segunda-feira, 10 de agosto de 2020

VOU INTERVIR!

 


 

O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo

MONICA GUGLIANO

piaui.folha.uol.com.br 

EDIÇÃO 167 | Agosto_2020.

 

 

 

 


  


Bolsonaro, cavalgando em Brasília, nove dias depois da reunião do golpe: ao explicar como se inicia uma ditadura, Zero Três disse que é fundamental “dissolver a Suprema Corte” CREDITO: PEDRO LADEIRA_FOLHAPRESS

 

Atemperatura em Brasília não passou de 27ºC naquela sexta-feira, mas o ambiente estava tórrido no gabinete presidencial, no Palácio do Planalto. Ainda pela manhã, Jair Bolsonaro fora informado que o ministro Celso de Mello, o decano do Supremo Tribunal Federal, consultara a Procuradoria-Geral da República para saber se deveria ou não mandar apreender o celular do presidente e do seu filho Carlos Bolsonaro. Era uma formalidade de rotina, decorrente de uma notícia-crime apresentada por três partidos, mas a mera possibilidade de que seu celular viesse a ser apreendido deixou Bolsonaro transtornado. No seu gabinete, a reunião das 9 horas começou com um pequeno atraso. Estavam presentes dois generais: o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. O terceiro general a participar do encontro, Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, achando que aquele 22 de maio de 2020 seria um dia tranquilo, marcara uma consulta médica na parte da manhã. Foi o último a chegar à reunião. Agitado, entre xingamentos e palavrões, o presidente saiu logo anunciando sua decisão:

– Vou intervir! – disse.

Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros. Os substitutos, militares ou civis, seriam então nomeados por ele e ficariam no cargo “até que aquilo esteja em ordem”, segundo as palavras do presidente. No tumulto da reunião, não ficou claro como as tropas seriam empregadas, nem se, nos planos de Bolsonaro, os ministros destituídos do STF voltariam a seus cargos quando “aquilo” estivesse “em ordem”. A essa altura, ele já tinha decidido também que não entregaria seu celular sob hipótese alguma, mesmo que tivesse que descumprir uma ordem judicial. “Só se eu fosse um rato para entregar meu celular para ele”, disse, fazendo uma comparação que voltaria a usar, em público, no transcorrer do dia.

– Vou intervir! – repetiu.



Apesar da extrema gravidade do anúncio, o general Luiz Eduardo Ramos, amigo de Bolsonaro há mais de quatro décadas, recebeu bem a intenção do presidente de partir para um confronto de desfecho catastrófico. Achava que intervir no Supremo era, de fato, a única forma de restabelecer a autoridade do presidente, que vinha sendo abertamente vilipendiada pelo tribunal. No seu raciocínio, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que proibira a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, já tinha sido um abuso inaceitável. Braga Netto e Augusto Heleno concordavam que Moraes fora longe demais. Também achavam que a decisão do ministro fora uma interferência inadmissível em ato soberano do presidente, mas tinham dúvidas sobre a forma e as consequências de uma intervenção. A certa altura, o general Heleno tentou contemporizar e disse ao presidente:

– Não é o momento para isso.

piauí reconstituiu os detalhes da reunião com quatro fontes que pediram anonimato para não contrariar o presidente. Duas delas testemunharam a reunião. O clima era tenso, as pessoas entravam e saíam do gabinete presidencial, enquanto os garçons, aparentemente alheios ao ambiente carregado, serviam água e café preto, com as opções de açúcar, adoçante ou leite em pó. Entre a decisão de Bolsonaro de intervir no STF e o conselho apaziguador de Heleno, deu-se um debate sobre como a intervenção poderia acontecer legalmente. Apesar da brutalidade autoritária de uma intervenção, havia a preocupação de manter as aparências de uma medida dentro da lei.

A reunião prolongou-se e acabou se fundindo com a reunião seguinte, prevista para as 10 horas na agenda presidencial. Os participantes do compromisso das 10 horas – os ministros André Mendonça (Justiça) e Fernando Azevedo (Defesa), além de José Levi, titular da Advocacia-Geral da União – se incorporaram à discussão de como dar legalidade a uma eventual intervenção. A conversa girou em torno do artigo 142 da Constituição.

 

No dia 28 de maio, o jurista Ives Gandra da Silva Martins, de 85 anos, publicou um artigo no Consultor Jurídico, um site de notícias jurídicas. O título do artigo já mostrava a tese central: Cabe às Forças Armadas Moderar os Conflitos entre os Poderes. O jurista dizia que o artigo 142 da Constituição permite que qualquer dos três poderes, caso se sinta “atropelado por outro”, peça que as Forças Armadas “ajam como poder moderador” com o objetivo de restabelecer “a lei e a ordem”. A ideia do jurista não era propriamente uma novidade, mas a publicação do artigo ajudou a dar visibilidade a uma tese que já circulava no meio militar e, nos últimos tempos, vinha aparecendo nas manifestações que a militância bolsonarista promove habitualmente contra o Congresso e o Supremo.

A interpretação de que as Forças Armadas têm o papel equivalente ao de um “poder moderador” encontra terreno nos clubes militares e entre oficiais da reserva, mas costuma ser rechaçada pelo alto-comando das armas. Em 2016, o professor Dehon Padilha Figueiredo, do Quadro Complementar de Oficiais do Exército, e o oficial do Exército Renato Rezende Neto publicaram um estudo jurídico cujo título é o seguinte: Direito Operacional Militar: Análise dos Fundamentos Jurídicos do Emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem. O estudo se encarrega de mostrar que o papel moderador da Forças Armadas está na combinação de quatro artigos da Constituição: 34, 136, 137 e 142. “Fica claro que a função primordial das Forças Armadas é garantir os poderes constitucionais, inclusive a independência entre eles”, disse Figueiredo, um dos autores do estudo, em conversa com a piauí. “Se houver algum risco de quebra dessa ordem, o chefe do poder que se viu atingido pode requerer uma intervenção.”

O estudo, embora realizado em 2016, só foi publicado em janeiro passado e, desde então, começou a circular no Palácio do Planalto e nos grupos de WhatsApp de reservistas que defendem uma saída autoritária. A combinação dos quatro artigos chegou a ser mencionada na reunião com Bolsonaro, para mostrar que haveria um respaldo constitucional na intervenção. Nessas franjas militares, é antiga a tese de que a Constituição submete o poder civil ao poder militar. Quando ainda era candidato, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, ao responder uma pergunta hipotética, falou sobre o assunto. Disse entender que, em caso de “anarquia”, a Constituição prevê que o presidente dê um golpe militar em seu próprio favor. “É um autogolpe, você pode dizer isso.”

No meio jurídico, o estudo dos quatro artigos não é conhecido, mas o texto de Gandra Martins disseminou-se rapidamente e causou espanto. Em uma decisão judicial sobre uma ação movida pelo PDT, que pedia um esclarecimento sobre o papel dos militares, o ministro Luiz Fux, do STF, disse textualmente que a missão institucional das Forças Armadas “não acomoda o exercício de poder moderador”. O ministro Gilmar Mendes disse que, para confundir a missão dos militares com a de poder moderador, é preciso percorrer “uma distância abissal”. O ministro Luiz Roberto Barroso, em outra decisão, classificou a interpretação dos defensores da intervenção militar como “terraplanismo constitucional”. “Esse poder moderador que o presidente confere às Forças Armadas não existe”, disse um graduado general, que pediu para ficar anônimo porque os militares da ativa não podem emitir opiniões políticas. “Você não vai encontrar essa função em nenhum livro ou manual das escolas militares.”

Entre os militares da reserva, estão os saudosos da ditadura militar. Eles defendem a radicalização do governo, inclusive com a adoção de medidas de exceção. A situação é outra entre os atuais comandantes, que têm tropa e poder. Esses querem distância da polarização política e rejeitam qualquer hipótese de intervenção militar. Nos três últimos meses, enquanto Bolsonaro minimizava a pandemia e apoiava manifestações radicais na frente de quartéis, as três forças – Marinha, Exército e Aeronáutica – se encarregaram de adotar um comportamento oposto, participando das ações de combate à Covid-19. No mesmo dia em que Bolsonaro fez pronunciamento na tevê dizendo que a pandemia era um problema sério na Itália, mas não no Brasil, o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, publicou um vídeo dizendo que a crise sanitária “talvez seja a missão mais importante de nossa geração”.

 

Dois argumentos ajudaram a acalmar Bolsonaro na reunião. O primeiro: não havia ordem para apreender seu celular, apenas uma consulta do ministro do STF, de modo que ainda havia a possibilidade de que a apreensão não ocorresse. (De fato, dez dias depois, Celso de Mello arquivou o pedido de apreensão, mas, em sua decisão, fez questão de mandar um recado ao presidente, dizendo que o descumprimento de uma ordem judicial “configuraria gravíssimo comportamento transgressor”.) O outro argumento: o governo daria uma resposta contundente ao STF na forma de uma nota pública. Combinou-se na reunião que o general Heleno assinaria a nota. Além de concordar com a queixa de Bolsonaro segundo a qual a Corte Suprema estaria ferindo a independência entre os poderes, Heleno é responsável pela proteção física e pela defesa do presidente. Ficou acertado que a apreensão do celular do chefe do Executivo poderia ser considerada uma forma de atentado, não físico, mas contra a sua autoridade.

A Nota à Nação Brasileira, escrita pelo próprio general Heleno e divulgada no início da tarde daquela sexta-feira, veio em tom pesado. O general disse que o pedido de apreensão era “inconcebível e, até certo ponto, inacreditável” e consistia em “uma afronta à autoridade máxima” do presidente. Encerrava o texto curto com um aviso ameaçador: “O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República alerta as autoridades constituídas que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional.”

