segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Prática sanitária e prática de direito






"Conflitos históricos como os que dividiram mecanicistas e vitalistas podem ser apenas duas formas de lidar com uma ignorância."




“(...) A epidemiologia tem como objeto a distribuição e os determinantes dos processos de saúde e doença em populações humanas. Sua história não teve um desenvolvimento linear, pois diversas concepções teóricas e construções técnicas, permeadas por visões de mundo, posicionamentos sociais e políticos, contribuíram na sua constituição.

A profunda ligação entre condições históricas, geográficas, sociais e o surgimento das doenças esteve presente na origem do pensamento epidemiológico moderno. (...)”
Dina Czeresnia:  Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais e a integração das ciências  
https://www.scielosp.org/article/rsp/2008.v42n6/1112-1117/pt/












Cientificidade na prática sanitária




CORONAVÍRUS
Máscaras, cloroquina, correção: o que idas e vindas na pandemia ensinam sobre a ciência
Usar ou não máscaras? Por que um estudo com resultados animadores sobre um medicamento pode ser 'derrubado' por outra pesquisa no dia seguinte? O coronavírus tem provocado questionamentos sobre o modo de fazer ciência, explicado nesta reportagem por pesquisadores por meio de noções básicas úteis a todos.
Por BBC 
01/08/2020 15h36  Atualizado há um dia







Máscara para proteção contra o coronavírus. — Foto: Tai's capture / Unsplash / Divulgação

"Todo dia uma nova que cai no dia seguinte."
"Estudos mostram que tem estudo demais sobre estudos."
"É uma lenga lenga esta história que 'agora presta', 'agora é perigoso', 'agora há dúvidas' e 'agora mata'… até a décima informação sobre a mesma coisa."
"Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes. Assim está a OMS e essas pesquisas 'científicas' em meio à pandemia."
Esses comentários vieram das rede sociais da BBC News Brasil, como reações de leitores a reportagens sobre tratamentos em estudo, recomendações de autoridades e pesquisas científicas na atual pandemia de coronavírus — mas, vale dizer, ao lado de muitos outros comentários de internautas que acrescentaram informações e opiniões ou que exaltaram o conhecimento científico das novas descobertas.






Foto microscópica mostra célula humana sendo infectada pelo Sars Cov-2, o novo coronavírus — Foto: NIAID via Nasa

Pesquisadores, professores e pessoas dedicadas à divulgação científica que conversaram com a BBC News Brasil apontaram que a atual pandemia está explicitando desafios para a compreensão do público do que é a ciência e o seu "tempo" e, também, para que os especialistas se comuniquem bem para além de seus muros. E, claro, nesse meio do caminho está a mídia, que também passa por suas críticas e desafios.
A atual pandemia de coronavírus é uma oportunidade em "tempo real" para que estes pontos sejam melhorados, dizem os entrevistados — um esforço, porém, que não é de hoje e nem deve se limitar ao momento crítico pelo qual o mundo passa.






Médico faz teste de covid-19 em um passageiro no aeroporto de Düsseldorf, Alemanha, segunda-feira, 27 de julho de 2020 — Foto: Martin Meissner/AP

O que explica mudanças de posicionamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) ao longo da pandemia, entidade que sempre verbaliza a importância das evidências científicas em suas decisões? Por que, em um dado momento, um remédio parece ser promissor para tratar a covid-19 e, depois, aparece um novo estudo indicando que não é bem assim?
A BBC News Brasil debateu com entrevistados episódios polêmicos envolvendo o conhecimento científico nesta pandemia — e também lições que podemos tirar deles.
Pedimos para "especialistas" e educadores apontarem ainda noções científicas que recomendam serem melhor conhecidas por mais pessoas, independentemente de idade, se está estudando no momento ou não, classe social ou…. posição política. Estas noções são apresentadas ao longo da reportagem. Confira.
Ciência não produz dogmas
Presidente do Instituto Questão de Ciência, dedicado ao uso das evidências científicas nas políticas públicas, a bióloga Natalia Pasternak destaca que mudar faz parte do processo científico, pois ele não é orientado por "dogmas" — no dicionário Aurélio, dogma aparece primeiro como algo associado à religião, mas não só.
Segundo o dicionário, dogma é um "ponto fundamental e indiscutível de doutrina religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema".
Algo diferente dos princípios científicos, aponta Pasternak.






Uma mulher de máscara é vista em uma estação de metrô em São Paulo durante a pandemia de Covid-19 nesta quarta-feira (29) — Foto: Nelson Almeida/AFP

"A ciência não é dogmática, ela tem um processo contínuo de acúmulo de evidências. Neste momento, trabalhamos com as melhores evidências existentes. Esse processo às vezes passa a impressão de que o cientista não sabe o que está fazendo, que ele muda de ideia. A ciência muda de ideia, sim — tem que mudar, quando está diante das melhores evidências", diz a cientista, doutora em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP).
"Isso às vezes não transmite a segurança que as pessoas gostariam de ter, de uma verdade absoluta."
Entre os médicos, inclusive, há um bordão que reflete essa mutabilidade do conhecimento e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de se saber tudo: "na medicina, nem nunca, nem sempre".
Noções básicas sobre o conhecimento científico sugeridas pelos entrevistados
Ciência: Vamos entender aqui como uma organização metódica e racional de fenômenos do mundo, sejam naturais ou sociais. Ela também tem raízes históricas — apesar de ter descobertas e métodos que remontam à Antiguidade e com origem em várias parte do mundo, a ciência como conhecemos hoje ganhou corpo e maior importância, inclusive social e política, na Europa a partir do século 17.
Hipóteses: Um esquema genérico do método científico, inclusive ensinado nas escolas, normalmente segue uma ordem parecida com esta: perguntas>hipóteses>teste>resultado. Perguntas costumam vir da simples observação, explica Ayanda Lima, bióloga e professora de ensino médio em Goiás. Pode ser algo simples, como observar que as folhas de uma árvore são verdes e perguntar: por que elas têm essa cor? Daí vêm as hipóteses, possíveis explicações a serem averiguadas, como: será que elas ficam verdes porque tem algo dentro das plantas que as deixa assim?
Teste, método e resultados: Em seguida, vem um teste, que em alguns casos é um experimento em laboratório — mas nem sempre, dependendo da área ou objeto de pesquisa (a antropologia, por exemplo, desenvolveu ao longo tempo o método clássico da etnografia). O teste exige um método planejado e, de preferência, avaliado, aceito e capaz de ser repetido por outros cientistas. No exemplo das folhas verdes, um teste seria macerá-las e depois analisar, com microscópio, seus componentes. Spoiler! Como o acúmulo de pesquisas já nos mostrou, um teste como esse revela que há organelas nas células vegetais, os cloroplastos, que dão essa coloração às plantas.
Assim, depois de um teste, pode haver um resultado satisfatório como esse — que, com o acúmulo de pesquisas semelhantes, forma um conjunto de evidências; mas também podem vir resultados que não correspondem à hipótese inicial, no entanto contribuem também para se pensar em pesquisas com novos caminhos.
Teorias: Trata-se de um conjunto de evidências maior, não apenas amplamente aceito pela comunidade científica, mas uma referência para ela — como a Teoria do Big Bang para a criação do Universo e a Teoria da Evolução na biologia. As teorias conseguem explicar várias situações e exemplos relacionados. Por mais difícil que seja, teorias podem eventualmente ser superadas.
Para Jarbas Barbosa, médico brasileiro e diretor-assistente da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço regional da OMS nas Américas, mudar diante de melhores evidências científicas é "absolutamente esperado" — ainda mais em uma pandemia como a atual, causada por uma doença nova como é a covid-19.






