meu douto amigo
"Aquella mediana senhora numca comprehendera aquelle immenso talento ! Creia-me, meu caro snr. Mollinet, seu dedicado - FRADIQUE."
QUEIRÓS, Eça de - A corresponência de Fradique Mendes.pdf 187/256 http://ge.fflch.usp.br/sites/ge.fflch.usp.br/files/upload/paginas/QUEIR%C3%93S%2C%20E%C3%A7a%20de%20-%20A%20correpond%C3%AAncia%20de%20Fradique%20Mendes.pdf
domingo, 6 de dezembro de 2020
Cristovam Buarque* - Sem Teto e Sem Futuro
- Blog do Noblat | Veja
Radicalismo solidário não é o bastante
Boulos trouxe uma cara nova para a esquerda, mas não apresentou ideias novas da esquerda. Trouxe o radicalismo solidário, decente e justo de não aceitar um sem-teto em frente a edifício sem morador, mas não defendeu reformas necessárias para fechar a fábrica de sem-teto que caracteriza a estrutura social brasileira. Ele aproximou a esquerda dos sem-teto, mas não dos sem-futuro: uma utopia para o Brasil, a ser construída sobre bases sustentáveis. Ele ressuscitou a solidariedade que a direita nunca teve nem terá, e a esquerda eleitoreira e sindical perdeu; mas passou a ideias que foram soterradas pela evolução da realidade. A impressão é que a esquerda não percebeu que o Muro de Berlim caiu, e a direita não aceita que a Lei Áurea foi proclamada.
Não percebemos que o Estado se esgotou financeira, ética e gerencialmente. Seu gigantismo se fez ineficiente e atende mais aos interesses da própria máquina do que aos da população. Não aceitamos que estatal não é sinônimo de público, ainda menos de popular. Não vimos que para servir melhor aos interesses do povo é preciso considerar a inversão na pirâmide etária e a velocidade do avanço técnico, que a realidade exige reformas econômicas.
Não entendemos que a globalização, não é uma invenção do capitalismo, mas uma marcha da civilização industrial, e que o papel do progressista é tirar proveito dela para todos.
Não percebemos que a política não se faz mais por partidos em polarizações nítidas, mas por meios complexos com divergências e convergências, dezenas de agentes nem sempre organizados. Ainda não entendemos que inflação é uma forma de corrupção que rouba o salário do trabalhador; e que por isto a estabilidade monetária é do interesse do povo, especialmente dos pobres. Não percebemos que além do trabalho e do capital, a Confiança dos investidores e consumidores também é um fator para o bom funcionamento da economia.
Ainda não queremos entender que os limites ecológicos ao crescimento exigem mais do que proteger a natureza, exigem substituir o PIB por novos indicadores de progresso.
Sobretudo, não entendemos que educação é o vetor do progresso, tanto econômico quanto social. Por isto não radicalizamos na defesa de que as escolas dos pobres devem ter a mesma qualidade que as escolas dos ricos Não apresentamos como se faria isto, em quanto tempo, quanto custaria e quem pagaria.
O problema da direita é seu reacionarismo, social, insensibilidade e opção pelos ricos, sem desejar um país integrado socialmente; o da esquerda é a opção pelos sindicatos, não pelo povo, e sua prisão ao presente eleitoral e a ideias progressistas em um mundo passado. Por isto, conseguimos cara nova para radicalismo solidário mas não radicalismo reformista para construir utopias novas. Queremos corretamente atender aos sem-teto, no presente, mas não propomos um Brasil futuro sem sem-teto. Não temos tido ousadia de olhar para o futuro, nem defender as ideias que ele exige. A direita não aceita plenamente a abolição da escravidão, a esquerda nega a queda do muro de Berlim.
*Cristovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília
https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/12/cristovam-buarque-sem-teto-e-sem-futuro.html
domingo, 6 de dezembro de 2020
Affonso Celso Pastore*- Risco de inflação e a reação do governo
- O Estado de S. Paulo
A esperança de que Bolsonaro não embarque em uma nova aventura expansionista não se deve ao seu discernimento
Com o resultado do terceiro trimestre, sabemos que a recuperação dentro de 2020 superou todas as expectativas, reduzindo a queda do PIB a algo em torno de 4,5%. As projeções de consenso da última semana informam que em 2021 o PIB deverá crescer em torno de 3,5%, mas não esclarecem que essa taxa é próxima do carry-over de 2020. Ou seja, há um crescimento de 3,5% entre 2020 e 2021, mas praticamente não há crescimento dentro de 2021. Para amenizar as preocupações, argumenta-se que a poupança dos ricos acumulada durante o afastamento social compensará a queda da demanda dos pobres, acarretada pelo fim da ajuda emergencial. Tenho dificuldades enormes com esse argumento. Com uma taxa de desemprego podendo chegar no pico a 20%, é difícil apostar no consumo dos mais pobres e, com a incerteza elevada, é difícil que os ricos não se protejam, guardando boa parte do que acumularam.
O fato é que a rápida recuperação – inegavelmente positiva – deixou uma herança fiscal que dificulta a continuidade do crescimento em 2021. Devido ao risco de insolvência do governo, o nível de incerteza da economia atingiu um recorde, inibindo os investimentos em capital fixo. Uma forma de aferir como a percepção deste risco se transmite é olhando para os prêmios de risco em ativos financeiros em mercados muito líquidos, como os de juros e de câmbio.
Com muito mais habilidade do que eu, em artigo recente Marcio Garcia demonstrou elegantemente o que se passou. Ele definiu a inclinação da curva de juros como a diferença entre as taxas de 10 e de um ano, e superpôs esta série ao câmbio nominal, medido em R$/US$. Iniciou sua série em junho 2019, quando o mercado ainda acreditava que o teto de gastos seria cumprido e o risco de insolvência era mais baixo, e a estendeu por todo o ano de 2020. É notável como estas duas séries caminham juntas. Nos dois casos, o prêmio de risco dá um salto semelhante tão logo se configura a percepção de que cresceu o risco de insolvência.
O aumento das taxas de juros em operações mais longas tem importância porque eleva a dificuldade na administração da dívida, cujo prazo médio de vencimento deverá cair abruptamente, expondo-nos ao risco da repressão financeira, piorando a curva de juros e o comportamento do câmbio. Não há espaço neste artigo para tratar deste problema, por isso me restrinjo ao câmbio. A depreciação cambial, que desde janeiro de 2020 acumula quase 30%, é a maior causa do aumento da inflação nos últimos meses.
Não deveria ser assim. Afinal, a economia deprimida tenderia a reduzir o repasse do câmbio aos preços. Mas não é esse o caso dos preços de alimentos, como a soja e derivados, carne e arroz, entre outros, que são exportáveis. Seus produtores repassam a depreciação cambial aos preços domésticos e, se a demanda cair, exportam todo o excedente. Os reajuste dos preços destes produtos nos armazéns e supermercados produziram nos últimos 12 meses uma inflação de quase 18% no item “alimentação no domicílio”. Não teria grande importância se a taxa de desemprego, que até setembro já havia atingido 14,8%, caísse bastante em 2021, e se houvesse um aumento da renda real. No entanto, sem a ajuda emergencial, a recuperação lenta ou mesmo a estagnação da economia dentro de 2021 não dá perspectivas de uma melhora no mercado de trabalho.
Há alguns meses escrevi sobre uma reação dos indivíduos a ganhos ou perdas imprevistas, cuja autoria erradamente atribuí a Richard Thaler, quando ele próprio reconhece que a autoria é de Kahneman e Tversky. Com o devido pedido de desculpa aos verdadeiros autores, repito o enunciado daquela conjectura: “a felicidade decorrente de um ganho inesperado é menor do que o sofrimento de uma perda inesperada”. Da mesma forma como a ajuda emergencial elevou a popularidade de Bolsonaro, seu encerramento deve derrubá-la o que, aliás, já está ocorrendo. Como reagirá o presidente diante de uma “queda inesperada” de sua popularidade, com a taxa de desemprego elevada, a economia estagnada e com uma inflação de alimentos que corrói o poder aquisitivo das classes de renda mais baixas junto às quais era popular?
