sexta-feira, 17 de julho de 2020

Venha ver o pôr do sol



– Lygia Fagundes Telles


ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.



Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
– Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
– Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
– Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância…Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
– Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hem?!
– Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo.
– Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado…Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?
– Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
– Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. – Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
– Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
– Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso, fabuloso!…Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério…
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
– Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura…
– E você acha que eu iria?
– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.
– Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
– Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
– Mas eu pago.
– Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
– Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
– Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
– É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
– Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo…
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
– É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
– Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
– Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
– Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
– É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
– Ele é tão rico assim?
– Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro…
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
– Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
– Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
– É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
– Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – A minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
– Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega Ricardo, quero ir embora.
– Mais alguns passos…
– Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
– A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
– Sua prima também?
– Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
– Vocês se amaram?
– Ela me amou. Foi a única criatura que…- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
– Eu gostei de você, Ricardo.
– E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
– Esfriou, não? Vamos embora.
– Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
– Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
– Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
– Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
– E lá embaixo?
– Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
– Todas estas gavetas estão cheias?
– Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
– Vamos, Ricardo, vamos.
– Você está com medo?
– Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
– A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?…- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
– Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando…
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
– Pegue, dá para ver muito bem…- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
– Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida…- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
– Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
– Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
– Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
– Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra…
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
– Boa noite, Raquel.
– Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… – gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
– Não, não…
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
– Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
– Não…
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
– NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.


Lygia Fagundes Telles In:.Antes do Baile Verde. 1970.
Fonte: 
Página de Beatrix
Contos, Contos de Cemitério
23 de novembro de 2008


http://www.beatrix.pro.br/index.php/venha-ver-o-por-do-sol-lygia-fagundes-telles/




Lygia Fagundes Telles

Discurso de posse

No pequeno laboratório de química dos meus tempos ginasiais, aconteciam as mais extraordinárias experiências sob a inspiração do nosso professor. Lembro-me de que era um homem pálido e meio balofo, com a mesma cara secreta de um Buda de bronze que ficava na vitrine dos bibelôs da sala de visitas da minha mãe. Falava baixo esse professor. Enfática era a voz borbulhante dos tubos de ensaio com suas soluções que ferviam sob a chama da lamparina nas famosas aulas práticas. Os misteriosos tubos de ensaio com seus lentos vapores – as fumacinhas escapando das misturas de inesperadas colorações – e que podiam explodir de repente ao invés de darem uma vaga precipitação, ah! o suspense daquelas combinações. Só ele, o químico de avental branco, parecia não se impressionar com as intempestivas ocorrências ao longo da tosca mesa esfumaçada, com ares de uma oficina de bruxaria medieval. Costumava ele fazer no quadro-negro os seus cálculos e, em seguida, anunciava: “Vocês verão agora este líquido amarelo ficar azul.” E o líquido amarelo ficava vermelho. Ele não se perturbava, era um homem calmo. Recomeçava, sem pressa, a operação, enquanto deixava escapar alguns fiapos de monólogo, “acho que algo não deu certo, hem?...”. É, concordávamos, alguma coisa não funcionou, o que seria? E, sem muito interesse pela resposta, voltávamos a acompanhar, com atenta perplexidade, os movimentos do mestre de uma Ciência tão austera. E tão esquiva. A malícia, essa escondíamos na expressão meio idiotizada que só conseguem ter os adolescentes. Certa manhã, ele chegou filosofante:  “Vejam, meninas, na Química há sempre uma larga margem de imprevistos, como na vida, que também desobedece regras e leis...Vocês vão se lembrar disso mais tarde.”
A esse grão de imprevisto – o principal – fui juntando os acessórios: o acaso que reside nos pequenos acontecimentos fortuitos. E a loucura, o terceiro grão que compõe essa estupenda fórmula, anarquizando uma ciência com a nitidez da Matemática. Anarquizando a circunstância do homem e o próprio homem, esse mesmo homem que Pascal considerava tão “necessariamente louco, que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”.
A loucura, o acaso e o imprevisto desencadeando reações dentro do mesmo caldeirão. A fogo brando, para evitar o pior.

