio Vargas à presidência. Tal projeto se concretizou
com a formação da Aliança Liberal, coligação que reunia os situacionismos de
Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba, e era ainda apoiada pela maioria dos
"tenentes" que haviam lutado contra o governo federal nos anos anteriores.
A
campanha presidencial foi bastante acirrada, mas a vitória na eleição de março
de 1930 coube ao candidato de Washington Luís. Enquanto isso, em Minas, Antônio
Carlos conseguiu eleger Olegário Maciel seu sucessor. Com a derrota na eleição
presidencial, setores da Aliança Liberal, principalmente os
"tenentes" e os políticos mais jovens, como Oswaldo Aranha e Virgílio
de Melo Franco, iniciaram articulações visando à derrubada de Washington Luís
pelas armas. Antônio Carlos, a princípio, manteve-se hesitante em relação ao
movimento armado e chegou mesmo a propor seu cancelamento. A evolução dos
fatos, porém, favoreceu os revolucionários. Já após a posse de Olegário Maciel
no governo de Minas em 7 de setembro, o movimento foi deflagrado em 3 outubro,
com o apoio das forças políticas dos três estados que haviam criado a Aliança
Liberal. Washington Luís foi deposto em 24 de outubro, e no mês seguinte Vargas
assumiu ao poder.
O
período que se seguiu à vitória da Revolução de 1930 foi marcado por disputas
entre os diferentes grupos que apoiavam o novo governo. Em Minas a disputa
tomou forma concreta com a criação da Legião de Outubro, agremiação que
procurava substituir o antigo PRM na condução da política estadual. Antônio
Carlos aderiu à nova organização e passou a fazer parte de sua direção.
Participou também do efêmero Partido Social Nacionalista, uma frustrada
tentativa de unificar as facções em luta na política mineira. Em fevereiro de
1933 participou afinal da fundação do Partido Progressista (PP), e nessa
legenda foi eleito, em maio seguinte, para a Assembléia Nacional Constituinte.
Comprometido com a candidatura de Vargas na eleição indireta para presidente, a
ser realizada pela Constituinte, recebeu o apoio deste para presidir a
Assembléia e foi, de fato, eleito para o cargo.
Após
a promulgação da nova Constituição em 1934, renovou seu mandato na Câmara dos
Deputados e foi confirmado como presidente da casa. Sua candidatura à sucessão
de Vargas, prevista para janeiro de 1938, chegou a ser cogitada mas não se
concretizou, em virtude da oposição que lhe foi movida pelo próprio Vargas e
pelo governador mineiro Benedito Valadares. Em maio de 1937, foi derrotado por
Pedro Aleixo na eleição para a presidência da Câmara. Deixou, então, o PP e
fundou o Partido Progressista Democrático, para dar apoio à candidatura
presidencial do governador paulista Armando Sales. Perdeu seu mandato
parlamentar em novembro de 1937, quando Vargas implantou a ditadura do Estado
Novo, fechando o Congresso e cancelando a eleição que apontaria seu sucessor.
Após
o golpe do Estado Novo, abandonou a atividade política para se dedicar a seus
negócios privados. Em 1943, negou-se a assinar o Manifesto dos Mineiros, que
fazia críticas à ditadura e rompia com a censura vigente no país desde 1937,
por ter sido o documento articulado por Pedro Aleixo e Virgílio de Melo Franco,
dois de seus desafetos na política mineira.
Morreu
no Rio de Janeiro, em 1946.
[Fonte: Dicionário
Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001]
SUMÁRIO
O
significado de Raízes do Brasil (Antonio Cândido).... 9
Post-Scriptum
(Antonio Cândido)................................. 23
Prefácio
da 2.ª edição.................................................... 25
Nota
da 3.ª edição 27
RAÍZES
DO BRASIL
O SIGNIFICADO DE “RAÍZES DO BRASIL”
A
certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair em
autocomplacência, pois o nosso testemunho se toma registro da experiência de
muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a
princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que
acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características
gerais da sua época. Então, registrar o passado não é falar de si; é falar dos
que participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no
momento particular do tempo que se deseja evocar.
Os
homens que estão hoje um pouco para cá ou um pouco para lá dos cinqüenta anos
aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de
passado e em função de três livros: Casagrande e senzala, de Gilberto Freyre,
publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar; Formação do Brasil
contemporâneo, de Caio Prado Júnior, publicado quando estávamos na escola
superior. São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem
exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise
social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo,
abafado pelo Estado Novo. Ao lado de tais livros, a obra por tantos aspectos
penetrante e antecipadora de Oliveira Viana já parecia superada, cheia de
preconceitos ideológicos e uma vontade excessiva de adaptar o real a desígnios
convencionais.