Um homem usando uma máscara facial contra a propagação do novo coronavírus tem sua temperatura medida no prédio do Sejong Arts Group em Seul, na Coreia do Sul, nesta terça-feira (21) — Foto: Lee Jin-man/AP

"Estamos tratando de uma doença nova, completamente diferente de qualquer coisa que a gente viu antes nos últimos 100 anos na saúde pública. Com essa característica de disseminar rápido e produzir muitos casos graves, é a primeira que temos em 100 anos", destaca Barbosa, médico sanitarista e epidemiologista e doutor em saúde coletiva pela Universidade de Campinas (Unicamp).
"Claro que em uma situação como essa, adaptar, mudar recomendações, é absolutamente esperado. O inesperado seria o contrário. Se você pegar o que se dizia em janeiro e o que se diz agora, quem não mudou ou adaptou foi só teoria da conspiração — eles continuam pensando exatamente igual. Mas quem se baseia em ciência viu em seis meses de pandemia coisas absolutamente inovadoras."
O diretor-assistente da Opas menciona como exemplos teorias da conspiração de influência da China na OMS, acusação frequente partindo dos EUA; ou vice-versa. Ele destaca, entretanto, que a estrutura da organização "garante decisões técnicas e proteção à pressão de países em particular" — como a existência de um setor de controle de qualidade das recomendações e estudos produzidos pela entidade; a exigência de declaração de conflito de interesses em reuniões de alto escalão; uma rede com mais de 800 centros colaboradores em todo o mundo, como universidades e secretarias de saúde no Brasil; e a própria assembleia mundial da saúde, com mais de 190 países com votos equivalentes.
"Às vezes vejo comentários como se a OMS fosse uma força de ocupação, que poderia ter entrado na China… Isso é ficção científica. Nenhum país vai abrir mão da sua soberania para nenhum organismo internacional", afirma. "No limite do que é possível, a OMS tem mecanismos de proteção contra influências bem estabelecidos."
Apesar de a entidade afirmar sua independência, isso não foi suficiente para impedir que o presidente Donald Trump anunciasse a retirada dos EUA da OMS, acusando-a de sofrer influência desmedida da China e de ter falhado no combate ao coronavírus. Entretanto, apesar de ter sido formalmente iniciada, a saída dos Estados Unidos da OMS não necessariamente vai se concretizar.
Mudança de recomendação sobre uso generalizado de máscaras
A OMS classificou a crise sanitária causada pelo coronavírus como uma pandemia — disseminação mundial e simultânea de uma nova doença — em março. Desde então, a organização, um organismo multilateral vinculado às Nações Unidas, mudou por exemplo sua posição em relação ao uso generalizado de máscaras contra a covid-19. Até junho, a entidade afirmava não haver evidências científicas suficientes para dizer que pessoas saudáveis deveriam usar o item — que deveria, sim, ser prioridade para pessoas doentes e profissionais de saúde.

