"Conflitos históricos como os que dividiram
mecanicistas e vitalistas podem ser apenas duas formas de lidar com uma
ignorância."
“(...) A epidemiologia tem como objeto a distribuição e os determinantes dos processos de saúde e doença em populações humanas. Sua história não teve um desenvolvimento linear, pois diversas concepções teóricas e construções técnicas, permeadas por visões de mundo, posicionamentos sociais e políticos, contribuíram na sua constituição.
A
profunda ligação entre condições históricas, geográficas, sociais e o
surgimento das doenças esteve presente na origem do pensamento epidemiológico
moderno. (...)”
Dina Czeresnia: Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais e a integração
das ciências
https://www.scielosp.org/article/rsp/2008.v42n6/1112-1117/pt/
Cientificidade na prática sanitária
CORONAVÍRUS
Máscaras, cloroquina,
correção: o que idas e vindas na pandemia ensinam sobre a ciência
Usar ou não máscaras? Por que um estudo com
resultados animadores sobre um medicamento pode ser 'derrubado' por outra
pesquisa no dia seguinte? O coronavírus tem provocado questionamentos sobre o
modo de fazer ciência, explicado nesta reportagem por pesquisadores por meio de
noções básicas úteis a todos.
Por BBC
01/08/2020 15h36 Atualizado há um dia
Máscara para proteção contra o coronavírus. — Foto:
Tai's capture / Unsplash / Divulgação
"Todo
dia uma nova que cai no dia seguinte."
"Estudos
mostram que tem estudo demais sobre estudos."
"É uma
lenga lenga esta história que 'agora presta', 'agora é perigoso', 'agora há
dúvidas' e 'agora mata'… até a décima informação sobre a mesma coisa."
"Eu quero
dizer agora o oposto do que eu disse antes. Assim está a OMS e essas pesquisas
'científicas' em meio à pandemia."
Esses
comentários vieram das rede sociais da BBC News Brasil, como reações de
leitores a reportagens sobre tratamentos em estudo, recomendações de
autoridades e pesquisas científicas na atual pandemia de coronavírus — mas,
vale dizer, ao lado de muitos outros comentários de internautas que
acrescentaram informações e opiniões ou que exaltaram o conhecimento científico
das novas descobertas.
Foto microscópica mostra célula humana sendo infectada pelo Sars Cov-2,
o novo coronavírus — Foto: NIAID via Nasa
Pesquisadores,
professores e pessoas dedicadas à divulgação científica que conversaram com a
BBC News Brasil apontaram que a atual pandemia está explicitando desafios para
a compreensão do público do que é a ciência e o seu "tempo" e,
também, para que os especialistas se comuniquem bem para além de seus muros. E,
claro, nesse meio do caminho está a mídia, que também passa por suas críticas e
desafios.
A atual
pandemia de coronavírus é uma oportunidade em "tempo real" para que
estes pontos sejam melhorados, dizem os entrevistados — um esforço, porém, que
não é de hoje e nem deve se limitar ao momento crítico pelo qual o mundo passa.
Médico faz teste de covid-19 em um passageiro no aeroporto de
Düsseldorf, Alemanha, segunda-feira, 27 de julho de 2020 — Foto: Martin
Meissner/AP
O que explica
mudanças de posicionamento da Organização Mundial da Saúde (OMS)
ao longo da pandemia, entidade que sempre verbaliza a importância das
evidências científicas em suas decisões? Por que, em um dado momento, um remédio
parece ser promissor para tratar a covid-19 e, depois, aparece um novo estudo
indicando que não é bem assim?
A BBC News
Brasil debateu com entrevistados episódios polêmicos envolvendo o conhecimento
científico nesta pandemia — e também lições que podemos tirar deles.
Pedimos para
"especialistas" e educadores apontarem ainda noções científicas que
recomendam serem melhor conhecidas por mais pessoas, independentemente de
idade, se está estudando no momento ou não, classe social ou…. posição
política. Estas noções são apresentadas ao longo da reportagem. Confira.
Ciência não produz dogmas
Presidente do
Instituto Questão de Ciência, dedicado ao uso das evidências científicas nas
políticas públicas, a bióloga Natalia Pasternak destaca que mudar faz parte do
processo científico, pois ele não é orientado por "dogmas" — no
dicionário Aurélio, dogma aparece primeiro como algo associado à religião, mas
não só.
Segundo o
dicionário, dogma é um "ponto fundamental e indiscutível de doutrina
religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema".
Algo diferente
dos princípios científicos, aponta Pasternak.
Uma mulher de máscara é vista em uma estação de metrô em São Paulo
durante a pandemia de Covid-19 nesta quarta-feira (29) — Foto: Nelson
Almeida/AFP
"A
ciência não é dogmática, ela tem um processo contínuo de acúmulo de evidências.
Neste momento, trabalhamos com as melhores evidências existentes. Esse processo
às vezes passa a impressão de que o cientista não sabe o que está fazendo, que
ele muda de ideia. A ciência muda de ideia, sim — tem que mudar, quando está
diante das melhores evidências", diz a cientista, doutora em microbiologia
pela Universidade de São Paulo (USP).
"Isso às
vezes não transmite a segurança que as pessoas gostariam de ter, de uma verdade
absoluta."
Entre os
médicos, inclusive, há um bordão que reflete essa mutabilidade do conhecimento
e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de se saber tudo: "na medicina, nem
nunca, nem sempre".
Noções básicas sobre o conhecimento científico sugeridas pelos
entrevistados
Ciência: Vamos entender aqui como uma organização metódica e racional de
fenômenos do mundo, sejam naturais ou sociais. Ela também tem raízes históricas
— apesar de ter descobertas e métodos que remontam à Antiguidade e com origem
em várias parte do mundo, a ciência como conhecemos hoje ganhou corpo e maior
importância, inclusive social e política, na Europa a partir do século 17.
Hipóteses: Um esquema genérico do método científico, inclusive ensinado nas
escolas, normalmente segue uma ordem parecida com esta: perguntas>hipóteses>teste>resultado.
Perguntas costumam vir da simples observação, explica Ayanda Lima, bióloga e
professora de ensino médio em Goiás. Pode ser algo simples, como observar que
as folhas de uma árvore são verdes e perguntar: por que elas têm essa cor? Daí
vêm as hipóteses, possíveis explicações a serem averiguadas, como: será que
elas ficam verdes porque tem algo dentro das plantas que as deixa assim?
Teste, método e
resultados: Em seguida, vem um teste, que em alguns casos é um
experimento em laboratório — mas nem sempre, dependendo da área ou objeto de
pesquisa (a antropologia, por exemplo, desenvolveu ao longo tempo o método
clássico da etnografia). O teste exige um método planejado e, de preferência,
avaliado, aceito e capaz de ser repetido por outros cientistas. No exemplo das
folhas verdes, um teste seria macerá-las e depois analisar, com microscópio,
seus componentes. Spoiler! Como o acúmulo de pesquisas já nos mostrou, um teste
como esse revela que há organelas nas células vegetais, os cloroplastos, que
dão essa coloração às plantas.
Assim, depois
de um teste, pode haver um resultado satisfatório como esse — que, com o
acúmulo de pesquisas semelhantes, forma um conjunto de evidências; mas também
podem vir resultados que não correspondem à hipótese inicial, no entanto
contribuem também para se pensar em pesquisas com novos caminhos.
Teorias: Trata-se de um conjunto de evidências maior, não apenas amplamente
aceito pela comunidade científica, mas uma referência para ela — como a Teoria
do Big Bang para a criação do Universo e a Teoria da Evolução na biologia. As
teorias conseguem explicar várias situações e exemplos relacionados. Por mais
difícil que seja, teorias podem eventualmente ser superadas.
