‘(...) Tavares afirma que “a ciência é o triunfo do
conhecido sobre o desconhecido” (1986, p. 17); contudo, tal triunfo advém do
enfrentamento dos limites já conhecidos pelo homem. A confrontação, por sua
vez, gera receios e medo, pois, como afirma o escritor e crítico H. P.
Lovecraft na obra O horror sobrenatural na literatura (1987, p. 1): “A
emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e
mais antiga de medo é o medo do desconhecido”. (...)’
Thalita Ruth Souza
Naiara Sales Araújo Santos
“- Por
quê? Por causa da sombra.
-
Sombra?!”
COELHO NETO
(1864 -1934 I Brasil)
Boitempo
“A sombra vem nos cascos,” (Carlos
Drummond de Andrade (1902 – 1987)
Fonte: https://www.passeiweb.com/estudos/livros/boi_tempo_i_e_ii/
O Modernismo de 22 nos trouxe avanços
indiscutíveis. Mas deixou seu rastro de injustiça, relegando ao esquecimento
alguns "acadêmicos" anteriores a eles, como Olavo Bilac, Lima Barreto
(menos), Adelino Magalhães e Coelho Neto. Que estão eles todos à espera de uma
reavaliação. No caso do autor de A Conquista e de O Rei Negro, em especial,
devido a seu estilo mais rebuscado, isso parece mais difícil ainda. Nos anos
70, uma crítica de Fausto Cunha já ensaiava esta reavaliação. Mas aqui vale
lembrar que ele foi um contista bastante curioso, como veremos neste conto que
apresenta a importância "científica" no nosso cotidiano, que vinha
ganhando corpo desde o Naturalismo e que marcou o início das histórias
policiais (vide Poe, Conan Doyle e Jacques Futrelle).
Ao
ver-lhe o retrato ilustrando a trágica confissão do crime, amarfanhei o jornal,
indignado. "Não! Não era possível! Só se ele houvesse enlouquecido.
.." Imediatamente resolvi visitá-lo no Quartel da Brigada, onde o
haviam recolhido em atenção ao seu título de médico.
Não era
possível. Celuta sucumbira a uma septicemia aguda, segundo o diagnóstico dos
médicos que a examinaram.
Ao entrar
na sala em que se achava Avelar logo o avistei sentado à beira de estreita cama
de ferro, em mangas de camisa, fumando, visivelmente acabrunhado.
Ao ver-me
fez um gesto de contrariedade como se lhe desagradasse a minha visita. Atirou
longe o cigarro e, baixando a cabeça, inclinou-se, com os cotovelos fincados
nas coxas. Estendi-lhe a mão. Não respondeu ao meu gesto. Chamei-o. Deu de
ombros, mal-humorado.
- Então,
o que é isto, Avelar? Que história é essa?
- É
isso... - Levantou a cabeça e encarou-me sobrecenho. A face refranzia-se-lhe em
crispações fulgurantes. - Estás espantado, não? Pois é assim ...
Olhou-me
de esguelha, sacudindo a perna. Acendeu outro cigarro e pôs-se a fumar.
Insisti.
- Mas
Avelar. .. que há de verdade nessa história?
- Não
leste a minha confissão? Pois é aquilo. Matei-a.
- Tu!?
- Eu,
sim! Eu! E então? Por que havia eu de denunciar-me se estivesse inocente? Por
quê? Para quê? Matei-a.
- E por quê? Que razões tiveste para isso? ..
- Ah!
razões. ..
Atirou a
cabeça para trás e ficou a olhar perdidamente, com um estranho sorriso no rosto
pálido. De repente, levantando-se, plantou-se diante de mim, impôs-me
pesadamente as mãos aos ombros e disse-me em voz surda, rouca, voz que l he
saía difícil, como arrancada:
-
Suspeita, sabes? o tal micróbio do ciúme. Porque há também micróbios no mundo
moral, oh! se os há! São as tais palavras vagas que nos entram n'alma e lá se
desenvolvem e proliferam em desconfianças. Foi uma de tais palavras, entendes?
e certos risinhos, certos olhares, cochichos. .. Um dia ... Sei lá!
- E como
foi?
- Como
foi? Pouco a pouco. - Retesando os braços, repeliu-me de si e,
cravando-me o olhar que rebrilhava, disse: - A ciência. .. uma história!
Tudo falha. Nada se pode afirmar, nada! E, queres que te diga? a mais culpada
em tudo isso foi a Ciência. Foi ela que me levou ao crime, porque o ciúme. .. o
ciúme... Não havia motivo para ciúme. Celuta era honesta.
- E
então?
- Então.
.. Eu te digo. Já sabes como a matei, não?
-
Envenenada.
-
Envenenada? Pois seja. Matei-a com bacilos de tuberculose, esses e outros
germes letais. Propinando-Ihe as primeiras doses, inoculadas em frutos -
(tratava-se, então, da vigança da minha honra ... Pobre Celuta!) esperei as
manifestações do mal e... nada! Em vez do deperecimento, dos sinais
característicos da ação destrutiva do bacilo de Koch, o que eu via, e todos os
apregoavam em louvores, era o reviçamento da vítima, mais robustez, aspecto magnífico, apetite, sono tranqüilo, higidez absoluta. A
própria enxaqueca que, de vez em quando, a atormentava, desapareceu. Tu mesmo a
felicitaste, uma noite, no Municipal.
- É
verdade.
- Pois aí
tens o que me desvairou. Não foi o marido o assassino, foi o bacteriologista, o
homem de ciência, o prático de laboratório, entendes? o profissional que não
podia compreender que um organismo, frágil como o de Celuta, resistisse ao
ataque insistente de tantos vibriões. Era um corpo inçado de elementos
mortíferos; cada qual mais violento e nada! nada! O que então se deu foi
horrível. Desanimado da ação dos bacilos de Koch, lancei mão de tudo o que
tinha no meu arsenal e... aquele corpo sempre refratário, carne como de
Aquiles. Era de enlouquecer! E o pior é que comecei a temê-Ia, a evitá-Ia,
sabendo, como sabia, que toda ela era um depósito de vírus, que um pouco de sua
saliva, do seu suor, do seu sangue, o mais leve contato com o seu corpo poderia
transmitir-me a morte. Desconfiando do meu retraimento ela tornou-se mais
meiga, mais assídua em carinhos. Horrível! Contemplando-a acordada à mesa, na
sala, nos teatros, em festas ou adormecida, ao meu lado, no leito, eu não
via, a ela, Celuta, não! o que eu via era uma incubadora de morte, uma figura
sinistra que encarnava todas as pestes, não lhes sofrendo as conseqüências,
como as serpentes não se envenenam com a peçonha que trazem.
"O
marido desapareceu ficando apenas o observador apaixonado por uma experiência.
E, encerrando-me no meu laboratório horas e horas, dias e dias, eu estudava
aquele caso estranho, fenômeno, sem dúvida, mais belo do que a fagocitose,
porque era a luta tremenda de germes letais, uma batalha formidável de legiões
pestíferas no organismo débil de uma mulher. Um dia, porém, uma de tais hostes
venceu... a morte foi rápida. Arrependido, quis intervir, era tarde e a
pobrezinha. .. Aí tens. Os médicos não atinaram, nem poderiam atinar com a
causa mortis. Septicemia aguda... é um nome para a cova, posto no rótulo
do cadáver. Ninguém poderia saber. Ninguém!"
- Se
ninguém poderia saber por que te denunciaste? Por que não ficaste com o teu
segredo terrível, tu só?
- Por
quê? Por causa da sombra.
-
Sombra?!
- Sim. A
sombra de Celuta. No dia do enterro, ao voltar do cemitério, notei que, em vez
de uma, duas sombras me acompanhavam. Onde quer que eu fosse tinha-as sempre
comigo: uma, era a minha; outra, era a da morte. Fiz tudo para livrar-me dela,
tudo! Nada consegui. Agora sim...
Adiantou-se
para o meio do salão, onde o sol batia em cheio, e disse-me:
- Vês? Há
aqui apenas uma sombra, a minha, a outra, a de Celuta, desapareceu ontem.
Quando entrei na delegacia ela ainda me acompanhava. Subiu comigo, ficou a
meu lado enquanto depus, logo, porém, que assinei a confissão, desapareceu. Não
imaginas o horror que é ser um homem seguido por uma sombra que não é a sua,
sombra de outro, de um morto. Preso, condenado, perdido para o mundo... que
importa! mas estou só, a minha consciência já se não projeta diante de mim, a
sombra da morta deixou-me em paz. Foi melhor assim. Confessei o crime, estou
livre. Quantas sombras vês aqui ao sol?