Optará pela obediência ao teto de gastos ou terá preferência por gastar, aumentando sua popularidade? A esperança de que ele não embarque em uma nova aventura expansionista não se deve ao seu discernimento, que em matéria de economia é reconhecidamente baixo, e sim ao medo de ser punido pela depreciação cambial, que eleva a inflação.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
VIII
ao snr. e. mollinet
Director da Revista de Biographia e de Historia
Paris, setembro.
Meu caro snr. Mollinet.―Encontrei hontem á noite, ao voltar de Fontainebleau, a carta em que o meu douto amigo, em nome e no interesse da Revista de Biographia e de Historia, me pergunta quem é este meu compatriota Pacheco (José Joaquim Alves Pacheco), cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornaes de Portugal. E deseja ainda o meu amigo saber que obras, ou que fundações, ou que livros, ou que idéas, ou que accrescimo na civilisacão portugueza deixou esse Pacheco, seguido ao tumulo por tão sonoras, reverentes lagrimas.
Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como n'um resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu paiz nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma idéa. Pacheco era entre nós superior e illustre unicamente porque tinha um immenso talento. Todavia, meu caro snr. Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente acclamaram, nunca deu, da sua [172]força, uma manifestação positiva, expressa, visivel! O talento immenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente elle atravessou a vida por sobre eminencias sociaes: Deputado, Director geral, Ministro, Governador de bancos, Conselheiro d'Estado, Par, Presidente do conselho―Pacheco tudo foi, tudo teve, n'este paiz que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado do seu immenso talento. Mas nunca, n'estas situações, por proveito seu ou urgencia do Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sahir, para se affirmar e operar fóra, aquelle immenso talento que lá dentro o suffocava. Quando os amigos, os partidos, os jornaes, as repartições, os corpos collectivos, a massa compacta da nação, murmurando em redor de Pacheco «que immenso talento!» o convidavam a alargar o seu dominio e a sua fortuna―Pacheco sorria, baixando os olhos serios por traz dos oculos dourados, e seguia, sempre para cima, sempre para mais alto, através das instituições, com o seu immenso talento aferrolhado dentro do craneo como no cofre d'um avaro. E esta reserva, este sorrir, este lampejar dos oculos, bastavam ao paiz que n'elles sentia e saboreava a resplandecente evidencia do talento de Pacheco.
Este talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em que Pacheco, desdenhando a Sebenta, assegurou «que o seculo XIX era um seculo de progresso e de luz». O curso [173]começou logo a presentir e a affirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta admiração cada dia crescente do curso, communicando-se, como todos os movimentos religiosos, das multidões impressionaveis ás classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um premio no fim do anno. A fama d'esse talento alastrou então por toda a academia―que, vendo Pacheco sempre pensabundo, já d'oculos, austero nos seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia alli um grande espirito que se concentra e se retesa todo em força intima. Esta geração academica, ao dispersar, levou pelo paiz, até os mais sertanejos burgos, a noticia do immenso talento de Pacheco. E já em escuras boticas de Traz-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com esperança:―«Parece que ha agora ahi um rapaz de immenso talento que se formou, o Pacheco!»
Pacheco estava maduro para a representação nacional. Veio ao seu seio―trazido por um governo (não recordo qual) que conseguira, com dispendios e manhas, apoderar-se do precioso talento de Pacheco. Logo na estrellada noite de dezembro em que elle, em Lisboa, foi ao Martinho tomar chá e torradas, se susurrou pelas mesas, com curiosidade:―«É o Pacheco, rapaz de immenso talento!» E desde que as Camaras se constituiram, todos os olhares, os do governo e os da opposição, se começaram a voltar com insistencia, quasi com anciedade, [174]para Pacheco, que, na ponta d'uma bancada, conservava a sua attitude de pensador recluso, os braços cruzados sobre o collete de velludo, a fronte vergada para o lado como sob o peso das riquezas interiores, e os oculos a faiscar... Finalmente uma tarde, na discussão da resposta ao discurso da Corôa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre zarolho que arengava sobre a «liberdade». O sacerdote immediatamente estacou com deferencia; os tachygraphos apuraram vorazmente a orelha: e toda a camara cessou o seu desafogado susurro, para que, n'um silencio condignamente magestoso, se podesse pela vez primeira produzir o immenso talento de Pacheco. No emtanto Pacheco não prodigalisou desde logo os seus thesouros. De pé, com o dedo espetado (geito que foi sempre muito seu), Pacheco affirmou n'um tom que trahia a segurança do pensar e do saber intimo:―«que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!» Era pouco, decerto:―mas a camara comprehendeu bem que, sob aquelle curto resumo, havia um mundo, todo um formidavel mundo, de idéas solidas. Não volveu a fallar durante mezes―mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisivel e inaccessivel se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu sêr. O unico recurso que restou então aos devotos d'esse immenso talento (que já os tinha, incontaveis) foi contemplar a testa de Pacheco―como se olha para o céo pela certeza [175]que Deus está por traz, dispondo. A testa de Pacheco offerecia uma superficie escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto d'elle, Conselheiros, e Directores geraes balbuciavam maravilhados:―«Nem é necessário mais! Basta vêr aquella testa!»