Era
justamente um intuito anticonvencional que nos parecia animar a composição
libérrima de Casa-grande e senzala, com a sua franqueza no tratamento da vida
sexual do patriarcalismo e a importância decisiva atribuída ao escravo na
formação do nosso modo de ser mais íntimo. O jovem leitor de hoje não poderá
talvez compreen
9
der,
sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força
revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro. Inclusive pelo
volume de informação, resultante da técnica expositiva, a cujo bombardeio as
noções iam brotando como numa improvisação de talento, que coordenava os dados
conforme pontos de vista totalmente novos no Brasil de então. Sob este aspecto,
Casa-grande e senzala é uma ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da
nossa sociedade, como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e mesmo Oliveira Viana,
e os pontos de vista mais especificamente sociológicos que se imporiam a partir
de 1940. Digo isso em virtude da preocupação do autor com os problemas de fundo
biológico (raça, aspectos sexuais da vida familiar, equilíbrio ecológico,
alimentação), que serviam de esteio a um tratamento inspirado pela antropologia
cultural dos norte-americanos, por ele divulgada em nosso país.
Três
anos depois aparecia Raízes do Brasil, concebido e escrito de modo
completamente diverso. Livro curto, discreto, de poucas citações, atuaria menos
sobre a imaginação dos moços. No entanto, o seu êxito de qualidade foi imediato
e ele se tornou um clássico de nascença. Daqui a pouco, veremos as
características a que isso foi devido. Por enquanto, registremos que a sua
inspiração vinha de outras fontes e que as suas perspectivas eram diferentes.
Aos jovens forneceu indicações importantes para compreenderem o sentido de
certas posições políticas daquele momento, dominado pela descrença no
liberalismo tradicional e a busca de soluções novas; seja, à direita, no
integralismo, seja, à esquerda, no socialismo e no comunismo. A atitude do
autor, aparentemente desprendida e quase remota, era na verdade condicionada
por essas tensões contemporâneas, para cujo entendimento oferecia uma análise
do passado. O seu respaldo teó rico prendia-se à nova história social dos
franceses, à sociologia da cultura dos alemães, a certos elementos de teoria
sociológica e etnoló gica também inéditos entre nós. No tom geral, uma
parcimoniosa elegância, um rigor de composição escondido pelo ritmo
despreocupado e às vezes sutilmente digressivo, que faz lembrar Simmel e nos
parecia um corretivo à abundância nacional.
Diferente
dos anteriores, Formação do Brasil contemporâneo surgiu nove anos depois do
primeiro, seis depois do segundo, em pleno Estado Novo repressivo e renovador.
Nele se manifestava um autor que não disfarçava o labor da composição nem se
preocupava
10
com
a beleza ou expressividade do estilo. Trazendo para a linha de frente os
informantes coloniais de mentalidade econômica mais só lida e prática, dava o
primeiro grande exemplo de interpretação do passado em função das realidades
básicas da produção, da distribuição e do consumo. Nenhum romantismo, nenhuma
disposição de aceitar categorias banhadas em certa aura qualitativa — como “
feudalismo” ou “ família patriarcal” —, mas o desnudamento operoso dos
substratos materiais. Em conseqüência, uma exposição de tipo factual,
inteiramente afastada do ensaísmo (marcante nos dois anteriores) e visando a
convencer pela massa do dado e do argumento. Como linha interpretativa, o
materialismo histórico, que vinha sendo em nosso meio uma extraordinária
alavanca de renovação intelectual e política; e que, nessa obra, aparecia pela
primeira vez como forma de captação e ordenação do real, desligado de
compromisso partidário ou desígnio prático imediatista. Ao seu autor, já
devíamos um pequeno livro de 1934, que atuara como choque revelador, por ter
sido a primeira tentativa de síntese da nossa história baseada no marxismo:
Evolução política do Brasil.
