quarta-feira, 26 de agosto de 2020

FORÇA ESCONDIDA

 

“(...) A mó' que era uma força escondida que me empurrava o meu braço, porque eu tive essa corage' e o bração teve essa força ... (...)"

 

 

 

 

Amor Escondido

 

 

 

 

“Quando se tem um amor escondido
Querendo aflorar
É se guardar um rio perdido
Que não encontra o mar
Mas brilha tanto cada sorriso
E brilha mais que o olhar (...)”

Composição: Abel Silva / Fagner. 

Fonte:



https://youtu.be/pVubiyU9asU

https://www.letras.mus.br/fagner/45898/

 

 

 

 

“(...) Segundo Lukács, independentemente da visão de mundo do autor, seu esforço em projetar na literatura a concepção que possui do real (no caso de Valdomiro, a realidade do mundo caboclo) traz à tona as “contradições entre realidade objetiva e ideologia de uma dada época. (...)”






BARBOSA, Alexandre de Oliveira

Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira

Fonte:

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-03122007-100857/publico/TESE_ALEXANDRE_OLIVEIRA_BARBOSA.pdf




FORÇA ESCONDIDA


VALDOMIRO SILVEIRA (1873 -1941 | Brasil)

O paulista Valdomiro Silveira foi um pioneiro do conto regional brasileiro - que teria em Afonso Arinos e J. Simões Lopes Neto os nomes de maior destaque. Autor de Os Caboclos, Nas Serras e nas Furnas e Mixuangos. Ele teve este Força Escondida selecionado por Graciliano Ramos na histórica antologia Contos e Novelas, editada em três volumes pela Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil em 1957, e relata a morte silenciosa e nunca noticiada de mulheres por seus maridos, em especial, no caso, ocorrida nas lonjuras do interior do país. Quem ama não mata?

Eu tuda a vida fui um home' quieto, como vassuncê bem sabe; nunca deixei de não trabucar a minha obrigação nas horas certas; respeitei sempre o alheio; cuidei da minha casa c'o maior carinho: e quis o quanto se pode querer à Ogusta e ao Belisário.

Ela verdade seja que não me deu o mais pequetito desgosto: revirava de sol a sol na labuta das donas, trazia tudo areadinho e tratava do filho com muito amor. Eu, se alguma queixa tive dela, foi só de ela trabalhar em desmasiado, fazendo costuras pra uma e pra outra, e torrando suas farinhas de milho e de mandioca a mais não poder.

No dia do acontecido, ansim que acabei de correr a enxada naquele meu tirão de mata-fome, 'tava cansado: passei a manga da camisa na testa, enxuguei o suor e sentei num toco de folha-larga. O sol já ia, margulha-não-margulha, entre meio de duas cacundas de morro: e inté agora não sei por via de quê, naquele pedaço, eu 'garrei a ficar amagoado.

Diz que só deve de cair na tristeza quem 'tá sofrendo do corpo ou do coiração, não é? - e eu não tinha nada que me doesse; nada não me amofinava por dentro, e rezão de desespero, louvado Deus, foi coisa que eu inté naquele pedaço não tinha tido.

A Ogusta era uma mulher de patente, como vassuncê bem sabe; eu, pro lado dela, vivia feliz e vivia descansado; o Belisário não dava trabalho nem susto, porque, embora mal apena' beirasse os sete anos, era e inda é um menino abençoado, de bom; a lavourinha não me desajudava, e inda por riba de tudo eu justava meus empreitos por fora: antão o que é que me faltava?

Da saúde também eu não podia fazer lástima, que era um caipira seco na paçoca, sussegado sim na fala e no andar, mas porém escorador de serviço como nunca vi outro. Só o que me enfezou uns tempos foi uma impige' que me deu nesta perna, e que fez um patacão meio esquisito, por escuro e farinhento: mas porém o Vira-bicho, aquele exp'riente que remexeu pr'estes centros (vassuncê não se alembra?), me deu uma pomada que foi

um porrete: a impige' sumiu como por encanto, e a própria comichão, que era um inferno, assussegou de repente e desapareceu pra nunca mais não me inquijilar.