Pacheco pertenceu logo ás principaes commissões parlamentares. Nunca porém accedeu a relatar um projecto, desdenhoso das especialidades. Apenas ás vezes, em silencio, tomava uma nota lenta. E quando emergia da sua concentração, espetando o dedo, era para lançar alguma idéa geral sobre a Ordem, o Progresso, o Fomento, a Economia. Havia aqui a evidente attitude d'um immenso talento que (como segredavam os seus amigos, piscando o olho com finura) «está á espera, lá em cima, a pairar». Pacheco mesmo, de resto, ensinava (esboçando, com a mão gorda, o voar superior d'uma aza por sobre arvoredo copado) que o «talento verdadeiro só devia conhecer as coisas pela rama».
Este immenso talento não podia deixar de soccorrer os conselhos da Corôa. Pacheco, n'uma recomposição ministerial (provocada por uma roubalheira) foi Ministro:―e immediatamente se percebeu que massiça consolidação viera dar ao Poder o immenso talento de Pacheco. Na sua pasta (que era a da Marinha) Pacheco não fez durante os longos mezes de gerencia «absolutamente nada», como insinuaram tres ou quatro espiritos amargos e estreitamente positivos. Mas pela primeira vez, dentro d'este regimen, a nação deixou de curtir [176]inquietações e duvidas sobre o nosso Imperio Colonial. Porquê? Porque sentia que finalmente os interesses supremos d'esse Imperio estavam confiados a um immeaso talento, ao talento immenso de Pacheco.
Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surdia do seu silencio repleto e fecundo. Ás vezes porém, quando a opposição se tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com lentidão uma nota a lapis:―e esta nota, traçada com saber e madurissimo pensar, bastava para perturbar, acuar a opposição. É que o immenso talento de Pacheco terminára por inspirar, nas camaras, nas commissões, nos centros, um terror disciplinar! Ai d'esse sobre quem viesse a desabar com colera aquelle talento immenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatavel! Assim dolorosissimamente o experimentou o pedagogista, que um dia se arrojou a accusar o snr. Ministro do Reino (Pacheco dirigia então o Reino) de descurar a Instrucção do paiz! Nenhuma incriminação podia ser mais sensivel áquelle immenso espirito que, na sua phrase lapidaria e succulenta, ensinára que «um povo sem o curso dos lyceus é um povo incompleto». Espetando o dedo (geito sempre tão seu) Pacheco esborrachou o homem temerario com esta coisa tremenda:―«Ao illustre deputado que me censura só tenho a dizer que emquanto, sobre questões d'Instrucção Publica, s. exc.a, ahi n'essas bancadas, faz berreiro, eu, aqui n'esta cadeira, faço [177]luz!»―Eu estava lá, n'esse esplendido momento, na galeria. E não me recordo de ter jámais ouvido, n'uma assembléa humana, uma tão apaixonada e fervente rajada de acclamações! Creio que foi d'ahi a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de S. Thiago.
O immenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional. Vendo que inabalavel apoio esse immenso talento dava ás instituições que servia, todas o appeteceram. Pacheco começou a ser um Director universal de Companhias e de Bancos. Cubiçado pela Corôa, penetrou no Conselho de Estado. O seu partido reclamou avidamente que Pacheco fosse seu Chefe. Mas os outros partidos cada dia se soccorriam com submissa reverencia do seu immenso talento. Em Pacheco pouco a pouco se concentrava a nação.