Para Jarbas
Barbosa, médico brasileiro e diretor-assistente da Organização Pan-Americana de
Saúde (Opas), braço regional da OMS nas Américas, mudar diante de melhores
evidências científicas é "absolutamente esperado" — ainda mais em uma
pandemia como a atual, causada por uma doença nova como é a covid-19.
Um homem usando uma máscara facial contra a propagação do novo
coronavírus tem sua temperatura medida no prédio do Sejong Arts Group em Seul,
na Coreia do Sul, nesta terça-feira (21) — Foto: Lee Jin-man/AP
"Estamos
tratando de uma doença nova, completamente diferente de qualquer coisa que a
gente viu antes nos últimos 100 anos na saúde pública. Com essa característica
de disseminar rápido e produzir muitos casos graves, é a primeira que temos em
100 anos", destaca Barbosa, médico sanitarista e epidemiologista e doutor
em saúde coletiva pela Universidade de Campinas (Unicamp).
"Claro
que em uma situação como essa, adaptar, mudar recomendações, é absolutamente
esperado. O inesperado seria o contrário. Se você pegar o que se dizia em
janeiro e o que se diz agora, quem não mudou ou adaptou foi só teoria da
conspiração — eles continuam pensando exatamente igual. Mas quem se baseia em
ciência viu em seis meses de pandemia coisas absolutamente inovadoras."
O
diretor-assistente da Opas menciona como exemplos teorias da conspiração de
influência da China na OMS, acusação frequente partindo dos EUA; ou vice-versa.
Ele destaca, entretanto, que a estrutura da organização "garante decisões
técnicas e proteção à pressão de países em particular" — como a existência
de um setor de controle de qualidade das recomendações e estudos produzidos
pela entidade; a exigência de declaração de conflito de interesses em reuniões
de alto escalão; uma rede com mais de 800 centros colaboradores em todo o
mundo, como universidades e secretarias de saúde no Brasil; e a própria assembleia
mundial da saúde, com mais de 190 países com votos equivalentes.
"Às vezes
vejo comentários como se a OMS fosse uma força de ocupação, que poderia ter
entrado na China… Isso é ficção científica. Nenhum país vai abrir mão da sua
soberania para nenhum organismo internacional", afirma. "No limite do
que é possível, a OMS tem mecanismos de proteção contra influências bem
estabelecidos."
Apesar de a
entidade afirmar sua independência, isso não foi suficiente para impedir que o
presidente Donald Trump anunciasse a retirada dos EUA da OMS, acusando-a de
sofrer influência desmedida da China e de ter falhado no combate ao
coronavírus. Entretanto, apesar de ter sido formalmente iniciada, a saída dos
Estados Unidos da OMS não necessariamente vai se concretizar.
Mudança de recomendação sobre uso generalizado de máscaras
A OMS
classificou a crise sanitária causada pelo coronavírus como uma pandemia —
disseminação mundial e simultânea de uma nova doença — em março. Desde então, a
organização, um organismo multilateral vinculado às Nações Unidas, mudou por
exemplo sua posição em relação ao uso generalizado de máscaras contra a
covid-19. Até junho, a entidade afirmava não haver evidências científicas
suficientes para dizer que pessoas saudáveis deveriam usar o item — que
deveria, sim, ser prioridade para pessoas doentes e profissionais de saúde.
Tedros Adhanom Ghebreyesus durante coletiva da OMS em fevereiro de 2020
— Foto: Denis Balibouse/Reuters
Mas, naquele
mês, a OMS anunciou que, mediante novas evidências científicas avaliadas por um
comitê e a consideração de preferências individuais e fatores sociais, como a
dificuldade de realização do distanciamento físico, o uso disseminado de
máscaras passou a ser encorajado.
Mesmo assim, o
documento que respaldou a novidade é modesto em relação ao uso de máscaras como
medida de proteção: "No momento, o uso generalizado de máscaras por
pessoas saudáveis em contextos comunitários ainda não é respaldado por
evidências científicas diretas ou de alta qualidade, e existem possíveis
benefícios e riscos a serem considerados (...)".
Jarbas Barbosa
afirma que, em todo esse período, a organização manteve uma posição: a
preocupação de apontar que apenas o uso de máscara é insuficiente como medida
preventiva.
"Do que
sabíamos até o começo do ano, não havia muitas evidências sobre o uso de
máscaras — no caso da influenza, as evidências existentes falavam que ela
praticamente não tinha muita importância. Agora, já temos evidências de que em
determinadas circunstâncias, principalmente em ambientes com aglomeração quase
natural, como transporte público e lojas, o uso de máscara pode ter um papel.
Então, várias coisas surgiram neste período", lembra Barbosa, que já foi
presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) entre 2015 e 2018.
"Mas
mesmo hoje, quando a gente faz revisão sobre as máscaras, não encontra
evidências fortes para recomendar o uso. Continuamos com a preocupação de que
as pessoas achem que só com aquilo estão protegidas. O mau uso de máscara — a
pessoa que toca muito, que faz o uso da mesma máscara uma semana seguida — pode
ser até um fator agravante. Nas últimas recomendações, a OMS sugere que os
países que estão adotando (a orientação) façam estudos para que possamos
construir evidências mais robustas."
Como também
mostrou a BBC News Brasil em junho, uma fala da epidemiologista Maria Van
Kerkhove durante coletiva de imprensa da OMS gerou confusão no público e
reações de especialistas apontando que a fala foi mal colocada.
Van Kerkhove
afirmou que era "muito raro" que pessoas assintomáticas transmitissem
a doença, mas depois a organização precisou esclarecer que ela estava se
referindo a pessoas realmente assintomáticas — não incluindo pessoas
pré-sintomáticas, por exemplo. O posicionamento oficial da organização diz que
revisão da literatura científica mostra que os casos assintomáticos poderiam
variar entre 6% e 41% dos casos de contaminação — ou seja, ainda há grande
incerteza sobre qual a proporção de casos assintomáticos entre os contaminados.
Cloroquina, Lancet e OMS
Outro episódio
de grande repercussão nesta pandemia envolvendo a OMS foi relacionada aos
estudos com a cloroquina e hidroxicloroquina — um derivado mais brando da
primeira. Estes medicamentos são usados hoje, respectivamente, para tratar
malária; e, no caso da hidroxicloroquina, reumatoide, lúpus e outras doenças
autoimunes.
Imagem mostram cloroquina manipulada em laboratório — Foto: Dirceu
Portugal/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Inicialmente,
a hidroxicloroquina foi escalada para o projeto Solidarity, da OMS, que está
conduzindo estudos clínicos com potenciais tratamentos para a covid-19 em
diversos países. No entanto, a organização anunciou em julho que, seguindo
recomendação do conselho diretivo do projeto, os testes com a droga foram
definitivamente descontinuados.
"Resultados
parciais (do projeto Solidarity) comprovaram o que vários outros outros estudos
consistentes já tinham mostrado: em pacientes hospitalizados, a hidroxicloroquina
não traz nenhum benefício e tem um risco, ainda que raro, de produzir arritmia
cardíaca. Em um estudo, você não pode piorar — medicamente, é inaceitável. Este
comitê diretivo tem o papel de revisar tudo o que é informação, como em relação
à segurança (do medicamento). Então, não é que a OMS 'mudou de opinião' — ela
agiu como deveria agir", afirma o diretor-assistente da Opas.
Mas, antes que
a OMS decidisse definitivamente retirar a hidroxicloroquina do Solidarity,
houve uma grande pedra no meio do caminho envolvendo outra marca de renome — a
revista científica Lancet, considerada o segundo periódico com maior fator de
impacto (métrica composta por vários indicadores da influência de uma
publicação científica) no mundo, atrás apenas do New England Journal of
Medicine, segundo o relatório Journal Citation Reports 2018, da consultoria
Clarivate Analytics.