Ao
evocar esses impactos intelectuais sobre os moços de entre 1933 e 1942, talvez
eu esteja focalizando de modo algo restritivo os que adotavam posições de
esquerda, como eu próprio: comunistas e socialistas coerentemente militantes,
ou participando apenas pelas idéias. Para nós, os três autores citados foram
trazendo elementos de uma visão do Brasil que parecia adequar-se ao nosso ponto
de vista. Traziam a denúncia do preconceito de raça, a valorização do elemento
de cor, a crítica dos fundamentos “ patriarcais” e agrários, o discernimento
das condições econômicas, a desmistificação da retórica liberal. Mas talvez
significassem outra coisa para os jovens da direita, que em geral, se bem me
lembro, tendiam a rejeitá-los, olhá-los com desconfiança ou, na medida do
possível, ajustar ao menos o primeiro aos seus desígnios. Esses nossos
antagonistas preferiam certos autores mais antigos, com orientação metodológica
de tipo naturalista ou (no sentido amplo) positivista, como Oliveira Viana e
Alberto Torres, dos quais tiravam argumentos para uma visão hierárquica e
autoritária da sociedade, justamente a que Sérgio Buarque de Holanda criticava
em Raízes do Brasil.
Caberia
aqui, aliás, uma reflexão desapaixonada sobre esses adversários da mesma
geração, em geral integralistas. Apesar da estima pessoal que tínhamos
eventualmente por alguns deles, nós os reputá
11
vamos
representantes de uma filosofia política e social perniciosa, sendo, como era,
manifestação local do fascismo. No entanto, a distância mostra que o
integralismo foi, para vários jovens, mais do que um fanatismo e uma forma de
resistência reacionária. Foi um tipo de interesse fecundo pelas coisas
brasileiras, uma tentativa de substituir a platibanda liberalóide por algo mais
vivo. Isso explica o número de integralistas que foram transitando para
posições de esquerda — da cisão precoce de Jeová Mota às abjurações do decênio de 1940, durante a guerra e depois dela. Todos sabem que nas tentativas de
reforma social cerceadas pelo golpe de 1964 participaram antigos integralistas
identificados às melhores posições do momento. Ex-integralistas que chegaram
aos vários matizes da esquerda, desde a “ positiva” , batizada assim por um dos
mais brilhantes dentre eles, até às atitudes abertamente revolucionárias —
enquanto, de outro lado, alguns dentre os que antes formavam à esquerda
acabaram por virar espoletas ativíssimos da reação. Sirvam estas notas para
ilustrar o balancez que é o destino das gerações e sugerir a atmosfera
intelectual em que apareceu e atuou Raízes do Brasil.
No
pensamento latino-americano, a reflexão sobre a realidade social foi marcada,
desde Sarmiento, pelo senso dos contrastes e mesmo dos contrários —
apresentados como condições antagônicas em função das quais se ordena a
história dos homens e das instituições. “ Civilização e barbárie” formam o
arcabouço do Facundo e, decênios mais tarde, também de Os sertões. Os
pensadores descrevem as duas ordens para depois mostrar o conflito decorrente;
e nós vemos os indivíduos se disporem segundo o papel que nele desempenham. Na
literatura romântica, a oposição era interpretada freqüentemente às avessas; o
homem da natureza e do instinto parecia mais autêntico e representativo,
sobretudo sob a forma extrema do índio; mas na literatura regional de tipo
realista, o escritor acompanha o esquema dos pensadores, como Rómulo Gallegos
no medíocre e expressivo Dona Bárbara, que desfecha no triunfo ritual da
civilização. Raízes do Brasil é construído sobre uma admirável metodologia dos
contrários, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão
latino-americana. Em vários níveis e tipos do real, nós vemos o pensamento do
autor se constituir pela exploração de conceitos polares. O esclarecimento não
decorre da opção prática ou teórica por
12
um
deles, como em Sarmiento ou Euclides da Cunha; mas pelo jogo dialético entre
ambos. A visão de um determinado aspecto da realidade histórica é obtida, no
sentido forte do termo, pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro,
ambos se interpenetram e o resultado possui uma grande força de esclarecimento.
Neste processo, Sérgio Buarque de Holanda aproveita o critério tipológico de
Max Weber; mas modificando-o, na medida em que focaliza pares, não pluralidades
de tipos, o que lhe permite deixar de lado o modo descritivo, para tratá-los de
maneira dinâmica, ressaltando principalmente a sua interação no processo
histórico. O que haveria de esquemático na proposição de pares mutuamente
exclusivos se tempera, desta forma, por uma visão mais compreensiva, tomada em
parte a posições de tipo hegeliano: “ [...] a história jamais nos deu o exemplo
de um movimento social que não contivesse os germes de sua negação — negação
essa que se faz, necessariamente, dentro do mesmo âmbito” (p. 180).