Á maneira que elle assim envelhecia, e crescia em influencia e dignidades, a admiração pelo seu immenso talento chegou a tomar no paiz certas fórmas d'expressão só proprias da religião e do amor. Quando elle foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalmavam a mão no peito com uncção, reviravam o branco do olho ao céo, para murmurar piamente:―«Que talento!» E havia amorosos que, cerrando os olhos e repenicando um beijo nas pontas apinhadas dos dedos, balbuciavam com langor:―«Ai! que talento!» E, para que o esconder? Outros havia, a quem aquelle immenso talento amargamente irritava, como um [178]excessivo e desproporcional privilegio. A esses ouvi eu bradar com furor, atirando patadas ao chão:―«Irra, que é ter talento de mais!» Pacheco no emtanto já não fallava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta.
Não relembrarei a sua incomparavel carreira. Basta que o meu caro snr. Mollinet percorra os nossos annaes. Em todas as instituições, reformas, fundações, obras, encontrará o cunho de Pacheco. Portugal todo, moral e socialmente, está repleto de Pacheco. Foi tudo, teve tudo. Decerto, o seu talento era immenso! Mas immenso se mostrou o reconhecimento da sua patria! Pacheco e Portugal, de resto, necessitavam insubstituivelmente um do outro, e ajustadissimamente se completavam. Sem Portugal―Pacheco não teria sido o que foi entre os homens: mas sem Pacheco―Portugal não seria o que é entre as nações!
A sua velhice offereceu um caracter augusto. Perdera o cabello radicalmente. Todo elle era testa. E mais que nunca revelava o seu immenso talento―mesmo nas minimas coisas. Muito bem me lembro da noite (sendo elle Presidente do Conselho) em que, na sala da Condessa de Arrôdes, alguem, com fervor, appeteceu conhecer o que s. exc.a pensava de Canovas del Castillo. Silenciosamente, magistralmente, sorrindo apenas, s. exc.a deu com a mão grave, de leve, um corte horisontal no ar. E foi em torno um murmurio d'admiração, lento e maravilhado. N'aquelle gesto quantas [179]coisas subtis, fundamente pensadas! Eu por mim, depois de muito esgravatar, interpretei-o d'este modo:―«mediocre, meia-altura, o snr. Canovas!» Porque, note o meu caro snr. Mollinet como aquelle talento, sendo tão vasto―era ao mesmo tempo tão fino!
Rebentou;―quero dizer, s. exc.a morreu, quasi repentinamente, sem soffrimento, no começo d'este duro inverno. Ia ser justamente creado marquez de Pacheco. Toda a nação o chorou com infinita dôr. Jaz no alto de S. João, sob um mausoleu, onde por suggestão do snr. conselheiro Accacio (em carta ao Diario de Noticias) foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Genio.
Mezes depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viuva, em Cintra, na casa do dr. Videira. É uma mulher (asseguram amigos meus) de excellente intelligencia e bondade. Cumprindo um dever de portuguez, lamentei, diante da illustre e affavel senhora, a perda irreparavel que era sua e da patria. Mas quando, commovido, alludi ao immenso talento de Pacheco, a viuva de Pacheco ergueu n'um brusco espanto, os olhos que conservára baixos―e um fugidio, triste, quasi apiedado sorriso arregaçou-lhe os cantos da bôca pallida... Eterno desaccordo dos destinos humanos! Aquella mediana senhora nunca comprehendera aquelle immenso talento! Creia-me, meu caro snr. Mollinet, seu dedicado―Fradique
Fonte:
.The Project Gutenberg EBook of A correspondência de Fradique Mendes, by
José Maria Eça de Queirós
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almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
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with this eBook or online at www.gutenberg.net
Title: A correspondência de Fradique Mendes
memórias e notas
Author: José Maria Eça de Queirós
Release Date: December 27, 2008 [EBook #27637]
Language: Portuguese
Character set encoding: ISO-8859-1
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Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
Disponível em:
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Acesso em:
06/12/2020
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