Em 22 de maio,
foi publicado no Lancet um artigo do tipo observacional (entenda a definição
abaixo) que afastou os benefícios do tratamento de covid-19 com a cloroquina e
hidroxicloroquina usando informações de 96 mil pacientes em vários países,
coletadas em uma base de dados da empresa Surgisphere.
Logo após a
publicação, a OMS anunciou a suspensão — naquele momento, ainda temporária — do
estudo com hidroxicloroquina no Solidarity.
Entretanto, no
início de junho, veio um novo contratempo: os autores solicitaram a retratação
de seu próprio artigo ao Lancet, um procedimento raro mas previsto nos
protocolos de periódicos renomados quando há algum tipo de má conduta, fraude
ou erro detectado.
Após a
publicação em maio, outros pesquisadores não envolvidos no estudo cobraram mais
detalhes sobre os dados da Surgisphere, ao que os autores contrataram auditores
independentes para atender à cobrança dos colegas. No entanto, a empresa se
recusou a fornecer o conjunto de dados completo, pois isso violaria contratos
com clientes e o compromisso com a confidencialidade.
Assim, os
autores escreveram ao Lancet que não poderiam garantir mais a qualidade dos
dados primários — os dos milhares de pacientes envolvidos em testes com a
cloroquina e hidroxicloroquina.
Para a
matemática Tatiana Roque, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o episódio do Lancet reflete um
descompasso que pode acontecer entre a pressão por respostas, como vemos na
atual pandemia; e o tempo "natural" da ciência, que por vezes precisa
de anos, décadas e até séculos para avançar.
"O que
aconteceu com o Lancet chama a atenção justamente porque, por conta da pressa,
alguns critérios (de rigor científico) não foram observados: a origem e
confiabilidade dos dados. Se para dar respostas rápidas a ciência queimar
etapas, atropelar a temporalidade necessária para gerar resultados sólidos,
pode acabar sendo pior — quando um resultado precisa ser revisto, por
exemplo", avalia Roque, também doutora em história das ciências e
epistemologia.
Natalia
Pasternak concorda. Ela avalia que potenciais remédios e vacinas, que em
condições normais podem levar anos e até décadas para serem desenvolvidos,
testados e aprovados para uso, estão no caso da covid-19 já sendo acelerados a
uma velocidade talvez nunca antes vista. E isto, às vezes, beira a riscos.
"Nem
sempre dá tempo de fazer padrão ouro (ou máximo) — inclusive muitos estudos
estão sendo feitos sem duplo cego, sem placebo. Pela pressa, a gente já está
perdendo o rigor. Mas a gente não pode perder tanto o rigor a ponto de a
resposta ser inútil", aponta a bióloga.
"Na área
de vacinas, há muita preocupação com a pressa. Porque com vacina, você não pode
errar — milhões de pessoas vão receber as doses. E elas já estão sendo
desenvolvidas em tempo recorde, principalmente por ter muita gente trabalhando
junto. A gente não pode se dar o luxo de errar, porque estamos vivendo um
ambiente mundial de desconfiança das vacinas."
O rigor
exigido hoje de vacinas e remédios, lembra Pasternak, não existia quando a
penicilina foi usada na Segunda Guerra Mundial — este é um exemplo frequente
apresentado como argumento por quem defende o uso da cloroquina contra a
covid-19, fazendo uma analogia entre a urgência do conflito bélico com a
pandemia do coronavírus.
"Gosto
muito deste exemplo da penicilina. Naquela época, realmente, nem se fazia
estudo clínico controlado. A penicilina foi testada em camundongos, mas o
tamanho do efeito foi tal que não poderia ser ignorado — simplesmente, todos os
animais tratados com penicilina sobreviveram, e todos que não foram, morreram.
Se você tem uma pessoa entre a vida e a morte e um remédio que funcionou 100%
em camundongos, manda ver. Não podemos esquecer, porém: quantos soldados
morreram porque eram alérgicos a penicilina, como foi descoberto depois?",
questiona.
"E, para
a covid-19, pode não haver tratamento específico, mas ninguém está jogado à
própria sorte. Existe protocolo de atendimento, com suporte de oxigênio,
ventilação mecânica, entre outros", diz, criticando a analogia da atual
pandemia com uma guerra.
Como são feitos os estudos na área médica
As definições
se baseiam em um guia da Academia de Ciências Médicas do Reino Unido feito com
o objetivo de melhorar a comunicação entre instituições de pesquisa e
jornalistas, trazendo um sistema de classificação de tipos de pesquisa e suas
explicações — documento que usamos frequentemente aqui, na BBC News Brasil.
Estudo sobre coronavírus — Foto: AP Photo/Kirsty Wigglesworth
Estudo
observacional: Autor investiga se X está correlacionado a Y, não sendo capaz de
demonstrar causa e efeito pois não há manipulação de variáveis — diferente de
um estudo do tipo RCT, por exemplo.
Estudo clínico
randomizado controlado, o RCT (randomised controlled trial, em inglês):
Experimento que envolve pacientes (clínico), divididos aleatoriamente
(randomizado) em um grupo que recebe o tratamento testado; e um grupo de
controle, que não recebe o item testado — mas sim um placebo ou tratamento
diferente. Experimentos assim podem ter ainda a característica de ter
"duplo cego", quando nem pesquisadores nem participantes sabem quem
está em qual grupo. Estudos RCT são considerados o "padrão ouro" em
pesquisas com remédios e vacinas.
O papel dos 'experts' e da mídia
Tatiana Roque,
que além de pesquisadora tem também passagem pela política, tendo sido
candidata a deputada federal em 2018 pelo PSOL, acrescenta que o caso da
cloroquina ensina mais uma coisa: a confusão entre ciência, política e experts
— especialistas que frequentemente opinam na mídia e aconselham governos para
embasar decisões.
Pesquisadora de Oxford faz análise da vacina desenvolvida para o
coronavírus, em 25 de junho — Foto: John Cairns, University of Oxford via AP
"A
cloroquina mostrou uma confusão entre esses três âmbitos, porque eles têm temporalidades
muito diferentes. Era completamente impossível ter resultados sobre a
cloroquina a tempo do que exigia a pressão política. Mas acabou sendo muito
urgente ter resultados rápidos, porque presidentes como Trump e Bolsonaro
estavam defendendo o remédio para tratamento da covid-19. Os protocolos de
estudos clínicos foram atropelados", diz Roque, que aponta, neste caso, o
médico francês Didier Raoult no papel do expert — que vem defendendo o uso da
cloroquina no tratamento de covid-19.
"Muitas
vezes, um especialista individualmente vai defender pontos que não são
validados pela comunidade científica. Não adianta colocar um especialista
contra o outro como se fossem opiniões pessoais. É preciso pensar nas
instituições e na comunidade que validam este conhecimento."
Publicações científicas
Peer review, ou
revisão dos pares: Etapa comum antes da publicação de um artigo
em periódico, em que o material é avaliado de forma independente por
pesquisadores da área, que recomendam sua rejeição ou aceitação — muitas vezes,
nesse caso, com pedidos de alteração. A independência é garantida, por exemplo,
por plataformas de envio de trabalhos que impedem a identificação dos autores e
avaliadores.
Preprint, ou
pré-publicação: Como está sendo visto frequentemente na atual
pandemia, há plataformas na internet para envio de preprints, ou seja, artigos
que não passaram ainda pelo processo completo de avaliação dos pares e
publicação em um periódico. Segundo a bióloga Natalia Pasternak, os preprints
têm uma função de comunicação entre os cientistas — para que uns saibam o que
outros estão produzindo, por exemplo, podendo levar a colaborações —,
entretanto muitas vezes tendo o objetivo desviado quando lidos e divulgados
pela mídia e pelo público leigo.