- Uma
apenas.
- É isso:
uma apenas. A outra, tendo conseguido a minha confissão, recolheu-se ao túmulo,
satisfeita. Por que me olhas assim? Julgas-me louco, com certeza. Não, meu
amigo. O que te digo é a pura verdade. Os médicos, quando não acertam com as
enfermidades, escrevem um nome qualquer na certidão de óbito: septicemia, por
exemplo. Assim certas verdades quando ultrapassam os limites do conhecimento
são chamadas loucuras. Portas de evasão da inteligência humana. Viste apenas
uma sombra ao sol, se me houves-ses encontrado ontem terias visto duas... ou
talvez não visses porque, enfim, o perseguido era apenas eu. É isto...
***
Haverá juízes que condenem esse pobre louco?
https://aneste.org/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=34
“Passou os últimos anos de vida afastado das atividades
públicas, a ponto de ser considerado um ermitão; morreu de causa não revelada,
sem haver deixado descendência.[2][1]”
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fausto_Cunha
A PROTOFICÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA E SUA
HIBRIDIZAÇÃO ATRAVÉS DO FANTÁSTICO: UMA ANÁLISE DO CONTO “A SOMBRA” DE COELHO
NETO
BRAZILIAN PROTOSCIENCE FICTION AND ITS
HIBRIDIZATION THROUGH FANTASTIC: AN ANALYSIS OF THE TALE "A SOMBRA"
BY COELHO NETO
Thalita Ruth Sousa189
Naiara Sales Araújo Santos190
RESUMO: A Protoficção Científica
compreende obras produzidas antes da formação da Ficção Científica, mas que
possuem fundamentos ligados ao desenvolvimento tecno científico. Caracterizada
pelo hibridismo, a ProtoFC, por vezes, apresenta afinidades com outros gêneros.
Este é o caso do conto A sombra (1927) do escritor Coelho Neto, que tem
proximidades com o Fantástico. Nele, o personagem Avellar, um bacteriologista,
mata a esposa Celúta através de um experimento com injeções de vírus e bacilos.
Após o fato, ele é perseguido por uma sombra até que confessa o assassinato.
Observa-se que a experiência científica provoca o medo do desconhecido,
culminando num evento sobrenatural, rompendo com a realidade. A ciência,
portanto, mostra-se falível e incapaz de fornecer explicações para tudo.
Considerando as mudanças no cenário nacional devido ao progresso científico
apregoado no início do século XX, objetiva-se analisar, por meio de pesquisa
bibliográfica, a representação da ciência no conto A sombra (1927) e sua
relação com a sociedade da época. A presente pesquisa visa também averiguar
como a hibridização se constitui através do Fantástico na narrativa. Para
tanto, são utilizados os apontamentos de Mary Del Priore (2014), Raul Fiker
(1985), Isaac Asimov (1979) e David Roas (2018), entre outros.
189 Mestranda pelo Programa de
Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão – UFMA.
Pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA.
190 Doutora em Literatura
Comparada. Professora do Programa de Pósgraduação em Letras da Universidade
Federal do Maranhão – UFMA.
Estudos Literários
Thalita Ruth Sousa, Naiara Sales Araújo Santos
ABSTRACT: Protoscience Fiction
consists on literary works produced before the establishment of Science
Fiction, but which fundamentals are related to the science and technology
development. Due to its hibridism, the ProtoFC usually presents affinities with
other genres. That is the case of the tale A Sombra (1927) by the writer Coelho
neto, that has proximities with the Fantastic. In it, the charachter Avellar, a
bacteriologist, kills his wife Celúta through an experiment with shots of virus
and bacillus. After that, he is chased by a shadow until confessing the murder.
The scientific experience provoques a fear of the unknown and generates a
supernatural event which breaks the reality. Therefore, the science is
portraited as flawed and uncapable of providing answer for everything.
Considering the national scenario changes because of the scientific progress
disseminated on the beggining of the twenth century, this work aims to analise,
by means of bibliographical research, the representation of science in the tale
A Sombra (1927) and its relationship with the society from that time. This
research also aims to investigate how the Fantastic constitutes the
hibridization of the narrative. For this purpose, the productions of Mary Del
Priore (2014), Raul Fiker (1985), Isaac Asimov (1979) and David Roas (2018),
among others. Keywords: Protoscience Fiction; fantastic; Coelho Neto.
1 Introdução
A especulação sobre o mundo, motor criativo de Ficção
Científica (doravante FC), pode ser traçada desde tempos primitivos. O instinto
de questionar e a necessidade de encontrar respostas levaram o homem a construir
conhecimento e narrar fantasias. A crítica do gênero associa essas narrativas a
precursoras da FC, partindo de diversas perspectivas.
O crítico Lloyd Biggle (apud SCHOEREDER, 1986, p.
15) afirma que “uma simples brisa despertava uma interrogação, e o faiscar de
um relâmpago constituía uma ameaça de condenação”. Apesar do homem primitivo
não conhecer a FC, suas fantasias eram parte dela. Biggle acrescenta que
"cada idade produziu uma ‘ficção científica’ que refletia a tecnologia e o
pensamento científico dessa mesma idade”. Contudo, a perspectiva de encontrar
características de FC na antiguidade não é unânime. Há críticos que abordam
como FC somente as obras que se enquadram na estética do gênero como ele foi
concebido em tempos modernos. De acordo com o escritor Gilberto Schoereder, na
obra Ficção científica (1986, p. 14), para alguns críticos a FC surgiu
após a II Guerra Mundial, com poucas antecipações.
Ao comparar os dois pontos de vista apresentados anteriormente, é possível perceber que o posicionamento do homem primitivo se volta para o conteúdo geral da FC e o da modernidade “prende-se à forma pela qual a história é escrita” (idem). Ou seja, é levada em consideração a estética do gênero como se apresenta na atualidade. Há ainda os que consideram tais predecessores como pertencentes à Protoficção Científica, doravante ProtoFC, ponto de vista aqui adotado. Esse termo foi estabelecido por John Clute na obra Science fiction: the ilustrated encyclopedia (1994). A Protoficção Científica tem maior proximidade com a primeira concepção de FC aqui apresentada.
se refere a manifestações, anteriores ao estabelecimento do
gênero, de formas e tradições cujos temas e métodos foram posteriormente
adotados pela FC. Por exemplo, o tema da viagem imaginária talvez seja o mais
importante deles.
Portanto, observa-se a ProtoFC sob duas perspectivas:
temporal, pois são obras que surgem antes da estruturação do gênero, e
estético, já que elas apresentam afinidades com o que posteriormente será
convencionado como FC. Assim, tais manifestações não tiveram base para fomentar
o surgimento da FC, seja por não se originarem em um momento histórico e
literário propício ao desenvolvimento tecnológico, seja pela estética de suas
narrativas.
Como exemplo de ProtoFC, o pesquisador Roberto C. Belli em Ficção
científica: um gênero para a ciência (2012), resgata um histórico que parte
dos gregos:
Heródoto, o pai da História, nascido no século VIII a. C.,
falava em “homens metálicos” na Ilíada, contada depois por Homero, século V a.
C., Plutarco de Queroneia (46- 125), no livro De Facie in Orbe Lunare (Na
superfície do disco lunar), descreveu seres mitológicos quer viviam na face
da Lua. Provavelmente, Plutarco inspirou outros r, como Luciano de Samosata
(125-180 d. C.) no livro Vera Historia (História Verdadeira), ao narrar uma
interessantíssima disputa entre os seres da Lua e do Sol para colonizar Vênus.
(idem, p. 22)
Tomando como destaque a Ilíada, é possível
estabelecer conexão entre suas máquinas e aquilo que contemporaneamente se
compreende como robô, por serem aparatos tecnológicos e terem constituição e
comportamento semelhantes. Sendo assim, dentre as obras que constituem a
ProtoFC, é possível encontrar desde mitos gregos a obras clássicas da
literatura mundial. Em se tratando do conteúdo, o pesquisador André Monteiro no
artigo “Teologia, Colonialismo e Ciência e Tecnologia/ensino na protoficção
científica portuguesa (com ou sem política)” (2016, p. 3) diz que:
Quanto mais focado em ciência (ou algo que hoje
consideramos ciência embora na altura pudesse ser “magia”), mais fácil é
reivindicar como proto-fc, mas usando definições dalgum romance científico ou
fc do fim do séc. XX podemos incluir na proto-fc algumas obras mais alegóricas,
“raçadas” de fantástico e/ou promotoras de visões sociais.