Tedros Adhanom Ghebreyesus durante coletiva da OMS em fevereiro de 2020 — Foto: Denis Balibouse/Reuters
Mas, naquele mês, a OMS anunciou que, mediante novas evidências científicas avaliadas por um comitê e a consideração de preferências individuais e fatores sociais, como a dificuldade de realização do distanciamento físico, o uso disseminado de máscaras passou a ser encorajado.
Mesmo assim, o documento que respaldou a novidade é modesto em relação ao uso de máscaras como medida de proteção: "No momento, o uso generalizado de máscaras por pessoas saudáveis em contextos comunitários ainda não é respaldado por evidências científicas diretas ou de alta qualidade, e existem possíveis benefícios e riscos a serem considerados (...)".
Jarbas Barbosa afirma que, em todo esse período, a organização manteve uma posição: a preocupação de apontar que apenas o uso de máscara é insuficiente como medida preventiva.
"Do que sabíamos até o começo do ano, não havia muitas evidências sobre o uso de máscaras — no caso da influenza, as evidências existentes falavam que ela praticamente não tinha muita importância. Agora, já temos evidências de que em determinadas circunstâncias, principalmente em ambientes com aglomeração quase natural, como transporte público e lojas, o uso de máscara pode ter um papel. Então, várias coisas surgiram neste período", lembra Barbosa, que já foi presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) entre 2015 e 2018.
"Mas mesmo hoje, quando a gente faz revisão sobre as máscaras, não encontra evidências fortes para recomendar o uso. Continuamos com a preocupação de que as pessoas achem que só com aquilo estão protegidas. O mau uso de máscara — a pessoa que toca muito, que faz o uso da mesma máscara uma semana seguida — pode ser até um fator agravante. Nas últimas recomendações, a OMS sugere que os países que estão adotando (a orientação) façam estudos para que possamos construir evidências mais robustas."
Como também mostrou a BBC News Brasil em junho, uma fala da epidemiologista Maria Van Kerkhove durante coletiva de imprensa da OMS gerou confusão no público e reações de especialistas apontando que a fala foi mal colocada.
Van Kerkhove afirmou que era "muito raro" que pessoas assintomáticas transmitissem a doença, mas depois a organização precisou esclarecer que ela estava se referindo a pessoas realmente assintomáticas — não incluindo pessoas pré-sintomáticas, por exemplo. O posicionamento oficial da organização diz que revisão da literatura científica mostra que os casos assintomáticos poderiam variar entre 6% e 41% dos casos de contaminação — ou seja, ainda há grande incerteza sobre qual a proporção de casos assintomáticos entre os contaminados.
Cloroquina, Lancet e OMS
Outro episódio de grande repercussão nesta pandemia envolvendo a OMS foi relacionada aos estudos com a cloroquina e hidroxicloroquina — um derivado mais brando da primeira. Estes medicamentos são usados hoje, respectivamente, para tratar malária; e, no caso da hidroxicloroquina, reumatoide, lúpus e outras doenças autoimunes.
Imagem mostram cloroquina manipulada em laboratório — Foto: Dirceu Portugal/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Inicialmente, a hidroxicloroquina foi escalada para o projeto Solidarity, da OMS, que está conduzindo estudos clínicos com potenciais tratamentos para a covid-19 em diversos países. No entanto, a organização anunciou em julho que, seguindo recomendação do conselho diretivo do projeto, os testes com a droga foram definitivamente descontinuados.
"Resultados parciais (do projeto Solidarity) comprovaram o que vários outros outros estudos consistentes já tinham mostrado: em pacientes hospitalizados, a hidroxicloroquina não traz nenhum benefício e tem um risco, ainda que raro, de produzir arritmia cardíaca. Em um estudo, você não pode piorar — medicamente, é inaceitável. Este comitê diretivo tem o papel de revisar tudo o que é informação, como em relação à segurança (do medicamento). Então, não é que a OMS 'mudou de opinião' — ela agiu como deveria agir", afirma o diretor-assistente da Opas.
Mas, antes que a OMS decidisse definitivamente retirar a hidroxicloroquina do Solidarity, houve uma grande pedra no meio do caminho envolvendo outra marca de renome — a revista científica Lancet, considerada o segundo periódico com maior fator de impacto (métrica composta por vários indicadores da influência de uma publicação científica) no mundo, atrás apenas do New England Journal of Medicine, segundo o relatório Journal Citation Reports 2018, da consultoria Clarivate Analytics.
Em 22 de maio, foi publicado no Lancet um artigo do tipo observacional (entenda a definição abaixo) que afastou os benefícios do tratamento de covid-19 com a cloroquina e hidroxicloroquina usando informações de 96 mil pacientes em vários países, coletadas em uma base de dados da empresa Surgisphere.
Logo após a publicação, a OMS anunciou a suspensão — naquele momento, ainda temporária — do estudo com hidroxicloroquina no Solidarity.
Entretanto, no início de junho, veio um novo contratempo: os autores solicitaram a retratação de seu próprio artigo ao Lancet, um procedimento raro mas previsto nos protocolos de periódicos renomados quando há algum tipo de má conduta, fraude ou erro detectado.
Após a publicação em maio, outros pesquisadores não envolvidos no estudo cobraram mais detalhes sobre os dados da Surgisphere, ao que os autores contrataram auditores independentes para atender à cobrança dos colegas. No entanto, a empresa se recusou a fornecer o conjunto de dados completo, pois isso violaria contratos com clientes e o compromisso com a confidencialidade.
Assim, os autores escreveram ao Lancet que não poderiam garantir mais a qualidade dos dados primários — os dos milhares de pacientes envolvidos em testes com a cloroquina e hidroxicloroquina.
Para a matemática Tatiana Roque, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o episódio do Lancet reflete um descompasso que pode acontecer entre a pressão por respostas, como vemos na atual pandemia; e o tempo "natural" da ciência, que por vezes precisa de anos, décadas e até séculos para avançar.
"O que aconteceu com o Lancet chama a atenção justamente porque, por conta da pressa, alguns critérios (de rigor científico) não foram observados: a origem e confiabilidade dos dados. Se para dar respostas rápidas a ciência queimar etapas, atropelar a temporalidade necessária para gerar resultados sólidos, pode acabar sendo pior — quando um resultado precisa ser revisto, por exemplo", avalia Roque, também doutora em história das ciências e epistemologia.
Natalia Pasternak concorda. Ela avalia que potenciais remédios e vacinas, que em condições normais podem levar anos e até décadas para serem desenvolvidos, testados e aprovados para uso, estão no caso da covid-19 já sendo acelerados a uma velocidade talvez nunca antes vista. E isto, às vezes, beira a riscos.
"Nem sempre dá tempo de fazer padrão ouro (ou máximo) — inclusive muitos estudos estão sendo feitos sem duplo cego, sem placebo. Pela pressa, a gente já está perdendo o rigor. Mas a gente não pode perder tanto o rigor a ponto de a resposta ser inútil", aponta a bióloga.
"Na área de vacinas, há muita preocupação com a pressa. Porque com vacina, você não pode errar — milhões de pessoas vão receber as doses. E elas já estão sendo desenvolvidas em tempo recorde, principalmente por ter muita gente trabalhando junto. A gente não pode se dar o luxo de errar, porque estamos vivendo um ambiente mundial de desconfiança das vacinas."
O rigor exigido hoje de vacinas e remédios, lembra Pasternak, não existia quando a penicilina foi usada na Segunda Guerra Mundial — este é um exemplo frequente apresentado como argumento por quem defende o uso da cloroquina contra a covid-19, fazendo uma analogia entre a urgência do conflito bélico com a pandemia do coronavírus.
"Gosto muito deste exemplo da penicilina. Naquela época, realmente, nem se fazia estudo clínico controlado. A penicilina foi testada em camundongos, mas o tamanho do efeito foi tal que não poderia ser ignorado — simplesmente, todos os animais tratados com penicilina sobreviveram, e todos que não foram, morreram. Se você tem uma pessoa entre a vida e a morte e um remédio que funcionou 100% em camundongos, manda ver. Não podemos esquecer, porém: quantos soldados morreram porque eram alérgicos a penicilina, como foi descoberto depois?", questiona.
"E, para a covid-19, pode não haver tratamento específico, mas ninguém está jogado à própria sorte. Existe protocolo de atendimento, com suporte de oxigênio, ventilação mecânica, entre outros", diz, criticando a analogia da atual pandemia com uma guerra.
Como são feitos os estudos na área médica
As definições se baseiam em um guia da Academia de Ciências Médicas do Reino Unido feito com o objetivo de melhorar a comunicação entre instituições de pesquisa e jornalistas, trazendo um sistema de classificação de tipos de pesquisa e suas explicações — documento que usamos frequentemente aqui, na BBC News Brasil.
Estudo sobre coronavírus — Foto: AP Photo/Kirsty Wigglesworth
Estudo observacional: Autor investiga se X está correlacionado a Y, não sendo capaz de demonstrar causa e efeito pois não há manipulação de variáveis — diferente de um estudo do tipo RCT, por exemplo.
Estudo clínico randomizado controlado, o RCT (randomised controlled trial, em inglês): Experimento que envolve pacientes (clínico), divididos aleatoriamente (randomizado) em um grupo que recebe o tratamento testado; e um grupo de controle, que não recebe o item testado — mas sim um placebo ou tratamento diferente. Experimentos assim podem ter ainda a característica de ter "duplo cego", quando nem pesquisadores nem participantes sabem quem está em qual grupo. Estudos RCT são considerados o "padrão ouro" em pesquisas com remédios e vacinas.
O papel dos 'experts' e da mídia
Tatiana Roque, que além de pesquisadora tem também passagem pela política, tendo sido candidata a deputada federal em 2018 pelo PSOL, acrescenta que o caso da cloroquina ensina mais uma coisa: a confusão entre ciência, política e experts — especialistas que frequentemente opinam na mídia e aconselham governos para embasar decisões.





Pesquisadora de Oxford faz análise da vacina desenvolvida para o coronavírus, em 25 de junho — Foto: John Cairns, University of Oxford via AP

"A cloroquina mostrou uma confusão entre esses três âmbitos, porque eles têm temporalidades muito diferentes. Era completamente impossível ter resultados sobre a cloroquina a tempo do que exigia a pressão política. Mas acabou sendo muito urgente ter resultados rápidos, porque presidentes como Trump e Bolsonaro estavam defendendo o remédio para tratamento da covid-19. Os protocolos de estudos clínicos foram atropelados", diz Roque, que aponta, neste caso, o médico francês Didier Raoult no papel do expert — que vem defendendo o uso da cloroquina no tratamento de covid-19.
"Muitas vezes, um especialista individualmente vai defender pontos que não são validados pela comunidade científica. Não adianta colocar um especialista contra o outro como se fossem opiniões pessoais. É preciso pensar nas instituições e na comunidade que validam este conhecimento."
Publicações científicas
Peer review, ou revisão dos pares: Etapa comum antes da publicação de um artigo em periódico, em que o material é avaliado de forma independente por pesquisadores da área, que recomendam sua rejeição ou aceitação — muitas vezes, nesse caso, com pedidos de alteração. A independência é garantida, por exemplo, por plataformas de envio de trabalhos que impedem a identificação dos autores e avaliadores.
Preprint, ou pré-publicação: Como está sendo visto frequentemente na atual pandemia, há plataformas na internet para envio de preprints, ou seja, artigos que não passaram ainda pelo processo completo de avaliação dos pares e publicação em um periódico. Segundo a bióloga Natalia Pasternak, os preprints têm uma função de comunicação entre os cientistas — para que uns saibam o que outros estão produzindo, por exemplo, podendo levar a colaborações —, entretanto muitas vezes tendo o objetivo desviado quando lidos e divulgados pela mídia e pelo público leigo.
Conflitos de interesse: Periódicos renomados costumam ter regras para tentar blindar pressões como, por exemplo, a de uma empresa farmacêutica interessada que uma droga em teste tenha bons resultados e, por outro lado, efeitos colaterais mostrando-se insignificantes. Um dos principais mecanismos para isso é a declaração de conflitos de interesse, um campo preenchido por autores e publicado no artigo em que estes apresentam eventuais financiamentos recebidos para pesquisa, expondo o nome dos financiadores e a forma com que eles interferiram no estudo.
A participação e validação entre colegas, na comunidade científica, acontece a todo momento na rotina de um pesquisador. Para se entrar em um mestrado ou doutorado, e depois, para defender uma dissertação ou tese, há sempre bancas de pesquisadores para avaliar o trabalho do candidato. O mesmo acontece para alguém concorrendo a uma vaga de professor em alguma universidade. Um artigo publicado em periódico ou apresentado em um congresso frequentemente precisa passar antes pela avaliação de pares.