Conflitos de
interesse: Periódicos renomados costumam ter regras para
tentar blindar pressões como, por exemplo, a de uma empresa farmacêutica
interessada que uma droga em teste tenha bons resultados e, por outro lado,
efeitos colaterais mostrando-se insignificantes. Um dos principais mecanismos
para isso é a declaração de conflitos de interesse, um campo preenchido por
autores e publicado no artigo em que estes apresentam eventuais financiamentos
recebidos para pesquisa, expondo o nome dos financiadores e a forma com que
eles interferiram no estudo.
A participação
e validação entre colegas, na comunidade científica, acontece a todo momento na
rotina de um pesquisador. Para se entrar em um mestrado ou doutorado, e depois,
para defender uma dissertação ou tese, há sempre bancas de pesquisadores para
avaliar o trabalho do candidato. O mesmo acontece para alguém concorrendo a uma
vaga de professor em alguma universidade. Um artigo publicado em periódico ou
apresentado em um congresso frequentemente precisa passar antes pela avaliação de
pares.
Bancas, congressos, revisão de pares... a validação 'comunitária' do
conhecimento faz parte da rotina de um cientista — Foto: BBC/REPRODUÇÃO
E, em todos
tipos de publicação, de um artigo a uma tese, são presenças certas o chamado
"estado da arte" — a apresentação de estudos anteriores naquela área
ou assunto — e as referências bibliográficas, uma forma de destacar e reforçar
pesquisas já feitas por outros estudiosos.
Ao falar da
diferença entre pesquisadores atuando individualmente ou em
"comunidade", Roque menciona um vídeo que é um queridinho entre
cientistas e pessoas que trabalham com divulgação científica — um episódio do
programa Last Week Tonight, do comediante britânico John Oliver, em que ele
brinca com a proporção de cientistas que concordam haver evidências do papel
humano nas mudanças climáticas, versus os chamados negacionistas.
O apresentador
está na bancada com um representante de cada "lado" quando, de
repente, em nome de um "debate estatisticamente representativo sobre as
mudanças climáticas", convida mais 96 cientistas que reconhecem o papel
humano nas mudanças climáticas — ou seja, mostrando que não há dois lados com
mesmo peso sobre a questão, mas sim a preponderância de uma mesma avaliação
entre os cientistas.
A cientista
diz que a mídia deve estar atenta à colocação dos experts e também para a
cobertura de ciência a longo prazo.
"Espera-se
dos experts que eles enunciem certezas — ninguém chama um especialista para
falar 'não sei' na TV. Mas é mais interessante que o especialista seja aquele
que ajude a refletir, e menos alguém que vá dar respostas", sugere Roque.
"Também é
importante que a mídia faça um trabalho de divulgação científica de longo prazo
— e não apenas na hora da pandemia. É importante passar para o público o gosto
pela ciência, mostrar que ela tem uma história longa — em vez da afirmação de
certezas absolutas, o que passa uma imagem às vezes arrogante."
"Na
verdade, a especificidade da ciência é ter métodos para lidar com as
incertezas. Ela não elimina a incerteza. Método confiáveis vão sendo formados
ao longo do tempo, validados e protocolados por uma comunidade ampla; seus
resultados podem ser reproduzidos no ambiente ou em outras pesquisas. Mas a
ciência não enuncia certezas absolutas."
Natalia
Pasternak também brinca que não existe cientista "a favor ou contra"
a cloroquina — "o que tem são as evidências", diz.
Cientistas criam banco de dados para ajudar a desenvolver vacinas —
Foto: Rede Globo/Reprodução
"Se for
um bom cientista, ele vai saber analisar essas evidências", aponta
Pasternak, que aproveita para recomendar, para cientistas ou não, o livro O
mundo assombrado pelos demônios, do biólogo e astrofísico Carl Sagan — segundo
ela, "um dos melhores livros que ensina a pensar de forma
científica".
Parece mas não é
Correlação: Trata-se de uma conexão entre duas coisas, mas não necessariamente com
causalidade. "São eventos que acontecem de forma concomitante e dão a
impressão de causa e efeito, principalmente se uma coisa acontece antes da
outra — como observar que o galo canta logo antes do nascer do sol e deduzir
que o sol só nasce porque o galo cantou", brinca Natalia Pasternak, dando
o exemplo de uma correlação que poderia equivocadamente ser tomada como uma
relação de causalidade.
Ela, aliás,
recomenda o site e um livro intitulados Spurious Correlations, ou em português,
"correlações espúrias". Seu autor, Tyler Vigen, ficou famoso ao criar
diversos gráficos divertidos com aparente causalidade, mas que não têm nada a
ver, como o número de pessoas afogadas em piscinas relacionado ao número de
filmes em que Nicolas Cage atuou; e a taxa de divórcios no Estado do Maine
associada ao consumo de margarina.
Causalidade: Aparentemente, é algo simples — um evento X causa Y, ou seja, Y é uma
consequência de X. Mas, para ir além da correlação, é preciso coletar dados e
fornecer evidências descrevendo esta conexão de causa e efeito. Por exemplo, há
várias correlações entre tipos de câncer e estilo de vida, como na alimentação,
prática de esportes e estresse. Mas como provar causalidade?
30 de julho - Homem fuma um cigarro ao lado de mural de outro homem com
máscara protetora, em meio ao surto de coronavírus (COVID-19), em Quezon City,
Manila, Filipinas — Foto: Eloisa Lopez/Reuters
No caso do
tabagismo e câncer de pulmão, foi assim: nos EUA, começou-se a observar que a
curva de cigarros fumados por pessoa no país acompanhava o padrão da taxa de
mortes por câncer de pulmão. Quando uma crescia, a outra também. Depois, isso
foi associado a outras evidências, como a de que pelo menos 70 substâncias
químicas presentes na fumaça do cigarro causaram câncer em cobaias no
laboratório ou em humanos. Assim, uma conexão de causalidade foi demonstrada.
Jarbas
Barbosa, ao mesmo tempo, considera problemática a postura de alguns médicos no
Brasil. O sanitarista conta ter se surpreendido, na pandemia, com médicos
brasileiros postando protocolos de tratamento no Facebook ou vídeos no
Instagram recomendando medicamentos ainda não validados pela comunidade
científica.
Como mostrou
recentemente a BBC News Brasil, entidades médicas no país estão preocupadas com
esse comportamento de profissionais nas redes sociais na atual pandemia de
covid-19.
"Deveria
estar mais presente no currículo de médicos brasileiros a separação do que é
evidência do que é informação anedótica", conclui Barbosa.
A ciência está ao alcance de todos
Mas, antes do
conhecimento especializado que se obtém nas faculdades, há um lugar em que o
método científico pode e deve ser ensinado: as escolas.
Doutora em
biologia celular, a professora Ayanda Lima bem sabe disso — ela dá aulas de
ciências no ensino fundamental e de biologia no ensino médio e já foi destaque,
junto com seus alunos do Centro de Ensino em Período Integral (Cepi) Dom
Veloso, escola estadual em Itumbiara (GO), em premiações nacionais para
projetos científicos em escolas. No caso de trabalhos desenvolvidos sob sua
orientação, já foram destaque em prêmios por exemplo um tijolo ecológico de
alta durabilidade e um biofertilizante feito com soro de leite bovino
reutilizado.
"Não é
clichê, não é utopia: a ciência realmente é para todos", disse à BBC News
Brasil, por telefone.
Professora lembra que a observação, uma capacidade humana, é um primeiro
passo para o conhecimento — Foto: EPTV/Reprodução
"A
metodologia científica pode ser aplicada por qualquer pessoa, independentemente
da faixa etária e classe social. Todo mundo é capaz de observar uma
problemática e levantar hipóteses", afirma, lembrando que o conhecimento
antigo e popular também pode ser científico.