Ou seja, mediante a estruturação do gênero, é possível
perceber as obras que o prenunciaram. Todavia, quando elas foram publicadas,
eram reconhecidas como constituídas de magia e geralmente arroladas ao gênero
Fantástico. Isto se dá por trazerem o gênero em sua forma ainda embrionária em
uma narrativa híbrida. Além do Fantástico, elas se entrelaçam com outras
categorias literárias que também estavam em desenvolvimento, como a Utopia, o
Horror, e o Gótico.
No contexto brasileiro, é possível observar obras que
apresentam tais características, incluindo escritos de literatura maranhense.
Dentre os autores que serão apontados no próximo tópico, é possível destacar
Coelho Neto e seu conto “A Sombra”, que está arrolado na coletânea Contos de
vida e morte (1927), cujo título não deixa de ser prognóstico do enredo
apresentado em suas narrativas. Nele, o bacteriologista Avellar mata sua mulher
Celúta com aplicação de vírus e bacilos, mas responsabiliza a Ciência pelo
assassinato. Até que ela definhe, ele a vê como uma experiência fascinante que
provoca medo por ser “incubadora da morte”. A partir do funeral, uma sombra o
persegue, até que ele confessa o crime.
Considerando as figurações presentes na narrativa,
objetiva-se analisar a relação entre a ProtoFC e o Fantástico em “A sombra”,
observando suas implicações na formação do enredo. Além disso, investiga-se
como o desenvolvimento científico ocorrido no início do século XX é refletido
na visão da Ciência presente no conto de Coelho Neto. Para tanto, os
procedimentos metodológicos se baseiam em pesquisa bibliográfica qualitativa e
análise de conteúdo.
2 O desenvolvimento científico e sua influência
na literatura
A busca por uma explicação racional dos fenômenos relativos
à humanidade e ao mundo natural era apregoada no século XIX, assim como fora
desde o início do século das luzes, o XVIII. As concepções voltadas para o
fortalecimento da ciência em detrimento do misticismo e das crenças religiosas
opositoras eram reforçadas por pensadores e críticos europeus. A historiadora
Mary Del Priore analisa a sociedade do século XIX e estabelece divergências com
o pensamento dos séculos anteriores na obra Do outro lado: a história do
sobrenatural e do espiritismo (2014). Segundo ela, neste século havia a
crença de que a ciência era superior e que
só a razão afastaria os homens de toda a superstição e os
curaria da atração que os mistérios exerciam. Era preciso deixar para trás o
que consideravam “as trevas da Idade Média”. Apenas a ignorância, o fanatismo,
o medo ou o ódio justificariam a “fraqueza” de crer no sobrenatural. (idem, p.
19)
Nesta mesma perspectiva, o crítico David Roas em Behind
the frontiers of the real: a definition of the fantastic (2018, p. 5)
analisa que no século XVIII a sociedade baseava suas explicações para o real na
ciência, religião e superstição. Ele afirma que “fantasmas, milagres, elfos e
outros fenômenos sobrenaturais eram parte da concepção de real. Eles eram
extraordinários, mas não impossíveis191” [tradução nossa]. Neste cenário
decorrente do Iluminismo, o sobrenatural buscava ser superado pela ciência por
meio de leis racionais.
191 Ghosts, miracles, elves and
other supernatural phenomena were part of the conception of the real. They were
extraordinary, but not impossible.
Foi nesse contexto que o Fantástico surgiu, trazendo o
metafísico para a literatura. A esse respeito Adriano Messias em Todos os
monstros da terra: bestiários do cinema e da literatura (2016, p. 24)
interpreta que o Fantástico se originou “a partir da rejeição do Iluminismo
para com o pensamento teológico medieval e toda sua metafísica. Dessa maneira,
[...] o fantástico teria exercido a função de fraturar um excesso de
racionalidade na cultura”. Em outras palavras, aquilo que o racionalismo
antropocêntrico buscava deslocar para a margem dos estudos foi resgatado pela
literatura fantástica.
O sobrenatural que antes compunha uma das formas de
explicação do universo comumente aceito, como já posto por Roas, firmava-se nas
formas artísticas. Ao tratar da sociedade que recepcionou este gênero, Roas
explica que a “literatura fantástica nasceu em um universo mecânico Newtoniano,
concebido como uma máquina que obedecia às leis da lógica e era sujeito à
explicação racional192” [tradução nossa] (2018, p. 5). Observa-se, assim, a
posição de contraponto que o fantástico estabelece em relação ao pensamento
científico. A proximidade com a ciência não estava somente atrelada aos
estudiosos, mas também à população. Isso se dava devido às descobertas
científicas e aos produtos tecnológicos que modificaram as formas de transporte
e trabalho, por exemplo.
Concordando com o pensamento da historiadora Del Priore e
dos críticos do fantástico Messias (2016) e Roas (2018), o crítico de FC Isaac Asimov
e o pesquisador Edgar Smaniotto também afirmam a relevância do século XIX para
a ciência. Contudo, enquanto o Fantástico se preocupava em expor o metafísico,
o gênero Ficção Científica nascia com o propósito de trazer as concepções
racionais para o âmbito da literatura.
Em um artigo para a Asimov’s SF Adventure Magazine chamado
“The pre-scientific universe” (1979, p. 6), Asimov explica que a FC não poderia
existir como imagem do futuro até que as pessoas entendessem que ciência e
tecnologia produzem o futuro. Acrescenta ainda que a Revolução Industrial, no
século 1800, possibilitou esse entendimento, visto que as mudanças científicas
e tecnológicas foram expressivas a ponto de serem notadas no curso de vida das
pessoas.
192 Literature of the fantastic
was born into a Newtonian, mechanical universe, conceived as a machine that
obeyed the laws of logic and was therefore subject to rational explanation.
Nesse sentido, a especulação e criação baseadas em métodos
científicos passaram a caracterizar a estética do gênero. Ratificando este
pensamento, Smaniotto (2012, p. 29) evidencia que a explicação era “dentro do
escopo dos saberes científicos socialmente aceitos na época da sua produção” e
isso favoreceu o surgimento da FC. De acordo com a perspectiva acima exposta,
Asimov (1984, p. 17) considera como o marco inicial da literatura de FC a obra
Frankenstein (1818) de Mary Shelley (1818), ponto de vista adotado na presente
pesquisa. Esta obra narra a história do Dr. Frankenstein, cientista que cria um
ser a partir de pedaços de corpos humanos, através da eletricidade.
Mediante o cenário histórico e ideológico relativo à
ciência e sua disseminação na sociedade apresentado no decorrer deste capítulo,
é possível compreender por que somente no século XIX a literatura de FC se
apresenta na Europa. É perceptível que, se comparada a países com séculos de
desenvolvimento tecnológico como a Inglaterra, a produção brasileira parecerá
pálida. Não obstante, apesar de não serem suficientes a ponto de aproximarem o pensamento
científico da sociedade em geral, houve manifestações advindas de pesquisas
científicas que resultaram em produtos tecnológicos brasileiros.
3 A Protoficção
Científica Brasileira
O livro Prelúdio para uma história: ciência e tecnologia
no Brasil (2004), organizado pelo historiador Shozo Motoyama, objetiva
resgatar a produção científica e tecnológica nacional desde o Brasil colônia,
mas, sobretudo, desde a chegada da família real portuguesa em 1808. Por outro
lado, apresenta também as razões para tais avanços serem mais pontuais e como a
cultura influenciou esse desenvolvimento.
A partir de sua análise, compreende-se como a ciência no
Brasil era observada de modo diferente se compararmos ao que ocorria nesses
mesmos períodos na Europa. Na introdução Ciência e tecnologia no Brasil – para
onde?, ele explica:
[...] Criada e plasmada dentro de uma tradição colonial e
de dependência, agravada pela economia baseada no regime escravocrata, a
cultura brasileira moldou-se no âmbito do retórico e do literário, não se
ocupando muito das coisas de C&T [Ciência e Tecnologia]. Já que o trabalho
e a técnica eram atribuições de escravos, a elite nacional desprezava as
atividades manuais. Em consequência, não se sentia atraída pela experimentação,
chave mestra da ciência, e ficava pouco à vontade frente às questões
tecnológicas. Contudo, isso não significa que não tenha havido em nossas terras
manifestações brilhantes de aptidão técnica e gênio científico. Para constatar
esse ponto, basta ver os trabalhos do padre Bartolomeu e Gusmão inventando o
aeróstato no século XVIII, de José Bonifácio de Andrada e Silva realizando
investigações reconhecidas internacionalmente na área de mineralogia no século
XIX, do padre Roberto Landell de Moura patenteando o rádio no alvorecer do
século XX, só para citar alguns nomes. (idem, p. 18)
Portanto, à luz de Motoyama, tratar o desenvolvimento
científico e tecnológico no Brasil como inexistente ou insignificante seria até
mesmo preconceito, advindo de ignorância a respeito do material aqui produzido.
