“(...) A mó' que era uma força escondida que me empurrava o meu braço, porque eu tive essa corage' e o bração teve essa força ... (...)"
Amor Escondido
“Quando
se tem um amor escondido
Querendo aflorar
É se guardar um rio
perdido
Que não encontra o
mar
Mas brilha tanto
cada sorriso
E brilha mais que o
olhar (...)”
Composição: Abel Silva / Fagner.
Fonte:
https://www.letras.mus.br/fagner/45898/
“(...) Segundo Lukács, independentemente
da visão de mundo do autor, seu esforço em projetar na literatura a concepção
que possui do real (no caso de Valdomiro, a realidade do mundo caboclo) traz à
tona as “contradições entre realidade objetiva e ideologia de uma dada época.
(...)”
BARBOSA, Alexandre de Oliveira
Edição anotada de
Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira
Fonte:
FORÇA ESCONDIDA
VALDOMIRO SILVEIRA (1873 -1941 | Brasil)
O paulista Valdomiro Silveira foi um pioneiro do conto regional brasileiro -
que teria em Afonso Arinos e J. Simões Lopes Neto os nomes de maior destaque.
Autor de Os Caboclos, Nas Serras e nas Furnas e Mixuangos. Ele teve este Força
Escondida selecionado por Graciliano Ramos na histórica antologia Contos e
Novelas, editada em três volumes pela Livraria-Editora da Casa do Estudante do
Brasil em 1957, e relata a morte silenciosa e nunca noticiada de mulheres por
seus maridos, em especial, no caso, ocorrida nas lonjuras do interior do país.
Quem ama não mata?
Eu tuda a
vida fui um home' quieto, como vassuncê bem sabe; nunca deixei de não trabucar
a minha obrigação nas horas certas; respeitei sempre o alheio; cuidei da minha
casa c'o maior carinho: e quis o quanto se pode querer à Ogusta e ao Belisário.
Ela
verdade seja que não me deu o mais pequetito desgosto: revirava de sol a sol na
labuta das donas, trazia tudo areadinho e tratava do filho com muito amor. Eu,
se alguma queixa tive dela, foi só de ela trabalhar em desmasiado, fazendo
costuras pra uma e pra outra, e torrando suas farinhas de milho e de mandioca a
mais não poder.
No dia do
acontecido, ansim que acabei de correr a enxada naquele meu tirão de
mata-fome, 'tava cansado: passei a manga da camisa na testa, enxuguei o
suor e sentei num toco de folha-larga. O sol já ia, margulha-não-margulha,
entre meio de duas cacundas de morro: e inté agora não sei por via de quê,
naquele pedaço, eu 'garrei a ficar amagoado.
Diz que
só deve de cair na tristeza quem 'tá sofrendo do corpo ou do coiração, não é? -
e eu não tinha nada que me doesse; nada não me amofinava por dentro, e rezão de
desespero, louvado Deus, foi coisa que eu inté naquele pedaço não tinha tido.
A Ogusta
era uma mulher de patente, como vassuncê bem sabe; eu, pro lado dela, vivia
feliz e vivia descansado; o Belisário não dava trabalho nem susto, porque,
embora mal apena' beirasse os sete anos, era e inda é um menino abençoado, de
bom; a lavourinha não me desajudava, e inda por riba de tudo eu justava meus
empreitos por fora: antão o que é que me faltava?
Da saúde
também eu não podia fazer lástima, que era um caipira seco na paçoca,
sussegado sim na fala e no andar, mas porém escorador de serviço
como nunca vi outro. Só o que me enfezou uns tempos foi uma impige' que me deu
nesta perna, e que fez um patacão meio esquisito, por escuro e farinhento: mas
porém o Vira-bicho, aquele exp'riente que remexeu pr'estes centros (vassuncê
não se alembra?), me deu uma pomada que foi
um
porrete: a impige' sumiu como por encanto, e a própria comichão, que era um
inferno, assussegou de repente e desapareceu pra nunca mais não me inquijilar.