D. Pedro I chamava a atenção da ambiciosa Marquesa de Santos (Pedro Calmon a considerava ambiciosa) para a importância de “certas misteriosas combinações”. Que combinações seriam essas? D. Pedro sabia, ele e certamente esse outro Pedro, o Calmon, que pesquisou e analisou “as vinte mil léguas submarinas” da vida do Rei Cavaleiro. Nessas combinações, que para mim começaram naquele antigo laboratório de química, residiria o luminoso mistério que é o sal da vida.
Creio que foi sob a inspiração dessas combinações instigantes que me veio a ideia de fazer vibrar a corda tensa, de extremos aparentemente antagônicos: numa ponta, Gregório de Matos, o Patrono desta Cadeira 16. Na outra ponta, Pedro Calmon, o seu último ocupante. Nessa desafiante operação, eis que me surpreendi de repente com a mesma perplexidade daquelas manhãs no laboratório de Química, diante das soluções que pareciam desacatar a previsão oficial. Que neste caso seria afastar o baiano tão ilustre que foi Pedro Calmon do anti-ilustre baiano que foi Gregório de Matos.

Contudo, aqui estou não só unindo esses extremos mas com eles dando um nó forte e quente, porque são extremos feitos da mesma incomparável matéria dos seres raros. Entrelaçados nas suas raízes por uma paixão comum: a paixão da palavra. A palavra falada. A palavra escrita.
A dementada paixão da palavra que os levou a lutar com a mesma coragem. Com a mesma generosidade – duas virtudes comuns aos dois artistas. Embora, na opinião de Carlos Drummond de Andrade, essa fosse uma luta vã:
Lutar com a palavra
é a luta mais vã
entanto, lutamos
mal rompe a manhã.
Confesso que não vejo o trovador delirante que foi Gregório de Matos acordando com a manhã, pois era nas noites boêmias que ele apurava sua viola. Quem acordava com os passarinhos era Pedro Calmon, ansioso por iniciar a luta que se assemelha a uma luta de boxe, sim, o escritor atracado à palavra como um boxeur numa contenda que é busca e encontro. Dor e celebração. Com suor e sangue, a palavra verte sangue.
O satírico do século XVII, Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno, liberto e libertino, errando “despassarado” de viola a tiracolo por Lisboa, Coimbra, Bahia, Angola e Recife. E os vínculos coincidentes com o bem-comportado orador do século XX, Pedro Calmon Moniz de Bittencourt, historiador e jurista refinado e polido, irônico, mas não sarcástico, colérico às vezes (a cólera é necessária) como no período em que foi reitor e, de peito aberto, defendeu a estudantada contra a polícia. Perspectivo e lúcido como o outro, o falso demente Gregório de Matos. Um descompondo e o outro compondo, mas testemunhando, cada qual à sua maneira e ao seu tempo, a sua gente e o seu país.
Curioso o destino desses dois baianos iluminados pela paixão da palavra falada. Na sua tormentosa viagem para Ítaca, Ulisses fez-se amarrar com cordas no mastro do navio para assim resistir ao canto sedutor das sereias. Os que ouviram Gregório de Matos com seu estilo barroco e fescenino e os que ouviram Pedro Calmon, barroco, também, mas não licencioso – os que ouviram essas duas sereias das mesmas águas não precisaram se amarrar para resistirem ao impulso de seguir o líder da ralé e o líder da elite nas universidades e academias. Pedro Calmon tinha três tribunas prediletas: a desta Academia, a do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. A tribuna do poeta era a taverna, a rua. Ele, que não tinha um “gato pingado pra puxar pelo rabo”, gostava de gatos? O gato de Pedro Calmon chamava-se Reinaldo. Gregório de Matos e o seu destino obscuro “naquela pobre Bahia fidalga, no ano do Senhor de 1684”. Pedro Calmon e o seu destino glorioso.

Mas, afinal, o que queriam esses dois sonhadores, a verdade? A verdade. Usando e abusando do poder da palavra (o terrível poder da palavra!), sondaram, analisaram e interpretaram essa verdade tão escorregadia na face dos reis e dos vagabundos. Dos poetas e dos santos. Qui est veritas?, foi perguntado ao Filho de Deus. Ele não respondeu. E lembro aqui a paixão de ambos por esse mesmo Deus – outro traço comum na natureza mais profunda das duas ovelhas, a branca e a preta, esta a mais carente. A se oferecer nos instantes de lirismo para pousar a cabeça no seio da mulher amada. Ou no Coração do Senhor:
Nesse lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer;
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, mesmo Cordeiro.
 
A beleza deve ser repetida: “Nesse lance, por ser o derradeiro, / Pois vejo a minha vida anoitecer;”
Pedro Calmon clareou essa noite quando escreveu sobre A Espantosa Vida de Gregório de Matos, tantos espantos! Sem dúvida, reconheceu que “uma centelha genial lhe abraçou a incrível facilidade do verso. Não se negue mais, aqui e em Portugal, que é dele o primado do abrasileiramento da Língua Portuguesa”.