Nesta mesma obra a pesquisadora Marilda Nagamini expõe sua pesquisa em dois
capítulos, nos quais traça o desenvolvimento Científico e Tecnológico do século
XIX ao XX.
Em se tratando do início século XIX, ela explica no
capítulo 1808- 1889: ciência e técnica na trilha da liberdade que os esforços
pela implementação da Ciência no país se concentraram nas áreas da Medicina,
Química, Farmácia, Botânica, Matemática e Física, entre outros. Ao longo desse
século, tais investimentos se estenderam para Artes, Engenharia, Geografia e
Direito, por exemplo. De 1889 até 1930, Nagamini mostra como os processos de
urbanização e industrialização se instalaram, aprofundando os investimentos em
áreas como Aviação, Indústria Cafeeira e Ferroviária, Mineração e Metalurgia
(2004, pp. 137- 183).
Dessa forma, enquanto a Europa sentia os reflexos dos
avanços científicos que proporcionaram o Iluminismo e a Revolução Industrial na
vida diária, já no início do século XIX, o Brasil ainda se apoiava
principalmente na agroexportação de produtos como café, algodão e borracha
advindos da exploração de mão de obra escrava.
A independência do país ocorrera no início do século, em
1822, e a abolição da escravatura no fim deste, com a Lei Áurea em 1888. A
impressão deixada pela colonização europeia ainda era recente para a nação, que
a partir do final do século XIX tentava estabelecer sua identidade. Apesar de
buscar moldes europeus da Belle Époque, as artes nacionais buscavam retratar os
símbolos nacionais como a natureza. Portanto, neste cenário, a figura da
ciência poderia não ser vista como representante de nacionalidades, mas como um
elemento externo. Além disso, as ideias de progresso importadas da Europa não
só geraram anseios de transformação, mas também conflito social.
Segundo Del Priore, “havia uma face sombria nesse período”.
Ela afirma que a inflação, o desemprego e a superprodução de café formaram a
crise econômica da época da República. Isto, somado “à concentração de terras e
à ausência de um sistema escolar abrangente, fez com que a maioria dos escravos
recém-libertos passasse a viver em estado de quase completo abandono” (2014, p.
113). Portanto, a ausência de condições básicas de vida era marcante nesse
período, contrastando com o progresso pregado pela elite. Logo essa situação
social passou a figurar como temática na literatura. Ainda segundo Del Priore,
alguns autores que antes se dedicavam à busca pela identidade nacional passaram
a focar no “temor do progresso e da ciência” (idem, p. 144).
Outro fator que levou a sociedade a refletir sobre os
benefícios e malefícios do desenvolvimento científico foram as políticas sanitárias
aplicadas no período. No início do século XX, doenças como varíola e febre
amarela foram protagonistas de epidemias e passaram a ser estudadas, o que
colocou profissionais como bacteriologistas e médicos em destaque.
Devido à proliferação dessas enfermidades, o governo tomou
medidas, como a obrigatoriedade da vacina, fato que gerou A Revolta da Vacina
em 1904. O caos público se instaurou devido ao modo como a medida foi aplicada.
Segundo o historiador Nicolau Sevcenko, na obra A revolta da vacina
(2014, p. 10), o regulamento rígido abrangia todas as idades, “impondo
vacinações, exames e reexames, ameaçando com multas pesadas e demissões
sumárias, limitando os espaços para recursos, defesas e omissões”. Ainda
segundo Sevcenko, o objetivo era ter uma campanha rápida e efetiva, sem
“preocupação com a preparação psicológica da população, de quem só se exigia
submissão incondicional” (idem). Consequentemente, é possível inferir que o
olhar da população sobre a ciência não foi favorecido, pois
a pobreza estava em toda a parte, e as grandes reformas
urbanas que tentavam transformar o Rio de Janeiro em Paris não abafavam certo
mal-estar de viver. As mudanças políticas não atingiram a sociedade toda. Só as
elites se beneficiaram. Mas não foram apenas as frustrações de ordem política
que modelaram a vida cotidiana. A modernidade dos bondes, da luz elétrica e do
telefone trazia também uma resistência às mudanças. Vivia-se o que um
historiador denominou de “a revolta contra a razão”. Em revanche, recorria-se
ao fantástico e ao imaginário popular, recheado de fadas, demônios e aparições.
A literatura escapista transportava para outro mundo, onde o sobrenatural dava
as cartas. Nele, nada causava espanto ou surpresa. Tudo era possível! (DEL
PRIORE, 2014, p. 113)
Entende-se, desse modo, que além de conduzir à especulação
acerca dos caminhos que a ciência propiciaria ao homem, a literatura abarcava
também o sobrenatural que fugia daquela realidade revoltante. Com isso, é
possível compreender a existência de obras nesse período que trouxessem
elementos referentes à literatura de FC e à literatura Fantástica. Havia uma
busca por registrar as impressões da ciência no Brasil, seja demonstrando seu
lado negativo, seja a superando por intermédio do sobrenatural.
Se levado em consideração que a FC no país ganhou destaque
em meados do século XX, e que críticos como Schoereder apontam Três meses no
século 81 (1947) de Gerônimo Monteiro como a primeira obra de FC (1986, p. 22),
é válido afirmar que as obras criadas no final do século XIX e início do século
XX foram precursoras da ProtoFC no Brasil. Contudo, o contexto e o
desenvolvimento da FC no Brasil levam a crer que os autores de ProtoFC não
tinham conhecimento da estrutura do gênero. Concordando com isto, o historiador
Francisco Skorupa explicita em Viagem às letras do futuro: extratos de bordo
da ficção científica brasileira: 1947- 1975 (2001, p. 53) que
os autores estrangeiros e brasileiros que escreveram suas
impressões imaginadas a respeito do “choque” com a ciência, principalmente,
entre a metade do século XIX e as três primeiras décadas do XX, o fizeram sem
ter a consciência exata do nascimento da nova forma literária, até mesmo pela
própria indefinição na denominação do que estava sendo feito. Romance
científico, antecipação, vulgarização científica, romance didático,
ciencificção e enfim ficção científica, demonstram as incertezas em afirmar o
que eram tais escritos. Somente nos anos 1930 o termo atual e definitivo de
Ficção Científica firmou-se como denominação aglutinante e referencial para o
gênero. Até mesmo a França, berço da “antecipação”, o incorporou de modo que
fosse possível falar, a partir daí, em uma consciência de gênero. Há,
portanto, uma diferença entre os que faziam ficção científica utilizando as
noções próprias do mundo cientificizado e aqueles que fazem a mesma coisa
cientes da existência de um gênero literário específico para esses escritos.
Dessa forma, a produção nacional partia da realidade e
enveredava pela fantasia, utilizando-se de diversos elementos e recursos
literários, apesar de estes não serem reconhecidos como parte do gênero FC.
Trazendo uma memória pessoal, Allen retrata que nas décadas de 30-40 as
revistas X-9 e Detective, que abordavam contos policiais e incluíam histórias
de FC, e Cold air, de Lovecraft, já eram publicadas em território nacional.
Concordando com Skorupa, Allen afirma que nesta época as criações ainda não
eram reconhecidas como FC, mas este discorda no que concerne à fixação do termo
“ficção científica” em território nacional: segundo ele, isto só ocorrera no fim
da década de 50; ao mesmo tempo em que as nomenclaturas ciência-ficção e
science-fiction ainda eram utilizadas (ALLEN, 1974, pp. 4-5).