Bancas, congressos, revisão de pares... a validação 'comunitária' do conhecimento faz parte da rotina de um cientista — Foto: BBC/REPRODUÇÃO

E, em todos tipos de publicação, de um artigo a uma tese, são presenças certas o chamado "estado da arte" — a apresentação de estudos anteriores naquela área ou assunto — e as referências bibliográficas, uma forma de destacar e reforçar pesquisas já feitas por outros estudiosos.
Ao falar da diferença entre pesquisadores atuando individualmente ou em "comunidade", Roque menciona um vídeo que é um queridinho entre cientistas e pessoas que trabalham com divulgação científica — um episódio do programa Last Week Tonight, do comediante britânico John Oliver, em que ele brinca com a proporção de cientistas que concordam haver evidências do papel humano nas mudanças climáticas, versus os chamados negacionistas.
O apresentador está na bancada com um representante de cada "lado" quando, de repente, em nome de um "debate estatisticamente representativo sobre as mudanças climáticas", convida mais 96 cientistas que reconhecem o papel humano nas mudanças climáticas — ou seja, mostrando que não há dois lados com mesmo peso sobre a questão, mas sim a preponderância de uma mesma avaliação entre os cientistas.
A cientista diz que a mídia deve estar atenta à colocação dos experts e também para a cobertura de ciência a longo prazo.
"Espera-se dos experts que eles enunciem certezas — ninguém chama um especialista para falar 'não sei' na TV. Mas é mais interessante que o especialista seja aquele que ajude a refletir, e menos alguém que vá dar respostas", sugere Roque.
"Também é importante que a mídia faça um trabalho de divulgação científica de longo prazo — e não apenas na hora da pandemia. É importante passar para o público o gosto pela ciência, mostrar que ela tem uma história longa — em vez da afirmação de certezas absolutas, o que passa uma imagem às vezes arrogante."
"Na verdade, a especificidade da ciência é ter métodos para lidar com as incertezas. Ela não elimina a incerteza. Método confiáveis vão sendo formados ao longo do tempo, validados e protocolados por uma comunidade ampla; seus resultados podem ser reproduzidos no ambiente ou em outras pesquisas. Mas a ciência não enuncia certezas absolutas."
Natalia Pasternak também brinca que não existe cientista "a favor ou contra" a cloroquina — "o que tem são as evidências", diz.






Cientistas criam banco de dados para ajudar a desenvolver vacinas — Foto: Rede Globo/Reprodução

"Se for um bom cientista, ele vai saber analisar essas evidências", aponta Pasternak, que aproveita para recomendar, para cientistas ou não, o livro O mundo assombrado pelos demônios, do biólogo e astrofísico Carl Sagan — segundo ela, "um dos melhores livros que ensina a pensar de forma científica".
Parece mas não é
Correlação: Trata-se de uma conexão entre duas coisas, mas não necessariamente com causalidade. "São eventos que acontecem de forma concomitante e dão a impressão de causa e efeito, principalmente se uma coisa acontece antes da outra — como observar que o galo canta logo antes do nascer do sol e deduzir que o sol só nasce porque o galo cantou", brinca Natalia Pasternak, dando o exemplo de uma correlação que poderia equivocadamente ser tomada como uma relação de causalidade.
Ela, aliás, recomenda o site e um livro intitulados Spurious Correlations, ou em português, "correlações espúrias". Seu autor, Tyler Vigen, ficou famoso ao criar diversos gráficos divertidos com aparente causalidade, mas que não têm nada a ver, como o número de pessoas afogadas em piscinas relacionado ao número de filmes em que Nicolas Cage atuou; e a taxa de divórcios no Estado do Maine associada ao consumo de margarina.
Causalidade: Aparentemente, é algo simples — um evento X causa Y, ou seja, Y é uma consequência de X. Mas, para ir além da correlação, é preciso coletar dados e fornecer evidências descrevendo esta conexão de causa e efeito. Por exemplo, há várias correlações entre tipos de câncer e estilo de vida, como na alimentação, prática de esportes e estresse. Mas como provar causalidade?

30 de julho - Homem fuma um cigarro ao lado de mural de outro homem com máscara protetora, em meio ao surto de coronavírus (COVID-19), em Quezon City, Manila, Filipinas — Foto: Eloisa Lopez/Reuters
No caso do tabagismo e câncer de pulmão, foi assim: nos EUA, começou-se a observar que a curva de cigarros fumados por pessoa no país acompanhava o padrão da taxa de mortes por câncer de pulmão. Quando uma crescia, a outra também. Depois, isso foi associado a outras evidências, como a de que pelo menos 70 substâncias químicas presentes na fumaça do cigarro causaram câncer em cobaias no laboratório ou em humanos. Assim, uma conexão de causalidade foi demonstrada.
Jarbas Barbosa, ao mesmo tempo, considera problemática a postura de alguns médicos no Brasil. O sanitarista conta ter se surpreendido, na pandemia, com médicos brasileiros postando protocolos de tratamento no Facebook ou vídeos no Instagram recomendando medicamentos ainda não validados pela comunidade científica.
Como mostrou recentemente a BBC News Brasil, entidades médicas no país estão preocupadas com esse comportamento de profissionais nas redes sociais na atual pandemia de covid-19.
"Deveria estar mais presente no currículo de médicos brasileiros a separação do que é evidência do que é informação anedótica", conclui Barbosa.
A ciência está ao alcance de todos
Mas, antes do conhecimento especializado que se obtém nas faculdades, há um lugar em que o método científico pode e deve ser ensinado: as escolas.
Doutora em biologia celular, a professora Ayanda Lima bem sabe disso — ela dá aulas de ciências no ensino fundamental e de biologia no ensino médio e já foi destaque, junto com seus alunos do Centro de Ensino em Período Integral (Cepi) Dom Veloso, escola estadual em Itumbiara (GO), em premiações nacionais para projetos científicos em escolas. No caso de trabalhos desenvolvidos sob sua orientação, já foram destaque em prêmios por exemplo um tijolo ecológico de alta durabilidade e um biofertilizante feito com soro de leite bovino reutilizado.
"Não é clichê, não é utopia: a ciência realmente é para todos", disse à BBC News Brasil, por telefone.






Professora lembra que a observação, uma capacidade humana, é um primeiro passo para o conhecimento — Foto: EPTV/Reprodução