Não se negue também que foi Gregório de Matos, com sua poesia coloquial, o criador da modinha, a famosa modinha brasileira, que ele inventou e divulgou nas suas serenatas em Coimbra. E quando para cá voltou com seu canudo de doutor e sua viola.

Influências de Gôngora e Quevedo? Sim, mas o bardo baiano não aceitava ordens ainda que viessem metamorfoseadas em influências. Foi tentado, chegou a pensar que podia vender a alma ao Diabo, quando aceitou cargos e honrarias com a condição de se calar. Durou pouco o contrato do silêncio, ah! todo o ouro do mundo não valia a sua liberdade. Jogou longe os aparatos, tirou a viola do saco e voltou às suas sátiras contra a corrupção política, contra o pedantismo e contra a hipocrisia de um reino que nunca respeitou. Orfeu amansava as feras ao som da sua lira. Com sua viola, o poeta atiçava essas feras. Arriscava-se? E muito. Mas viver perigosamente era a sua destinação.

E o poeta sem princípios tinha princípios. Os seus princípios. Se amor é transgressão, ele transgrediu à beça em todos os estados civis pelos quais passou, principalmente no estado de casado, ele gostava de se casar. Contudo, num tempo em que os homens de bem escondiam ferozmente seus amores proibidos e os frutos abomináveis desses amores, assumiu o chamado “caso escabroso”. Lá está, nos assentos da freguesia de São João da Pedreira, a confissão da paternidade: “Aos dezoito de julho de mil seiscentos e setenta e quatro batizei a Francisca, filha de Gregório de Matos e Guerra, casado, e de Lourença Francisca, solteira.”
Sem querer exagerar na relação das coincidências (o ficcionista é um exagerado), gostaria de lembrar mais um elo de coincidência e que implica uma razão como chave da corrente: eu era estudante na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (“paulista sou, há quatrocentos anos”), quando um colega me ofereceu um livro: Poesias de Gregório de Matos. Sentei-me sob as arcadas. Abri o livro. Então o bedel veio me perguntar se à noite eu não viria assistir à conferência do Professor Pedro Calmon.

Os jovens desconfiam sempre das celebridades de outra geração, mas eu estava em disponibilidade, e esse era um programa. Confesso que entrei na sala meio hesitante, levando comigo as poesias da manhã, uma garantia na hipótese de me sentar na frente e não poder fugir. O tema da conferência era Castro Alves. Entrei desconfiada e saí fascinada. O público ainda aplaudia de pé, quando pensei em felicitar o orador de sorriso franco e olhos largos, brilhantes. Não fui, havia gente demais em redor dele. Mas enviei-lhe o meu primeiro livro de contos com uma dedicatória emocionada. Dias depois, recebi o seu cartão que me deixou radiante, mostrei-o aos colegas. Só mais tarde fiquei conhecendo alguns títulos da sua vastíssima obra tão severa, tão brilhante. Destaco as biografias de Castro Alves e de D. Pedro II. E esse admirável ensaio, As Ideias Políticas do Brasil. Alguns livros eu amo. Outros, apenas admiro. Eis um livro que amei e admirei.

Araripe Júnior, crítico literário e ensaísta, foi o criador desta Cadeira de veludo azul. “O veludo da Cadeira azulou como azularam os cabelos” – ouço Gregório de Matos soprar com seu risinho irreverente.