Com
este instrumento, Sérgio Buarque de Holanda analisa os fundamentos do nosso
destino histórico, as “ raízes” , aludidas pela metáfora do título, mostrando a
sua manifestação nos aspectos mais diversos, a que somos levados pela maneira
ambulante da composição, que não recusa as deixas para uma digressão ou um
parêntese, apesar de a concatenação geral ser tão rigorosa. Trabalho e
aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma
impessoal e impulso afetivo — são pares que o autor destaca no modo-de-ser ou
na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os
brasileiros.
O
capítulo 1, ‘ ‘Fronteiras da Europa’ ’ — que já evidencia o gosto pelo enfoque
dinâmico e o senso da complexidade —, fala da Ibéria para englobar Espanha e
Portugal numa unidade que se desmanchará depois em parte. Ao analisar, por
exemplo, a colonização da América, mostra as diferenças resultantes dos dois
países, completando uma visão do múltiplo no seio do uno. Nesse prelúdio estão
as origens mais remotas dos traços que estudará em seguida; é o caso do
tradicional personalismo, de que provêm a frouxidão das instituições e a falta
de coesão social. E aí faz uma reflexão de interesse atual, quando lembra que
se estes traços, considerados defeitos do nosso tempo, existiram desde sempre,
não tem sentido a nostalgia de um passado hipoteticamente mais bem ordenado; e
observa que ‘ ‘as épocas realmente vivas nunca foram tradicionalistas por
deliberação” (p. 33).
13
A
isto se ligaria ainda, na península Ibérica, a ausência do princípio de
hierarquia e a exaltação do prestígio pessoal com relação ao privilégio. Em
conseqüência, a nobreza permaneceu aberta ao mérito ou ao êxito, não se
enquistando, como noutros países; e ao se tornar acessível com certa
facilidade, favoreceu a mania geral de fidalguia. (“Em Portugal somos todos
fidalgos” , diz Fradique Mendes numa das cartas.) Com esta referência a um
velho sestro, o autor alude pela primeira vez a um dos temas fundamentais do
livro: a repulsa pelo trabalho regular e as atividades utilitárias, de que
decorre por sua vez a falta de organização, porque o ibérico não renuncia às
veleidades em benefício do grupo ou dos princípios. Fiel ao seu método,
mostra-nos uma conseqüência paradoxal: a renúncia à personalidade por meio da
cega obediência, única alternativa para os que não concebem disciplina baseada
nos vínculos consentidos, nascida em geral da tarefa executada com senso do
dever. “A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes
igualmente peculiares [aos ibéricos]. As ditaduras e o Santo Ofício parecem
constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à
desordem” (p. 39).
No
capítulo seguinte, “ Trabalho & aventura” , surge a tipologia básica do
livro, que distingue o trabalhador e o aventureiro, representando duas éticas
opostas: uma, busca novas experiências, acomoda-se no provisório e prefere
descobrir a consolidar; outra, estima a segurança e o esforço, aceitando as
compensações a longo prazo. “Entre esses dois tipos não há, em verdade, tanto
uma oposição absoluta como uma incompreensão radical. Ambos participam, em
maior ou menor grau, de múltiplas combinações e é claro que, em estado puro,
nem o aventureiro, nem o trabalhador possuem existência real fora do mundo das
idéias” (p. 44). Para a interpretação da nossa história, interessa notar que
o continente americano foi colonizado por homens do primeiro tipo, cabendo ao “
‘trabalhador’, no sentido aqui compreendido, papel muito limitado, quase nulo”
(p. 45). Aventureiros, sem apreço pelas virtudes da pertinácia e do esforço
apagado, foram os espanhóis, os portugueses e os próprios ingleses, que só no
século XIX ganhariam o perfil convencional por que os conhecemos. Quanto ao
Brasil, diz o autor que essas características foram positivas, dadas as
circunstâncias, negando que os holandeses pudessem ter feito aqui o que alguns
sonhadores imaginam possível. O português manifestou uma adaptabilidade ex-
14
cepcional,
mesmo funcionando “ com desleixo e certo abandono” (p. 43); em face da diversidade
reinante, o espírito de aventura foi “o elemento orquestrador por excelência”
(p. 46). A lavoura de cana seria, nesse sentido, uma forma de ocupação
aventureira do espaço, não correspondendo a “uma civilização tipicamente
agrícola” (p. 49), mas a uma adaptação antes primitiva ao meio, revelando baixa
capacidade técnica e docilidade às condições naturais. A escravidão, requisito
necessário deste estado de coisas, agravou a ação dos fatores que se opunham ao
espírito de trabalho, ao matar no homem livre a necessidade de cooperar e
organizar-se, submetendo-o, ao mesmo tempo, à influência amolecedora de um povo
primitivo.