"A metodologia científica pode ser aplicada por qualquer pessoa, independentemente da faixa etária e classe social. Todo mundo é capaz de observar uma problemática e levantar hipóteses", afirma, lembrando que o conhecimento antigo e popular também pode ser científico.
"Por exemplo, quem cria aves e coloca uma galinha poedeira para cruzar com um galo bom, buscando uma linhagem muito boa — a pessoa observou, experimentou e viu que dava bons resultados. Isso é ciência. Ou quando você pergunta para uma pessoa se a mandioca dela cozinha bem e pede uma rama — ou seja, eu quero uma reprodução de um produto igual àquele."
Das salas de aula, a professora aprendeu que na verdade é importante sair delas — para que o aprendizado dos livros se conecte com a observação e seja impulsionado pela curiosidade. Isso pode acontecer tanto em laboratórios quanto em uma simples volta na área externa da escola, onde tudo é passível de observação — de plantas a formigas e cupins.
O antropólogo Gersem Baniwa, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), também lembra do valor do conhecimento não só dito popular — mas também daqueles saberem que vêm de outros lugares, povos e tempos algo distantes da origem europeia e racional que a ciência dominante carrega.
Sua posição é de quem vive esse encontro — e às vezes desencontros — na pele.
"A ciência de hoje, em grande medida, está fundamentada no racionalismo cartesiano, em uma visão positivista do homem. Isso de alguma maneira condiciona as possibilidades da própria ciência. Podemos perceber isso sobretudo quando vivemos outras lógicas, como é meu caso: estudei a ciência 'eurocêntrica' para me formar, mas também guio minha percepção do mundo com a lógica indígena, do meu povo Baniwa", conta o cientista social, graduado em filosofia e mestre e doutor em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB).
"Sim, claro, a ciência ocidental, eurocentrada, tem sua importância — até porque suas conquistas são gigantescas, dignas de comemoração civilizatória, não tenho a menor dúvida", diz, mencionando seu contato, nos últimos anos, também com filosofias orientais, negras e neoafricanas.
"Mas quando percebemos essa pluralidade de perspectivas, acho fantástico: é isso que forma a grande ciência, esta sim a ciência universal. Se pensássemos na complementaridade entre elas, quem sabe ganharíamos velocidade para compreender mais o mundo."
O antropólogo exemplifica como a perspectiva de seu povo difere da visão dominante de uma doença como a covid-19 — enquanto esta, representada pela medicina ocidental, tende a focar no elemento biológico (o vírus em si), a perspectiva indígena é mais holística ao considerar fatores espirituais e comunitários do adoecimento.
E, ainda que reconheça que a ciência eurocentrada formou um método que se destaca por seu rigor, sobretudo ao se fechar em experimentos dentro de laboratórios, Baniwa lembra que saberes milenares também têm características dessa ciência dominante.
"Como o pajé chega ao seu domínio de conhecimento? São décadas (de aprendizado). O saber indígena de modo geral é resultado de longos anos de história — de observação, experimentação, comprovação, contrapontos. Os índios conhecem hoje plantas que matam — são resultado de experimentações", aponta.
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/08/01/mascaras-cloroquina-correcao-o-que-idas-e-vindas-na-pandemia-ensinam-sobre-a-ciencia.ghtml





Roda Viva | Natalia Pasternak | 29/06/2020

No Roda Viva, a jornalista Vera Magalhães recebe a bióloga e pesquisadora Natalia Pasternak.
Fundadora e primeira presidenta do Instituto Questão de Ciência, Natalia Pasternak é doutora em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e autora do livro 'Ciência no Cotidiano'. A bióloga ainda é publisher da revista Questão de Ciência e escreve para o jornal O Globo, para a revista The Skeptic UK e para o Genetic Literacy Project. No último mês, Natalia deu diversas declarações alertando para o risco do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 e, com outros pesquisadores, assinou um documento contra a liberação do medicamento.
https://www.youtube.com/watch?v=o7Gu4sMXTFo









Constitucionalidade na prática jurídica





Treino 14




ENUNCIADO




Questão 3




O Governador do Estado “Y” propôs ADIn em face de lei federal que viola texto expresso da Constituição Federal. No decorrer do procedimento nova lei federal é promulgada revogando expressamente a lei discutida em ADIn. Diante da situação hipotética apresentada explique o que ocorre com o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade.




RESPOSTA




Destacando os principais termos do enunciado

. Governador do Estado “Y” propôs ADIn em face de lei federal;
. Violação de texto expresso da Constituição;
. Nova lei federal é promulgada revogando expressamente o que é discutido em ADIn.




Temas envolvidos no enunciado


Controle de constitucionalidade; revogação; objeto da ADIn;




Questionamentos

Direito material ou processual?

Ambos. A questão é mista.

Incide legislação especial?

Sim. Lei 9.868/1999 (Ação de Controle Concentrado).




O caminho da resposta


Artigos relacionados

Art. 102, I, a, da CF/1988 – ADI/ADC;
Lei 9.868/1999 – Ações de Controle de Concentrado;
Art. 2.º do Dec.-lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB).



CAMINHO DA PESQUISA

1.   O termo “revogação” de norma utilizado pelo enunciado implica conhecimento prévio sobre teoria geral do direito, especialmente, sobre a norma jurídica.
2.   O termo “revogação” remeterá ao art. 2.º do Dec.-lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB).
3.   Deve-se lembrar, ainda, acerca dos institutos de processo civil relacionados ao objeto, às partes e à causa de pedir do processo suscitados pela doutrina processualista.






ELABORANDO A RESPOSTA

- A resposta à questão consiste em analisar se há ou não perda do objeto da ADIn com a revogação da lei por norma superveniente. No caso, uma vez que a ADIn tinha um determinado objeto, a retirada dela do ordenamento jurídico faz com que não haja mais motivo para se declará-la inconstitucional. Há a chamada prejudicialidade da ação (vide ADIn 3.209/SE no STF).






Gabarito

Conforme a jurisprudência do STF, a revogação da norma impugnada acarreta a perda de objeto da ADIn (prejudicialidade da ação). Não há mais norma geral e abstrata a ser impugnada, razão pela qual a ADIn não é instrumento hábil para eventuais debates sobre os efeitos daquela norma.

Fonte: ORGANIZAÇÃO ERIVAL DA SILVA OLIVEIRA; GUSTAVO GOLDZVEIG; PAULO HENRIQUE LÊDO PEIXOTO – REVISÃO E TREINO – CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL – 2.ª FASE OAB – COORDENADORES .Darlan Barroso .Marco Antonio Araujo Junior .Marcelo Romão Marineli 2.ª edição revista e atualizada THOMSON REUTERS REVISTA DOS TRIBUNAIS 



Prova Final - Controle de Constitucionalidade

Programa Prova Final (TV Justiça). Nesse programa a professora Nathalia Masson aborda o tema Controle de Constitucionalidade. O programa tem duração de aproximadamente 55 minutos e está dividido em três blocos. O primeiro bloco, denominado Tema do Dia, o professor faz uma exposição do tema abordado; o segundo bloco é o Pergunte ao Professor, no qual são respondidas perguntas de alunos; o terceiro bloco é o X da questão, que responde e analisa duas questões que já caíram no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil.
Você poderá acessar o vídeo diretamente em nossa plataforma de estudos. Nessa plataforma estão integrados vídeo e editor de texto no qual você poderá ir fazendo suas anotações enquanto assiste à aula.
https://www.youtube.com/watch?v=geZjds80-G0






Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais e a integração das ciências

Epidemiología, Ciencias Humanas y Sociales y la integración de las ciencias


Dina Czeresnia
Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde. Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Correspondência | Correspondence




RESUMO
O objetivo do artigo foi abordar o problema da integração entre epidemiologia e ciências humanas e sociais no contexto da integração das ciências. A epidemiologia, anteriormente ao surgimento da medicina moderna, apresentava uma cosmovisão que concebia processos de saúde e doença integrados a aspectos geográficos, históricos, econômicos e sociais. A dissociação que marcou seu desenvolvimento posterior foi decorrente das concepções de corpo e doença construídas pelas ciências da vida e medicina moderna. Para pensar a integração entre ciências humanas e sociais e epidemiologia, na sua ligação com a biologia, é necessário interrogar a cisão entre natureza e cultura, inscrita no desenvolvimento das ciências. O conceito de normatividade vital, proposto por Canguilhem, e a discussão de Bohr sobre as relações entre física atômica, biologia e unidade do conhecimento são tratados com a perspectiva de refletir sobre desafios contemporâneos da integração entre as ciências.
Descritores: Filosofia. Ciência. Ciência, Tecnologia e Sociedade. Ciências da Saúde. Epidemiologia. Ciências Sociais.