"Por
exemplo, quem cria aves e coloca uma galinha poedeira para cruzar com um galo
bom, buscando uma linhagem muito boa — a pessoa observou, experimentou e viu
que dava bons resultados. Isso é ciência. Ou quando você pergunta para uma
pessoa se a mandioca dela cozinha bem e pede uma rama — ou seja, eu quero uma
reprodução de um produto igual àquele."
Das salas de
aula, a professora aprendeu que na verdade é importante sair delas — para que o
aprendizado dos livros se conecte com a observação e seja impulsionado pela
curiosidade. Isso pode acontecer tanto em laboratórios quanto em uma simples
volta na área externa da escola, onde tudo é passível de observação — de
plantas a formigas e cupins.
O antropólogo
Gersem Baniwa, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), também lembra do
valor do conhecimento não só dito popular — mas também daqueles saberem que vêm
de outros lugares, povos e tempos algo distantes da origem europeia e racional
que a ciência dominante carrega.
Sua posição é
de quem vive esse encontro — e às vezes desencontros — na pele.
"A
ciência de hoje, em grande medida, está fundamentada no racionalismo
cartesiano, em uma visão positivista do homem. Isso de alguma maneira
condiciona as possibilidades da própria ciência. Podemos perceber isso
sobretudo quando vivemos outras lógicas, como é meu caso: estudei a ciência
'eurocêntrica' para me formar, mas também guio minha percepção do mundo com a
lógica indígena, do meu povo Baniwa", conta o cientista social, graduado
em filosofia e mestre e doutor em antropologia pela Universidade de Brasília
(UnB).
"Sim,
claro, a ciência ocidental, eurocentrada, tem sua importância — até porque suas
conquistas são gigantescas, dignas de comemoração civilizatória, não tenho a
menor dúvida", diz, mencionando seu contato, nos últimos anos, também com
filosofias orientais, negras e neoafricanas.
"Mas
quando percebemos essa pluralidade de perspectivas, acho fantástico: é isso que
forma a grande ciência, esta sim a ciência universal. Se pensássemos na
complementaridade entre elas, quem sabe ganharíamos velocidade para compreender
mais o mundo."
O antropólogo
exemplifica como a perspectiva de seu povo difere da visão dominante de uma
doença como a covid-19 — enquanto esta, representada pela medicina ocidental,
tende a focar no elemento biológico (o vírus em si), a perspectiva indígena é
mais holística ao considerar fatores espirituais e comunitários do adoecimento.
E, ainda que
reconheça que a ciência eurocentrada formou um método que se destaca por seu
rigor, sobretudo ao se fechar em experimentos dentro de laboratórios, Baniwa
lembra que saberes milenares também têm características dessa ciência
dominante.
"Como o
pajé chega ao seu domínio de conhecimento? São décadas (de aprendizado). O
saber indígena de modo geral é resultado de longos anos de história — de observação,
experimentação, comprovação, contrapontos. Os índios conhecem hoje plantas que
matam — são resultado de experimentações", aponta.
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/08/01/mascaras-cloroquina-correcao-o-que-idas-e-vindas-na-pandemia-ensinam-sobre-a-ciencia.ghtml
Roda Viva | Natalia Pasternak | 29/06/2020
No Roda Viva, a jornalista Vera Magalhães
recebe a bióloga e pesquisadora Natalia Pasternak.
Fundadora e primeira presidenta do Instituto
Questão de Ciência, Natalia Pasternak é doutora em microbiologia pela
Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP e autora do livro 'Ciência no Cotidiano'. A bióloga ainda é
publisher da revista Questão de Ciência e escreve para o jornal O Globo, para a
revista The Skeptic UK e para o Genetic Literacy Project. No último mês,
Natalia deu diversas declarações alertando para o risco do uso da cloroquina e
da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 e, com outros pesquisadores,
assinou um documento contra a liberação do medicamento.
https://www.youtube.com/watch?v=o7Gu4sMXTFo
Constitucionalidade na prática jurídica
Treino 14
ENUNCIADO
Questão 3
O Governador do Estado “Y” propôs ADIn em face de lei federal que viola texto expresso da Constituição Federal. No decorrer do procedimento nova lei federal é promulgada revogando expressamente a lei discutida em ADIn. Diante da situação hipotética apresentada explique o que ocorre com o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade.
RESPOSTA
Destacando os principais termos do enunciado
. Governador do Estado “Y” propôs ADIn em face de lei federal;
. Violação de texto expresso da Constituição;
. Nova lei federal é promulgada revogando expressamente o que é discutido em ADIn.
Temas envolvidos no enunciado
Controle de constitucionalidade; revogação; objeto da ADIn;
Questionamentos
Direito material ou processual?
Ambos. A questão é mista.
Incide legislação especial?
Sim. Lei 9.868/1999 (Ação de Controle Concentrado).
O caminho da resposta
Artigos relacionados
Art. 102, I, a, da CF/1988 – ADI/ADC;
Lei 9.868/1999 – Ações de Controle de Concentrado;
Art. 2.º do Dec.-lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB).
CAMINHO DA PESQUISA
1. O termo “revogação” de norma utilizado pelo enunciado implica conhecimento prévio sobre teoria geral do direito, especialmente, sobre a norma jurídica.
2. O termo “revogação” remeterá ao art. 2.º do Dec.-lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB).
3. Deve-se lembrar, ainda, acerca dos institutos de processo civil relacionados ao objeto, às partes e à causa de pedir do processo suscitados pela doutrina processualista.
ELABORANDO A RESPOSTA
- A resposta à questão consiste em analisar se há ou não perda do objeto da ADIn com a revogação da lei por norma superveniente. No caso, uma vez que a ADIn tinha um determinado objeto, a retirada dela do ordenamento jurídico faz com que não haja mais motivo para se declará-la inconstitucional. Há a chamada prejudicialidade da ação (vide ADIn 3.209/SE no STF).
Gabarito
Conforme a jurisprudência do STF, a revogação da norma impugnada acarreta a perda de objeto da ADIn (prejudicialidade da ação). Não há mais norma geral e abstrata a ser impugnada, razão pela qual a ADIn não é instrumento hábil para eventuais debates sobre os efeitos daquela norma.
Fonte: ORGANIZAÇÃO ERIVAL DA SILVA OLIVEIRA; GUSTAVO GOLDZVEIG; PAULO HENRIQUE LÊDO PEIXOTO – REVISÃO E TREINO – CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL – 2.ª FASE OAB – COORDENADORES .Darlan Barroso .Marco Antonio Araujo Junior .Marcelo Romão Marineli 2.ª edição revista e atualizada THOMSON REUTERS REVISTA DOS TRIBUNAIS
Prova Final - Controle de Constitucionalidade
Programa Prova Final (TV Justiça). Nesse
programa a professora Nathalia Masson aborda o tema Controle de
Constitucionalidade. O programa tem duração de aproximadamente 55 minutos e
está dividido em três blocos. O primeiro bloco, denominado Tema do Dia, o
professor faz uma exposição do tema abordado; o segundo bloco é o Pergunte ao
Professor, no qual são respondidas perguntas de alunos; o terceiro bloco é o X
da questão, que responde e analisa duas questões que já caíram no Exame da
Ordem dos Advogados do Brasil.