“Herança
rural” , o terceiro capítulo, parte da deixa relativa à agricultura, analisa a
marca da vida rural na formação da sociedade brasileira. Repousando na
escravidão, ela entre em crise quando esta declina; baseando-se em valores e
práticas ligadas aos estabelecimentos agrícolas, suscita conflitos com a
mentalidade urbana. A essa altura, define-se no livro uma segunda dicotomia básica,
a relação rural—urbano, que marca em vários níveis a fisionomia do Brasil.
Tudo
dependia, no passado, da civilização rústica, sendo os próprios intelectuais e
políticos um prolongamento dos pais fazendeiros e acabando por “ dar-se ao
luxo” de se oporem à tradição. Da sua atividade provém muito do progresso
social que acabaria por liquidar a sua classe ao destruir-lhe a base, isto é, o
trabalho escravo. É o caso da febre de realizações materiais do decênio de
1850, quando, em virtude da Lei Eusébio, que proibia o tráfico de escravos, os
capitais ociosos foram canalizados para os melhoramentos técnicos próprios da
civilização das cidades, constituindo uma primeira etapa para o “triunfo
decisivo dos mercadores e especuladores urbanos” . O malogro desse primeiro
ímpeto, como do de Mauá, deveu-se à “radical incompatibilidade entre as formas
de vida copiadas de nações socialmente mais avançadas, de um lado, e o
patriarcalismo e personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens
seculares” (p. 79).
A
grande importância dos grupos rurais dominantes, encastelados na autarquia
econômica e na autarquia familiar, manifesta-se no plano mental pela
supervalorização do “talento” , das atividades intelectuais que não se ligam ao
trabalho material e parecem brotar de uma qualidade inata, como seria a
fidalguia. A esse respeito, Sérgio Buarque de Holanda desmascara a posição
extremamente reacioná-
15
ria
de José da Silva Lisboa, que um singular engano tem feito considerar como
pensador progressista.
A
paisagem natural e social fica marcada pelo predomínio da fazenda sobre a
cidade, mero apêndice daquela. A fazenda se vinculava a uma idéia de nobreza e
constituía o lugar das atividades permanentes, ao lado de cidades vazias —
ruralismo extremo, devido a um intuito do colonizador e não a uma imposição do
meio.
A
alusão à cidade estabelece a conexão com o capítulo 4, “ O semeador e o
ladrilhador” , que começa pelo estudo da importância da cidade como instrumento
de dominação e da circunstância de ter sido fundada neste sentido. Aqui
chegamos a um dos momentos em que se nota a diferença entre espanhol e
português, depois da caracterização comum do princípio.
“Ladrilhador”
, o espanhol acentua o caráter da cidade como empresa da razão, contrária à
ordem natural, prevendo rigorosamente o plano das que fundou na América, ao
modo de um triunfo da linha reta, e que na maioria buscavam as regiões
internas. A isso correspondia o intuito de estabelecer um prolongamento estável
da metrópole, enquanto os portugueses, norteados por uma política de
feitoria, agarrados ao litoral, de que só se desprenderiam no século xvm, foram
“ semeadores” de cidades irregulares, nascidas e crescidas ao deus-dará,
rebeldes à norma abstrata. Esse tipo de aglomerado urbano “ não chega a
contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da
paisagem” (p. 110).
Isso
parece ao autor o resultado de um realismo chão, que foge das imaginações e das
regras, salvo quando elas viram rotina e podem ser aceitas sem esforço. Daí o
caráter prudente, desprovido de arroubos da expansão portuguesa — instalando
(pensamos nós) um novo elemento de contradição no espírito de aventura antes
definido e dando um aspecto peculiar de “ desleixo” ao capricho do semeador. O
interesse do português pelas suas conquistas foi sobretudo apego a um meio de
fazer fortuna rápida, dispensando o trabalho regular, que nunca foi virtude
própria dele. A facilidade de ascensão social deu à burguesia lusitana
aspirações e atitudes da nobreza, à qual desejava equiparar-se, desfazendo os
ensejos de formar uma mentalidade específica, a exemplo de outros países.