RESUMEN
El objetivo del artículo fue abordar el problema de la integración entre epidemiología y ciencias humanas y sociales en el contexto de la integración de las ciencias. La epidemiología, anteriormente al surgimiento de la medicina moderna, presentaba una cosmovisión que concebía procesos de salud y enfermedad integrados a aspectos geográficos, históricos, económicos y sociales. La disociación que marcó su desarrollo posterior fue resultado de las concepciones de cuerpo y enfermedad construidas por las ciencias de la vida y medicina moderna. Para penar la integración entre ciencias humanas y sociales y epidemiología, en su relación con la biología, es necesario interrogar la ruptura entre naturaleza y cultura, inscrita en el desarrollo de las ciencias. El concepto de normatividad vital, propuesto por Canguilhem, y la discusión de Bohr sobre las relaciones entre física atómica, biología y unidad de conocimiento son tratados con la perspectiva de reflexionar sobre los desafíos contemporáneos de la integración entre las ciencias.
Descriptores: Filosofía. Ciencia. Ciencias de la Salud. Epidemiología. Ciencias Sociales. Ciencia, Tecnología y Sociedad.




A epidemiologia tem como objeto a distribuição e os determinantes dos processos de saúde e doença em populações humanas. Sua história não teve um desenvolvimento linear, pois diversas concepções teóricas e construções técnicas, permeadas por visões de mundo, posicionamentos sociais e políticos, contribuíram na sua constituição.
A profunda ligação entre condições históricas, geográficas, sociais e o surgimento das doenças esteve presente na origem do pensamento epidemiológico moderno. Estudos epidemiológicos contemporâneos ao período do nascimento do conhecimento médico moderno estiveram conformados por uma teoria cuja procedência é anterior ao processo de fragmentação do conhecimento iniciado no século XVII. Na chamada teoria da constituição epidêmica, predominante até meados do século XIX, diferentes aspectos da realidade não se dissociavam em uma perspectiva analítica, baseada em epistemologias distintas. Nela, a herança hipocrática manteve uma forma de pensamento sintético no qual a epidemia e a doença são compreendidas como desequilíbrio da harmonia da natureza, percebida como totalidade que ultrapassa a dimensão geográfica.8
No desenvolvimento histórico da disciplina, a cosmovisão da teoria da constituição epidêmica manteve-se presente e, com base em distintos conceitos, a idéia de resgatar uma abordagem integrada, mesmo minoritária, foi uma constante. Essa característica da epidemiologia tem um significado importante na contemporaneidade, quando o valor da elaboração sintética torna-se mais pronunciado no pensamento científico e social.8
A integração está na própria natureza do objeto da epidemiologia. Ao mesmo tempo, a dissociação marcou o seu desenvolvimento, conseqüente ao processo de constituição das ciências modernas e à fragmentação do conhecimento sobre o homem e suas relações.
O presente artigo teve por objetivo abordar o problema da integração entre epidemiologia e ciências humanas e sociais considerando que ele está enraizado na questão mais ampla da integração entre as ciências. O problema da integração entre epidemiologia e ciências humanas e sociais não pode ser resolvido sem considerarmos a questão das ciências da natureza em relação às ciências do homem. O homem é biológico e social, é orgânico e psíquico, é físico-químico e simbólico. Qual a integração possível sem pensarmos a profunda cisão entre natureza e cultura presente na raiz do desenvolvimento da ciência moderna?
As ciências da vida surgiram no mesmo período que as ciências humanas e sociais. Segundo Foucault, vida, assim como trabalho e linguagem foram categorias introduzidas a partir da virada do século XIX, quando ocorreu a segunda descontinuidade na epistémê da cultura ocidental e que marcou o limiar da modernidade. Para o autor, foi no contexto dessa descontinuidade que o homem tornou-se uma figura do saber.9
As ciências da vida e as ciências humanas e sociais configuraram-se em bases epistemológicas distintas. Grosso modo, as ciências da vida estabeleceram-se no estudo das estruturas visíveis do corpo e buscaram sua identidade em consonância às ciências da natureza; as ciências humanas e sociais estiveram orientadas ao estudo de fenômenos mediados pela linguagem, por relações intersubjetivas, econômicas e sociais.
A epidemiologia esteve estreitamente articulada ao desenvolvimento da medicina e as ciências da vida foram a base epistemológica deste. Ao mesmo tempo, está na interface entre saúde e sociedade, configurando-se como disciplina ligada à medicina que particularmente mantém um vínculo com a dimensão social.13
As circunstâncias desse desenvolvimento fizeram com que a epidemiologia se tornasse caudatária da perspectiva mecanicista da medicina na compreensão do corpo humano e da idéia de que as ciências tratam objetos passiveis de serem conhecidos predominantemente mediante a linguagem matemática. Do ponto de vista da formação de recursos humanos e do desenvolvimento das técnicas de investigação, houve a propensão de progressivo afastamento da disciplina em relação ao conhecimento que se configurou como especialidade do campo das ciências humanas e sociais.1-3
A epidemiologia tende a não trabalhar conceitos das ciências humanas e sociais com a complexidade que lhes é dada nos campos de origem11 e a quantificar as relações entre saúde e sociedade. Aspectos econômicos, sociais e culturais são abordados em modelos como componentes de conjuntos causais cuja importância no processo seria conhecida por meio da mensuração. A articulação entre epidemiologia e ciências sociais pendeu a ser reduzida a um plano instrumental de atributos, em detrimento de elaboração teórica subjacente às relações entre fenômenos socioeconômicos e sanitários.4
Essa tendência trouxe para todas as vertentes da disciplina, especialmente para aquelas que buscam superar esses limites, o desafio da integração com as ciências humanas e sociais. Destacam-se, nesse sentido, os esforços produzidos no contexto da vertente da epidemiologia social, a partir da segunda metade do século XX.4
No entanto, existe um limite epistemológico para uma integração mais efetiva que não é passível de ser resolvido apenas no interior da disciplina. No presente trabalho, considera-se que a propensão do humano e do social ser trabalhado de forma limitada na epidemiologia é decorrente de uma conceituação reduzida do corpo e da doença. Os conceitos que definem a base material do corpo não estão articulados às formas de conceber as características humanas estudadas nas ciências sociais.
O corpo humano é concebido como composto por diferentes níveis de organização com complexidade crescente. Diferentes disciplinas descrevem esses níveis de realidade mediante linguagens que não dialogam com facilidade entre si. O corpo não é em si dissociado, mas apresenta-se dissociado nas diferentes perspectivas que o estudam. O maior desafio para uma efetiva integração entre as ciências e, conseqüentemente, entre a epidemiologia e ciências humanas e sociais, seria encontrar um vínculo capaz de unificar epistemologicamente esses distintos níveis de realidade, sem desconsiderar descontinuidades, emergências e originalidade entre eles.
Os critérios de demarcação das diferentes disciplinas se valem, entre outros, dos atributos da quantidade e da qualidade. Uma questão importante para se pensar a integração desejada é interrogar o porquê da tendência de identificação da dimensão da qualidade com a abordagem das ciências sociais; e a da quantidade com o estudo da doença biológica. Qualidade e quantidade são duas faces inseparáveis dos fenômenos, anteriores à delimitação de competências das disciplinas. Há uma diferença de valor entre a saúde e a doença e essa variação é social, cultural e, ao mesmo tempo, biológica.
Nesse contexto, a contribuição filosófica de Canguilhem toca um aspecto crucial da cisão entre natureza e cultura. Ele considerou qualidade uma característica inscrita na condição vital. A tese que Canguilhem defendeu na década de 1940,7 apresenta uma profundidade que precisa ser resgatada, ao apontar para um elo potencial entre os distintos níveis de organização do vivo.
Segundo o autor, a medicina, enquanto técnica terapêutica, seria um prolongamento da capacidade biológica de apreender como negativos (patológicos) certos estados ou comportamentos. Com a medicina, o ser humano desdobra um efeito espontâneo e peculiar à vida para lutar contra o que se apresenta como obstáculo à sua manutenção. Canguilem afirma:
"... que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa. Em filosofia, entende-se por normativo qualquer julgamento que aprecie ou qualifique um fato em relação a uma norma, mas essa forma de julgamento está subordinada, no fundo, àquele que institui as normas. No pleno sentido da palavra, normativo é o que institui as normas. E é neste sentido que propomos falar sobre uma normatividade biológica"7 (p.96).
O conceito de normatividade biológica é essencial ao pensamento de Canguilhem. Segundo ele, a interrogação sobre o sentido vital dos comportamentos e normas dos seres vivos faz parte da biologia.6 Este conceito está na raiz do problema da integração entre ciências humanas e biologia e também dialoga com as interrogações das ciências da natureza em sua tentativa de explicar a vida.
No texto "O Problema da Normalidade na História do Pensamento Biológico"6 Canguilhem dialoga com o trabalho de Schroedinger "O que é vida". Segundo Schroedinger, a vida é um comportamento peculiar da matéria em que uma ordem pré-existente é capaz de ser conservada. A vida contraria, mesmo que provisoriamente, os princípios de a matéria física tender à entropia. Ele denominou de neguentropia, a capacidade do vivo de manter ordem a partir da ordem.16
Para Canguilhem, a física e a química não seriam capazes de responder a esta propriedade da organização vital. A biologia se encarregaria desta qualidade original de uma "certa quantidade física". Considerando esta propriedade original, a biologia não poderia prescindir do conceito de normalidade. A capacidade da vida perseverar e a manutenção da entropia negativa não poderiam ser explicadas pela noção da improbabilidade do sistema sem estarem vinculadas à capacidade normativa. A capacidade de autoconservação não poderia ser devida a qualquer improbabilidade física, mas a uma capacidade de realizar determinadas 'escolhas' fisicamente improváveis. "Teremos que associar a definição da neguentropia total à improbabilidade ou antes ao valor?"6 (p.121).
Canguilhem foi acusado de vitalismo, ao atribuir capacidade valorativa ao mais simples ser vivo e ao propor a definição de uma região epistemológica própria da biologia, diferenciada das regularidades físico-químicas. Esse aspecto controvertido do pensamento de Canguilhem deve ser objeto de maior reflexão por estar no núcleo de questões ainda não resolvidas.