Ralho com ele e retorno à figura do ensaísta com sua vontade de renovação – mas não é estranho? Araripe Júnior, de aparência tão convencional (as aparências!) e não se sujeitando ao convencional gosto literário da época: ele ousava. Buscava a aventura de novas linguagens e, nessa busca, voltou-se como um girassol deslumbrado para autores como Ibsen, Edgar Poe e... Gregório de Matos.
Félix Pacheco vem em seguida. Como o seu antecessor, tem o ar ajuizado da laboriosa formiga da fábula, mas gostava mesmo era de ouvir as cigarras. Foi poeta na primeira juventude. O pai queria que ele seguisse a carreira militar; rebelou-se e foi ser jornalista no Jornal do Commercio, onde começou como simples repórter policial e chegou a diretor. Foi também deputado e chanceler da República. Fala tanto nas antigas ilusões, nos sonhos, acredita mesmo que o homem pode se salvar através do sonho – ainda a inquietação do poeta de colete rigorosamente abotoado. Com a emoção arrebentando os botões em suas bizarras paixões literárias: tinha para escolher toda a bem-comportada galeria dos poetas parnasianos, mas quem ele foi buscar? Baudelaire, Rimbaud e Cruz e Sousa, o negro simbolista dos escarros e vísceras. E Gregório de Matos, naturalmente, o bem-amado dos ocupantes desta Cadeira. Félix Pacheco era feliz? Não sei. Sei que teve a coragem de assumir, já na maturidade, a sua condição de poeta, ele que passara a vida aspirando o buquê perverso das ambiguidades do mal e das ambiguidades do bem. Amava os gatos.
Imaginai agora uma reunião na linha dos malditos, dos raros. Daqueles que, pelos caminhos mais inesperados, escolhem a ruptura. Fora do tempo e ocupando o mesmo espaço, estão todos numa sala, é noite. Os gênios ignorados num País de memória curta, que parece preferir os mitos estrangeiros como se estivéssemos ainda no século XVII, sob o cativeiro do reino. Os mitos estrangeiros que continuam nos vampirizando, já estamos quase esvaídos e ainda oferecemos a jugular no nosso melhor inglês, “o vosso amor é uma honra para mim!”. Pois, imaginai essa reunião com gente aqui da terra: abraçado à sua viola, num canto de sombra, está Gregório de Matos, ouvindo embevecido o piano de Villa-Lobos. Ao lado, um homem pequeno (o Aleijadinho?) diz qualquer coisa que faz Guimarães Rosa rir seu riso luminoso. Tarsila desenha em silêncio, observada por Oswald de Andrade, que gesticula e fala, enquanto Cruz e Sousa se aproxima de Castro Alves, que conversa com Glauber Rocha em tom de conspiração. Vislumbro o perfil de Brecheret. Corre o vinho. Há mais convidados, sim, mas os vultos se esgueiram e se confundem em meio da fumaça penumbrosa dos charutos. Lima Barreto, o moderador da mesa, tira a palheta e começa a falar, mas ninguém presta atenção, reina a indisciplina: “É raro encontrar homens assim – diz ele –, mas os há, e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça.”
Pedro Calmon está atento para registrar e interpretar a contraditória História, matéria para a eternidade. Chama Mário de Andrade e aponta, na vidraça da janela, dois olhos verdes que espiam enviesados. Mário abre a porta e o sorriso. O convite é à maneira bandeiriana: “Entra, Clarice, a casa é sua, você não precisa pedir licença...”
 
Senhores acadêmicos, senhora acadêmica,
 
comecei por narrar as minhas perplexidades naquele modesto laboratório de Química da minha adolescência. Das imprevistas misturas, com suas explosões, passei para o imprevisível homem, com sua circunstância, e, assim, nesse mundo fantástico e surrealista, juntei num forte nó as pontas extremas do fio da baianidade: Gregório de Matos e Pedro Calmon. O herói e o anti-herói. “A disparidade dos seres é acidental”, ensinou Aristóteles. “A unidade dos seres, essa é essencial”. Tudo somado, chegamos às tais “misteriosas combinações” tão do agrado de D. Pedro I, desde que nelas estaria incluído o seu amor pela marquesa.
 
Senhores acadêmicos, senhora acadêmica,
 
antes de a Academia Francesa de Letras, que foi nosso modelo, receber Marquerite Yourcenar, esta Academia Brasileira de Letras teve o beau geste de abrir suas portas para Rachel de Queiroz. Em seguida, para Dinah. “Não quero um trono – diria também Rachel de Queiroz. – Quero apenas esta Cadeira.”
A mesma paixão que nos une: a paixão da palavra. A mesma luta tecida na solidão e na solidariedade para cumprir o duro ofício nesta sociedade violenta, de pura autodestruição. E neste tempo que está mais para Gregório de Matos do que para Pedro Calmon – ah! quanta matéria para a inspiração do trovador com sua viola demolidora. Um tempo que marca a plenitude da sátira, da charge política: a salvação através do humor. Com esse humor incandescente, ele iria se empenhar de novo na denúncia dos males que desde o século XVII já afligiam o País, centralizados na Política com seus demônios crônicos na delirante corrida pelo poder: o demônio da Gula (leia-se voracidade), o demônio da Vaidade e o demônio da Soberba. O burocrático demônio da Preguiça, esse vem se arrastando por último.

O duro ofício de testemunhar um planeta enfermo nesta virada do século. Às vezes, o medo. Quando perseguido, o polvo se fecha nos tentáculos e solta uma tinta negra para que a água em redor fique turva e, assim, camuflado, ele possa então fugir. A negra tinta do medo. Viscosa, morna. Mas o escritor precisa se ver e ver o próximo na transparência da água. Tem de vencer o medo para escrever esse medo. E resgatar a palavra através do amor, a palavra que permanece como a negação da morte.