O
capítulo sobre “o homem cordial” aborda características que nos são próprias,
como conseqüência dos traços apontados antes. Formado nos quadros da estrutura
familiar, o brasileiro recebeu o
16
peso
das “relações de simpatia” , que dificultam a incorporação normal a outros
agrupamentos. Por isso, não acha agradáveis as relações impessoais,
características do Estado, procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo.
Onde pesa a família, sobretudo em seu molde tradicional, dificilmente se forma
a sociedade urbana de tipo moderno. Em nosso país, o desenvolvimento da
urbanização criou um “ desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos
ainda hoje” (p. 145). E a essa altura, Sérgio Buarque de Holanda emprega, penso
que pela primeira vez no Brasil, os conceitos de “patrimonialismo” e “
burocracia” , devidos a Max Weber, a fim de elucidar o problema e dar um
fundamento sociológico à caracterização do “ homem cordial” , expressão tomada
a Ribeiro Couto. O “ homem cordial” não pressupõe bondade, mas somente o
predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas
manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se
opõem aos ritualismos da polidez.
O
“homem cordial” é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem
da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das
afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.
O
capítulo 6, “Novos tempos” , estuda certas conseqüências dos anteriores na
configuração da sociedade brasileira, a partir da vinda da família real, que
causou o primeiro choque nos velhos padrões coloniais.
Ao
que se poderia chamar “ mentalidade cordial” estão ligados vários traços importantes,
como a sociabilidade apenas aparente, que na verdade não se impõe ao indivíduo
e não exerce efeito positivo na estruturação de uma ordem coletiva. Decorre
deste fato o individualismo, que aparece aqui focalizado de outro ângulo e se
manifesta como relutância em face da lei que o contrarie. Ligada a ele, a falta
de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior.
Retomando
o problema dos intelectuais, o autor assinala agora a satisfação com o saber
aparente, cujo fim está em si mesmo e por isso deixa de aplicar-se a um alvo
concreto, sendo procurado sobretudo como fator de prestígio para quem sabe. Já
que a natureza dos objetivos é secundária, os indivíduos mudam de atividade com
uma freqüência que desvenda essa busca de satisfação meramente pessoal. Daí
valorizarem-se as profissões liberais que, além de permitirem as manifestações
de independência individual, prestam-se ao saber de fachada. Devido à crise das
velhas instituições agrárias, os membros
17
das
classes dominantes transitam facilmente para tais profissões, desligadas da
necessidade de trabalho direto sobre as coisas, que lembra a condição servil.
Relacionando
a tais circunstâncias o nosso culto tradicional pelas formas impressionantes, o
exibicionismo, a improvisação e a falta de aplicação seguida, o autor
interpreta a voga do positivismo no Brasil como decorrência desta última
característica — pois o espírito repousava satisfeito nos seus dogmas
indiscutíveis, levando ao máximo a confiança nas idéias, mesmo quando
inaplicáveis.
Na
vida política, a isso correspondem o liberalismo ornamental (que em realidade
provém do desejo de negar uma autoridade incômoda) e a ausência de verdadeiro
espírito democrático. “ A democracia no Brasil foi sempre um lamentável
mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de
acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos
privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra
os aristocratas” (p. 160). Os nossos movimentos “aparentemente reformadores”
teriam sido, de fato, impostos de cima para baixo pelos grupos dominantes.
O
capítulo 7, “Nossa revolução” , é bastante compacto e precisa ser lido com
senso dos subentendidos, pois a composição reduz ao mínimo os elementos
expositivos. O seu movimento consiste em sugerir (mais do que mostrar) como a
dissolução da ordem tradicional ocasiona contradições não resolvidas, que
nascem no nível da estrutura social e se manifestam no das instituições e
idéias políticas.
Um
dos seus pressupostos, talvez o fundamental, é a passagem do rural ao urbano,
isto é, ao predomínio da cultura das cidades, que tem como conseqüência a
passagem da tradição ibérica ao novo tipo de vida, pois aquela dependia
essencialmente das instituições agrárias. Tal processo consiste no
“aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um
estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de americano, porque seus
traços se acentuam com maior rapidez em nosso hemisfério” (p. 172). Esta
transformação tem como episódio importante a passagem da cana-de-açúcar ao
café, cuja exploração é mais ligada aos modos de vida modernos.