Tem gente que diz que eu viro e mexo de noite, que eu saio da cama, que eu falo e engrolo as palavras, que eu faço discursos velhos: mas contanto que pra mim tudo isso é poetage' pura, porque eu inté hoje inda não me vi caminhando fora das horas e nunca não acordei que não 'tivesse bem senhordão no meio das cobertas.

Ora, como eu ia dizendo: peguei a entristecer a troco de nada, e um nó muito acochado me apertou a garganta e me pôs o coiração num bate-bate esquipado, sem motivo nem quê pra quê. Olhei pros cocurutos dos morros, adonde o sol inda amarelava um tantinho, feito uma fitona desbotada, e pensei comigo mesmo:

- Agora, Venancinho, chegou a sua vez de dar a casca: 'ocê não tem por que ficar ansim agoniado, e 'tá ansim, 'tá morto!

Passei a mão na ferramenta, c'a pobre da minha cabeça a mó' que meio deleriada, e atorei pra casa. Botei o pé na soleira, e ia entrar, senão quando uma galinha já esporuda, que eu pissuí no levantar aquele rancho, cantou que nem galo, alto e bom som. Virei pra trás de supetão, campeei um cacete, voei na dita galinha, mas a galinha derreteu-se que não houve maneiras de se descobrir. Pois vassuncê não conhece este mau agouro tão doído, da galinha cantar ver o galo? Diz que é anúncio de morrer o dono da casa.

Fui de vereda pro quarto, despois de ter apinchado a ferramenta num canto da sala: nem não quis saber da janta. A Ogusta, que nunca não me tinha visto de similhante jeito, ficou meia otusa:

- Ué, Venancinho, o que é isso? Quem sabe lá se você não 'tá c'alguma febre das novas?

Arrespondi-Ihe poucas palavras: que não, que era só lombeira pr'amor a calma do dia, e que sim 'tava pendendo de sono. Ela comeu lá pra cozinha mesmo, lavou os pés, tirou a roupa e deitou. Eu não tinha plancheado ainda, 'tava estudando numa pruca, daquele feitio que já lhe disse e que vassuncê bem sabe. A candeia ficou em riba duma caixa, e, como a luz 'tava escassa por de mais, espevitei a trocida: a luz espertou, foi-se espichando pra cama afora, e a Ogusta, que inda não tinha ferrado no sono, apertou os olhos e virou pro canto. Foi pouca demora, e ela se ponhou outra vez de cacunda, que é como drumia quáji que noite inteirinha.

Afrouxei a cinta, puxei a faca; guardei a faca por debaixo do trabisseiro; arrastei a gamela e me lavei os pés: mas nada de deitar! Não sei porque foi, ou porque não foi, sentei outra vez na pruca, e outra vez 'garrei a ficar banzativo. Não tinha nem um barulho na casa nem no terreiro, 'tava tudo numa grande paz: somente, de pedaço em pedaço, eu escuitava a suspiração mansica do Belisário, num catrinho do outro quarto.

Mas porém a trocida da candeia incendiou-se e acabou: fui na varanda, vigiei um pano rasgado, aprontei outra bonecra; vigiei a garrafa de azeite de mamona: e vortei. Carculei bem a candeia, molhei dereito a trocida, botei-lhe um pau de forfo: e ergueu-se um bruto fogaréu que deu uma luz e tanto. A luz esparramou-se pro quarto, que nem uma água de enxofre, e deu de tremer na cara e na testa e no peito da Ogusta; despois ficou mais pequena nos outros lugares, mas 'tava sempre firme no corpo da companheira. Antão pus-lhe uma lata na frente, e daí por diante o que chegava na mulher não era mais craridade forte ansim, era uma sombra tremida.