A nota ajudou a serenar os ânimos de Bolsonaro, mas atiçou os ânimos do país. Seu tom foi duramente criticado por políticos e juristas. Nos dias seguintes, general Heleno recebeu aplausos de organizações militares e dos seus colegas de turma da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), que lançaram uma nota alarmista, alertando para o risco de “guerra civil” e acusando os ministros do STF de falta de “decência” e de “patriotismo”. Heleno agradeceu a nota dizendo-se “emocionado”. Dias depois, com a crise do celular já superada pela decisão de Celso de Mello, o general voltou a falar da nota publicamente. Afirmou que, naquele dia, não quis ameaçar ninguém e lembrou que não citara o nome de nenhuma autoridade. No Planalto, assessores disseram que a expressão “consequências imprevisíveis” devia ser interpretada nos seguintes termos: “Tudo pode acontecer, inclusive nada.”

Na tarde daquela mesma sexta-feira, o ministro Celso de Mello autorizou a divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, na qual Bolsonaro claramente reclama que suas tentativas de interferir na Polícia Federal para proteger familiares e amigos não vinham obtendo sucesso. A repercussão do vídeo – com seu linguajar rasteiro, os palavrões, as ameaças vulgares – ajudou a elevar a temperatura. A divulgação do vídeo, no entanto, não transtornou Bolsonaro, que já esperava que o sigilo fosse levantado e apostava que, no fim das contas, seu eleitorado até ficaria satisfeito com o conteúdo.

 

Aintervenção foi descartada naquele dia, mas não morreu. Seis dias depois da reunião do golpe, quando Gandra Martins publicou seu artigo, o presidente divulgou uma entrevista do jurista em uma de suas redes sociais. No mesmo dia, inconformado com a operação policial contra seus aliados realizada na véspera, disse: “Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais.” E prometeu: “Não teremos outro dia igual a ontem. Chega. Chegamos ao limite.” Um dia antes, o deputado federal Eduardo Bolsonaro também abordara o assunto em um vídeo que se encontra no YouTube. Disse que era “inadmissível” o que os ministros Alexandre de Moraes e Celso de Mello estavam fazendo “com a democracia brasileira” e afirmou que já não havia mais dúvida de que haverá uma “ruptura”. Disse ele: “Não é mais uma opinião de ‘se’ mas ‘quando’ isso vai ocorrer.” Eduardo Bolsonaro é aquele que, antes da eleição do pai, disse que bastavam um cabo e um soldado para fechar o STF.

No dia 12 de junho, duas semanas depois do “Acabou, porra”, o próprio presidente retomou, agora em público, a ideia de que as Forças Armadas são superiores ao poder civil. Em resposta à decisão de Fux que esclareceu que os militares não formam um “poder moderador”, Bolsonaro divulgou uma nota dizendo que as Forças Armadas não cumprem “ordens absurdas” e não aceitam “tentativas de tomada de poder por outro poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. O vice-presidente e o ministro da Defesa assinaram a nota com o presidente. Naquele mesmo dia, veio a público o conteúdo de uma entrevista à revista Veja na qual o general Ramos, da Secretaria de Governo, disse que era “ultrajante” a ideia de que militares estão pensando em golpe e, em seguida, completou com o mais explícito golpismo já externado por um militar no governo: “O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda.”

Em 16 de junho, dia em que o Supremo quebrou o sigilo bancário de onze parlamentares bolsonaristas e a Polícia Federal fez uma operação de busca e apreensão contra suspeitos de financiarem ilegalmente atos antidemocráticos, Bolsonaro publicou uma série de dez mensagens numa rede social. Disse que não podia “assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas”, e argumentou que sua luta destinava-se a defender “a Constituição e a liberdade dos brasileiros”.

Com notas ambíguas ou claras, declarações dúbias ou ameaçadoras, o fantasma de uma intervenção militar não se dissipa. Em maio, o próprio general Heleno teve que mandar um áudio no WhatsApp para desmentir uma versão atribuída a um capitão da reserva, Durval Ferreira, segundo a qual o general vinha defendendo um golpe militar. “Boa noite a todos os amigos do Rio Grande Sul. Quem está falando é o general Heleno, daqui de Brasília”, começa o áudio. Na mensagem, que dura 1 minuto e 50 segundos, o general admite que conhece Durval Ferreira – “conheço, mas não é meu amigo” –, mas diz que o capitão não tem autorização para falar em seu nome. “Não penso como ele”, diz o general. “Não acho que haja clima para uma intervenção militar, muito menos para um golpe de Estado.” Heleno afirma que “medidas graves foram tomadas em discordância da Constituição”, mas que, nessa hora crítica, “temos que ter muito juízo”, e encerra pedindo “muita, mas muita prudência”. Durval Ferreira afirma que nunca disse que Heleno pregava um golpe militar.

A decisão do presidente de intervir no STF pode ser vista como intempestiva, tomada no calor da hora, mas é relevante que os anais da história registrem que o presidente do Brasil, numa reunião no palácio na manhã de 22 de maio de 2020, decidiu ocupar o Supremo com tropas – e foi persuadido a desistir da quartelada. Curiosamente, naquele mesmo vídeo no YouTube em que diz que a “ruptura” é só uma questão de tempo, Eduardo Bolsonaro afirma para sua audiência que o Brasil está no caminho de uma ditadura, orquestrada pelo STF, e explica que um regime autoritário não se materializa de um dia para o outro. Constrói-se aos poucos. Para elucidar seu ponto, Eduardo cita então o exemplo da Venezuela e dá a receita: “[Você] dissolve a Suprema Corte, bota todos bolivarianos indicados pelo Hugo Chávez.”

Ditadura, está claro, é só quando o outro dissolve a Suprema Corte.

MONICA GUGLIANO

É jornalista e colaboradora do Valor Econômico

 

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vou-intervir/

 

 

 

 



Na piauí_167: a capa e os destaques da revista de agosto

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- Em Vou intervir!, a repórter Monica Gugliano escreve sobre o dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo. Coube a Renato ...

 

 

 

 

 



 

 

 

 

Três perguntas sobre os depósitos de Fabrício Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro

7 agosto 2020

 

 

 


Direito de imagemREUTERS/ADRIANO MACHADOImage caption

Reportagens na revista Crusoé, jornal Folha de S.Paulo e o portal G1 mostram um total de R$ 89 mil recebidos pela atual primeira-dama entre 2011 e 2016

 

A mulher do presidente Jair Bolsonaro, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, recebeu 27 depósitos que totalizam R$ 89 mil de Fabrício Queiroz e da esposa dele, Marcia Aguiar, entre 2011 e 2016.

A informação foi revelada a partir da quebra de sigilo fiscal do casal, investigado por integrar um suposto esquema de desvio de dinheiro do antigo gabinete de deputado estadual do hoje senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho mais velho do presidente.

Segundo reportagem da revista Crusoé, a quebra de sigilo mostrou que Queiroz depositou 21 cheques na conta de Michelle entre 2011 e 2016, somando R$ 72 mil. O jornal Folha de S.Paulo e o portal G1, por sua vez, descobriram também que a abertura das informações bancárias de Marcia Aguiar revelou mais seis cheques depositados por ela para a primeira-dama entre janeiro e junho de 2011, no valor total de R$ 17 mil.

Antes da quebra de sigilo do casal, sabia-se que Michelle tinha recebido R$ 24 mil de Queiroz. As novas informações contrariam versão do presidente sobre essa operação — Bolsonaro havia dito que o valor foi depositado para sua mulher como pagamento por um empréstimo de R$ 40 mil concedido por ele a Queiroz. No entanto, a abertura dos dados bancários do amigo do presidente não mostram o recebimento desse empréstimo, segundo os veículos da imprensa que tiveram acesso à quebra de sigilo.

Confira a seguir 3 perguntas para entender melhor o impacto das novas revelações e o andamento das investigações.

 

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As contradições de Bolsonaro sobre depósitos da família Queiroz a Michelle, que agora chegam a R$ 89 mil

 

 

 

 



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O que se sabe sobre a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro

 

 

 

 

 

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'Quem precisa de foro privilegiado?': como decisão do TJ pode beneficiar Flávio com mecanismo que família Bolsonaro criticava

 

 

 

 




Não é só Flávio Bolsonaro: MP investiga em sigilo dezenas de deputados após rachadinhas no RJ

 

1. Qual o impacto das novas revelações para Bolsonaro e Michelle?

Bolsonaro e sua mulher não apresentaram ainda explicação sobre os novos depósitos revelados na sexta-feira (07/08).

O artigo 86 da Constituição Federal estabelece que o "Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções". Juristas divergem sobre se esse artigo impede totalmente o presidente de ser investigado por eventuais crimes anteriores à sua posse, ou se permite que ele seja alvo de uma investigação, mas o mantém protegido de ser processado e condenado.

Dessa forma, mesmo que Bolsonaro tenha relação com os valores depositados para Michelle, é possível que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, não inicie uma investigação criminal, já que as transações suspeitas são anteriores à sua posse, em janeiro de 2019.

A primeira-dama, porém, não possui imunidade constitucional e pode se tornar alvo da investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro que apura o suposto esquema de "rachadinha" (desvio da verba pública destinada a salário de funcionários) no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Como Michelle não era funcionária do gabinete de Flávio, ela não foi incluída como investigada e não teve seu sigilo fiscal quebrado até o momento.

Além disso, a revelação dos depósitos gera constrangimento e pode criar desgaste político para o presidente, eleito com a bandeira da anticorrupção. Deputados federais do PSOL começaram a recolher assinaturas para tentar criar uma uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com objetivo de investigar se Michelle seria "laranja" de Bolsonaro para receber recursos desviados.

"URGENTE! Eu e os demais deputados do PSOL queremos criar uma CPI para investigar os depósitos que Queiroz fez na conta da primeira-dama, que somam R$ 72 mil. Vamos desmascarar a farra da família Bolsonaro com dinheiro público", postou no Twitter o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ).

Outro elemento que aproxima o caso do presidente é o fato de uma das filhas de Queiroz, Nathália Queiroz, ter sido funcionária do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados de 2016 a 2018, quando o presidente era ainda deputado federal. Há suspeitas de que Nathália era funcionária fantasma, já que atuava como personal trainer no Rio de Janeiro no mesmo período.