Você poderá acessar o vídeo diretamente em
nossa plataforma de estudos. Nessa plataforma estão integrados vídeo e editor
de texto no qual você poderá ir fazendo suas anotações enquanto assiste à aula.
https://www.youtube.com/watch?v=geZjds80-G0
Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais e a
integração das ciências
Epidemiología, Ciencias Humanas y Sociales y la
integración de las ciencias
Dina Czeresnia
Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde. Escola
Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Correspondência | Correspondence
RESUMO
O objetivo do artigo foi abordar o problema da integração entre epidemiologia
e ciências humanas e sociais no contexto da integração das ciências. A
epidemiologia, anteriormente ao surgimento da medicina moderna, apresentava uma
cosmovisão que concebia processos de saúde e doença integrados a aspectos
geográficos, históricos, econômicos e sociais. A dissociação que marcou seu
desenvolvimento posterior foi decorrente das concepções de corpo e doença
construídas pelas ciências da vida e medicina moderna. Para pensar a integração
entre ciências humanas e sociais e epidemiologia, na sua ligação com a
biologia, é necessário interrogar a cisão entre natureza e cultura, inscrita no
desenvolvimento das ciências. O conceito de normatividade vital, proposto por
Canguilhem, e a discussão de Bohr sobre as relações entre física atômica, biologia
e unidade do conhecimento são tratados com a perspectiva de refletir sobre
desafios contemporâneos da integração entre as ciências.
Descritores: Filosofia. Ciência. Ciência, Tecnologia e Sociedade. Ciências da Saúde.
Epidemiologia. Ciências Sociais.
RESUMEN
El objetivo del artículo fue abordar el problema de la integración entre
epidemiología y ciencias humanas y sociales en el contexto de la integración de
las ciencias. La epidemiología, anteriormente al surgimiento de la medicina
moderna, presentaba una cosmovisión que concebía procesos de salud y enfermedad
integrados a aspectos geográficos, históricos, económicos y sociales. La
disociación que marcó su desarrollo posterior fue resultado de las concepciones
de cuerpo y enfermedad construidas por las ciencias de la vida y medicina
moderna. Para penar la integración entre ciencias humanas y sociales y
epidemiología, en su relación con la biología, es necesario interrogar la
ruptura entre naturaleza y cultura, inscrita en el desarrollo de las ciencias.
El concepto de normatividad vital, propuesto por Canguilhem, y la discusión de
Bohr sobre las relaciones entre física atómica, biología y unidad de
conocimiento son tratados con la perspectiva de reflexionar sobre los desafíos
contemporáneos de la integración entre las ciencias.
Descriptores: Filosofía. Ciencia. Ciencias de la Salud. Epidemiología. Ciencias
Sociales. Ciencia, Tecnología y Sociedad.
A epidemiologia tem como objeto a distribuição e os determinantes dos
processos de saúde e doença em populações humanas. Sua história não teve um
desenvolvimento linear, pois diversas concepções teóricas e construções
técnicas, permeadas por visões de mundo, posicionamentos sociais e políticos,
contribuíram na sua constituição.
A profunda ligação entre condições históricas, geográficas, sociais e o
surgimento das doenças esteve presente na origem do pensamento epidemiológico
moderno. Estudos epidemiológicos contemporâneos ao período do nascimento do
conhecimento médico moderno estiveram conformados por uma teoria cuja
procedência é anterior ao processo de fragmentação do conhecimento iniciado no
século XVII. Na chamada teoria da constituição epidêmica, predominante até
meados do século XIX, diferentes aspectos da realidade não se dissociavam em
uma perspectiva analítica, baseada em epistemologias distintas. Nela, a herança
hipocrática manteve uma forma de pensamento sintético no qual a epidemia e a
doença são compreendidas como desequilíbrio da harmonia da natureza, percebida
como totalidade que ultrapassa a dimensão geográfica.8
No desenvolvimento histórico da disciplina, a cosmovisão da teoria da
constituição epidêmica manteve-se presente e, com base em distintos conceitos,
a idéia de resgatar uma abordagem integrada, mesmo minoritária, foi uma
constante. Essa característica da epidemiologia tem um significado importante
na contemporaneidade, quando o valor da elaboração sintética torna-se mais
pronunciado no pensamento científico e social.8
A integração está na própria natureza do objeto da epidemiologia. Ao
mesmo tempo, a dissociação marcou o seu desenvolvimento, conseqüente ao
processo de constituição das ciências modernas e à fragmentação do conhecimento
sobre o homem e suas relações.
O presente artigo teve por objetivo abordar o problema da integração
entre epidemiologia e ciências humanas e sociais considerando que ele está
enraizado na questão mais ampla da integração entre as ciências. O problema da
integração entre epidemiologia e ciências humanas e sociais não pode ser
resolvido sem considerarmos a questão das ciências da natureza em relação às
ciências do homem. O homem é biológico e social, é orgânico e psíquico, é
físico-químico e simbólico. Qual a integração possível sem pensarmos a profunda
cisão entre natureza e cultura presente na raiz do desenvolvimento da ciência
moderna?
As ciências da vida surgiram no mesmo período que as ciências humanas e
sociais. Segundo Foucault, vida, assim como trabalho e linguagem foram
categorias introduzidas a partir da virada do século XIX, quando ocorreu a
segunda descontinuidade na epistémê da cultura ocidental e que
marcou o limiar da modernidade. Para o autor, foi no contexto dessa
descontinuidade que o homem tornou-se uma figura do saber.9
As ciências da vida e as ciências humanas e sociais configuraram-se em
bases epistemológicas distintas. Grosso modo, as ciências da vida
estabeleceram-se no estudo das estruturas visíveis do corpo e buscaram sua
identidade em consonância às ciências da natureza; as ciências humanas e
sociais estiveram orientadas ao estudo de fenômenos mediados pela linguagem,
por relações intersubjetivas, econômicas e sociais.
A epidemiologia esteve estreitamente articulada ao desenvolvimento da
medicina e as ciências da vida foram a base epistemológica deste. Ao mesmo
tempo, está na interface entre saúde e sociedade, configurando-se como
disciplina ligada à medicina que particularmente mantém um vínculo com a
dimensão social.13
As circunstâncias desse desenvolvimento fizeram com que a epidemiologia
se tornasse caudatária da perspectiva mecanicista da medicina na compreensão do
corpo humano e da idéia de que as ciências tratam objetos passiveis de serem
conhecidos predominantemente mediante a linguagem matemática. Do ponto de vista
da formação de recursos humanos e do desenvolvimento das técnicas de
investigação, houve a propensão de progressivo afastamento da disciplina em
relação ao conhecimento que se configurou como especialidade do campo das ciências
humanas e sociais.1-3
A epidemiologia tende a não trabalhar conceitos das ciências humanas e
sociais com a complexidade que lhes é dada nos campos de origem11 e
a quantificar as relações entre saúde e sociedade. Aspectos econômicos, sociais
e culturais são abordados em modelos como componentes de conjuntos causais cuja
importância no processo seria conhecida por meio da mensuração. A articulação
entre epidemiologia e ciências sociais pendeu a ser reduzida a um plano
instrumental de atributos, em detrimento de elaboração teórica subjacente às
relações entre fenômenos socioeconômicos e sanitários.4
Essa tendência trouxe para todas as vertentes da disciplina,
especialmente para aquelas que buscam superar esses limites, o desafio da
integração com as ciências humanas e sociais. Destacam-se, nesse sentido, os
esforços produzidos no contexto da vertente da epidemiologia social, a partir
da segunda metade do século XX.4
No entanto, existe um limite epistemológico para uma integração mais
efetiva que não é passível de ser resolvido apenas no interior da disciplina.
No presente trabalho, considera-se que a propensão do humano e do social ser
trabalhado de forma limitada na epidemiologia é decorrente de uma conceituação
reduzida do corpo e da doença. Os conceitos que definem a base material do
corpo não estão articulados às formas de conceber as características humanas
estudadas nas ciências sociais.
O corpo humano é concebido como composto por diferentes níveis de
organização com complexidade crescente. Diferentes disciplinas descrevem esses
níveis de realidade mediante linguagens que não dialogam com facilidade entre
si. O corpo não é em si dissociado, mas apresenta-se dissociado nas diferentes
perspectivas que o estudam. O maior desafio para uma efetiva integração entre
as ciências e, conseqüentemente, entre a epidemiologia e ciências humanas e
sociais, seria encontrar um vínculo capaz de unificar epistemologicamente esses
distintos níveis de realidade, sem desconsiderar descontinuidades, emergências
e originalidade entre eles.