Os
modelos políticos do passado continuam como sobrevivência, pois antes se
adequavam à estrutura rural e agora não encontram apoio na base econômica. Daí
o aspecto relativamente harmonioso do
18
Império,
ao contrário da República, que não possui um substrato íntegro, como era o de
tipo colonial. Cria-se então um impasse, que é resolvido pela mera substituição
dos governantes ou pela confecção de leis formalmente perfeitas. Oscilando
entre um extremo e outro, tendemos de maneira contraditória para uma
organização administrativa ideal, que deveria funcionar automaticamente pela
virtude impessoal da lei, e para o mais extremo personalismo, que a desfaz a
cada passo.
Chegado
a este ponto, Sérgio Buarque de Holanda completa o seu pensamento a respeito
das condições de uma vida democrática no Brasil, dando ao livro uma atualidade
que, em 1936, o distinguia dos outros estudos sobre a sociedade tradicional e o
aproximava de autores que respondiam em parte ao nosso desejo de ver claro na
realidade presente, como Virgínio Santa Rosa.
Para
ele, a “nossa revolução” é a fase mais dinâmica, iniciada no terceiro quartel
do século XIX, do processo de dissolução da velha sociedade agrária, cuja base
foi suprimida de uma vez por todas pela Abolição. Trata-se de liquidar o
passado, adotar o ritmo urbano e propiciar a emergência das camadas oprimidas
da população, únicas com capacidade para revitalizar a sociedade e dar um novo
sentido à vida política. O seu texto de apoio, no caso, são as considerações
lúcidas de um viajante estrangeiro, Herbert Smith, que ainda no tempo da
monarquia falava da necessidade de uma “revolução vertical” , diferente das reviravoltas
meramente de cúpula, que “trouxesse à tona elementos mais vigorosos, destruindo
para sempre os velhos e incapazes” , pois embora fossem estimáveis os senhores
dos grupos dominantes, os membros dos grupos dominados “ fisicamente não há
dúvida que são melhores do que a classe mais elevada, e mentalmente também o
seriam se lhes fossem favoráveis as oportunidades” . E Sérgio Buarque de
Holanda pensa que os acontecimentos do nosso tempo na América Latina se
orientam para esta ruptura do predomínio das oligarquias, com o advento de
novas camadas, condição única para vermos “ finalmente revogada a velha ordem
colonial e patriarcal, com todas as conseqüências morais, sociais e políticas
que ela acarretou e continua a acarretar” (p. 180). E ajunta: “ Contra sua
cabal realização é provável que se erga, e cada vez mais obstinada, a
resistência dos adeptos de um passado que a distância já vai tingindo de cores
idílicas. Essa resistência poderá, segundo seu grau de intensidade,
manifestar-se em certas expansões de fundo senti
19
mental
e místico limitada ao campo literário, ou pouco mais. Não é impossível, porém,
que se traduza diretamente em formas de expressão social capazes de restringir
ou comprometer as esperanças de qualquer transformação profunda” (p. 181).
Estas
tendências de tipo reacionário bem poderiam, para o autor, encarnar-se na
propensão sul-americana para o caudilhismo, que intervém no processo
democrático como forma suprema do personalismo e do arbítrio. No entanto,
parece-lhe que há entre nós condições que permitem a convergência rumo à
democracia — como a repulsa pela hierarquia, a relativa ausência dos
preconceitos de raça e cor, o próprio advento das formas contemporâneas de
vida.
Para
nós, há trinta anos atrás, Raízes do Brasil trouxe elementos como estes,
fundamentando uma reflexão que nos foi da maior importância. Sobretudo porque o
seu método repousa sobre um jogo de oposições e contrastes, que impede o
dogmatismo e abre campo para a meditação de tipo dialético.