2. Qual foi a versão inicial de Bolsonaro para os depósitos?

As primeiras informações sobre depósito de Queiroz na conta de Michelle estão em um relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) produzido em desdobramento da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro. Esse documento — revelado no final de 2018, logo após a eleição presidencial — apontou uma série de movimentações bancárias suspeitas de Queiroz entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, somando R$ 1,2 milhão.

Umas das transações era o depósito de R$ 24 mil em cheque na conta da mulher de Bolsonaro. Naquele momento, o presidente disse que seria o pagamento por uma dívida que Queiroz tinha com ele. Afirmou também que o dinheiro foi depositado para Michelle porque ele não tem "tempo de sair".

"Emprestei dinheiro para ele (Queiroz) em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro e uma dívida que ele tinha comigo se acumulou. Não foram R$ 24 mil, foram R$ 40 mil. Se o Coaf quiser retroagir um pouquinho mais, vai chegar nos R$ 40 mil", disse Bolsonaro em dezembro de 2018.

Queiroz, por sua vez, disse inicialmente que a movimentação na sua conta vinha de negócios que ele fazia, como compra e venda de carros usados. Depois, ele admitiu que recolhia parte dos salários dos funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro, mas afirmou que usava esse dinheiro para contratar outras pessoas, ampliando a equipe a serviço do mandato. Segundo Queiroz, o então deputado estadual não tinha conhecimento disso.

3. Quais os próximos passos da investigação contra Queiroz e Flávio?

 

 

 

 


Direito de imagemREPRODUÇÃO/INSTAGRAMImage caption

MP investiga indícios de que Queiroz (à dir.) seria operador de esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro, filho do presidente

 

A apuração do Ministério Público do Rio de Janeiro indica que Queiroz seria o operador de um esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro e aponta que ele teria feito até 2018 diversos pagamentos em dinheiro vivo de contas do então deputado estadual, como boletos de plano de saúde da família e mensalidades escolares de suas duas filhas. Em entrevista ao jornal O Globo publicada na quarta-feira (05/08), Flávio reconheceu pela primeira vez que Queiroz pagava contas suas, mas negou ilegalidades.

"Pode ser que, por ventura eu tenha mandado, sim, o Queiroz pagar uma conta minha. Eu pego dinheiro meu, dou para ele, ele vai ao banco e paga para mim. Querer vincular isso a alguma espécie de esquema que eu tenha com o Queiroz é como criminalizar qualquer secretário que vá pagar a conta de um patrão no banco. Não posso mandar ninguém pagar uma conta para mim no banco?", justificou o senador.

Ao término da investigação, Queiroz e Flávio podem vir a ser denunciados pelos crimes de peculato (desvio de recurso público), lavagem de dinheiro e organização criminosa. No momento, porém, o caso está em suspenso à espera de uma definição do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre se Flávio tem ou não direito a foro privilegiado.

Inicialmente, a investigação contra o hoje senador correu na primeira instância da Justiça do Rio, já que o STF decidiu em 2018 restringir o foro privilegiado aos casos de crimes relacionados com o exercício do atual mandato político da pessoa investigada. Apesar disso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) decidiu em junho que o hoje senador teria direito nesta investigação ao foro de deputado estadual, levando o caso para a segunda instância judicial.

O Ministério Público, então, recorreu da decisão do TJ-RJ ao STF e o caso está sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. Ele aguarda a manifestação da PGR sobre o recurso para pautar seu julgamento na Segunda Turma do Supremo. Decisões anteriores do STF sobre foro privilegiado indicam que a Corte deve derrubar a decisão do TJ-RJ e retornar o caso para a primeira instância, abrindo caminho para uma denúncia do MP contra Queiroz e Flávio Bolsonaro.

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53703685

 

 

 

Flávio Bolsonaro admite que Queiroz pagava suas contas, critica Lava-Jato e defende atuação de Augusto Aras

Posted on 5 de agosto de 2020, 10:00 by Tribuna da Internet

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Flávio defende-se e afirma que dinheiro tinha origem lícita

 

Paulo Cappelli e Thiago Prado
O Globo

Pela primeira vez, Flávio Bolsonaro admite que seu ex-assessor Fabrício Queiroz pagava suas contas pessoais — na sua versão, com recursos do próprio senador e sem ligação com os depósitos de outros assessores do gabinete na Alerj na conta de Queiroz. Flávio diz que esses depósitos destinavam-se a contratar informalmente mais funcionários, o que teria acontecido sem seu conhecimento.

O filho do presidente defendeu ainda um aumento dos gastos do governo, a criação de um novo “imposto digital” e a nomeação de indicados do centrão para cargos na administração federal — desde que não tenham condenações em segunda instância. Ele fez críticas a Sergio Moro e à Lava-Jato: afirmou que a operação tenta fazer “gol de mão” nas investigações e que a PF tem sido mais produtiva após o ex-ministro da Justiça deixar o governo.

O senhor é investigado em um inquérito sobre “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio, e o Ministério Público (MP) descobriu que Fabrício Queiroz, que foi seu assessor parlamentar, pagou despesas suas com plano de saúde e mensalidades escolares de filhas. Como explicar isso?
Pode ser que, porventura, eu tenha mandado, sim, o Queiroz pagar uma conta minha. Eu pego dinheiro meu, dou para ele, ele vai ao banco e paga para mim. Querer vincular isso a alguma espécie de esquema que eu tenha com o Queiroz é como criminalizar qualquer secretário que vá pagar a conta de um patrão no banco. Não posso mandar ninguém pagar uma conta para mim no banco?

Mais de R$ 100 mil para o plano de saúde não é muito dinheiro vivo para dar para ele?
Em 12 anos? Você acha isso muito dinheiro em 12 anos? Minhas contas são investigadas desde 2007. Se você pegar esse dinheiro, R$ 120 mil, e diluir em 12 anos, vai dar R$ 1.000 por mês. Isso é muito? Não é muito. Qualquer plano familiar baratinho é mais do que isso. Não tem ilegalidade. A origem dos recursos é toda lícita. Tenho uma vida simples para caramba. Não esbanjo nada. Meu modo de vida passa longe de uma pessoa rica. Tenho meu conforto e sempre trabalhei muito para isso. Sou deputado estadual desde os 20 anos. Quando ainda era deputado, morava com a minha mãe. Consegui fazer uma economia e construí meu patrimônio. Tudo o que faço e o que tenho é declarado. O problema não sou eu que declaro o que tenho. O problema é quem não declara o que tem, bota em nome de amante, de laranja. O que não é o meu caso.

As investigações também mostram que o policial militar Diego Sodré de Castro Ambrósio quitou um boleto de um apartamento comprado pela sua mulher. O que tem a dizer sobre isso?
É a maior injustiça que fazem com o PM (policial militar) que pagou para mim no aplicativo do telefone dele. A gente estava no churrasco de comemoração da minha eleição. A conta estava para vencer e, para eu não sair do evento e ir ao banco pagar, porque eu não tinha aplicativo no telefone, ele falou: “Deixa que eu pago aqui para você e depois você me dá o dinheiro”. Foi isso o que aconteceu. Fizeram até busca e apreensão no escritório dele, uma baita injustiça. Um cara que nem vive do salário da Polícia Militar, que é empresário, rala para caramba e tem dezenas de funcionários. Expõe ele e a empresa dele.

O senhor tem uma franquia da Kopenhagen que também é alvo de investigação. O Ministério Público (MP) encontrou muita circulação de dinheiro vivo nas contas e, em uma das peças da investigação, ironizou que a loja movimenta mais dinheiro fora da Páscoa…
É um comércio. Se a pessoa chega com dinheiro para comprar, não vou aceitar? Se eu fosse fazer uma besteira, seria numa franquia, que tem monitoramento da matriz? Se quisesse fazer coisa errada, ia para qualquer outro ramo que é muito mais fácil. Sempre tive preocupação de ter algo no setor privado, porque sei que o mandato eletivo não é permanente. É desproporcional o que o MP quer fazer comigo e a projeção que isso tem na imprensa, pelo simples fato de eu ser filho do presidente (Jair Bolsonaro). Se não fosse isso, se bobear, já tinham arquivado (a investigação) pelo princípio da insignificância.

Mas por que tantos assessores do seu gabinete deram dinheiro para o Queiroz durante anos?
Ele fez um posicionamento junto ao MP esclarecendo essas questões. Disse que as pessoas que faziam os depósitos na conta dele eram da chamada equipe de rua. Queiroz afirma que pegava o dinheiro para fazer a subcontratação de outras pessoas para trabalharem em redutos onde ele tinha força. Sempre fui bem votado nesses locais. Talvez tenha sido um pouco relaxado de não olhar isso mais de perto, deixei muito a cargo dele. Mas é obvio que, se soubesse que ele fazia isso, jamais concordaria. Até porque não precisava, meu gabinete sempre foi muito enxuto, e na Assembleia existia a possibilidade de desmembrar cargos. Outra coisa importante: mais de 80% dos recursos que passaram pelo Queiroz são de familiares dele. Então, qual o crime que tem de o cara ter um acordo com a mulher, com a filha, para administrar o dinheiro?

Como acreditar que o senhor e o presidente Jair Bolsonaro não sabiam que Queiroz estava escondido em uma propriedade do advogado Frederick Wassef?
Óbvio que não sabíamos. Por precaução, nunca mais falei com o Queiroz, nem por telefone, para não insinuarem que eu estava combinando alguma coisa com ele. O Fred (Wassef) teve quatro cânceres, né? O Queiroz estava tratando de um câncer também. Se ele (Wassef) se sensibilizou e deixou o imóvel para ele (Queiroz) usar, não tem crime nenhum nisso, nada de errado. Agora, é óbvio que isso não podia ter acontecido nunca. Foi um erro. Se (Wassef) tivesse comentado comigo, diria que ele estava sendo imprudente. Dá margem para as pessoas pensarem que a gente estava ali escondendo o Queiroz. Agora, cabe lembrar: escondendo de quê? Queiroz nunca foi procurado pela policia.