Tem gente
que diz que eu viro e mexo de noite, que eu saio da cama, que eu falo e engrolo
as palavras, que eu faço discursos velhos: mas contanto que pra mim tudo isso é
poetage' pura, porque eu inté hoje inda não me vi caminhando fora das horas e
nunca não acordei que não 'tivesse bem senhordão no meio das cobertas.
Ora, como
eu ia dizendo: peguei a entristecer a troco de nada, e um nó muito acochado me
apertou a garganta e me pôs o coiração num bate-bate esquipado, sem motivo nem
quê pra quê. Olhei pros cocurutos dos morros, adonde o sol inda
amarelava um tantinho, feito uma fitona desbotada, e pensei comigo mesmo:
- Agora,
Venancinho, chegou a sua vez de dar a casca: 'ocê não tem por que ficar ansim
agoniado, e 'tá ansim, 'tá morto!
Passei a
mão na ferramenta, c'a pobre da minha cabeça a mó' que meio deleriada, e atorei
pra casa. Botei o pé na soleira, e ia entrar, senão quando uma galinha já
esporuda, que eu pissuí no levantar aquele rancho, cantou que nem galo, alto e
bom som. Virei pra trás de supetão, campeei um cacete, voei na dita galinha,
mas a galinha derreteu-se que não houve maneiras de se descobrir. Pois vassuncê
não conhece este mau agouro tão doído, da galinha cantar ver o galo? Diz que é
anúncio de morrer o dono da casa.
Fui de
vereda pro quarto, despois de ter apinchado a ferramenta num canto da sala:
nem não quis saber da janta. A Ogusta, que nunca não me tinha visto de
similhante jeito, ficou meia otusa:
- Ué,
Venancinho, o que é isso? Quem sabe lá se você não 'tá c'alguma febre das
novas?
Arrespondi-Ihe
poucas palavras: que não, que era só lombeira pr'amor a calma do dia, e que sim
'tava pendendo de sono. Ela comeu lá pra cozinha mesmo, lavou os pés, tirou a
roupa e deitou. Eu não tinha plancheado ainda, 'tava estudando numa pruca,
daquele feitio que já lhe disse e que vassuncê bem sabe. A candeia ficou em
riba duma caixa, e, como a luz 'tava escassa por de mais, espevitei a trocida:
a luz espertou, foi-se espichando pra cama afora, e a Ogusta, que inda
não tinha ferrado no sono, apertou os olhos e virou pro canto. Foi
pouca demora, e ela se ponhou outra vez de cacunda, que é como drumia quáji que
noite inteirinha.
Afrouxei
a cinta, puxei a faca; guardei a faca por debaixo do trabisseiro; arrastei a
gamela e me lavei os pés: mas nada de deitar! Não sei porque foi, ou porque não
foi, sentei outra vez na pruca, e outra vez 'garrei a ficar banzativo. Não
tinha nem um barulho na casa nem no terreiro, 'tava tudo numa grande paz:
somente, de pedaço em pedaço, eu escuitava a suspiração mansica do Belisário,
num catrinho do outro quarto.
Mas porém
a trocida da candeia incendiou-se e acabou: fui na varanda, vigiei um pano rasgado,
aprontei outra bonecra; vigiei a garrafa de azeite de mamona: e vortei.
Carculei bem a candeia, molhei dereito a trocida, botei-lhe um pau de forfo: e
ergueu-se um bruto fogaréu que deu uma luz e tanto. A luz esparramou-se
pro quarto, que nem uma água de enxofre, e deu de tremer na cara e na testa
e no peito da Ogusta; despois ficou mais pequena nos outros lugares, mas 'tava
sempre firme no corpo da companheira. Antão pus-lhe uma lata na frente, e daí
por diante o que chegava na mulher não era mais craridade forte ansim, era uma
sombra tremida.