Valor como algo inscrito na biologia e originalidade do ser vivo não excluem pensar a possibilidade de uma explicação física sobre a vida. Como veremos adiante, físicos admitiram essas características em suas interrogações. Um vitalismo em Canguilhem poderia ser atribuído à sua tentativa de demarcar, mediante o conceito de normatividade, uma epistemologia própria da biologia. O problema dessa proposição consiste em que a normatividade biológica não pôde ser equacionada também pela biologia.
Os biólogos descreveram a vida fracionando-a em seus constituintes, mediante a miniaturização crescente dos seus objetos.
"Ora, as análises precedentes não terão confundido o nível dos fenômenos conhecidos e vividos e o nível dos fenômenos explicados? A normalidade aparece como uma propriedade dos organismos mas desaparece ao nível dos elementos da organização"6 (p.121).
O conceito de normatividade vital é relativo à propriedade de autoconservação do ser vivo, referida por Canguilhem como um dado da vida. A vida tem a condição de perseverar em uma condição fisicamente improvável, fluindo entre conservação e plasticidade. Essa característica da vida é assinalada em conceitos como auto-organização, autopoiese,14,12 que buscam descrever, mas também não alcançam explicar a propriedade fundamental do ser vivo.
Ao afirmar que a autoconservação se deve a uma capacidade normativa, Canguilhem estaria atribuindo a todo ser vivo uma condição propriamente humana? Ao afirmar a técnica terapêutica como prolongamento de uma condição biológica, presente nas formas mais simples de vida, estaria considerando o ser vivo unicelular portador de características equivalentes às do homem?
A linguagem é demarcadora do humano. Ela seria uma emergência radicalmente nova ou teria raiz em algum atributo essencial à preservação da vida em sua forma mais simples? Atribuir valor ao ser vivo seria uma extrapolação antropomórfica? Existe uma dificuldade de conceber o conceito de normatividade biológica independentemente da forma humana de experimentar essa circunstância. Seria hipoteticamente possível a idéia de uma capacidade de escolha biológica inconsciente não mediada pela complexidade da condição simbólica humana?
Do ponto de vista aqui defendido, o conceito de normatividade vital é chave na busca de respostas ao desafio da integração entre corpo e mente e, por conseqüência, da integração entre as ciências. Canguilhem deixou em aberto um problema que físicos do século XX e XXI interrogam crescente e intensamente. Questionamentos produzidos a partir da física do século XX permitem avançar o diálogo entre física e biologia.
O modelo mecanicista clássico é base da estrutura epistêmica da biologia. No início do século XX, esse modelo foi questionado na física por não ser capaz de explicar fenômenos descritos de forma mais adequada pela mecânica quântica. No contexto das novas teorias da física, o tema da vida se apresentou de forma mais acentuada em meio a grandes interrogações abertas nesse processo de construção teórica.
Em artigos na primeira metade do século XX, Bohr propôs uma reflexão sobre vida e física atômica, abordando a unidade do conhecimento e a possibilidade da vida vir um dia a ser explicada pela física.5
Bohr propôs o princípio da complementaridade para explicar um dos aspectos da teoria quântica: a dualidade onda-partícula. Em situações experimentais, uma determinada medida só revela uma natureza ondulatória ou corpuscular de um objeto, de forma que é impossível, no mesmo experimento, mostrar sua dupla natureza. Para que se tenha um entendimento completo de um sistema, é necessária uma complementação de informações, de acordo com o aparato experimental construído:
"... os dados obtidos em diferentes condições experimentais não podem ser compreendidos dentro de um quadro único, mas devem ser considerados complementares, no sentido de que só a totalidade dos fenômenos esgota as informações possíveis sobre os objetos"5 (p.51).
O princípio da complementaridade não seria restrito aos fenômenos atômicos. Bohr propôs que ele poderia fundamentar a descrição da organização dos seres vivos:
"... a rigor, as características essenciais dos seres vivos devem ser buscadas numa organização peculiar, na qual características que podem ser analisadas pela mecânica comum entrelaçam-se com características tipicamente atomísticas, num grau que não encontra paralelo na matéria inanimada" 5 (p.11).
Bohr reconhece uma analogia entre a análise dos fenômenos atômicos e aspectos característicos da psicologia humana. Na descrição de experiências psíquicas, há uma relação de complementaridade semelhante à da descrição de experiências referentes ao comportamento dos átomos e das partículas sub-atômicas, obtidas em diferentes situações experimentais. Dessa maneira, o autor ressalta "uma questão epistemológica que é comum a ambos os campos"5 (p.34).
Não existe um discurso que vincule a psicologia à física quântica, mas a aproximação epistemológica que Bohr identifica entre ambas sugere que o princípio da complementaridade pode ter correspondência com fenômenos biológicos, psíquicos e sociais.
A biologia poderia ser expandida se houvesse uma melhor compreensão das suas relações com a física atômica? Essa hipótese é possivelmente hoje mais bem explorada do que na época que Bohr escreveu. Porém, o problema ponderado por ele, de que construir um arranjo experimental adequado à observação de fenômenos quânticos na substância viva seria incompatível com a sua manutenção, é um empecilho para teorias mais precisas. O reconhecimento de que a física atômica é importante para explicar características dos organismos vivos não foi ainda suficiente para entender de forma abrangente o fenômeno biológico. Bohr já interrogava:
"A questão que está em pauta, portanto, é se ainda faltam aspectos fundamentais na análise dos fenômenos naturais para que possamos chegar a uma compreensão da vida com base na experiência física... Por um lado, as maravilhosas características constantemente reveladas nas investigações fisiológicas, e que diferem tão marcantemente do que se conhece sobre a matéria inorgânica, levaram os biólogos a crer que nenhuma compreensão adequada dos aspectos essenciais da vida é possível em termos puramente físicos. Por outro, dificilmente se poderia dar uma expressão não ambígua à visão conhecida como vitalismo, que parte do pressuposto de que uma força vital peculiar, desconhecida dos físicos, rege toda a vida orgânica"5 (p. 12)
Bohr não admitiu que a vida possa ser independente de regularidades físicas passíveis de descrição na natureza, mas não as restringiu a processos físico-químicos descritos apenas no contexto da mecânica clássica. Além disso, reconheceu que os organismos exercem poder de escolha:
"... a lição geral da física atômica, e, em particular, do alcance limitado da descrição mecanicista dos fenômenos biológicos, sugere que a capacidade que os organismos têm de se adaptar ao ambiente, inclui o poder de escolher o caminho mais apropriado para esse fim"5 (p. 99).
A continuidade das discussões entre físicos sobre a natureza da vida destaca a importância do conceito de normatividade vital na consideração de um dos maiores desafios da ciência no século XXI, ligado ao problema da integração entre corpo e mente e, por conseqüência, da integração entre as ciências. Roger Penrose, no final do século XX, indagava:
"... os neurônios são células e as células são coisas muito elaboradas. Na realidade, elas são tão elaboradas que, ainda que só tivéssemos uma delas, poderíamos fazer coisas muito complicadas. Por exemplo, um paramécio, um animal unicelular, é capaz de nadar até o alimento, fugir do perigo, transpor obstáculos e, aparentemente, aprender com a experiência. Todas estas são qualidades que pensaríamos requerer um sistema nervoso, mas o paramécio certamente não tem sistema nervoso. No melhor dos casos, o paramécio seria ele próprio um neurônio! Com certeza não existem neurônios num paramécio - há apenas uma única célula. O mesmo tipo de afirmação poderia ser aplicado a uma ameba. A pergunta é: 'Como fazem isso?' "15 (p. 139).
Considerar que a integração entre epidemiologia e ciências humanas e sociais está ligada a um debate que envolve a filosofia da biologia em sua relação com a das ciências da natureza traz um problema. Um pensamento capaz de sintetizar conhecimentos de campos tão diversos não pode ser construído sem a colaboração entre pesquisadores de distintas formações.
Por exemplo, o princípio da complementaridade não foi consensual nas interpretações sobre as conseqüências epistemológicas da descrição atômica. O debate estabelecido entre Bohr e Einstein5 é controverso até hoje. Não haveria como aprofundá-lo no presente artigo, mas vale chamar atenção para a existência de questões em aberto, tanto na epistemologia da física como da biologia, que precisam ser mais bem relacionadas.
Conflitos históricos como os que dividiram mecanicistas e vitalistas podem ser apenas duas formas de lidar com uma ignorância. Quem sabe, estamos diante de uma questão a ser respondida de uma maneira distinta daquela que simplesmente garantiria uma "vitória" a uma das duas correntes. Há exemplos no passado de que superações no conhecimento ocorreram vinculadas a transformações profundas na natureza do discurso, da percepção e do saber, como analisado por Foucault10 em relação à medicina moderna.
A epidemiologia é articulada às ciências da vida e à medicina modernas, mas o seu desenvolvimento histórico foi marcado anteriormente por uma cosmovisão em que processos de saúde e doença foram concebidos integrados a condições geográficas, históricas, econômicas, sociais e culturais. Os desafios para a integração contemporânea entre epidemiologia e ciências humanas e sociais estão ligados aos da integração entre as ciências. A biologia, a medicina e as ciências humanas e sociais, ou seja, as ciências que surgiram no limiar da modernidade, podem se transformar no contexto das mudanças nas ciências da natureza. Dessa forma, é importante acompanhar o rumo das suas descobertas e indagações.
No que compete à epidemiologia, cabe resgatar a herança de um pensamento sintético, capaz de superar o limite do conhecimento dicotômico e fragmentado que caracterizou a ciência moderna. Não há fórmula fácil para estabelecer diálogo rigoroso entre ciências que apresentam linguagens herméticas e diferentes entre si. Uma maneira de tentar superar essa dificuldade é ousar interlocuções a serem complementadas, corrigidas e superadas em sucessivas tentativas. Pensar de forma integrada no século XXI é um esforço coletivo e o discurso acadêmico precisa abrir-se mais a esse desafio.