Às vezes, a esperança. O homem vai sobreviver, e essa certeza me vem quando vejo o mar, um mar que talhou com tanta poluição, embora! mas resistindo. Contemplo as montanhas e fico maravilhada porque elas ainda estão vivas. Sei que é preciso apostar e de aposta em aposta cheguei a esta Casa para a harmoniosa convivência com aqueles que apostam na palavra. Sei ainda que estou feliz nesta noite: vejo minha família – meu filho Godoffredo Telles Neto deve estar por aí me filmando, é cineasta. E vejo os meus amigos. Esses amigos que me acompanham e me iluminam.
12/5/1987
Fonte: Academia Brasileira de Letras
https://www.academia.org.br/academicos/lygia-fagundes-telles/discurso-de-posse




Discurso de recepção por Eduardo Portela
A Academia Brasileira de Letras, a Casa de Machado de Assis, recebe hoje uma escritora, um escritor – a escritora Lygia Fagundes Telles. Quando digo escritor quero ressaltar um traço peculiar, uma condição insubstituível, um sentido específico. E procuro distinguir, para tornar bem clara esta decisão semântica, entre escritor, escrivinhador e escrevente. O terceiro estabelece com a Língua uma relação instrumental – é, talvez, um usuário burocrático. O segundo se nos afigura como um diletante, abandonado à sua aventura intransitiva. Jamais escreve “para”; escrivinha simplesmente. Tem alguma coisa do dandy da palavra, porém se deixa afogar na sua intransitividade congênita. Já o escritor, este, não. Ele inventa signos, imagens, objetos não identificáveis – que nos provocam, nos reencaminham, nos induzem a viver. Esses objetos são sujeitos: são vidas.

A escritora Lygia Fagundes Telles começou acompanhada dos receios inerentes a uma responsabilidade prematura. Esse receio, esse medo, que já se antecipava como medo do tempo, núcleo e força propulsora de sua narrativa vigorosamente existencial, não passou desapercebido à perspicácia de Mário de Andrade. “Escreva sem medo, não seja assim”, aconselhou ele, naqueles dias matinais. Não se sabe até hoje se o conselho já se encontrava dentro dela, guardado debaixo de sete chaves, ou se ela seguiu à risca as indicações do mestre. Sabe-se que a escritora derrotou ou domesticou o medo. Aliás, toda vez que o medo se deixa domesticar, deixa-se igualmente derrotar. O medo foi derrotado com a mais pacífica e a mais perigosa de todas as armas – a palavra: este sonho escrito, que rasga corações, deflagra revoluções, entre perplexo, eloquente e mudo, diante do seu “mistério”. Do seu “mistério”, para falar com uma palavra-chave de Lygia Fagundes Telles.

Diz um famoso médico vienense, criador de uma paraciência muito ambiciosa, tão ambiciosa que se imaginou completamente ciência, que as representações do medo podem não ser verdadeiras, mas o medo sim. Com uma diferença radical: aqui o medo não se reduz à mera produção de fantasmas, porque se dedica a criar vidas. A escritora soube perceber, como o personagem do “Verde Lagarto Amarelo”, que só lhe restara:  “escrever.” Para vencer o medo do tempo.
 
I
 
Em meio ao desconforto existencial, todo perpassado pelo travo da inadaptação, tocado ainda pela consciência infeliz, ergue-se um tempo romanesco, solitário e incomunicável. A busca do sentido da vida, a procura do “outro”, vai desdobrando um projeto narrativo que não recusa, porque abraça e leva adiante, os emblemas do desejo. A narradora evita reter ou subjugar o real. Pelos interstícios ou pelas frestas do que fora uma realidade estável e coesa, passam agora as impurezas da razão. Configura-se um realismo diferenciado, provavelmente um realismo imaginário, onde contracenam o natural e o sobrenatural, o cotidiano e o extraordinário, impulsionados pela legenda voluntariosa do “eterno retorno”. As rememorações se sucedem, porque o tempo é o centro do mundo. E as palavras se alternam, não raro, ludicamente, porque o jogo alarga o sentido.
Em uma entrevista altamente reveladora, concedida a O Estado de S. Paulo, dizia Lygia:
 
Eu sou uma jogadora. Meu pai era um jogador. Ele jogava com as fichas, eu jogo com as palavras. Eu acho que nós temos de arriscar, o tempo todo, até a morte. Então, arrisco e acho válido. É uma forma de transpor o círculo de giz, a fronteira. Isto, para o escritor, é sempre uma esperança.
Esse traço modernizante, esse salto rigorosamente qualitativo que vai da ilusão da plenitude à aventura do possível, esse risco calculado, atento às regras do jogo, instala a esperança no interior da Linguagem. E a Linguagem não é senão a Língua mais a premonição.
A Literatura então se afirma como vontade, vontade realista de domar o tempo e evitar o apodrecimento dos homens e das coisas. Essa deterioração se vê metaforizada, verticalmente, em Ciranda de Pedra.
 