Sentei na
beirada da cama, e reparei na companheira: 'tava tão sussegada, c'um sono tão
bonito! Eu, que lhe queria de devera, como vassuncê bem sabe, andei um
és-não-és pra lhe dizer quarquer coisa, um pretexto que servisse de acordar e
nada mais: não disse, tratei de me acomodar, e fui dar um último jeito no
trabisseiro.
Aí,
agora, é que não sei como é que aquilo foi: mas contanto que vi a faca, peguei
a faca, tirei a faca da bainha e enterrei a faca no sangrador da Ogusta,
com tuda a sustância. A mó' que era uma força escondida que me empurrava o meu
braço, porque eu tive essa corage' e o bração teve essa força...
O galo já
tinha cantado a segunda vez. A Ogusta saltou no chão, saiu correndo inté na
porta da rua, mas porém vortou no mesmo sofragante, caiu nos pés da cama do
filho, gemeu um pouco e morreu. Ele acordou aturduado e veio pra minha banda
sem não saber 'o certo o que é que havera assucedido: e ante' de levantar e de
vir inda viu a mãe dizer que o pai é que tinha feito a morte.
Botei os
dedos na espingarda, caminhei pra cozinha; enfiei o cano debaixo do queixo, e
'tava forcejando, c'o dedo grande do pé, pra fazer o cão desmunhecar e
estrondar duma vez c'a minha vida, quando o Belisário empurrou a espingarda, e
o tiro saíu desviado, grudando no jirau de toicinho: ele antão escondeu o
saquitel das munições.
Agora é
diz-que do Belisário, eu não me alembro: fiquei na beira do fogo, c'os olhos
muito arregalados e pitando. Ansim 'tive um tempão, inté que ele mesmo me falou
esta palavra:
- Suncê
já matou mesmo a mãe, agora tire ela do escuro, coitada! - e ponha
perto dela uma vela benta!
Eu fui no
oratório, truxe a vela, acendi, pus a vela perto da Ogusta, e enveredei outra
vez pro fogão. E mandei o Belisário que fosse dizer pro padrinho aquilo, e chamar
o padrinho com tuda a pressa. O Belisário, que sempre foi muito bem mandado, me
desobedeceu:
- Como é,
pai, que eu hei de deixar o corpo da mãe suzinho?
Aí saí eu
mesmo, e fui apôs do meu compadre. Ele inorou muito de eu ir bater na sua porta
àquelas horas:
- O que é
isso, compadre? Hai arguma novidade? Eu disse isto, por antão:
- Foi uma
loucura que eu fiz.
- Que
loucura?
- Matei a
Ogusta.
- Pro que
foi que você matou aquela criatura tão boa?
- Foi uma
loucura, compadre, eu não posso saber o que foi. Venho-me apresentar pra ser
preso: você me faça o 'bséquio de ir avisar o sobdelegado.
Apareceram
logo umas três pessoas mais, vortemo' pra casa, e tudas aquelas pessoas me
arreceberam por preso. O que mais me doeu nos peitos, na horinha que 'távamos
entrando, foi ver o Belisário suzinho naquela casa, abraçado c'a
mãe e chorando.
Já passei
por três jurados, vassuncê bem sabe: uma vez tive livração, as duas outras não
tive. Agora o meu 'devogado apelou, porque o castigo diz que é duro de mais
-dezesseis anos e meio: mas porém eu já falei pro meu 'devogado que não
apelasse, que não pagava a pena, sendo eu um home' que não valo nada.
Aqui na
prisão os outros já tenham medo de mim, e vevem pedindo mudança tudo o dia:
afiançam que eu não paro na cama, e ando a noite inteira, e falo sem parada, e
faço gesto em desmasia. Eu não sei de mim quáji nada, des que houve o
acontecido: e só o que lhe posso dizer é o que eu já disse pro tal meu
'devogado, est'ro dia: é que eu sou um marvado, não presto pra coisa arguma, e
quero acabar a minha triste vida aqui mesmo...
Fonte:
https://aneste.org/os-100-melhores-contos-de-crime-e-mistrio-da-literatura-univer.html?page=35
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