AGRADECIMENTOS
A Nami Fux Svaiter, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e à Teresa Cristina Soares, aluna do doutorado da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), a discussão de algumas dessas idéias em grupo de estudo sobre epistemologia das ciências da vida e física quântica.




REFERÊNCIAS
1. Almeida Filho N. O problema do objeto de conhecimento na epidemiologia. In: Costa DC, organizador. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: Hucitec/Abrasco; 1990. p.203-20.         
2. Ayres JRMC. Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec-Abrasco; 1997        
3. Barata RCB. Epidemiologia e saber científico. Rev Bras Epidemiol. 1998;1(1):14-27. DOI: 10.1590/S1415-790X1998000100003        
4. Barata RCB. Epidemiologia social. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(1):7-17. DOI: 10.1590/S1415-790X2005000100002        
5. Bohr N. Física atômica e conhecimento humano. Rio de Janeiro: Contraponto; 1995.         
6. Canguilhem G. Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Lisboa: Edições 70; 1977. O problema da normalidade na história do pensamento biológico; p.107-22.         
7. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; 1978.         
8. Czeresnia D. Constituição epidêmica: velho e novo nas teorias e práticas da epidemiologia. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2001;8(2):341-56. DOI: 10.1590/S0104-59702001000300003        
9. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes; 1995.         
10. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; 1987.         
11. Goldberg M. Este obscuro objeto da epidemiologia. In: Costa DC, organizador. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: Hucitec/Abrasco; 1990. p.87-136.         
12. Maturana HR, Varela FG. El árbol del conocimiento. Santiago de Chile: Editorial Universitária; 1984.         
13. Mendes Gonçalves RB. Reflexão sobre a articulação entre a investigação epidemiológica e a prática médica a propósito das doenças crônicas degenerativas In: Costa DC, organizador. Epidemiologia: teoria e objeto. São Paulo: Hucitec/Abrasco; 1990. p.39-86        
14. Morin E. O método II: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina; 2002.         
15. Penrose R. O grande, o pequeno e a mente humana. São Paulo: UNESP; 1998.         
16. Schroedinger E. O que é a vida? São Paulo: Unesp/Cambridge; 1997.         


 Correspondência | Correspondence:
Dina Czeresnia
R. Leopoldo Bulhões 1480 Manguinhos
21041-210 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail: dina@ensp.fiocruz.br

Recebido: 17/12/2007
Aprovado: 20/5/2008
Projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Edital Universal. Processo 473030/2004-7).



Referências




https://www.scielosp.org/article/rsp/2008.v42n6/1112-1117/pt/
01/08/2020 15h36  Atualizado há um dia
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https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/08/01/mascaras-cloroquina-correcao-o-que-idas-e-vindas-na-pandemia-ensinam-sobre-a-ciencia.ghtml
https://youtu.be/o7Gu4sMXTFo
https://www.youtube.com/watch?v=o7Gu4sMXTFo
https://youtu.be/geZjds80-G0
https://www.youtube.com/watch?v=geZjds80-G0

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