II
 
A vida, essa incontrolável “ciranda de pedra”, exprime e imprime o Antropocentrismo de fundo humanista que a sociedade tomada pelas promessas modernizadoras experimentou em meio à exaltação e ao desastre. O jogo cênico que se desenrola principalmente entre Virgínia, Laura, Natércio e Daniel não esconde o impulso desmitificador, com que põe em xeque as práticas e as efusões do cotidiano pequeno-burguês. O Drama estaria fadado ao melodrama, não fosse a perícia do romancista no representar as oscilações de um mundo quase soterrado, porém sobrevivente. A crise dos padrões éticos, cindida entre o impasse social e o bloqueio psicológico, dá lugar a uma trama bem urdida, onde o desenho da desagregação consegue ser, a uma só vez, preciso e imaginoso.

Aí já se perfila um dos temas centrais da novelística de Lygia Fagundes Telles: o dos personagens insulares, que se debatem, incessante e despropositadamente, como pequenas ilhas extraviadas. A moldura ambiental, que serve de pano de fundo às peripécias de Virgínia e seus coadjuvantes inglórios, aponta para um espaço inerte, todo ocupado pela voracidade do tempo. A transcendência, ou a correta mobilização de detalhes imediatos, se desprende de sua base metonímica para multiplicar-se metaforicamente. Corta o azul do teto e o verde do horizonte. O “outro”, que permanecia deliberada ou involuntariamente oculto, se vê revelado, mas revelado como representação de afetos e linguagens truncados. Porque se desestabilizara, na derrocada moral, o conjunto social que se supunha organicamente estável. Jamais conseguiu ela ser atendida naquela aspiração verbalizada no Verão no Aquário: “Era preciso, ao menos, que não continuássemos como ilhas.”
III
 
A energia serena que atravessa o texto faz com que a sua cadência narrativa, a sua pontuação interior, consiga ser simultaneamente abrupta – o vocábulo cortante ou desbocado – e pausada – evocativa e afetuosa. Recupera-se o novo, que fora proscrito pela novidade. “A obra de Arte para mim – adianta Lygia – é um imprevisto. Um grande imprevisto de loucura.” Os sentidos alucinados revidam ou expulsam qualquer tentativa ou tentação formalista. Emerge uma espécie de razão perceptiva, que se nutre de contatos e enlaces inesperados. Quando ela deslinda e reprograma o real, é antes a percepção quem age.
Talvez se possa falar, ainda aqui, de uma razão apaixonada. A consistência da paixão aponta para a razão perceptiva, que inclui e desenvolve experiências furtivas e até chocantes. A paixão, saudavelmente impura, recusa o mundo objetivo tal qual ele se impõe e, ao agir sobre os entes, refaz o percurso e recupera o paradeiro da liberdade.
“A obra de Arte é uma criação de liberdade, de liberdade e de amor” – acrescenta Lygia Fagundes Telles, como quem retoca os termos de uma poética descontraída e aberta. Mas a liberdade, no seu afã de transpor os limites, deseja afirmar-se diante do tempo: esse animal narrativo, imperturbável e imprevisível.
Há uma explicitação no romance As Meninas, de alguma maneira ilustrativa: “– Tinha um relógio grande assim na torre e eu queria me agarrar nos ponteiros, segurar as horas, por que é que o tempo não parava um pouco? Queria ficar lá dependurado, segurando o tempo.” A razão perceptiva parece tocar fisicamente no tempo, animada pela hipótese, mesmo que remota, de redução da sua velocidade.
 
IV
 
A narrativa de Lygia Fagundes Telles, as suas “ficções”, para lembrar o “memorioso” Jorge Luis Borges, são o tempo, o tempo todo. Sobretudo porque o tempo tem, é, a chave do sentido. E, motor da criação, a sua tarefa maior, o seu encargo prioritário, consiste em recuperar as ocorrências passadas ou gravadas na memória. Por isso, escrever é rememorar – rememoração direta e rememoração oblíqua e dissimulada, em virtude da qual o homem, mais que tudo a sua letra impressa, luta subversivamente contra o poder onipotente do tempo.
Os personagens envelhecidos, e tanto mais isolados quanto mais envelhecidos, desvelam a consciência dolorosa da fugacidade do tempo.