O Globo mostrou no ano passado que o Queiroz pagou mais de R$ 120 mil pela estadia dele no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, com dinheiro próprio e vivo. Isso surpreendeu o senhor?
Pagar cerca de R$ 100 mil em “cash”, obviamente, não é algo normal, né… A origem do dinheiro, eu não sei qual é. Ele é um cara que tinha os rolos dele, mas, obviamente, não fui eu que internei ele lá e não fui eu que paguei a despesa. Não sei de onde veio esse dinheiro. Tem que perguntar para ele.

O senhor, que é investigado pelo Ministério Público, acha que quem tem razão no embate entre Augusto Aras e os procuradores da Lava-Jato?
Qualquer investigação tem que acontecer dentro da lei e os excessos precisam ser investigados. Não dá para a gente jogar uma partida de futebol, um time fazer gol de mão e o outro aceitar. Pelo que acompanho, há suspeitas de que pessoas com foro por prerrogativa de função estavam sendo investigadas por procuradores de 1ª instância, inclusive alterando os nomes dos investigados para não ficar claro que se tratava de um senador ou de um deputado (o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o do Senado, Davi Alcolumbre, foram citados em investigações da Lava-Jato de Curitiba, mas com outros sobrenomes).

Os Bolsonaro se elegeram com um discurso alinhado ao da Lava-Jato. Agora a operação reclama que está sendo alvo de um desmonte não é mais uma contradição?
Aras tem feito um trabalho de fazer com que a lei valha para todos. Embora não ache que a Lava-Jato seja esse corpo homogêneo, considero que pontualmente algumas pessoas ali têm interesse político ou financeiro. Se tivesse desmonte das investigações no Brasil, não íamos estar presenciando essa quantidade toda de operações. Inclusive com a saída de (Sergio) Moro, a produção do Ministério da Justiça subiu demais. O (Sergio) Moro na verdade saiu do governo porque percebeu que não havia um alinhamento ideológico, no tocante às armas, por exemplo.

Não foi por interferência na Polícia Federal que Moro deixou o governo?
É uma crítica completamente infundada. A competência para nomear diretor-geral da PF é do presidente. Se o presidente não pode falar onde está satisfeito ou insatisfeito dentro de um ministério, ou se troca o presidente ou se troca o ministro. Então, nesse caso, teve que trocar o ministro.

Uma ala do governo, representada pelo ministro Rogério Marinho, defende expansão de gastos, enquanto o ministro Paulo Guedes prega austeridade. De que lado o senhor está?
É uma equação em que não dá para fazer mágica. Por um lado, se o Paulo Guedes segura e não faz loucuras, é porque já foram R$ 700 bilhões gastos no combate à pandemia, justamente o que estimávamos economizar em dez anos com a Reforma da Previdência. Por outro lado, acho que tem de haver uma certa flexibilização. Há obras paradas no Brasil há mais de dez anos. Acredito que o Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações que têm impacto social e na infraestrutura.

Os militares demandam aumento do orçamento da Defesa de 50% para 2021. O senhor é favorável?
Os governos de esquerda sucatearam as Forças Armadas, achataram os salários dos militares. Hoje, um general com 40 anos de trabalho ganha igual a um delegado federal em início de carreira. Os militares sempre ficaram para trás em praticamente tudo, só são lembrados quando é necessária uma intervenção na segurança pública ou no combate às queimadas. Conseguir igualar a situação dos militares à de outros servidores públicos é uma promessa de campanha.

O presidente Jair Bolsonaro admite que está discutindo a criação de um novo imposto, batizado no mundo político de “nova CPMF”. Como explicar que um governo que se elegeu com um discurso liberal fale em aumento de gastos e criação de imposto?
Não tem contradição nisso. Temos que tirar o peso tributário de setores importantes para geração de empregos e substituir por esse imposto digital, que não será uma CPMF. O Paulo Guedes ainda não apresentou o texto final, mas já falou em redução da carga tributária sobre folha de pagamento e de aumentar o limite de isenção de imposto de renda. Acho o imposto digital atrativo, porque tira carga de quem gera emprego e dos mais pobres e aumenta a base de contribuintes e diminui a sonegação.

Bolsonaro sempre criticou o Bolsa Família, mas agora fala em prorrogar o auxílio de R$ 600 e criar o Renda Brasil. Isso está sendo feito para avançar numa base eleitoral lulista?
Tem diferenças grandes. Não nos orgulhamos de falar que aumentou o número de pessoas que dependem do Bolsa Família. A gente vai se orgulhar de falar um dia sobre quantos milhões de pessoas deixaram de precisar do Bolsa Família. É uma outra visão. A gente não quer manter esse pessoal na dependência eterna, sem criar nenhuma expectativa, em troca de voto.

O governo atraiu o centrão em meio à distribuição de cargos no segundo escalão. Não vai contra o discurso de campanha?
Não. Qual foi o ministro que esses partidos políticos indicaram? Nenhum. O presidente não fez o toma lá dá cá. Esses partidos que são pejorativamente chamados de centrão já votaram, por exemplo, a reforma da Previdência, além de matérias que estão alinhadas com as bandeiras vencedoras da campanha. Não houve troca de cargos por votos.

Na campanha, o ministro Augusto Heleno chegou a gritar “se gritar pega centrão, não fica um meu irmão”…
Hoje é diferente do que acontecia. Tanto que não tem escândalo de compra de votos em um ano e sete meses de governo. Se tem denúncia, a gente toma providências.

Ciro Nogueira emplacou no comando da Codevasf um nome investigado na Lava-Jato. Qual deve ser a régua para uma nomeação?
Se não tem condenação em segunda instância, por que não vai aproveitar? A máquina pública é gigantesca, não conhecemos pessoas para ocuparem todos os postos do governo federal. Então, se tenho dificuldade para um determinado órgão no Maranhão ou no Rio Grande do Sul, nada mais natural do que pedir a referência de um parlamentar. Se tiver um currículo bom, qualificado, sem capivara (jargão para ficha policial), então por que não dar o voto de confiança? Também se faz política assim.

As investigações mostraram que um assessor lotado no Palácio do Planalto, Tércio Arnaud, atacava adversários e espalhava desinformação. Isso é legítimo?
Acho completamente legítimo. Campanha eleitoral é uma guerra política. Nós fomos alvos de ataques de adversários, então é natural que houvesse pessoas voluntárias, como era o caso dele e de vários outros, para defender e atacar o outro lado. Agora, se teve crime de ofensa a honra, tem que responder por isso. Não dá é para criar uma narrativa de que há uma coordenação, por parte nossa, de ataques a adversários. Hoje, com rede social, ninguém controla isso. Nesse projeto de lei das fake news que tramita no Congresso, está claro que quem está a favor, na grande maioria, é quem quer calar os conservadores e os perfis de direita.Quem decide o que é fake news? Se eu falar que a cloroquina, em muitos casos, salvou vidas, estaria propagando fake news?

Sim, há estudos que mostram que a cloroquina não é eficaz no combate ao coronavírus.
Não dá para dizer que ela é eficaz nem ineficaz. Se você tem esse instrumento na sua mão, você vai abrir mão dele? Tem estudo da França que fala o contrário, que a hidroxicloroquina é eficaz. Qual a comprovação científica de que usar máscara ajuda? De que tem que fechar praia? O debate é direcionado.

Vamos chegar em breve a 100 mil mortos no Brasil. Não acha que seu pai deu mau exemplo ao dizer que a Covid-19 era uma “gripezinha” e ao ir às ruas incentivando a aglomeração de pessoas?
Isso foi distorcido pela imprensa. Ele falou que, no caso dele, se ele pegasse, seria só uma gripezinha. E ele estava certo. Foi realmente só uma gripezinha para ele. Ele não faltou com sua parte de financiar e intermediar o envio de um monte de respiradores e equipamentos de proteção para estados e municípios. Isso não é minimizar. Mas o presidente também não se curva ao politicamente correto.

O senhor é a favor de mudanças que possibilitem a reeleição de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre na Câmara e no Senado?
Entendo que, pela proporcionalidade, comparado com a Câmara, Davi (Alcolumbre) poderia ficar mais dois anos, já que o mandato de senador tem oito anos (os deputados têm mandatos de quatro anos, mas os presidentes de ambas as Casas ficam dois anos no comando). Ele tem sido muito colaborativo com o governo. Já o Rodrigo Maia não acho que possa se reeleger mais. Ele embarreira algumas pautas que, no meu ponto de vista, são desnecessárias. Ele acaba se arvorando de, na qualidade de presidente da Câmara, falar pelo plenário, o que não é democrático. Tem Medidas Provisórias que ele deixou caducar e projetos de lei que ele não pauta. Mas são agendas vitoriosas nas urnas, como a das armas.

A família Bolsonaro está torcendo pelo impeachment do governador Wilson Witzel?
Não tenho direito de ter preferência, mas conversas no meio político dão conta de que os desvios na Saúde aconteciam de uma forma desenfreada. Ele (Witzel) me usou para ser governador e depois virou as costas. Me senti traído quando ele, logo depois de eleito, já falava que seria o próximo presidente da República em 2022. Enganou, inclusive, os eleitores do Rio que acreditaram que teriam um governo 100% alinhado com Bolsonaro. Tenho certeza de que grande parte da população está arrependida. Sem dúvida, se o (vice-governador) Cláudio Castro assumir, o diálogo vai ser muito mais leve. Até porque hoje existe o não-diálogo com o governador Wilson Witzel.

Quem o senhor vai apoiar para prefeito do Rio?
Minha postura vai ser a que o presidente Bolsonaro mandar. Como o governo federal ajudou muito o Rio na pandemia, pode ser que o prefeito Marcelo Crivella explore essa proximidade e capitalize isso politicamente. Mas o presidente já falou que a postura dele vai ser se manter neutro no primeiro turno do Rio.