Os critérios de demarcação das diferentes disciplinas se valem, entre
outros, dos atributos da quantidade e da qualidade. Uma questão importante para
se pensar a integração desejada é interrogar o porquê da tendência de
identificação da dimensão da qualidade com a abordagem das ciências sociais; e
a da quantidade com o estudo da doença biológica. Qualidade e quantidade são
duas faces inseparáveis dos fenômenos, anteriores à delimitação de competências
das disciplinas. Há uma diferença de valor entre a saúde e a doença e essa
variação é social, cultural e, ao mesmo tempo, biológica.
Nesse contexto, a contribuição filosófica de Canguilhem toca um aspecto
crucial da cisão entre natureza e cultura. Ele considerou qualidade uma
característica inscrita na condição vital. A tese que Canguilhem defendeu na
década de 1940,7 apresenta uma profundidade que precisa ser
resgatada, ao apontar para um elo potencial entre os distintos níveis de
organização do vivo.
Segundo o autor, a medicina, enquanto técnica terapêutica, seria um
prolongamento da capacidade biológica de apreender como negativos (patológicos)
certos estados ou comportamentos. Com a medicina, o ser humano desdobra um
efeito espontâneo e peculiar à vida para lutar contra o que se apresenta como
obstáculo à sua manutenção. Canguilem afirma:
"... que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é
possível, que a vida é polaridade e por isso mesmo, posição inconsciente de
valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa. Em filosofia,
entende-se por normativo qualquer julgamento que aprecie ou qualifique um fato
em relação a uma norma, mas essa forma de julgamento está subordinada, no
fundo, àquele que institui as normas. No pleno sentido da palavra, normativo é
o que institui as normas. E é neste sentido que propomos falar sobre uma
normatividade biológica"7 (p.96).
O conceito de normatividade biológica é essencial ao pensamento de
Canguilhem. Segundo ele, a interrogação sobre o sentido vital dos
comportamentos e normas dos seres vivos faz parte da biologia.6 Este
conceito está na raiz do problema da integração entre ciências humanas e
biologia e também dialoga com as interrogações das ciências da natureza em sua
tentativa de explicar a vida.
No texto "O Problema da Normalidade na História do Pensamento
Biológico"6 Canguilhem dialoga com o trabalho de
Schroedinger "O que é vida". Segundo Schroedinger, a vida é um
comportamento peculiar da matéria em que uma ordem pré-existente é capaz de ser
conservada. A vida contraria, mesmo que provisoriamente, os princípios de a
matéria física tender à entropia. Ele denominou de neguentropia, a capacidade
do vivo de manter ordem a partir da ordem.16
Para Canguilhem, a física e a química não seriam capazes de responder a
esta propriedade da organização vital. A biologia se encarregaria desta
qualidade original de uma "certa quantidade física". Considerando
esta propriedade original, a biologia não poderia prescindir do conceito de
normalidade. A capacidade da vida perseverar e a manutenção da entropia
negativa não poderiam ser explicadas pela noção da improbabilidade do sistema
sem estarem vinculadas à capacidade normativa. A capacidade de autoconservação
não poderia ser devida a qualquer improbabilidade física, mas a uma capacidade
de realizar determinadas 'escolhas' fisicamente improváveis. "Teremos que
associar a definição da neguentropia total à improbabilidade ou antes ao
valor?"6 (p.121).
Canguilhem foi acusado de vitalismo, ao atribuir capacidade valorativa
ao mais simples ser vivo e ao propor a definição de uma região epistemológica própria
da biologia, diferenciada das regularidades físico-químicas. Esse aspecto
controvertido do pensamento de Canguilhem deve ser objeto de maior reflexão por
estar no núcleo de questões ainda não resolvidas.
Valor como algo inscrito na biologia e originalidade do ser vivo não
excluem pensar a possibilidade de uma explicação física sobre a vida. Como
veremos adiante, físicos admitiram essas características em suas interrogações.
Um vitalismo em Canguilhem poderia ser atribuído à sua tentativa de demarcar,
mediante o conceito de normatividade, uma epistemologia própria da biologia. O
problema dessa proposição consiste em que a normatividade biológica não pôde
ser equacionada também pela biologia.
Os biólogos descreveram a vida fracionando-a em seus constituintes,
mediante a miniaturização crescente dos seus objetos.
"Ora, as análises precedentes não terão confundido o nível dos
fenômenos conhecidos e vividos e o nível dos fenômenos explicados? A
normalidade aparece como uma propriedade dos organismos mas desaparece ao nível
dos elementos da organização"6 (p.121).
O conceito de normatividade vital é relativo à propriedade de
autoconservação do ser vivo, referida por Canguilhem como um dado da vida. A
vida tem a condição de perseverar em uma condição fisicamente improvável,
fluindo entre conservação e plasticidade. Essa característica da vida é
assinalada em conceitos como auto-organização, autopoiese,14,12 que
buscam descrever, mas também não alcançam explicar a propriedade fundamental do
ser vivo.
Ao afirmar que a autoconservação se deve a uma capacidade normativa,
Canguilhem estaria atribuindo a todo ser vivo uma condição propriamente humana?
Ao afirmar a técnica terapêutica como prolongamento de uma condição biológica,
presente nas formas mais simples de vida, estaria considerando o ser vivo
unicelular portador de características equivalentes às do homem?
A linguagem é demarcadora do humano. Ela seria uma emergência
radicalmente nova ou teria raiz em algum atributo essencial à preservação da
vida em sua forma mais simples? Atribuir valor ao ser vivo seria uma
extrapolação antropomórfica? Existe uma dificuldade de conceber o conceito de
normatividade biológica independentemente da forma humana de experimentar essa
circunstância. Seria hipoteticamente possível a idéia de uma capacidade de
escolha biológica inconsciente não mediada pela complexidade da condição
simbólica humana?
Do ponto de vista aqui defendido, o conceito de normatividade vital é
chave na busca de respostas ao desafio da integração entre corpo e mente e, por
conseqüência, da integração entre as ciências. Canguilhem deixou em aberto um
problema que físicos do século XX e XXI interrogam crescente e intensamente.
Questionamentos produzidos a partir da física do século XX permitem avançar o
diálogo entre física e biologia.
O modelo mecanicista clássico é base da estrutura epistêmica da
biologia. No início do século XX, esse modelo foi questionado na física por não
ser capaz de explicar fenômenos descritos de forma mais adequada pela mecânica
quântica. No contexto das novas teorias da física, o tema da vida se apresentou
de forma mais acentuada em meio a grandes interrogações abertas nesse processo
de construção teórica.
Em artigos na primeira metade do século XX, Bohr propôs uma reflexão
sobre vida e física atômica, abordando a unidade do conhecimento e a
possibilidade da vida vir um dia a ser explicada pela física.5
Bohr propôs o princípio da complementaridade para explicar um dos
aspectos da teoria quântica: a dualidade onda-partícula. Em situações experimentais,
uma determinada medida só revela uma natureza ondulatória ou corpuscular de um
objeto, de forma que é impossível, no mesmo experimento, mostrar sua dupla
natureza. Para que se tenha um entendimento completo de um sistema, é
necessária uma complementação de informações, de acordo com o aparato
experimental construído:
"... os dados obtidos em diferentes condições experimentais não
podem ser compreendidos dentro de um quadro único, mas devem ser considerados
complementares, no sentido de que só a totalidade dos fenômenos esgota as
informações possíveis sobre os objetos"5 (p.51).