Num
momento em que os intérpretes do nosso passado ainda se preocupavam sobretudo
com os aspectos de natureza biológica, manifestando, mesmo sob aparência do
contrário, a fascinação pela “ raça” , herdada dos evolucionistas, Sérgio
Buarque de Holanda puxou a sua análise para o lado da psicologia e da história
social, com um senso agudo das estruturas. Num tempo ainda banhado de
indisfarçável saudosismo patriarcalista, sugeria que, do ponto de vista
metodológico, o conhecimento do passado deve estar vinculado aos problemas do
presente. E, do ponto de vista político, que, sendo o nosso passado um
obstáculo, a liquidação das “ raízes” era um imperativo do desenvolvimento
histórico. Mais ainda: em plena voga das componentes lusas avaliadas
sentimentalmente, percebeu o sentido moderno da evolução brasileira, mostrando
que ela se processaria conforme uma perda crescente das características
ibéricas, em benefício dos rumos abertos pela civilização urbana e cosmopolita,
expressa pelo Brasil do imigrante, que há quase três quartos de século vem modificando
as linhas tradicionais. Finalmente, deu-nos instrumentos para discutir os
problemas da organização sem cair no louvor do autoritarismo e atualizou a
interpretação dos caudilhismos, que então se misturavam às sugestões do
fascismo, tanto entre os integralistas (contra os quais é visivelmente dirigida
uma parte do
20
livro)
quanto entre outras tendências, que dali a pouco se concretizariam no Estado
Novo. Com segurança, afirmou estarmos entrando naquele instante na fase aguda
da crise de decomposição da sociedade tradicional. O ano era 1936. Em 37, veio
o golpe de Estado e o advento da fórmula ao mesmo tempo rígida e conciliatória,
que encaminhou a transformação das estruturas econômicas pela industrialização.
O Brasil de agora deitava os seus galhos, ajeitando a seiva que aquelas raízes
tinham recolhido.
São
Paulo, dezembro de 1967
Antonio
Cândido
21
POST-SCRIFTUM
Cinqüenta
anos depois Raízes do Brasil continua um grande livro cheio de sugestões e
originalidade. Nesse prefácio, escrito há quase vinte anos, procurei definir o
que ele foi para a minha geração, como um dos guias no conhecimento do país.
Hoje continuo achando o mesmo e mais alguma coisa. Em artigo posterior
desenvolvi um aspecto que me parece não ter sido ressaltado: a mensagem política.
Retomando
conforme esta óptica o grande trio mencionado, eu diria que Casa-grande e
senzala representa uma etapa avançada do I liberalismo das nossas classes
dominantes, com o seu movimento contraditório entre posições conservadoras e
certos ímpetos avançados. Formação do Brasil contemporâneo representa a
ideologia marxista, que tem como referência o trabalhador. No caso, fecundo
marxismo à brasileira, que ficaria melhor esclarecido em obras posteriores do
mesmo autor.
Raízes
do Brasil, caso diferente e curioso, exprime um veio pouco , conhecido, pouco
localizado e pouco aproveitado do nosso pensamento político-social, em cuja
massa predominantemente liberal e conservadora ele aparece de maneira
recessiva, entremeada ou excepcional. Falo do que se poderia chamar o
radicalismo potencial das classes médias, que no caso de Sérgio adquire timbre
diferenciador, ao voltar-se decididamente para o povo. Talvez tenha sido ele o
primeiro pensador brasileiro que abandonou a posição “ ilustrada” , segundo a
qual cabe a esclarecidos intelectuais, políticos, governantes administrar os
interesses e orientar a ação do povo. Há meio século, neste livro, Sérgio
deixou claro que só o próprio povo, tomando a iniciativa, poderia cuidar do seu
destino. Isto faz dele um coerente radical democrático, autor de contribuição
que deve ser explorada e desenvolvida no sentido de uma política popular
adequada às condições do Brasil, segundo princípios ideológicos definidos.
23
Por
isso, repito com realce o que escrevi no prefácio de 1967: uma das forças de
Raízes do Brasil foi ter mostrado como o estudo do passado, longe de ser
operação saudosista, modo de legitimar as estruturas vigentes, ou simples
verificação, pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos
democráticos integrais, isto é, os que contam com a iniciativa do povo
trabalhador e não o confinam ao papel de massa de manobra, como é uso.
São
Paulo, agosto de 1986
A.
C.
24
A evolução da moda em 100 anos
A evolução da música em apenas 4
minutos
REFERÊNCIAS
http://www.ibamendes.com/2011/06/blog-post_08.html
http://www.lpm.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_produto.asp&CategoriaID=673734&ID=643044
Veja
EDITORA ABRIL edição 2510 – ano 49 – n.º 52 28 de setembro de 2016
http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/edicoesanteriores/4publica-estudos-2007/sistema06/94.PDF
Estudos
Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 166 / 171
http://www.suapesquisa.com/russa/
https://veele.files.wordpress.com/2010/02/sc3a3obernardo-gracilianoramos.pdf
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/antonio_carlos_ribeiro_de_andrada
http://fjm.ikhon.com.br/proton/imagemprocesso/2013/07/EC3ED65F077EA3F500E4%7Dh_s_b_de_rz_br.pdf
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