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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG
 – Flávio repete o discurso do político acuado e incerto no que diz. Afirma que não sabia de nada, que o seu assessor e o seu advogado, mesmo com “boas intenções”, agiram pelas suas costas e ele, ao que parece, é vítima de uma grande conspiração de opositores que se pegam em detalhes. Rachadinha, esconderijo em Atibaia, subcontratações, pagamentos em dinheiro, nada disso passava pelo seu radar. Na próxima eleição, Flávio pode vir com o codinome “pescador”. É cada “história” ! (Marcelo Copelli)

http://www.tribunadainternet.com.br/flavio-bolsonaro-admite-que-queiroz-pagava-suas-contas-critica-lava-jato-e-defende-atuacao-de-augusto-aras/

 

 

 

 

Chefe de gabinete de Flávio Bolsonaro nega ter sido avisado sobre Furna da Onça

Posted on 5 de agosto de 2020, 12:00 by Tribuna da Internet

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Com memória seletiva, Braga lembrou apenas o que foi combinado

 

Camila Bomfim e Gabriel Palma
G1

O chefe de gabinete do senador Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ), Miguel Angelo Braga Grillo, negou em depoimento ter recebido informação prévia sobre a Operação Furna da Onça, da Polícia Federal, que revelou suspeitas sobre Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flavio.

Conhecido como Coronel Braga, o chefe de gabinete do senador prestou depoimento no inquérito que apura se a operação vazou. A denúncia de que informações vazaram foi feita pelo empresário Paulo Marinho, suplente de Flavio Bolsonaro e ex-aliado da família Bolsonaro. O senador nega a versão de Marinho.

CONHECIMENTO PRÉVIO  – Marinho disse que três pessoas souberam previamente da operação, entre as quais Miguel Angelo Braga Grillo. Segundo Marinho, Grillo participou de uma conversa na porta da Polícia Federal, com mais duas pessoas, para obter informações sobre a Furna da Onça. O empresário diz que soube disso por meio de Victor Granado, amigo de Flavio Bolsonaro e que, segundo Marinho, também teria ido ao encontro no qual teria havido o vazamento.

No depoimento prestado no dia 10 de junho ao procurador Eduardo Benones, do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ), coronel Braga relatou que ele e Flavio costumavam ir a Polícia Federal do Rio para visitas institucionais, quando Flavio Bolsonaro era deputado estadual. E que se lembra de pelo menos três visitas.

Numa dessas visitas, ele e Flávio atenderam a um pedido de ajuda da chefe da segurança da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) para conseguir porte de arma na PF. “Ela pleiteou o porte de arma e ela pediu se poderíamos já que da primeira vez que ela pediu foi negado, fomos até aí. Obtivemos uma orientação de como deveria ser feito o requerimento dela, que ela usasse esse ou aquele argumento, que ela apresentasse esse ou aquele documento”, afirmou o Coronel Braga.

“ESQUECIDO” – Apesar de narrar o episódio com detalhes, o chefe de gabinete de Flávio disse não se lembrar o mês nem o ano dessa visita. Coronel Braga também disse que não se lembra de ter estado na sede da Polícia Federal no Rio em outro período importante para a investigação: a primeira quinzena de outubro de 2018.

Paulo Marinho disse que foi nessa época que houve o vazamento da operação, segundo o amigo de Flavio, Victor Granado. O chefe de gabinete disse: “Eu posso ter estado, não sei. Eu não tenho memória, mas eu posso ter estado. Posso ter estado com o Victor em algum lugar, posso ter estado com o Victor. Eu estive, se aconteceu de eu estar, nunca tratei de nada que dissesse respeito a qualquer operação da PF, seja com agente, seja com delegado.” O próximo passo da investigação é ouvir policiais federais sobre a suspeita de vazamento.

 

http://www.tribunadainternet.com.br/chefe-de-gabinete-de-flavio-bolsonaro-nega-ter-sido-avisado-sobre-furna-da-onca/

 

 

 

 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Ruy Castro* Para ser bolsonarista, basta ser

- Folha de S. Paulo

Dispensa-se de pensar, mas exige-se vista grossa à traição das promessas de campanha

A vantagem de ser bolsonarista é a de que não é preciso pensar. Basta ser. Ser bolsonarista é apoiar um discurso que encolhe a cada dia de acordo com as conveniências de seu chefe. Como elas não param de surgir, o dito discurso ameaça chegar à abstração pura, impossível até de ser entendido, o que não fará diferença para seus adeptos. Se Bolsonaro decretar que seus seguidores devem usar a cueca por cima das calças, eles obedecerão —o que facilitará identificá-los e avaliar o seu peso real na população.

Ungido por essa aura de infalibilidade que eles lhe conferiram, Bolsonaro tem traído uma a uma as promessas de campanha que hipnotizaram seus eleitores.

O discurso anticorrupção, por exemplo, esfarela-se nas jogadas para silenciar a Lava Jato, cuja defesa foi decisiva para elegê-lo. Só o abandono dessa bandeira já devia bastar para intrigá-los —mas, como estes abdicaram de pensar, Bolsonaro segue alegremente no esvaziamento dos órgãos de investigação, no que é aplaudido em silêncio pelo PT. Pelo visto, essa súbita e divertida identificação entre Bolsonaro e Lula não abala seus fãs.

Tal esvaziamento, comandado pelo funcionário que Bolsonaro designou para a tarefa, o procurador-geral Augusto Aras, é necessário para proteger seus novos aliados: os políticos de quem passou a depender para protegê-lo contra a ameaça de impeachment. O pagamento desse apoio não se limita aos seus eleitores, mas atinge todo o país, com a entrega de ministérios, conselhos e estatais à "velha política" que ele dizia combater.

Outro mistério que passa ao largo de seus seguidores é que, ao promover o desmatamento da Amazônia, o extermínio dos povos indígenas pela ocupação de suas terras e a sistemática destruição de áreas protegidas, Bolsonaro está beneficiando uma categoria bem específica de negocistas. Isso ele não prometeu em campanha.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues

https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/08/ruy-castro-para-ser-bolsonarista-basta.html

 

 

 

 

QUARTA, 05/08/2020, 08:10Conversa de Política - Bernardo Mello Franco

Entrevista de Flávio Bolsonaro tem 'muitas histórias da carochinha ao mesmo tempo'

Bernardo Mello Franco comenta a entrevista dada pelo senador ao Jornal O Globo de hoje. Ele diz que Flávio traz uma série de explicações para episódios embaraçosos "que não convencem nem a velhinha de taubaté". Comentarista destaca que o político tenta jogar todos os problemas das denúncias de rachadinhas no colo de Queiroz e Wassef, mas não com tanta força assim, para que esses dois personagens não tenham incentivo para fazer uma delação.

 

 

 

 



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Flávio Bolsonaro é acusado de comandar esquema de rachadinha na Alerj. Foto: Wilson Dias / Agência Brasil

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QUARTA, 05/08/2020, 18:39Conversa de Política - Natuza Nery

'Entrevista de Flávio Bolsonaro é síntese do governo, que tinha um discurso e agora tem outro'

Em entrevista publicada nesta quarta pelo jornal O Globo, o senador e filho do presidente falou sobre caso das 'rachadinhas', fez críticas à Lava-jato e defendeu o procurador-geral da República. Para Natuza Nery, explicações de Flávio são incoerentes. 'O que era dito antes não é praticado depois', afirma ela.

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Flávio Bolsonaro é acusado de comandar esquema de rachadinha na Alerj. Foto: Wilson Dias / Agência Brasil

 

 

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Estado da Arte

Revista de cultura, artes e ideias

 

Machado de Assis rachado, em descontínuo

 26/06/2020 Thiago Blumenthal

por Thiago Blumenthal

 

 

 

 


Machado de Assis c. 1905, pintado por Henrique Bernardelli

Credes que se possa dar um regime social às aranhas, pergunta um sisudo cônego Vargas, logo no início do conto “A Sereníssima República”, publicado em Papéis Avulsos (1882), ponderação esta que se desdobra em uma digressão pseudocientífica e experimentaloide aos aracnídeos. É um truque. Tudo leva a crer que é Vargas quem narra seu empreendimento, mas não. Só temos aqui um registro, rigoroso, de um funcionário que tratou de copiar o seu discurso a um grupo de figuras distintas. Parece-me que há aqui não um epítome do pensamento social em Machado, mas antes uma observação das mais explícitas do que, no popular, chamamos de “o sistema”.

A engenhoca narrativa procura valer-se de um gênero em ascensão na Europa (em especial França e Inglaterra — e o que há mais na Europa afinal…), a ficção científica, para sublevá-la a outra coisa, em outra fundação textual e estilística, que é a do relato científico, quase médico-protocolar. Saímos do confortável e muitas vezes divertido terreno da ficção científica para adentrar, como em um buraco sem fim, em uma longa e detalhada tese, ou hipótese, sobre o curioso comportamento de extraordinárias aranhas, quando em situação de organização social. Mais até: mal percebemos que estamos deixando a ficção científica, talvez nem nos atentemos que desde as primeiras linhas há ali um objeto a ser mirado na luneta (ficção científica, em distinção com o microscópio do experimento médico/biologista).

Estamos na zona cinzenta da hermenêutica literária, uma das estranhas bases que deixa este artigo em pé, só que os pilares de sustentação mesmo são do direito. As aranhas estão ali, em Machado, para que o leitor, ou os distintos senhores da academia, em um relato que lembra certos momentos de Franz Kafka, se enxergue, na tradução do texto para o inconsciente, como um serzinho com suas arbitrariedades, seus tiques, seus comportamentos condicionados a uma sociedade que lhe impõe um conjunto de leis, ordens, e, principalmente, expectativas. Uma congregação de seres que precisa ser tocada sozinha, caminhar adiante com fins de manutenção e progressão, com ou sem interferência daquele que observa, maioral, de fora. Eis o espaço topológico preciso de “A Sereníssima República”: o quanto de interferência, e, principalmente, qual tipo de interferência? De um rei, de um príncipe, de um presidente eleito democraticamente, de um estadista, de um sistema ditatorial que nos fornece apenas a ilusão de movimento, tão essencial à sensação de prazer.