Notam-se elementos que caracterizariam o que posteriormente
seria denominado FC na obra dos escritores Joaquim Felício dos Santos e Emílio
Zaluar, como afirma a crítica Naiara Araújo (2017) em “Ficção científica
brasileira: ecofeminismo e pós-colonialismo em Umbra de Plínio Cabral” ao
comentar o trabalho da pesquisadora Yolanda MolinaGavilan:
Segundo Yolanda Molina-Gavilan em seu Chronology of Latin
American Science Fiction, 1715-2005 (2007), em meados do século XIX autores
brasileiros começaram a escrever contos sobre sociedades imaginárias e viagens
ao futuro, nos moldes de Júlio Verne e Camille Flammarion. Estes trabalhos
descritivos tratavam principalmente sobre reformas políticas através da
representação de eventos ou sociedades futuras, como em Páginas da História
do Brasil (1868-1872) de Joaquim Felício dos Santos e O Doutor Benignus
(1875) de Emílio Zaluar. (ARAÚJO, 2017, p. 2)
O supracitado escritor Emílio Zaular fora, por exemplo,
inspirado pelo renomado escritor de FC francesa Júlio Verne, ao escrever O
doutor Benignus (BELLI, 2012, p. 63). Observa-se que autores de FC
consagrados pela crítica exerceram influência sobre alguns autores brasileiros,
fomentando a especulação sobre o desenvolvimento da ciência e tecnologia. Das
obras escritas a partir do início do século XX, Silva destaca, entre outras, Esfinge
(1906), do maranhense Coelho Neto, A era do automóvel, A fome negra
e O dia de um homem em 1920 (1911), do carioca João do Rio, O reino
de kiato (1922), do baiano Rodolpho Theophilo, A Amazônia misteriosa (1925),
do também carioca Gastão Cruls, o polêmico O presidente negro/O choque das
raças (1926), do paulista Monteiro Lobato, mais conhecido por sua
literatura infanto-juvenil, e Sua Excia. a presidente da república no ano
2500 (1929), da também paulistana Adalzira Bittencourt.
No que tange à literatura maranhense, além de Coelho Neto
com o livro Esfinge e o conto “A sombra”, é possível listar também
outros autores. Aluísio Azevedo com seu conto “Demônios” de 1893, no qual os
protagonistas sofrem uma involução que remete à teoria Darwiniana; além de
Humberto de Campos com figuras médicas nos contos “Os olhos que comiam carne”,
no qual se apresenta uma máquina de raio-x, e “Morfina”, que traz a droga
análoga ao título, sendo ambos de 1934.
No que tange à literatura maranhense, além de Coelho Neto
com o livro Esfinge e o conto “A sombra”, é possível listar também outros
autores. Aluísio Azevedo com seu conto “Demônios” de 1893, no qual os
protagonistas sofrem uma involução que remete à teoria Darwiniana; além de
Humberto de Campos com figuras médicas nos contos “Os olhos que comiam carne”,
no qual se apresenta uma máquina de raio-x, e “Morfina”, que traz a droga
análoga ao título, sendo ambos de 1934.
4 A ProtoFC e a hibridização através do
Fantástico em “A Sombra” (1927)
A vastidão da obra de Coelho Neto e sua diversidade são
motivo de controvérsia entre aqueles que apreciam sua escrita ou o criticam por
isso. Nas palavras do crítico Alexander Silva (2008, p. 88), “as opiniões
conflitantes de contemporâneos e de historiadores da literatura sobre Coelho
Neto exemplificam a dificuldade, ainda presente, de se definir o status do
escritor dentro do cenário da literatura Brasileira”. Essa indefinição não diminui
sua riqueza literária, pelo contrário, uma vez que é possível observar
características tanto de movimentos literários como Romantismo e Realismo,
quanto de gêneros marginalizados no Brasil, mas em desenvolvimento na Europa,
como o Gótico e a FC. Isso demonstra uma sensibilidade e perspicácia do autor
quanto às possibilidades literárias que ele dispunha para retratar em suas
obras as ideologias que permeavam o imaginário social brasileiro.
Coelho Neto, nascido no Maranhão, morou no Rio de Janeiro
na virada do século XIX-XX e testemunhou fatos históricos positivos e negativos
relativos ao progresso científico. Dentre eles podemos ressaltar,
respectivamente, a Belle Époque tropical, com toda sua perspectiva de
prosperidade, e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que trouxe instabilidade
econômica e política, como aborda a pesquisadora Márcia Gonçalves em O Rio
de Janeiro de Coelho Neto: do império à república (2016, p. 23). A autora
adiciona ainda acontecimentos como a “Revolução Russa de 1917, o imperialismo e
a luta de classes” (idem). A tais acontecimentos que estão em menor ou maior
grau ligados ao desenvolvimento científico, é possível adicionar um que será
imprescindível para a leitura do social em “A sombra”: A Revolta da Vacina
ocorrida no Rio de Janeiro em 1904 e referida no capítulo anterior.
O início do conto aqui analisado apresenta uma pessoa
escandalizada em ver uma notícia de jornal, na qual seu amigo médico Avellar
confessa ser assassino da esposa Celúta. Após a leitura, ele pondera que aquilo
só seria possível se seu amigo estivesse louco, levantando uma hipótese que
mais à frente é enfatizada. Das reflexões desta personagem, é possível extrair
que o diagnóstico da morte da esposa fora septicemia aguda, que se constitui
como uma infecção generalizada, disseminada através da corrente sanguínea, e
cujos agentes são vírus, fungos e bactérias. Tentando entender o que levou
Avellar a esta confissão, este amigo não nominado se dirige até o Quartel da
Brigada, onde o médico, devido a seu título, estava preso. Daí, infere-se a
condição de prestígio que Avellar ocupava dada sua profissão.
Quando indagado das razões para ter matado a esposa, ele
traz primeiro o ciúme, a suspeita, fazendo alusão a “micróbios no mundo moral”
e “palavras vagas que nos entram n’alma e lá se desenvolvem e proliferam em
desconfianças” (COELHO NETO, 1926, p. 202). Ele adiciona: “Ciência... uma história!
Tudo falha. Nada se pode afirmar, nada! E, queres que te diga? A mais culpada
em tudo isso foi a Ciência. Foi ela que me levou ao crime, porque o ciúme... O
ciúme... Não havia motivo para ciúme. Celúta era honesta”. (COELHO NETO, 1926,
p. 203)
A culpa que Avellar transfere para a ciência revela tanto
seu desgosto com aquela que propiciou sua profissão, quanto desconfiança em
relação à própria credibilidade da ciência, uma vez que nela há falhas (o que
remonta aos experimentos científicos) e, em consequência, não se obtém dela
conclusões plausíveis. Há uma desconfiança que confronta a visão da Ciência
como esperança de desenvolvimento e reforça o ponto de vista da Ciência como
uma agente contra o ser humano. Esta perspectiva da Ciência como maléfica,
introduz a ideia de que nem sempre a ciência traz resultados que beneficiam o
homem. Recorrentemente seus produtos são utilizados de forma errônea ou
deturpada, ou mesmo suas pesquisas visam propósitos ilícitos. Como explica o
crítico e escritor Bráulio Tavares em O que é ficção científica? (1986,
pp. 19-20), “existe uma face tenebrosa”.
A fim de expor e justificar sua afirmação, o autor aponta
catástrofes, desde a invenção da pólvora até o final do século XX, que foram
provocadas pelo uso indevido da ciência, de modo que a visão desta como meio
para alcançar o progresso humano ficou manchada em vários períodos da história.
No caso do início do século XX, o mais notável exemplo mundial é a I Grande
Guerra. As imagens do médico cientista e da ciência como vilãs são aprofundadas
no conto, como se pode observar conforme ele prossegue: Avellar admite ter
envenenado a esposa, o que se deu após várias tentativas. Ao descrever seu
método para o homicídio, é possível perceber a ignorância do médico em relação
ao uso de doses de bacilos da tuberculose e outros germes, a saber:
Matei-a com bacilos da tuberculose, esses e outros germes
letais. Propinando-lhe as primeiras doses, inoculadas em frutos – (tratava--se,
então, da vingança da minha honra... Pobre Celúta!) esperei as manifestações do
mal e... nada! Em vez do deperecimento, dos sinais característicos da ação
destrutiva do bacilo de Koch, o que eu via, e todos o apregoavam em louvores,
era o reviçamento da vítima, mais robustez, aspecto magnífico, apetite, sono
tranquilo, higidez absoluta. A própria enxaqueca que, de vez em quando, a
atormentava, desapareceu. (COELHO NETO, 1926, p. 203)
Em razão do médico referir-se à mulher como “Pobre Celúta!”
e “vítima” (COELHO NETO, 1926, p. 203), nota-se que, de forma contraditória,
Avellar aplica doses que ele acredita poder matar, mas ao mesmo tempo tem
piedade de Celúta. Esse contraponto é evidenciado à medida que Avellar se
divide entre o marido e bacteriologista. Ele culpa o último pelas suas ações:
“Não foi o marido o assassino, foi o bacteriologista, o homem de ciência, o
prático de laboratório, entendes? O profissional que não podia compreender que
um organismo, frágil como o de Celúta, resistisse ao ataque insistente de
tantos vibriões” (idem, pp. 203-204). O fato de Celúta ter elementos
“mortíferos” e “violentos” (idem) em seu corpo e não padecer pasma Avellar,
pois ele não consegue compreender.