É assim em “Apenas um Saxofone”, no diálogo que se estabelece entre a narradora e a sala repleta de objetos antigos: “É que fomos escurecendo juntas, a sala e eu.”
É assim em “Helga”:
 
Como é difícil reconstituir os acontecimentos! Lembrar o ano em que tudo aconteceu já exige esforço. Distribuir os fatos pelos meses não consigo. Mas ordenar os sentimentos é para mim totalmente impossível. Revivo o tempo da contemplação de sua beleza e depois os instantes de fundo desejo. 
 
É assim também em “A Chave”: “Agora era tarde para dizer que não ia, agora era tarde.”
E assim por diante.
A narrativa de Lygia Fagundes Telles se estende como paisagem da rememoração e se autolegitima, a todo momento, como deliberação, vontade mobilizada de resgate do “mistério”. O mistério que se dessacraliza porque se confunde com a vida e avança como força propulsora da criação. E a outra face da medalha do tempo, que se concretiza no texto, nos domínios verbais do imaginário. E Lygia não deixa dúvidas, quando afirma: “É o texto que responde ao tempo. Este é o mistério da criação.” Daí, o seu investimento constante no resgate do mistério – a vida.
Estrutura da Bolha de Sabão, uma de suas mais bem realizadas histórias curtas, pode ser lida como metáfora do mistério, que se resolve pela paixão, tripartida entre a criação, o amor e a morte. Os olhos da paixão aumentam o mundo, mesmo porque as dimensões da paixão constituem o caminhar do mistério. Por isso, a criação vem a ser uma paixão paciente, movida pela “disciplina do amor”.
Mais uma vez criar, resgatar o mistério, é ganhar o tempo. A pertinência ficcional de Lygia Fagundes Telles jamais se furta em mostrar que a paixão nunca obscurece a visão, porque limpa e apura o campo visual, nos limites em que se movimentam, repousam ou se enervam, as nossas impacientes retinas.
Ao amor fica reservado o desempenho essencial, na medida em que nele se concretiza o encontro, a revelação do mistério, embora emaranhado na sua fugacidade irreversível. Se cada ser humano é um tempo particular, o desencontro termina sendo passagem obrigatória. O amor nasce ferido de morte. A finitude do amor desaba sobre a vida como uma espécie de fatalidade. Mas de qualquer modo, ferido ou combalido, é ainda o amor a fonte da vida. O olhar matizado de Lygia Fagundes Telles nos faz ver que não há outro roteiro para a salvação. Tudo o que quer o amor é se apossar do tempo, para vencer a morte e ganhar a vida.

Está bem claro que o discurso capaz de dar conta dessa astúcia, dessa desolação ou dessa ousadia, só pode ser o discurso vazado do realismo imaginário. Ele é ambivalente por excelência, aguçado pela crise do sujeito individual, na rota moderna que nos conduz das “ilusões perdidas” até a “era da suspeita” ou das “incertezas”. A mímesis recupera o seu vigor antigo e faz a opção do fantástico. “As formigas”, relato emblemático, se descolam da terra. Os anões, referência persistente, significam entidades fora do tempo – deslocadas: o meio caminho sem percurso.
É necessário reforçar a ação perceptiva com a ajuda da imaginação; deixar para trás o que seriam as pautas neonaturalistas, em função das quais o fantástico passaria ao largo da realidade, e o mistério seria um fator de perturbação da ordem narrativa. Na verdade, a vida, o mistério e o fantástico são termos correlatos, que se desgarrariam na apreensão empírica ou na prisão fatual. Na ficção, nunca. A criação quer de volta, refortalecido e diversificado, o mistério da vida.
 