………

Não bastava associá-las; era preciso dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado, — o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade.

Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena.

A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular. Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo, essenciais à duração de um Estado.

…..

Se mais contemporaneamente as discussões (e as conversas de bar) sobre a obra de Machado giram em torno de questões biográficas, em especial, sobre sua negritude, o que é um campo interessante e que sinto que deve crescer mais e mais, tenho para mim que esta é uma das chaves mais complexas na contemplação atenta de seu texto. Figura arredia em seu próprio meio, de biografia dividida em mil cacos de vidro espalhados pela ABL, seus textos, ficcionais e não ficcionais, não se resolvem enquanto resposta, mas como dúvida. É, afinal, sob o signo da dúvida que repousa o drama machadiano, o que creio que vale para a sua biografia. “Conhecer algo sobre essas publicações pode  explicar até mesmo características aparentemente desimportantes, como a extensão das histórias, feitas até certo ponto sob medida, ou nos informar acerca do público a que Machado se dirigia” (GLEDSON, p. 37)

 

 

 

 


Machado de Assis, o segundo da esquerda para a direita, na fileira de baixo, junto com intelectuais e colegas — entre eles, Joaquim Nabuco

Em termos políticos/ordenação social, José de Alencar teria aberto as portas de um Machado da segunda fase, quando este transforma a realidade um tanto grandiloquente (não necessariamente ruim, ressalte-se) de Alencar em algo de troça, no descompasso de seus narradores e de seus personagens em constante processo de copo trincado. Se Alencar defendia um paternalismo esclarecido, interessado em manter seus privilégios de classe que aliviavam a o modo colonial de exploração e a ideologia liberal (ou liberalizante) do séc. XIX, Machado parece trabalhar em chave diversa.

Deste modo, ao adotar uma visão — fiquemos no ficcional — de um agente que não existe como referente puro, os narradores e os personagens de Machado, mesmo em seus recortes variados, o que dificulta a síntese em um único capítulo, ganham sua existência graças a um forte investimento de alusões culturais dispersas, da influência europeia, em especial, a inglesa, ao chão da rua do Ouvidor ou na praça da Constituição, com uma inabitual figuração a debater o seu tempo — tempo este que, na melhor maneira proustiana (ainda que anterior e sem o mesmo investimento estilístico), não é reencontrado jamais. São momentos marcados por constante e de certo modo vigilante vacilação; de novo, o signo da dúvida. Mesmo na aparente elegância de um José Dias, há vacilação, a insegurança de quem patina em uma sociedade em transformação. O algo que vai mudar, decerto, só não sabemos quando. Que é o que dá base para qualquer filosofia mais fundamentada do direito — a mudança demanda uma nova ordenação social, sob o peso da lei.

Se a cultura bacharelesca, retorcida com força como em um conto como “Teoria do Medalhão”, encontra-se em xeque, os personagens buscam afirmar suas personas, em máscaras que forçam por não se derreter a todo o momento. Nesse tabuleiro, ou melhor, nesse labirinto, os personagens buscam a vantagem mesmo quando sequer sabem que vantagem será esta na prática. Como carregar um livro que é proibido na outra margem do rio: posso sofrer uma punição, ou o ato proibido pode me trazer a consagração.

Machado equaciona suas histórias de modo a dissecar um momento marcado no tempo, mesmo quando no fôlego do romance. Diferentemente de um Alencar, que está ali para expor os momentos, ou de Guimarães, que fabula (ou ainda Carolina, que denuncia, para fechar os quatro autores deste volume). Se há algo metafísico na narrativa machadiana, ela é dissecada até não sobrar um fiapo, e por isso não trazer resposta, com certo cinismo quase sensível. No retalho, no rasgo, a sociedade está desmontada, como desmontada está a camada psicológica de todo aquele universo íntimo e coletivo.

Vejamos o trecho inicial do conto “Missa do Galo”, publicado pela primeira vez em forma de folhetim, na revista A Semana, em 12 de maio de 1894:

…..

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.

….

De ordem memorialista, o conto se desfaz em múltiplas camadas com o intuito de recuperar, pela memória de um narrador/protagonista que retoma uma história acontecida anos antes, em sua juventude, reatualizar o significado do que afinal lhe havia acontecido. Deste modo, é um olhar para trás, de um outro tempo para outro tempo, com suas implicações naturalmente históricas, ainda mais se levarmos em conto o momento da publicação e o próprio meio utilizado: o folhetim, de circulação semanal ou mensal.

Rio de Janeiro (óbvio). O narrador passa a noite na casa do casal Conceição e Meneses. Ele aguarda um amigo para comparecem à Missa do Galo, a que o título se refere. Tudo aqui é memória, a partir de uma estratégia de recontagem que mais do que recuperar um fato perdido na imensidão da cabeça, busca encaixá-lo em seu tempo, para localizar-se e encaixar-se em um novo meio social. Há um visível esforço de verossimilhança, consciente, o que no campo psicanalítico submerge a narrativa, a ponto de o nosso herói reconhecer o estado possivelmente confuso dessas lembranças todas.

O que resta são mosaicos de uma atmosfera de tensão sexual e dissimulação, temas caros a Machado.

…..

A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.

Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.

-— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.

Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.

Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: “Missa do galo! missa do galo!”

….

O aspecto memorialista do conto se mostra na presença de expressões como “lembro que” e também pela atitude do narrador em relação ao que recorda. Períodos como “há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me” abundam no texto, ajudando a criar uma distância segura entre quem conta e aquele que lê (em especial o leitor daquele período, vivendo aquele tempo — afinal, escreve-se para o agora, não para o depois). Deste modo o próprio contar fica sob a marca da desconfiança, traço definidor de Machado, jogando luz ao tema da infidelidade que paira no ar como qualquer algo sólido a se desmanchar e revelar-se no fragmento. Lembrando que a palavra-chave para entender Machado é “dúvida”.

O deter-se que esta narração em primeira pessoa faz de um acontecimento que soa distante faz com que nós leitores detectemos algumas características que ampliam um pouco as referências que temos internas ao próprio conto e àquela própria realidade. Demarcada logo de início pelo verbo conjugado “pude”, na primeira frase, e colocando de pronto a questão fundamental do conto “nunca pude entender”, este personagem que narra já se mostra (muito) distante do objeto que pretende e vai narrar: deixa o benefício da dúvida ao leitor do que de fato aconteceu naquela determinada noite.

Figura do tipo “forasteiro” que visita a capital carioca, Nogueira, que é de Mangaratiba, parece passar por um rito de iniciação que faz um paralelo interessante com o rito da própria Missa do Galo, nome dado pela tradição católica ao rito celebrado no Natal, com forte simbologia ligada à anunciação do Messias na Terra, no caso cristão, Jesus Cristo. O cerimonial do galo que anuncia as primeiras horas do sol na madrugada e o rito de indícios de certa iniciação sexual (pelo tom do diálogo com Conceição) ajudam a desdobrar a figura deste narrador que, à época do ocorrido, tinha apenas dezessete anos, como relata na primeira frase do conto.

A atmosfera, entre o falado e o escrito, no diálogo entre os dois personagens determina o ritmo e a espontaneidade próprios da linguagem do jornal, o primeiro meio de divulgação de “Missa do Galo”. Para John Gledson (1998), é na figura feminina de Conceição que esse efeito se mostra com mais clareza, em suas falas e em especialmente no que não diz: ela “não é necessariamente tão passiva e monótona como o narrador imagina; a frase final do conto (‘ouvi, mais tarde, que casara com o escrevente juramentado do marido’) está magnificamente colocada para nos fazer perceber o quanto esse narrador deixa de ver” (GLEDSON, 1998: 46). Para Gledson, aliás, Machado estava muito ciente de que escrevia para um público majoritariamente feminino, em que a maioria das mulheres dos contos são como as leitoras do Jornal das Famílias e do A Estação: “ricas, ou pelo menos de classe média, casadas ou no mercado matrimonial” (GLEDSON, 1998: 45).

Este aspecto da pirâmide clássica entre meio-autor-leitor pode passar despercebido a uma primeira análise mais rápida de toda a obra do Machado, mas revela-se de alguma importância para os nossos fins de perspectiva histórica e, em especial, no que concerne o direito.

Primeiro porque temos aqui o que o autor americano Oliver Wendell Holmes (1809-94) atribuiria de revanche, no sentido de que a lei, qualquer sentido de lei, nasce do sentimento de revanche. Embora a paixão pela revanche pareça a antítese do pensamento racional e instrumental, quando não há um meio legal para deter um possível agressor, a vítima potencializada (ou dotada de performance de defesa), o caminho natural não é outro senão a retaliação contra o agressor que a vitimou.

 

 

 

 


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Wendell Holmes

O desejo de vingar-se por danos reais ou imaginários, de acordo com Richard Posner, em seu clássico Law & Literature, sem calcular ao certo os benefícios da revanche no momento em que a mesma é realizada, pode fazer parte do complexo tecido social e genético humano. Assim, a emotividade e a universalidade abrem longa vereda para a especulação na filosofia do direito clássico e contemporâneo.

Lembrar, relatar, escrever, reproduzir e imortalizar no papel, sem querer cair na implicação romântica do termo “imortalizar”, termina por ser um mecanismo funcional de revanche, em que se busca, além de recuperar o fragmento perdido da memória, principalmente de uma memória traumática (não entremos na seara da psicanálise), recuperar os fatos, as falas, as circunstâncias, a seu favor. As artes sempre se valeram dessa estratégia. E Machado parece usar o registro, ou a tentativa de recompor a memória — terreno movediço no direito — com o intuito de explorar, ou dissecar, personagens em profundo conflito com a sociedade vigente, com o sistema de leis que os rege, e, evidentemente, consigo mesmos. Na falta do racional, território onde o direito é postulado, na falta da ciência, dos dados e das provas, resta o relato ficcionalizado em camadas (o “eu conto o que lembro do que supostamente aconteceu”, o que gera camadas intertextuais infinitas). Resta também a política, o campo do saber, o campo de atuação do consciente onde o racional sai do jogo. Já chegamos lá, mais ao fim do capítulo.