Neste trecho, observa-se que Avellar refere a si mesmo como
dois: o marido e o bacteriologista, sendo o segundo o “homem da ciência”. Este
posicionamento remete ao Duplo, fenômeno estudado pela psicanálise. A presença
desta figuração que não ocorre devido à ciência demonstra a hibridização que a
narrativa de ProtoFC apresenta. É possível interpretar por meio do comportamento
de Celúta que as injeções, ao invés de causar mal, agiram com o mesmo efeito de
uma vacina, apesar do método de aplicação utilizado ser diferente. Não foi
considerada pelo bacteriologista a ideia de que a injeção poderia fazer bem à
vítima, pois como poderia algo proveniente de germes letais beneficiar o homem?
Compreende-se que o conhecimento acerca do uso de injeções não era domínio de
Avellar, ou que esse conhecimento ainda não fora descoberto. Mediante os
estudos proporcionados pelo avanço da biomedicina, entende-se que injeções, uma
vez utilizadas para injetar uma preparação biológica com o fim de conferir
imunidade, são positivas, pois são vacinas.
Tal fato alude ao desconhecimento que a maioria da
população brasileira tinha da ciência do século XX, um dos fatores para a
Revolta da Vacina. Como já exposto no capítulo anterior, não houve preparação
psicológica ou educacional da população sobre a constituição da vacina. Dessa
forma, seus benefícios eram desconhecidos e o medo de que o conteúdo dela
culminasse na morte do indivíduo que a recebera se propagou. Exemplo dito é a
fala do político Rui Barbosa exposta por Sevcenko:
Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a
temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente,
obstinadamente, a me envenenar, com a introdução no meu sangue, de um vírus
sobre cuja influência existem os mais bem fundados receios de que seja condutor
da moléstia ou da morte. (2014, p. 8)
A afirmação, advinda de
uma figura pública de poder político, representa o quanto a vacina ainda era
desconhecida no cenário nacional. O medo, somado ao modo de aplicação do
recurso, aumentou a apreensão da população, e uma vez que fora o produto da
ciência que favoreceu a perturbação, gerou-se mais desconfiança nela. Essa
impressão da ciência reverbera no imaginário da população nas primeiras
décadas, de modo que se reflete na literatura.
É cabível expressar que
ambos os fatores são encontrados em “A Sombra”, evidenciados na ignorância de
Avellar, tanto em utilizar bacilos e vírus como armas da maneira como fez,
quanto em relação às reações provocadas no sistema imunológico de Celúta.
Alexander Silva analisa este conto também por uma perspectiva fantástica.
Segundo Silva, “o
elemento fantástico do conto está no fato de que, ao contrário do que Avellar
esperava, ou seja, uma morte rápida provocada por bacilos de tuberculose
inoculados em frutos, Celúta se tornava cada vez mais vigorosa” (idem, pp.
100-101). Seguida a lógica da narrativa, entende-se que há um rompimento na
ordem dentro do conto, pois esse fato é tomado com espanto por Avellar. Esta
outra perspectiva de leitura é abordada também por Del Priore. A historiadora
considera sobrenatural o fato de que, “ao contrário de morrer rapidamente,
inoculada que fora com bacilos da tuberculose, Celúta se tornava mais e mais
vigorosa” (2014, p. 114). Portanto, observa-se que a falta de conhecimento ao
fazer uso da ciência levou a um acontecimento sobrenatural, que até o final da
narrativa não é explicado.
Tal fato perturba
Avellar, pois rompe com suas crenças. Levando em conta a perspectiva da
incerteza, é possível associar essa cena com a concepção de Fantástico proposta
por Tzvetan Todorov no clássico teórico Introdução à literatura fantástica (1975,
p. 31): “O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as
leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural”. Portanto,
“A sombra” tem aproximações com o gênero Fantástico, paradoxalmente propiciadas
pela visão de ciência na obra.
O “homem da ciência”
faz da frustração mediante à reação biológica positiva um combustível para
continuar sua experiência e testar o limite do corpo humano, tornando Celúta
sua experiência. Para ele, ter lançado mão de todo seu arsenal e vê-la bem era
enlouquecedor (idem, p. 204). O fato de Avellar aplicar injeções com bacilos e
vírus em sua mulher remete a uma discussão relevante para a ciência do início
do século XX: a violação do corpo humano justificada por uma razão científica,
apesar das motivações serem diferentes em ambas as situações.
Ao fazer referência às
pesquisas sobre a transmissão da febre amarela, Ilana Löwy em Vírus,
mosquitos e modernidade (2006, p. 75) expõe a justificativa dos
pesquisadores da época: “O homem parecia ser o único hospedeiro possível, o
que, segundo eles, legitimava a necessidade de fazer experimentos em seres
humano [...]". Tal tópico abre questionamentos para o limite do fazer
científico e da busca humana por respostas. Isto demonstra também o avanço das
pesquisas em âmbito nacional na área de microbiologia. Segundo Maria Dantes, em
As ciências na história brasileira (2005), a pesquisa biomédica nacional
teve relevante fomento no período de transição entre os séculos XIX e XX, mas
ainda era considerada uma “nova maneira de fazer ciência”:
[...] O primeiro
serviço sanitário do período republicano foi o de São Paulo, de 1892, composto
por um conjunto de instituições que seguiam os princípios da nova teoria
microbiológica. Já a Diretoria de Saúde Pública do Rio de Janeiro começou a
atuar em 1900. Essas instituições de pesquisa biomédica dedicavam-se às
seguintes atividades: estudos sobre as principais doenças encontráveis no país,
diagnóstico de doenças em evidência e produção de soros e vacinas para seu combate.
E aí, os médicos brasileiros foram bastante pioneiros, acompanhando de perto o
que acontecia em centros europeus. Esses institutos ganharam prestígio no meio
científico brasileiro, como introdutores de uma nova maneira de fazer ciência:
a ciência de laboratório, vista como um contraponto à tradição naturalista,
considerada mais tradicional. (DANTES, 2005, p. 28)
Por conseguinte, as
inovações no campo da pesquisa em biomedicina ainda estavam sendo introduzidas
para o meio acadêmico, mas como exposto anteriormente ao tratar da Revolta da
Vacina, para a população este conhecimento não era acessível. Em relação ao
conto, isso é percebido na forma em que a ciência de laboratório carece de
procedimentos e compreensão dos devidos métodos científicos a serem empregados.
Em continuidade, após
ver que a esposa está mais saudável ao invés de padecer, Avellar começa a
temê-la. A narrativa não faz alusão à receptividade de Celúta para com tais
injeções, somente narra que Celúta se tornou mais afetiva ao perceber a mudança
de comportamento em Avellar. Agora ele a vê como um receptáculo de vírus e tem
medo dela lhe transmitir a morte mesmo com um toque (COELHO NETO, 1926, p.
204). O médico passa a não ver mais a esposa, mas sim uma “incubadora, de
morte, uma figura sinistra que encarnava todas as pestes, não lhes sofrendo as
consequências, como as serpentes não se envenenam com a peçonha” (idem). Sendo
assim, as reações das injeções no corpo de Celúta eram desconhecidas para
Avellar e a transformaram, aos olhos dele, numa espécie de monstro.
É relevante ressaltar
que Celúta como a personificação da morte e assumindo a figura do monstro,
remetem às histórias góticas. Ratificando isto, Silva (2008, p. 101) afirma que
Avellar a vê da mesma forma que era vista a mulher na literatura gótica, de
forma geral como a personificação da morte. Esse entrelace presente no conto
ressalta sua característica de narrativa híbrida. Tavares afirma que “a ciência
é o triunfo do conhecido sobre o desconhecido” (1986, p. 17); contudo, tal
triunfo advém do enfrentamento dos limites já conhecidos pelo homem. A
confrontação, por sua vez, gera receios e medo, pois, como afirma o escritor e
crítico H. P. Lovecraft na obra O horror sobrenatural na literatura (1987, p.