V
 
Como surpreender o sentido da vida em meio à solidão? Como experimentar o desencontro, no corpo e na alma, sem se abandonar ao niilismo? As Histórias do Desencontro, que reúnem heróis destituídos, herdeiros deserdados, parceiros extraviados, inauguram, de modo insólito, a solidão acompanhada. Aquela solidão que aflora, dramática e ironicamente, no conto “Eu Era Mudo e Só”. “Mas, se é difícil carregar a solidão – diz a autora – mais difícil ainda é carregar uma companhia. A companhia resiste, a companhia tem uma saúde de ferro!”
A força da subjetividade confere um elevado estatuto ficcional a esses enredos partidos. Quando as lembranças projetam imagens da dissolução geral, os seres e as coisas registram os mínimos abalos. Os objetos são objetos do sujeito, porque nos primeiros estão cravados afetos e desafetos do segundo. O próprio espaço pode ser percebido como projeção da dor individual, moída pela roda enferrujada do tempo. Os objetos corroídos e desbotados, em tantos relatos evocativos, em “A Caçada”, precisamente, recebem toda a carga do tempo degradado. Daí o valor da juventude. “Antes do Baile Verde” é a alegoria da juventude, desdobrada sobre a recusa da morte e o convite auspicioso, vital, amoroso, da festa. “Apenas um Saxofone” é a exaltação da juventude, “a única coisa que existe”: a respiração que passa desapercebida até que se perturba. “Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar?”, fala a personagem. A juventude representa o tempo sem mediação, inconsciente e alado.
Persiste, velada ou explicitamente, a questão do sentido, da crise do indivíduo encarnado socialmente: persiste por entre as formas informais da subjetividade, que culminam nos fragmentos de A Disciplina do Amor. As narrativas abertas, os pedaços de textos infensos à conclusão, guardam a sua tragicidade ancestral. O sentimento trágico da vida advém da impossibilidade de ultrapassar o tempo e nos segue de perto, ao longo das diferentes etapas da modernidade. A própria compreensão do envelhecimento, sustentada pela antiga ideia da claridade e da nitidez, parece abrigar a visão épica do mundo. Daí a irreparável sensação de perda, a intensificação do jogo contrastivo que busca a saída para o impasse comunicativo. A saída somente poderia ser utópica. E o lugar real dessa utopia, dessa esperança concreta, dessa revelação do mistério, é a Literatura. Mas a Literatura de um escritor, de um criador de linguagens.

Quem se aproxima da rigorosa humanidade de Lygia pode compreender, sem se entregar ao biografismo fácil, o quanto a pessoa influiu no personagem. Influiu sem dirigir, sem subjugar os movimentos livres da cena. Influiu no alto teor ficcional, influiu na temperatura afetiva das reconstituições, influiu no exercício sem alarde, no exercício silencioso e pontual da solidariedade, que é, nos mínimos gestos reclusos, a façanha de um encontro ao mesmo tempo intelectual e humano.

Esta escritora radical, enraizada, que estamos recebendo agora – Lygia Fagundes Telles –, já pertencia, de há muito, à família espiritual do fundador desta Casa, não por acaso também conhecido como o Bruxo do Cosme Velho. É justo que a recebamos nesta noite, felizes e reconfortados. Reconfortados e felizes por sermos confrades de Lygia Fagundes Telles.
   
12/5/1987
Fonte: Academia Brasileira de Letras
https://www.academia.org.br/academicos/lygia-fagundes-telles/discurso-de-recepcao





Colorir Papel - Levi Lima [ Trilha Sonora da Novela Fina Estampa] [ Legenda]
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cjwrSf7ZEe4&feature=youtu.be
Acesso em:
17/07/2020




“Eu não sou ministro, eu estou ministro”





Ministério lamenta a morte do educador Eduardo Portella

O Ministério da Educação lamenta a morte do ex-ministro da Educação Eduardo Portella, que esteve à frente da pasta durante o governo do então presidente João Baptista Figueiredo. Em sua gestão, Eduardo Portella foi imortalizado pela frase “Eu não sou ministro, eu estou ministro”, que traduziu sua humildade enquanto homem público.
Eduardo Portella sempre teve em sua trajetória o compromisso com a educação brasileira. Ele assumiu também, na década de 1980, a pasta de Educação, Cultura e Comunicação da Comissão de Estudos para a Constituição de 1988. Coube ao ex-ministro, ainda, a presidência da Conferência Mundial da Unesco de 1997 a 1999 e o assento como imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), em que ocupou a cadeira 27 desde o ano de 1981.
Neste momento de dor, prestamos condolências aos amigos e familiares, como também nos colocamos à disposição.
Mendonça Filho, ministro da Educação

Fonte: Ministério da Educação
http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/42841-eduardo-portella






Referências


http://www.beatrix.pro.br/imagens/papahadrianv.jpg
http://www.beatrix.pro.br/index.php/venha-ver-o-por-do-sol-lygia-fagundes-telles/
https://www.academia.org.br/sites/default/files/academicos/fotografias/lygia-fagundes-telles.jpg
https://www.academia.org.br/academicos/lygia-fagundes-telles/discurso-de-posse
https://www.academia.org.br/academicos/lygia-fagundes-telles/discurso-de-recepcao
https://youtu.be/cjwrSf7ZEe4
https://www.youtube.com/watch?v=cjwrSf7ZEe4&feature=youtu.be
http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/42841-eduardo-portella

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