Nesse fio, não basta o instinto puro e orgânico para chegar à revanche, como a empreendida por aquele que está se lembrando daquela noite em “A Missa do Galo”. Há um senso de honra inescapável. Histórica e antropologicamente, culturas em que a vingança representa um papel significativo na regulação de interações sociais dão grande ênfase à honra. A vergonha, reação imediata a um ato de desonra (ver capítulo sobre Guimarães Rosa), ajuda a vencer o medo, e assim potencializa a revanche. Fora do jogo de palavras entre honra, vergonha e vingança surgem a noção de equilíbrio, ordem restabelecida, reciprocidade, e, nas palavras de Posner, “keeping score” — noções estas abraçadas pelo direito, inicialmente sob a rubrica de justiça correcional.

Contemporaneamente à publicação do conto, em 1899, quando Páginas Recolhidas é lançado, José Veríssimo dedica resenha ao livro. Diz ele:

Dos contos coligidos neste livro, Missa do Galo me parece um dos melhores que haja escrito o autor. A análise de certo sentimento, ou antes de um desejo, que eu não posso dizer aqui, é feita com uma sutileza, aguda e delicado a um tempo, raramente vista. E com isto, verdadeiro, humano, como é, apesar talvez de aparências contrárias, toda a obra do. Sr. Machado de Assis. Somente humana sem piedade ou sequer simpatia, ou com a piedade ou simpatia disfarçada, ciosamente ocultas, na ironia, no “humor”, sob que a vela e resguarda o poeta.

[…]

Creio que o centenário camoneano, sob o aspecto puramente literário, não produziu nada superior a Tu, Só Tu, Puro Amor… a comédia do Sr. Machado de Assis. Se a concepção é, como a composição, encantadora, a peça tem um ar de verossimilhança que lhe sobreleva o mérito. A graciosa língua que nele se fala não é, certo, a da Corte de D. João III, e fora um erro reproduzi-la tal e qual. Mas o que é em arte essencial dá a ilusão de ser a mesma, sem ofender os nossos ouvidos modernos. Só uma expressão encontrei que talvez não pudesse Camões dizer: “O amor é a alma do universo”. Parece-me um anacronismo. Ou me engano, ou o conceito é do nosso tempo. Não penso, aliás, que o escritor não tivesse o direito de atribuí-lo ao poeta. (VERÍSSIMO, 1899: 374)

…..

José Veríssimo, que assina a resenha, é outro dos fundadores da ABL, junto a Machado e a Valentim Magalhães, diretor e editor da revista em que “Missa do Galo” foi publicada pela primeira vez. Não somente isso, é a José Veríssimo que Machado dedica o prefácio de seu Páginas Recolhidas. Há um jogo político, que ultrapassa a apreciação crítica, e recai no cotidiano de interesses, poderes e status num regime em transformação.

 

 

 

 


De pé: Rodolfo Amoedo, Artur Azevedo, Inglês de Sousa, Bilac, Veríssimo, Bandeira, Filinto de Almeida, Passos, Magalhães, Bernardelli, Rodrigo Octavio, Peixoto; Sentados: João Ribeiro, Machado, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos.

Machado, já bastante inserido no meio editorial e literário de seu tempo, sabia bem para quem escrevia e o que escrevia, dentro de uma lógica de mercado com certas regras próprias. O mercado é o direito, ou por ele se regula.

A verossimilhança que Veríssimo nota em sua resenha ao livro acaba sendo também um dos motivos do conto, já que a desconfiança do narrador em relação à Conceição termina por colocá-lo em uma situação de relato em que ele também desconfia já de sua memória, daqueles longínquos tempos que “contava dezessete anos”. A desconfiança, o medo, o sentimento de fazer as pazes com o passado, permeia um sistema de regras sociais, que atormentam e ao mesmo tempo condicionam as figuras machadianas.

O caráter duplo, em que a verossimilhança do relato é posta em dúvida (a ficção da memória, afinal, sendo bem proustiano) a partir de dentro, vincula duas histórias. Uma mais secreta que ameaça colidir com a história mais visível, do não dito, das palavras que Conceição deixa pela metade, de seu pensamento fragmentado (SCARPELLI, 2001) a partir das leituras de Joaquim Manuel de Macedo e outros folhetins. A outra história, visível, compartimenta a invisível, do mesmo modo em que o teatro era o espaço do adultério de Meneses. A conversa de Conceição com Nogueira também é por sua vez teatralizado, porém agora tramado pelos fios não muito confiáveis da memória deste narrador que está olhando para trás, em busca de, no fundo, justiça.

Conceição emerge da leitura que Nogueira fazia de Os Três Mosqueteiros: “tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro”. Quase como uma cena típica da Recherche, em que o narrador já não sabe mais distinguir, no meio da noite e na recuperação de suas memórias, o que é ficção e o que é realidade, o que o leitor tem em “Missa do Galo” é um clima de dúvida — sempre ela —, de ambivalência em relação ao que se vê e ao que se sente. Compactuar com a sedução (possível, em potencialidade) de Conceição ou ir à Missa do Galo, quando o amigo já lhe chama da janela, ao fim do conto, resistindo a ela, portanto?

É na discussão dos romances e do que cada um lê que a insinuação e a sensualidade mais amplificam cada palavra ou meia-palavra. Além de registrar um período da nossa literatura, e o registro das publicações de Machado em jornais e revistas, ele mesmo, um escritor maduro já familiarizado a suas lógicas de mercado, o conto deixa em aberto o não dito pelo que se é dito. “Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?”. Isto é uma declaração de um promotor em corte: fez isso, porém não o fez. Gosta de romances, mas não o lê.

O passado emerge no presente, no relato, no récit, como reza a tradição da teoria literária. O jogo de repetições dos mesmos enganos, da lembrança que vem obscurecida como naquela atmosfera de meia-luz em que se deu o diálogo com Conceição faz titubear a voz, faz não confirmar a ocorrência, vasculhando o que sobrou daquela ocasião. Uma ocorrência não confirmada, ou não provada, só se faz possível no campo tautológico da ficção — e qualquer lembrança é ficção, por excelência.

E é justamente nesta investigação do passado, do rito da juventude, do choque entre o sagrado (o Natal) e o profano (o adultério), dos romances que nos punham ideias na cabeça, e das conversas que tínhamos sobre essas histórias, que se desvela o sentimento que resta firme, inalterável: que somos todos resultado de nosso passado. E, enquanto resultantes desse passado, estamos sub aeternum judice.

Sob essa mesma fundamentação em torno da dúvida, podemos capturar alguns sinais claros em uma obra de maior fôlego, como no romance Esaú e Jacó (1904), marco de uma escrita madura e sem os tiques narrativos presentes em obras anteriores. Alguns críticos o chamam de uma espécie de canto de cisne de Machado, por sintetizar todos os elementos sobre os quais o autor veio se debruçando em décadas e décadas de produção.

Sendo ele mesmo um romance sem ação, ou sem nenhum grande ato, sem nenhum grande acontecimento, ou clímax per se, Esaú e Jacó se sustenta exclusivamente no texto machadiano, em sua precisão, na direção que ora conduz o leitor ora o engana, como o ilusionista o faz atraindo a atenção de seu espectador para seu olhar, e não para suas mãos. De certa maneira, o enredo acontece fora do romance, no enquadramento, na moldura, que, evidentemente, é feita de uma matéria-prima social ou sociológica, ou histórica. Costuma não figurar entre os livros preferidos do autor, talvez por esse motivo, mas temos aqui um exemplar primordial de como a sinapse de um aparato social se dá de maneira fluida, sem carregar a mão na pintura.

Um livro de bailes, jantares, discussões, vaivéns ideológicos. Um romance de tertúlias. Ou mais, um romance de conselhos, em especial no tocante às conversas individuais dos personagens com o conselheiro Aires — o que dará material para o último livro de Machado, que não cabe aqui tratar. É outra coisa ali.

Trabalhemos com alguns eixos de leitura que nos ajudarão a compreender a matéria do direito no livro. São eles (1) o eixo da ciência (certeza) X política (incerteza) — algo que mencionamos en passant anteriormente; (2) a tolerância em tempos de adesão à República; (3) um balanço de toda a trajetória da própria escrita, o que também retoma um topos aqui já tratado, que é o da escrita como forma de fazer cumprir-se algo sobre algo com o qual o sujeito se sente lesado (uma maneira de exercer o direito).

Não é possível falar da obra sem falar do chamado racismo científico, intenso naquele período de virada de século, e virada de regimes. O ser humano estaria, por assim dizer, determinado por características natas. Há material de sobra a respeito desse curioso interesse do fin de siècle, como o estudo abaixo.

A ciência em rota de colisão com o humanismo, contra crendices (algo que surge em Esaú com combustível religioso), para quem o criminoso era o sujeito já nato, em geral doente, e, claro, mestiço e degenerado. Nessa equação, o mestiço encontrava-se abaixo dos próprios negros, o que nos faz lembrar o eugenismo das leis de Nuremberg, assim chamadas de “proteção do sangue alemão e da honra alemã”. Era pior uma alemã casar-se com um homem judeu do que ser uma judia per se. Nisto se fixava a base para a luta contra o grande mal judaico, o cosmopolitismo desenraizado.

Voltemos, contudo, à epígrafe do livro, ou melhor, ao capítulo sobre a suposta epígrafe do livro, que se encontra muito distante do começo da obra.

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“Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as ideias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trabalhos. Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peão. Há ainda a diferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo.” 