1): “A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais
forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido”.
Além disto, não só o
desconhecido em si provoca temor, mas também o que provém dele, por não ser
familiar. O desconhecido se prova um desafio para o ser humano, um que ele não
tem a certeza de vencer ou dominar, por não saber o que deve ser feito em um
enfrentamento ou, no caso mais aterrador, o que será enfrentado. Por ser ao
mesmo tempo onipotente e terrível, o desconhecido se tornou para alguns algo a
ser temido e, para outros, algo a ser desbravado. Primeiramente, Avellar temia
a figura assombrosa que Celúta se tornara para ele, contudo, o médico deseja
agora dominar o conhecimento da situação através da experimentação, desbravando
o desconhecido:
O marido desapareceu
ficando apenas o observador apaixonado por uma experiência. E, encerrando-me no
meu laboratório horas e horas, dias e dias, eu estudava aquele caso estranho,
fenômeno, sem dúvida, mais belo do que a fagocitose, porque era a luta tremenda
de germes letais, uma batalha formidável de legiões pestíferas no organismo
débil de uma mulher. (COELHO NETO, 1926, p. 204)
A princípio, os
propósitos dele eram assassinos, mas agora o fascínio pela experiência
laboratorial se sobrepõe e beira à loucura. Avellar só tenta intervir depois
que Celúta morre, ou seja, quando a experiência tem fim. O cientista de “A Sombra”
não tem preocupação com a ética em sua pesquisa, demonstrando ausência de
afetividade ao separar o “marido” do “observador apaixonado”, de modo que o
valor de contemplar a batalha biológica é superior ao de manter a esposa com
vida.
Em FC, a figuração que
ele assume é referida como o cientista louco. A figura do cientista como um
louco que ultrapassa limites éticos é recorrente na literatura de FC e remete à
primeira obra do gênero, Frankenstein. O Dr. Frankenstein, figura
essencial da obra, incorpora a imagem do cientista que não leva em consideração
os limites éticos humanos e, devido a isso, geralmente ultrapassa o que seria
prudente ou são, devido à sua busca pelo desconhecido. Segundo Silva,
O arquétipo do
“cientista louco” criado por Shelley a partir da visão romântica de lendas
medievais sobre o Judeu Errante, Fausto, a Alquimia, e de personagens de obras
literárias como o Satã do Paraíso perdido (1667), do poeta inglês John Milton,
se perpetuou em personagens da Ciência Gótica como Dr. Moreau (A ilha do Dr
Moreau), de H. G. Wells, Dr. Heidegger (“O experimento do Dr. Heidegger” /
1837), de Nathaniel Hawthorne e Aylmer, e Dr. Rappaccini, também de Hawthorne.
Estes dois últimos, personagens respectivamente dos contos “A marca de
nascença” e “A filha de Rappaccini”, em muito se assemelham ao personagem
Avellar. (2008, p. 100)
Assim, Coelho Neto
incorpora em sua obra uma personagem que se assemelha à um ícone da FC. Se
comparado especificamente com o Dr. Frankenstein, é salutar analisar que
Avellar não só ignora os limites éticos, mas o faz com propósito maléfico de
matar. Em contrapartida, Dr. Frankenstein é considerado louco por querer ir
além dos limites do homem criando um ser. Avellar tem a fonte de sua loucura
não só na obsessão científica, mas também na aparição de uma sombra que ele
acredita ser a falecida esposa, e que só ele consegue ver: “No dia do enterro,
ao voltar do cemitério, notei que, em vez de uma, duas sombras me acompanhavam.
Onde quer que eu fosse tinha-as sempre comigo: uma, era a minha; outra, era a
da morta. Fiz tudo para livrar-me dela, tudo! Nada consegui” (COELHO NETO,
1926, p. 205). A sombra, que dá nome ao título do conto, só o abandona na
delegacia, quando ele confessa o crime cometido.
Segundo Del Priore, a
sombra remeteria ao sobrenatural, sendo um “termo poético que remete à
dissolução do corpo no momento da morte” (2014, p. 17). Até então, salvo o
estranhamento do bem-estar de Celúta, a narrativa centrava-se majoritariamente
na relação homem e ciência. Contudo, em razão do aparecimento da sombra, outras
correlações são feitas. Sobre a natureza da sombra, é possível questionar se
essa não seria sua consciência, uma vez que ele afirma: “Preso, condenado,
perdido para o mundo... Que importa! Mas estou só, a minha consciência já se
não projeta diante de mim, a sombra da morta deixoume em paz. Foi melhor assim.
Confessei o crime, estou livre” (COELHO NETO, 1926, p. 205). Avellar admite que
a consciência dele o perturbava e que isso se foi juntamente com a sombra.
A consciência que se
projeta denota também que o marido retornou e o ser fascinado pela experiência
desapareceu. Por fim, Avellar mais uma vez expõe sua descrença na credibilidade
da ciência, ou seja, na capacidade de ela prover respostas válidas, além da
desconfiança em relação a seus profissionais – apesar de ele o ser:
O trecho denota também
a incapacidade de os médicos descobrirem a verdadeira situação que levou à
morte e, portanto, deixarem um assassino impune. Consequentemente, a causa
mortis apontada na biópsia não está errada, mas é incompleta. Este trecho
remete a um acontecimento histórico ocorrido antes da Revolta da Vacina,
descrito por Sevcenko (2014, p. 8):
Uma mulher morreu no
mês de julho, pouco após ter recebido a vacina antivariólica, e o médico
legista atribuiu como causa do falecimento um estado de infecção generalizada
(septicemia), decorrente da vacinação. A oposição desencadeou de imediato um
enorme alarido na Câmara, os jornais vociferaram diatribes contra o governo e a
opinião pública robusteceu as suas suspeitas, causando um abalo decisivo na
política sanitária oficial.
Assim como o
diagnóstico dado pelos médicos a Celúta, essa mulher também foi apontada com
septicemia. Posteriormente, devido à repercussão do caso, Osvaldo Cruz realizou
outra biópsia e verificou que a vacinação não fora a causa da morte.
Observa-se, dessa forma, uma crítica à imprecisão da ciência médica. Ademais,
Avellar afirma que as verdades são chamadas de loucura quando não conseguem ser
explicadas pelo conhecimento humano, contudo, a loucura seria uma forma da
inteligência humana evadir-se, dando a entender que a inteligência humana se
perpetua para além do que já é conhecido pelo homem, para além da ciência.
Aqui levanta-se a possibilidade
de a visão da sombra ser resultado da loucura do personagem. Este fator,
juntamente com o duplo, abre possibilidade para um estudo psicológico da obra.
Como dito ao longo da análise, isto se dá devido aos entrelaces de gêneros e
figurações na ProtoFC. Haja vista que aproximações com o gênero fantástico
podem ser feitas através da sombra. A sombra se caracteriza como o sobrenatural
que rompe com a realidade apresentada no conto, não só pela incerteza do que é,
mas por ser inexplicável dentro do conto. Seguindo a perspectiva do que seria o
Fantástico para Roas, este momento do enredo se aproximaria da estética desse
gênero: o rompimento com a realidade concebida tanto no conto, quando na
realidade do leitor, ocasionaria o Fantástico.
Esse rompimento seria
causado por um fenômeno impossível e incompreensível que subverte os códigos,
as certezas que nós designamos para perceber e entender a realidade (2018, p.
4). No caso do conto de Coelho Neto, a sombra é este elemento que ultrapassa as
noções de realidade de Avellar e é insuperável para ele, sendo incompreensível.
Além disso, Roas se contrapõe a Todorov, no que tange à razão para a ocorrência
do Fantástico. Segundo Roas, ela não seria causada nem pela dúvida, nem pela
incerteza, mas sim pela natureza inexplicável do fenômeno (ROAS, 2018, p. 15).
Essa natureza inexplicável é característica da sombra.
Por outro lado, Todorov
afirma ser a dúvida que ocasiona o Fantástico e, ao fim do conto, Avellar
afirma “julgas-me louco, com certeza. Não, meu amigo. O que te digo é pura
verdade” (COELHO NETO, 1927, p. 206). Ou seja, ele estabelece que o que lhe
aconteceu fora real. Contudo, no final o narrador afirma: “Haverá juízes que
condenem esse pobre louco?” (COELHO NETO, 1927, p. 206), fazendo entender, assim,
que Avellar é insano. Dessa forma, a dúvida permanece ao fim do conto.
Destarte, é possível
perceber que a personagem análoga ao título do conto age como uma vingadora.