Sentei na beirada da cama, e reparei na companheira: 'tava tão sussegada, c'um sono tão bonito! Eu, que lhe queria de devera, como vassuncê bem sabe, andei um és-não-és pra lhe dizer quarquer coisa, um pretexto que servisse de acordar e nada mais: não disse, tratei de me acomodar, e fui dar um último jeito no trabisseiro.

Aí, agora, é que não sei como é que aquilo foi: mas contanto que vi a faca, peguei a faca, tirei a faca da bainha e enterrei a faca no sangrador da Ogusta, com tuda a sustância. A mó' que era uma força escondida que me empurrava o meu braço, porque eu tive essa corage' e o bração teve essa força...

O galo já tinha cantado a segunda vez. A Ogusta saltou no chão, saiu correndo inté na porta da rua, mas porém vortou no mesmo sofragante, caiu nos pés da cama do filho, gemeu um pouco e morreu. Ele acordou aturduado e veio pra minha banda sem não saber 'o certo o que é que havera assucedido: e ante' de levantar e de vir inda viu a mãe dizer que o pai é que tinha feito a morte.

Botei os dedos na espingarda, caminhei pra cozinha; enfiei o cano debaixo do queixo, e 'tava forcejando, c'o dedo grande do pé, pra fazer o cão desmunhecar e estrondar duma vez c'a minha vida, quando o Belisário empurrou a espingarda, e o tiro saíu desviado, grudando no jirau de toicinho: ele antão escondeu o saquitel das munições.

Agora é diz-que do Belisário, eu não me alembro: fiquei na beira do fogo, c'os olhos muito arregalados e pitando. Ansim 'tive um tempão, inté que ele mesmo me falou esta palavra:

- Suncê já matou mesmo a mãe, agora tire ela do escuro, coitada! - e ponha perto dela uma vela benta!

Eu fui no oratório, truxe a vela, acendi, pus a vela perto da Ogusta, e enveredei outra vez pro fogão. E mandei o Belisário que fosse dizer pro padrinho aquilo, e chamar o padrinho com tuda a pressa. O Belisário, que sempre foi muito bem mandado, me desobedeceu:

- Como é, pai, que eu hei de deixar o corpo da mãe suzinho?

Aí saí eu mesmo, e fui apôs do meu compadre. Ele inorou muito de eu ir bater na sua porta àquelas horas:

- O que é isso, compadre? Hai arguma novidade? Eu disse isto, por antão:

- Foi uma loucura que eu fiz.

- Que loucura?

- Matei a Ogusta.

- Pro que foi que você matou aquela criatura tão boa?

- Foi uma loucura, compadre, eu não posso saber o que foi. Venho-me apresentar pra ser preso: você me faça o 'bséquio de ir avisar o sobdelegado.

Apareceram logo umas três pessoas mais, vortemo' pra casa, e tudas aquelas pessoas me arreceberam por preso. O que mais me doeu nos peitos, na horinha que 'távamos entrando, foi ver o Belisário suzinho naquela casa, abraçado c'a mãe e chorando.

Já passei por três jurados, vassuncê bem sabe: uma vez tive livração, as duas outras não tive. Agora o meu 'devogado apelou, porque o castigo diz que é duro de mais -dezesseis anos e meio: mas porém eu já falei pro meu 'devogado que não apelasse, que não pagava a pena, sendo eu um home' que não valo nada.

Aqui na prisão os outros já tenham medo de mim, e vevem pedindo mudança tudo o dia: afiançam que eu não paro na cama, e ando a noite inteira, e falo sem parada, e faço gesto em desmasia. Eu não sei de mim quáji nada, des que houve o acontecido: e só o que lhe posso dizer é o que eu já disse pro tal meu 'devogado, est'ro dia: é que eu sou um marvado, não presto pra coisa arguma, e quero acabar a minha triste vida aqui mesmo...

Fonte:

https://aneste.org/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=35

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