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Eis um parágrafo que funciona como pausa na narração, uma típica “digressão” (muitas aspas) machadiana, que vale a análise mais detida para fundamentar a nossa hipótese. Sob o fundo de religiosidade avariada, entre o imaginário e o simbolismo de fonte africana e o cristianismo (ligado aos poderes e à regulamentação social), do casal que tem dúvidas quanto ao futuro de seu legado, essa curiosa “epígrafe” faz com que a narração, e Machado, se refugie em ideias que não são do seu tempo, como bem afirma Alfredo Bosi, em seu O Enigma do Olhar. O par de lunetas é um alô para a ciência, igualmente avariada entre dois mundos em transformação, cuja lente não dá conta de todas as coisas que há entre o céu e a terra, observação de Hamlet a Horácio retomada, de modo invertido, no início de “A Cartomante”. Neste sentido, o leitor (ou a leitora — esta questão de gênero é importante para Machado, consciente de seu público leitor à época), também se encontra condicionado às leis máximas e arbitrárias de uma ciência eugenista e ao mesmo dotado de certo, ainda que limitado, espaço de movimentação social, afetiva, religiosa. E principalmente: um espaço onde pode mover as peças do tabuleiro, na imagem do trecho citado, como bem entendê-las. É um truque, jamais deixará de ser um truque — e a boa literatura é feita de truques — mas um truque faz o coelho desaparecer e aparecer novamente, um truque que faz o leitor sentir-se cocriador, ou cúmplice ativo, de tudo o que lhe é apresentado. Aí entra o direito.

Quem escreve afinal de contas? Afinal há um narrador? Sempre há. Mas como defini-lo, uma vez que o mesmo envolve o leitor nesse truque em que a obra parece estar sendo escrita enquanto acontece, mesmo se ocorrida no passado, e, em especial, sob supervisão quase mandatória de um leitor. Em um mundo sem narrador, nada a ver com a surrada teoria benjaminiana, qualquer relação social se vê desgarrada de um imperativo de convivência, de ordem estabelecida.

A diferença de cor, branca e preta, no xadrez mais normativo, não é uma mera simbologia das relações em tensão entre as raças no Brasil, e no mundo. Machado não se valeria de uma técnica narrativa tão simplória. O branco e o preto marcham adiante, para trás, para os lados, em L, como cavalos-fantasmas em um mundo já sem um solo em onde se firmar. Não são os povos, não é o ser humano, é a própria interação leitor-autor, mediada por um livro (ou jornal, ou o meio que for, via editor/publisher), que marcha sem um sentido positivo. Como na hipótese de Bernard-Henri Lévy, resta-nos a redenção via negativo, via a identidade estraçalhada na marca escrita, que busca reproduzir uma sociedade que não pode mais ser reproduzida via literatura. Assim, o direito, ou uma equação de ordenação social, entra rasgando em Machado, buscando a todo tempo regular aquela infinidade de jogos, máscaras, poder e, talvez, e muito talvez, afetos.

 

 

 

 


Tabuleiro de xadrez que pertenceu a Machado de Assis

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Levando em conta que temos uma longa transcrição de cadernos do conselheiro Aires, há em Esaú e Jacó uma sequência de fatos narrativos, ou não muito narrativos, no sentido de ação, que foram compilados em uma boneca russa machadiana, técnica muito cara ao autor, e que se transveste de mil e uma formas desde a antiguidade persa à contemporaneidade: vou contar sobre algo que achei mas através de algo que já sei e que estou rearranjando como se eu fosse o verdadeiro autor/agente dessa história.

Assim, as linhas históricas de um Brasil em transformação são traçadas em forma de uma memória que fica entre o intermediário (ou intermediador), que as relata em uma terceira via do processo de lembrança (por outrem), e entre um personagem que se eleva acima de todos os outros, e acima da própria História, esta com H maiúsculo. Ele observa o que se passou, o que está se passando, e, o que é fundamental, pondera sobre o que pode se passar dali em diante, em forma de anestesia social para abrir o corpo ensanguentado. Ou, para ficar na imagem central do livro, para separar esses dois irmãos unidos e ao mesmo tempo tão desgarrados — por opinião, por ideologia, por amores, por falta de amor.

Como se o episódio do Baile da Ilha Fiscal, ocorrido em novembro de 1899, estivesse sendo (mal) digerido por aquela sociedade e por aquele que está a nos contar sobre a mesma. A despedida da monarquia, que cede espaço a um ambiente republicano, não é mais um festejo, mas antes um objeto de memória, algo quase físico. Como se Machado, nas palavras de Gilberto Freyre, estivesse o tempo todo vestido com alguma finesse. Qualquer paisagem um pouco mais brasileira, daquele império sobrecarregado no tom e nas cores, existe apenas como uma memória a ser manipulada, com as mãos mesmas, e retocada com um cinza, ou o preto e branco do cinema. “Nada de paisagem, nada de cor, nada de árvore, nada de sol”. Tudo reside na memória. Mas é uma memória travestida de memória, uma transcrição de uma terceira voz. Eis o truque.

José Aires, com que tudo concorda faz lembrar uma certa tipologia do personagem machadiano apadrinhado. Não tinha “aquele triste pecado dos opiniáticos”. Em suas próprias palavras de um mal desenvolvido aconselhamento, pede que contemos com as circunstâncias, com o imprevisto ainda mais, o imprevisto que, para ele, é um “deus avulso” e jamais deve ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos. Não há síntese melhor deste sentimento, quase afetivo, quase cínico, da memória que invade os corações e as mentes.

….

Tenha confiança, baronesa, prosseguiu ele pouco depois. Conte com as circunstâncias, que também são fadas. Conte mais com o imprevisto. O imprevisto é uma espécie de deus avulso, ao qual é preciso dar algumas ações de graças; pode ter voto decisivo na assembléia dos acontecimentos. Suponha um déspota, uma corte, uma mensagem. A corte discute a mensagem, a mensagem canoniza o déspota. Cada cortesão toma a si definir uma das virtudes do déspota, a mansidão, a piedade, a justiça, a modéstia… Chega a vez da grandeza da alma; chega também a notícia de que o déspota morreu de apoplexia, que um cidadão assumiu o poder e a liberdade foi proclamada do alto do trono. A mensagem é aprovada e copiada. Um amanuense basta para trocar as mãos à História; tudo é que o nome do novo chefe seja conhecido, e o contrário é impossível; ninguém trepa ao sólio sem isso, nem a senhora sabe o que é memória de amanuense. Como nas missas fúnebres, só se troca o nome do encomendado — Petrus, Paulus…

             …

Quando Machado parece olhar para si mesmo, na figura de um Aires, ainda que de acordo com uma estratégia de quem tira o coelho da cartola, não chega a ser difícil como o autor passeou por escolas literárias distintas, do romantismo a um proto-modernismo muito sofisticado, seja antevendo algumas obras ou retomando outras, em especial as que lhe eram caras, como do cânone inglês. O estilo, por exemplo, em Esaú e Jacó, impressionista associativo, pontuado pela ruptura da linearidade, encontra rastros em Balzac, em Sterne, e abre caminho para uma nova literatura brasileira, com um novo regime social e, fator que não podemos ignorar, um novo público leitor, com novas demandas e novos modos de pensar, especialmente morais e normativos. Aí entra o peso da lei, uma lei que não é só aquela que busca organizar e criar a manutenção de um sistema social, mas uma lei quase cósmica, que está a nos regular, como leitor, como autor, como ficcionista, como contador de história, como ouvinte ou participante ativo — e principalmente como espelho.

No centésimo capítulo da obra, há um parágrafo em que podemos distinguir nos desenhos de Flora o olhar para Helena (a estrada da Tijuca), para Iaiá Garcia (o chafariz do encontro entre Jorge e Iaiá), Dom Casmurro (o princípio de casa, inacabada, em ruínas, sem história), e até mesmo para Abolição (a revoada de pássaros). Flora então exibe um desenho de duas cabeças, quase como uma tarefa de análise, o que para Aires é mais: é um vínculo escondido.

Quando o enredo acontece no enquadramento da pintura, a História se apresenta com uma força tão potente quanto a história, a trama de um grupo de pessoas, que ali se narra. A História, esta regida pelo campo político, é a que renderia as tão esperadas grandezas de Natividade quanto aos filhos, e o que de certo modo rende inúmeras análises de um ponto de vista sociológico da fase final de Machado, como em retrospecto ou cirurgia de toda a sua obra, no canto de cisne, por assim dizer — toda a literatura de um autor é resultado de um trajeto longo, não apenas de uma única obra, daí a complexidade ao se debruçar sobre um autor com produção vasta e que vivenciou momentos distintos. Se os protagonistas são doutores que optam por trocar a ciência de suas vocações pelo campo movediço da política não é um mero acaso.

 

 

 

 


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(Reprodução: Arquivo Nacional)

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Referências

A SEMANA. Rio de Janeiro. Tomo V, nº 41, 12/05/1894, pp. 321-328. Disponível em <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=383422&pasta=ano%20189&pesq=maio%20de%201894>.

BOSI, Alfredo. O Enigma do Olhar. São Paulo: Ática, 2007.

GLEDSON, John. Machado de Assis – Ficção e História. São Paulo: Paz e Terra, 1986, com 2ª ed. revista e ampliada de 2003.

__________. Introdução in ASSIS, Machado de. Contos: uma antologia. (Seleção, introdução e notas de John Gledson). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol. 1.

POSNER, Richard A. Law & Literature. Boston: Harvard University Press, 2009, terceira edição.

SCARPELLI, Marli Fantini. “Entre ditos e interditos: ‘Missa do Galo’, de Machado de Assis”. O eixo e a roda, vol. 7, 2001, pp.29-44. Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Eixo%20e%20a%20Roda%2007/Marli%20Fantini.pdf>.

VERÍSSIMO, José in ASSIS, Machado. Páginas Recolhidas. Rio de Janeiro: Garnier, 1899. Disponível em <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=139955&pasta=ano%20189&pesq=P%C3%A1ginas%20recolhidas>.


Thiago Blumenthal

Thiago Blumenthal é fundador da editora Lote 42, doutor em Literatura e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

https://estadodaarte.estadao.com.br/machado-rachado-descontinuo-blumenthal/

 

 

 

 

Referências

 

 

 

 

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