Vingança esta protagonizada pelo sobrenatural, devido ao assassinato provocado
pelo uso da ciência. Observa-se, dessa forma, que quando os meios científicos
não conseguem trazer as respostas necessárias, o sobrenatural a ultrapassa,
rompendo com a realidade racional.
5 Considerações Finais
Apesar das diferentes
realidades histórico-culturais, a motivação que levou os escritores brasileiros
a incorporar a ciência e o fantástico em suas obras foi a mesma de autores
europeus: especular sobre as realizações do homem racional, seja buscando no
sobrenatural a fuga, ou explorando os caminhos que a ciência pode proporcionar.
“A sombra” reflete a
sociedade do início do século XX, que via crescer a implantação de escolas e
institutos, alguns voltados para a área médica e biológica, mas que ainda não
tinham as descobertas científicas como algo palpável no seu dia-a-dia.
Sociedade que sofreu com a falta de informação e a crença de que o conteúdo da
vacina mataria, fato exposto no conto. A ciência, ao final do conto, não só
tirou a vida de Celúta, mas também a de Avellar. Além da perturbação em seu
casamento e em sua mente, ela o tornou um criminoso e o excluiu do convívio
social e do exercício de sua profissão. Infere-se, então, que a ciência é
perigosa e não poupa nem aquele que busca desvendá-la e faz uso dela com tal
paixão.
Apesar de conter certa
percepção das mudanças produzidas pela tecnologia, essa não é baseada em uma
compreensão científica, mas permeada de inseguranças. Os acontecimentos não
compreendidos são encarados com misticismo, como Avellar via sua mulher como um
monstro que carregava a morte. Há uma desconfiança que confronta a visão da
Ciência como esperança de desenvolvimento e reforça o ponto de vista da Ciência
como uma agente contra o ser humano.
A falta de conhecimento
em relação à constituição de uma vacina e seus efeitos levam Avellar a este
temor, de forma que ele começa a ver sua esposa como um criadouro de doenças,
cuja sobrevivência é inconcebível. Tal reação cerca de misticismo a atmosfera
do conto. Este misticismo leva ao sobrenatural, de forma que a narrativa se aproxima
também do Fantástico, seja pelo viés da incerteza, seja pela impossibilidade do
fenômeno da sombra. O Fantástico surge como uma forma de escape, uma vez que a
racionalidade não conseguiu abarcar a realidade de Avellar.
Os elementos que
remetem à FC presentes no conto são a injeção, enquanto tecnologia; o
laboratório; o experimento científico; e o cientista louco. Os elementos fantásticos
são o estado de bem-estar de Celúta e a sombra. O uso da injeção levou ao
estado de Celúta, o que por sua vez fez Avellar se comportar como um cientista
louco e tratá-la como um experimento. A partir de então, o laboratório dele se
tornou a cena do crime, motivo pelo qual a sombra passou a persegui-lo.
Observa-se como a ProtoFC e o Fantástico estão entrelaçados no conto de Coelho
Neto.
Além destes gêneros, a
hibridização da ProtoFC permite apontar no conteúdo deste conto a presença de
características do gótico e figurações da loucura e do duplo. Em relação às
temáticas presentes, Coelho Neto aborda tópicos importantes como o uso de seres
humanos em experimentos científicos e a responsabilidade que o médico/cientista
possui em relação à vida de outras pessoas. Isto gera uma crítica à ciência
“desumana” e ao posicionamento dos médicos em relação ao que lhes é
desconhecido.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, N. S. Ficção
Científica Brasileira: Ecofeminismo e PósColonialismo em Umbra de Plínio
Cabral. Revista Brasileira de Literatura
Comparada. v.
18, n. 28, 2017. Disponível em:
<http://revista.abralic.org.br/index.php
/revista/article/view/389>.
Acesso em:
12/12/2017.
SILVA, A. M. O
admirável mundo novo da República Velha: o nascimento da
ficção
científica brasileira no começo do século XX. 193 f. Tese
(Doutorado) -
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura,
Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2008. Disponível em
<http://www.posciencialit.letras.ufrj.br/images/Posciencialit/td/2008/1
2-alexander
meireles_oadmiravel.pdf> Acesso em: 27/08/2016.
ASIMOV, I. No
mundo da Ficção Científica. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves
Editora, 1984.
ASIMOV, I. The
pre-scientific universe. Asimov’s SF Adventure Magazine.
New York: Davis
Publication. Vol 1. n. 3. Summer, pp. 6-7, 1979.
BELLI, R. C. Ficção
Científica: um gênero para a ciência. Série essência. v.
4. Blumenau:
Edifurb, 2012.
COELHO NETO, H.
A Sombra. In:_____. Contos da vida e morte. Porto:
Lello &
Irmão, 1927.
DEL PRIORE, M. Do
outro lado: A história do sobrenatural e do
espiritismo.
1ed. São Paulo: Planeta, 2014.
FIKER, R. Ficção
Científica: Ficção, Ciência ou uma Épica da Época?
Coleção
Universidade Livre. Porto Alegre: L&PM Editores Ltda, 1985.
LOVECRAFT, H.P.
O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro:
Francisco
Alves, 1987.
LÖWY, I. Vírus,
mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre
ciência e
política. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006.
MESSIAS, A. Todos
os monstros da terra: bestiários do cinema e da
literatura. São
Paulo: EDUC FAPESP, 2016.
MONTEIRO, A.
Teologia, colonialismo e ciência e tecnologia/ensino na
proto-ficçãocientífica
portuguesa (com ou sem política). Alambique:
Revista
académica de ciencia ficción y fantasia / Jornal acadêmico de
ficção
científica e fantasía, Vol. 4. pp. 1-30, 2016. Disponível em:
<https://scholarcommons.usf.edu/alambique/vol4/iss1/7/>
Acesso em:
15/07/2019.
MOTOYAMA, S.
Ciência e tecnologia no Brasil – para onde? In:_____
(Org). Prelúdio
para uma história: ciência e tecnologia no Brasil. São Paulo:
Editora da
Universidade de São Paulo, 2004.
NAGAMINI, M.
1808-1889: ciência e técnica na trilha da liberdade. In:
MOTOYAMA, S.
(Org). Prelúdio para uma história: ciência e tecnologia no
Brasil. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
ROAS, D. Behind
the Frontiers of the Real: A Definition of the Fantastic.
New York:
Palgrave Pivot, 2018.
SCHOEREDER, G. Ficção
Científica. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves Editora
S.A., 1986.
SKORUPA, F. A. Viagem
às Letras do Futuro: extratos de bordo da ficção
científica
brasileira (1947-1975). 256 f. Dissertaçao (Mestrado) - Curitiba,
Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná, 2001.
Disponível em
<http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/1884/24261/1/Dissertacao%20
mestrado%20Historia-2002.pdf>
Acesso em: 28/04/2017.
SMANIOTTO, E.
I. Eugenia e Literatura no Brasil: apropriação da ciência e
do pensamento
social dos eugenistas pelos escritores brasileiros de ficção
científica
(1922 a 1949). 131 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosogia
e Ciências,
Universidade Estadual Paulista, 2012. Disponível em:
<https://repositorio.unesp.br/
bitstream/handle/11449/100996/smaniotto
_ei_dr_mar.pdf?sequence=1&isAllowed=y>
Acesso em: 28/04/2017.
TAVARES, B. O
que é Ficção Científica? São Paulo: Brasiliense, 1986.
TODOROV, T. Introdução
à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva,
1975.
Boitempo
A sombra vem nos cascos,
Fonte: https://www.passeiweb.com/estudos/livros/boi_tempo_i_e_ii/
https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/08/poesia-carlos-drummond-de-andrade_21.html
Sentimento Perdido
Paulinho da Viola
Tirei
Do coração uma sombra esquecida,
Fonte:
https://www.letras.mus.br/paulinho-da-viola/1723915/
Bom Tempo
Chico Buarque
Um marinheiro me contou
Que a boa brisa lhe soprou
Que vem aí bom tempo
https://www.letras.mus.br/chico-buarque/85940/
Sem Medo da Escuridão
Charlie Brown Jr.
Fique e faça o sol brilhar, fique e faça o sol
brilhar
Sem medo da escuridão, correria noite e dia pela evolução
Escolha o seu lado na hora que o bicho pegar
A chapa esquenta a gente fica e faz o sol brilhar
Fonte:
https://www.letras.mus.br/charlie-brown-jr/1032795/
Nenhum comentário:
Postar um comentário