O princípio da complementaridade não seria restrito aos fenômenos
atômicos. Bohr propôs que ele poderia fundamentar a descrição da organização
dos seres vivos:
"... a rigor, as características essenciais dos seres vivos devem
ser buscadas numa organização peculiar, na qual características que podem ser
analisadas pela mecânica comum entrelaçam-se com características tipicamente
atomísticas, num grau que não encontra paralelo na matéria
inanimada" 5 (p.11).
Bohr reconhece uma analogia entre a análise dos fenômenos atômicos e
aspectos característicos da psicologia humana. Na descrição de experiências
psíquicas, há uma relação de complementaridade semelhante à da descrição de experiências
referentes ao comportamento dos átomos e das partículas sub-atômicas, obtidas
em diferentes situações experimentais. Dessa maneira, o autor ressalta
"uma questão epistemológica que é comum a ambos os campos"5 (p.34).
Não existe um discurso que vincule a psicologia à física quântica, mas a
aproximação epistemológica que Bohr identifica entre ambas sugere que o
princípio da complementaridade pode ter correspondência com fenômenos
biológicos, psíquicos e sociais.
A biologia poderia ser expandida se houvesse uma melhor compreensão das
suas relações com a física atômica? Essa hipótese é possivelmente hoje mais bem
explorada do que na época que Bohr escreveu. Porém, o problema ponderado por
ele, de que construir um arranjo experimental adequado à observação de
fenômenos quânticos na substância viva seria incompatível com a sua manutenção,
é um empecilho para teorias mais precisas. O reconhecimento de que a física
atômica é importante para explicar características dos organismos vivos não foi
ainda suficiente para entender de forma abrangente o fenômeno biológico. Bohr
já interrogava:
"A questão que está em pauta, portanto, é se ainda faltam aspectos
fundamentais na análise dos fenômenos naturais para que possamos chegar a uma
compreensão da vida com base na experiência física... Por um lado, as
maravilhosas características constantemente reveladas nas investigações
fisiológicas, e que diferem tão marcantemente do que se conhece sobre a matéria
inorgânica, levaram os biólogos a crer que nenhuma compreensão adequada dos
aspectos essenciais da vida é possível em termos puramente físicos. Por outro,
dificilmente se poderia dar uma expressão não ambígua à visão conhecida como
vitalismo, que parte do pressuposto de que uma força vital peculiar,
desconhecida dos físicos, rege toda a vida orgânica"5 (p.
12)
Bohr não admitiu que a vida possa ser independente de regularidades
físicas passíveis de descrição na natureza, mas não as restringiu a processos
físico-químicos descritos apenas no contexto da mecânica clássica. Além disso,
reconheceu que os organismos exercem poder de escolha:
"... a lição geral da física atômica, e, em particular, do alcance
limitado da descrição mecanicista dos fenômenos biológicos, sugere que a
capacidade que os organismos têm de se adaptar ao ambiente, inclui o poder de
escolher o caminho mais apropriado para esse fim"5 (p.
99).
A continuidade das discussões entre físicos sobre a natureza da vida
destaca a importância do conceito de normatividade vital na consideração de um
dos maiores desafios da ciência no século XXI, ligado ao problema da integração
entre corpo e mente e, por conseqüência, da integração entre as ciências. Roger
Penrose, no final do século XX, indagava:
"... os neurônios são células e as células são coisas muito
elaboradas. Na realidade, elas são tão elaboradas que, ainda que só tivéssemos
uma delas, poderíamos fazer coisas muito complicadas. Por exemplo, um
paramécio, um animal unicelular, é capaz de nadar até o alimento, fugir do
perigo, transpor obstáculos e, aparentemente, aprender com a experiência. Todas
estas são qualidades que pensaríamos requerer um sistema nervoso, mas o
paramécio certamente não tem sistema nervoso. No melhor dos casos, o paramécio
seria ele próprio um neurônio! Com certeza não existem neurônios num paramécio
- há apenas uma única célula. O mesmo tipo de afirmação poderia ser aplicado a
uma ameba. A pergunta é: 'Como fazem isso?' "15 (p. 139).
Considerar que a integração entre epidemiologia e ciências humanas e
sociais está ligada a um debate que envolve a filosofia da biologia em sua
relação com a das ciências da natureza traz um problema. Um pensamento capaz de
sintetizar conhecimentos de campos tão diversos não pode ser construído sem a
colaboração entre pesquisadores de distintas formações.
Por exemplo, o princípio da complementaridade não foi consensual nas
interpretações sobre as conseqüências epistemológicas da descrição atômica. O
debate estabelecido entre Bohr e Einstein5 é controverso até
hoje. Não haveria como aprofundá-lo no presente artigo, mas vale chamar atenção
para a existência de questões em aberto, tanto na epistemologia da física como
da biologia, que precisam ser mais bem relacionadas.
Conflitos históricos como os que dividiram
mecanicistas e vitalistas podem ser apenas duas formas de lidar com uma
ignorância. Quem sabe, estamos diante de uma questão a ser respondida de uma
maneira distinta daquela que simplesmente garantiria uma "vitória" a
uma das duas correntes. Há exemplos no passado de
que superações no conhecimento ocorreram vinculadas a transformações profundas
na natureza do discurso, da percepção e do saber, como analisado por Foucault10 em
relação à medicina moderna.
A epidemiologia é articulada às ciências da vida e à medicina modernas,
mas o seu desenvolvimento histórico foi marcado anteriormente por uma
cosmovisão em que processos de saúde e doença foram concebidos integrados a
condições geográficas, históricas, econômicas, sociais e culturais. Os desafios
para a integração contemporânea entre epidemiologia e ciências humanas e
sociais estão ligados aos da integração entre as ciências. A biologia, a
medicina e as ciências humanas e sociais, ou seja, as ciências que surgiram no
limiar da modernidade, podem se transformar no contexto das mudanças nas
ciências da natureza. Dessa forma, é importante acompanhar o rumo das suas
descobertas e indagações.
No que compete à epidemiologia, cabe resgatar a herança de um pensamento
sintético, capaz de superar o limite do conhecimento dicotômico e fragmentado
que caracterizou a ciência moderna. Não há fórmula fácil para estabelecer
diálogo rigoroso entre ciências que apresentam linguagens herméticas e
diferentes entre si. Uma maneira de tentar superar essa dificuldade é ousar
interlocuções a serem complementadas, corrigidas e superadas em sucessivas
tentativas. Pensar de forma integrada no século XXI é um esforço coletivo e o
discurso acadêmico precisa abrir-se mais a esse desafio.
AGRADECIMENTOS
A Nami Fux Svaiter, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas (CBPF) e à Teresa Cristina Soares, aluna do doutorado da Escola
Nacional de Saúde Pública (ENSP), a discussão de algumas dessas idéias em grupo
de estudo sobre epistemologia das ciências da vida e física quântica.
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epidemiologia. In: Costa DC, organizador. Epidemiologia: teoria e objeto. São
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Correspondência | Correspondence:
Dina Czeresnia
R. Leopoldo Bulhões 1480 Manguinhos
21041-210 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail: dina@ensp.fiocruz.br
Dina Czeresnia
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E-mail: dina@ensp.fiocruz.br
Recebido: 17/12/2007
Aprovado: 20/5/2008
Projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Edital Universal. Processo 473030/2004-7).
Aprovado: 20/5/2008
Projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Edital Universal. Processo 473030/2004-7).
Referências
https://www.scielosp.org/article/rsp/2008.v42n6/1112-1117/pt/
01/08/2020 15h36 Atualizado há um dia
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https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/08/01/mascaras-cloroquina-correcao-o-que-idas-e-vindas-na-pandemia-ensinam-sobre-a-ciencia.ghtml
https://youtu.be/o7Gu4sMXTFo
https://www.youtube.com/watch?v=o7Gu4sMXTFo
https://youtu.be/geZjds80-G0
https://www.youtube.com/watch?v=geZjds80-G0
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